THIAGO OLIVEIRA RODRIGUES [1]
(coautor)
JULIANO DE OLIVEIRA LEONEL [2]
(orientador)
RESUMO: O presente trabalho tem por objeto analisar o (des)valor probatório do inquérito policial com a implementação do juiz das garantias e da teoria da dissonância cognitiva. Desenvolve um dos maiores problemas acerca do impacto na imparcialidade do juiz sentenciante devido ao seu contato prévio com o inquérito policial, buscando as posições dos doutrinadores sobre seu valor probatório perante a atual sistemática, a sistemática adotada pela lei 13.964/19 - pacote anticrime - e como a sua livre disposição no processo prejudicaria a manutenção da originalidade cognitiva do juiz sentenciante. Analisa os impactos estudados pela teoria da dissonância cognitiva, como o efeito pós-primeira impressão, e a criação de pré-julgamentos. Sua relevância se deve a compreensão do papel do inquérito policial e seu valor probatório antes e depois da presença do juiz das garantias e como a exclusão do inquérito policial dos autos do processo não impactará em seu esvaziamento. Para tanto, utilizou-se a metodologia dedutiva que será discutida ao longo do estudo por meio de legislação e conceitos e posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais acerca do valor probatório do inquérito policial e as inovações dadas pelo pacote-anticrime.
PALAVRAS-CHAVE: juiz das garantias, desvalor probatório, inquérito policial, pacote anticrime, dissonância cognitiva.
ABSTRACT: The present work aims to analyze the probative (dis)value of police investigation with the implementation of the judge of guarantees and the theory of cognitive dissonance. It develops one of the biggest problems about the impact on the impartiality of the sentencing judge due to his previous contact with the police investigation, seeking the positions of the indoctrinators about its probative value before the current system, the system adopted by law 13.964/19 - anti-crime package - and as its free disposition in the process would harm the maintenance of the sentencing judge's cognitive originality. It analyzes the impacts studied by the theory of cognitive dissonance, such as the after-first impression effect, and the creation of pre-judgments. Its relevance is due to the understanding of the role of the police investigation and its probative value before and after the presence of the judge of guarantees and how the exclusion of the police investigation from the case file will not impact its emptying. For that, we used the deductive methodology that will be discussed throughout the study through legislation and doctrinal and jurisprudential concepts and positions about the probative value of police investigation and innovations given by the anti-crime package.
KEYWORDS: Warranty Judge, evidential worthlessness, police investigation, anti-crime package, cognitive dissonance.
SUMÁRIO: 1. Introdução – 2. Sistemas processuais penais e seus princípios norteadores. 2.1 Breve análise do sistema processual penal brasileiro. 2.2 Conjuntura do contraditório e da ampla defesa no sistema acusatório. 2.3 Princípio da imparcialidade e seus aspectos na atuação do magistrado oficiante na instrução e julgamento. 3. Inquérito policial e sua relevância perante a sistemática processual adotada no Brasil. 3.1 Característica inquisitiva como móvel da divergência entre atos de investigação x atos de prova. 3.2 Valor probatório e suas divergências. 3.2.1 Valor probatório relativo. 3.2.2 (Des)valor probatório integral. 3.2.3 Breve introdução à teoria da dissonância cognitiva. 3.2.4. Contribuição da teoria da dissonância cognitiva para o (des)valor probatório integral do inquérito policial. 4. Juiz das garantias e seus impactos no inquérito policial. 4.1 Breves considerações acerca do juiz das garantias no processo penal brasileiro. 4.2 Exclusão do inquérito policial dos autos do processo e a manutenção da originalidade cognitiva do magistrado sentenciante. 5. Conclusão. 6. Referências.
1.INTRODUÇÃO
A presente pesquisa busca analisar o impacto da estrutura inquisitiva do inquérito policial no processo penal brasileiro e seu valor probatório perante a implementação da lei 13.964/19, observando a implementação do instituto do juiz das garantias e a exclusão do inquérito policial dos autos do processo (BRASIL, 2019).
Logo, confere-se por delimitação do tema o valor probatório do inquérito policial com a implementação do juiz das garantias e quais seriam as consequências prejudiciais perante a originalidade cognitiva do seu contato direto pelo juiz que irá proferir uma sentença condenatória.
Sendo assim, eis o problema de pesquisa: como se dá a problemática da originalidade cognitiva do juiz da instrução e julgamento em contato com os atos investigativos produzidos no inquérito policial com o advento do juiz das garantias, implementado pela lei 13.964/19 - pacote anticrime?
O desdobramento da pesquisa terá como base a revisão bibliográfica ao redor do tema valor probatório do inquérito policial, a fim de comprovar possíveis burlas com relação às garantias individuais e processuais dadas àqueles que se encontram no polo passivo de um processo penal, com sentenças condenatórias ilustradas em um sistema inquisitivo, em total descompasso com a Constituição Federal do Brasil de 1988 e com o sistema adotado pelo código de processo penal brasileiro.
Logo, com o advento da lei 13.964/19 – pacote anticrime estipulação do juiz das garantias e seus impactos no inquérito policial, justas se fazem a análise da originalidade cognitiva dos magistrados diante da instrução e julgamento e as consequências de seu prévio contato com o inquérito policial, pois prevê o artigo 155 do Código de Processo Penal Brasileiro, que o juiz poderá usar os elementos investigativos como fonte suplementar de decisão (BRASIL, 2008).
Para chegar às considerações finais da pesquisa, propõe-se trabalhar, num primeiro instante, os sistemas processuais penais e seus princípios norteadores, adentrando no sistema processual adotado no Brasil, o impacto da imparcialidade na atuação do magistrado e o princípio do contraditório e a ampla defesa no sistema acusatório. Ademais, examinar-se-á o inquérito policial e sua relevância diante do sistema acusatório adotado no Brasil, sua característica inquisitiva como móvel da divergência entre atos de investigação e atos de prova, como também o seu valor probatório e suas divergências entre valor probatório relativo e seu (des)valor probatório integral, e a respectiva análise da teoria da dissonância cognitiva como contribuição para o (des)valor probatório integral. Por fim, a reflexão sobre o juiz das garantias e seus impactos no inquérito policial brasileiro, ante a exclusão do inquérito dos autos do processo.
A pesquisa foi desenvolvida pelo método dedutivo, no que diz respeito à analise bibliográfica, por meio de consultas de obras, artigos científicos, teses, dissertações, legislação, doutrinadores e jurisprudência atinente à matéria. A pesquisa tem como objetivo específico o debate sobre a influência da adoção da exclusão do inquérito policial dos autos do processo no seu valor probatório e a manutenção da originalidade cognitiva do juiz.
Por fim, objetiva-se apresentar uma pesquisa com o intuito de demonstrar a dificuldade da manutenção da originalidade cognitiva dos magistrados quando já possuem contato com os elementos de investigação produzidos em sede inquisitorial e quais seriam os impactos da adoção do instituto do juiz das garantias e da exclusão do inquérito policial dos autos do processo nessa sistemática, sem o propósito de esgotar o assunto.
2.SISTEMAS PROCESSUAIS PENAIS E SEUS PRINCÍPIOS NORTEADORES
A sistemática processual penal, em suma, expressa-se na relação e nas funções desempenhadas pelas figuras da acusação, da defesa e do juiz. A abordagem na doutrina do conjunto de normas de um ordenamento jurídico que regem a aplicação do direito penal geralmente é feita pautada em três sistemas: o inquisitivo, misto e acusatório.
O sistema inquisitivo predominou na linha do tempo do processo penal expressivamente a partir do século XIII, alavancado pela instauração do Tribunal do Santo Ofício instituído pela Igreja Católica durante a Idade Média para apurar, julgar e penalizar condutas tidas por heresia e outras afrontas à moral e à fé católica da época.
Segundo Guilherme Nucci (2021, p. 31) o sistema inquisitivo tem por características principais:
Caracterizado pela concentração de poder nas mãos do julgador, que exerce, também, a função de acusador; a confissão do réu é considerada a rainha das provas; não há debates orais, predominando procedimentos exclusivamente escritos; os julgadores não estão sujeitos à recusa; o procedimento é sigiloso; há ausência de contraditório e a defesa é meramente decorativa.
Dessa forma, se extrai a marca da sistemática inquisitorial: a aglutinação de funções nas mãos de um só autor do processo, no caso, o juiz, que inquire, acusa, produz provas, e julga, ignorando significativamente a defesa, quando se tem (NUCCI, 2021). Assim, a ausência de garantias ao acusado abre campo para excessos processuais, com total disparidade de armas (AVENA, 2019).
O sistema acusatório se caracteriza pela distinção de funções dos atores do processo penal, em contrapartida à aglutinação destas funções no sistema inquisitivo. Sua origem remonta ao direito grego, onde vigorava a sistemática de acusação popular de crimes graves e de acusação privada para ações delituosas menos graves, bem como ao segundo período evolutivo do processo penal romano, em que a expansão do Império fez necessária a criação de mecanismos mais eficazes para a investigação de determinados crimes.
Segundo Ferrajoli (2006, p. 518), “são características do sistema acusatório a separação rígida entre o juiz e acusação, a paridade entre acusação e defesa, e a publicidade e a oralidade do julgamento”. Dessa forma, sistema acusatório tem por fundamento justamente esta separação de funções, dando à sistemática processual um juiz espectador ao invés de um gestor de provas, o que condiciona a possibilidade da efetivação da imparcialidade. Com o juiz sendo apartado do dinamismo das partes, resta caracterizado o elemento da imparcialidade, razão de ser da estrutura processual (LOPES JUNIOR, 2021).
Por fim, uma parcela da doutrina sustenta um terceiro gênero de sistema processual, denominado sistema processual penal misto. O sistema misto teria por características uma fase inicial inquisitiva, onde se procederia com a investigação preliminar, uma fase de instrução preparatória e uma fase final, para a procedência do julgamento com as garantias do processo acusatório (CAPEZ, 2021).
Entretanto, atualmente não mais existem sistemas processuais considerados puros, todos teriam uma parcela de mistura, considerados então como mistos. Dessa forma, para a classificação de um sistema, seria necessária a identificação do seu princípio unificador e definir se seria acusatório ou inquisitório (LOPES JUNIOR, 2021). Assim, a sustentação de um sistema processual misto nada mais é do que um reducionismo, pois tal ideia basear-se-ia tão somente na constatação de que haveria uma fase de investigação preliminar supostamente inquisitorial e uma fase processual supostamente acusatória. Portanto, não caberia sustentar a prevalência dessa sistemática no Brasil, como já apontado por alguns doutrinadores, pois para identificar seu sistema seria necessário desvelar seu princípio unificador, visto que puro esse sistema não seria (LEONEL, 2020).
2.1 Breve análise do sistema processual penal brasileiro
Ao fazer a comparação destas sistemáticas, é perceptível que a Constituição Federal de 1988 não deixa espaço para desenvolver no atual ordenamento jurídico, um processo penal que não seja fundado nas garantias do contraditório, da ampla defesa e da imparcialidade do juiz. Assim, vê-se como um grande avanço o advento da lei 13.964/2019 e a inserção do art. 3º-A do CPP, onde expressamente consagra o sistema acusatório como o adotado no ordenamento jurídico brasileiro (BRASIL, 2019).
Entretanto, a eficácia do referido artigo está suspensa cautelarmente por força da concessão de liminar nas ADIn’s n. 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305 concedida pelo Ministro do STF Luiz Fux (BRASIL, 2020). Portanto, o processo penal brasileiro se mantém em uma estrutura inquisitorial, confrontando diretamente com o modelo acusatório que desenha a Constituição (LOPES JUNIOR, 2021).
Segundo Juliano Leonel (2020, p. 536), entende-se que um “processo penal democrático, típico de um sistema acusatório, é aquele que seja capaz de proteger os direitos fundamentais dos indivíduos [...]’’. Logo, é imprescindível a observância da imparcialidade, do contraditório e da ampla defesa em um processo penal que se encontra instalado perante uma Constituição Federal democrática, não podendo haver dúvidas quanto à sua estrutura acusatória, não obstante a hesitação da concretização de forma expressa de tal sistema no Brasil.
2.2 Conjuntura do contraditório e da ampla defesa no sistema acusatório
O princípio do contraditório e o da ampla defesa, expressamente consagrados no texto constitucional, encontram seus escopos dentro do sistema acusatório diante de suas funções de garantir à parte hipossuficiente da relação processual igual oportunidade e tratamento no curso do processo que tem a parte que acusa; bem como de assegurar ao acusado uma defesa técnica e lhe oportunizar a autodefesa (BRASIL, 1988).
O princípio do contraditório remete a uma reconstrução da narrativa fática do delito, com a oitiva da versão da acusação e também do acusado, representado pela sua defesa, sendo que a condução a audiência para o exercício do contraditório é de exercício obrigatório, devendo ser oportunizada pelo magistrado. No exercício do contraditório, não pode o magistrado reprimir as opções de defesa do acusado perante o que se alega em seu desfavor, caso contrário incidiria em uma característica inquisitiva, o qual não é compatível com o sistema preconizado (LOPES JUNIOR, 2021).
Sendo assim, o contraditório nada mais é do que a forma constitucional de produção de provas, que serão observados pela autoridade judiciária. Alguns doutrinadores entendem o contraditório como um método, sendo um verdadeiro manifesto na produção e valoração de provas (GLOECKNER; LEONEL, 2021).
A ampla defesa vem expressa na Carta Magna, se mostrando inseparável do contraditório, haja vista que seu exercício só é possível por meio daquele. O referido princípio abrange a defesa técnica ou processual, realizada por um advogado ou defensor público e à autodefesa, exercida pelo acusado em determinados momentos, como por exemplo o seu direito de presença. O princípio da ampla defesa, sendo também uma garantia individual, admite alguns tratamentos “privilegiados’’ ao acusado, como o in dubio pro reu, ou seja, na dúvida, a pretensão acusatória deve ser resolvida a favor do réu (LIMA, 2021).
Portanto, em um Estado democrático, é nítido que o sistema acusatório deve ser o adotado no processo penal que o rege, resguardando todas as garantias do acusado, como também do próprio processo. Ademais, deve-se preservar o respeito pela separação das funções, que não se limita na simples distinção entre o órgão julgador e o órgão acusador, devendo ser observada a verdadeira finalidade acusatória de um processo penal (GLOECKNER; LEONEL, 2021).
2.3 Princípio da imparcialidade e seus aspectos na atuação do magistrado oficiante na instrução e julgamento
A finalidade do princípio ora analisado é justamente impedir o autoritarismo e a eventual manipulação e contaminação do juiz sentenciante, seja de forma consciente ou inconsciente (RITTER, 2016).
A sistemática do direito acusatório de proporcionar ao juiz um espaço para a apuração das provas produzidas e trazidas ao processo apenas pelas partes aduz ao elemento fundante da estrutura processual: a imparcialidade. Segundo Lopes Junior (2021, p. 68), é o princípio da imparcialidade “o princípio supremo do processo” que garante que se obtenha um reparto judicial justo. O Estado deve ocupar a posição de terceiro, exigindo o sistema acusatório que o juiz não apenas tenha sua função limitada à apuração das provas, mas que esteja afastado da atividade investigatória que as produz, sob pena de destruir a dialética do processo penal e incidir na sistemática inquisitória, vez que o juiz se põe também como ator, não como espectador (LOPES JUNIOR, 2021).
No decorrer do processo judicial, é necessário que não haja qualquer causa que possa prejudicar a cognição e consequentemente, a imparcialidade do juiz sentenciante. São várias as quadras em que o juiz pode ter sua imparcialidade comprometida, como em casos de suspeição, impedimento e incompatibilidade (LIMA, 2020).
Ademais, os acontecimentos de imparcialidade vão muito além da vontade do magistrado. A imparcialidade pode ser subdividida em “objetiva’’ e “subjetiva’’: a primeira se refere à postura do juiz, devendo o mesmo adotar uma postura nítida de imparcialidade, sendo imprescindível a demonstração da mesma; a segunda está diretamente ligada à cognição do magistrado, objetivando elidir o julgamento por quem já adere a uma determinada opinião prévia a respeito do assunto da lide, ou seja, impede que o juiz se finde a uma das partes antes do momento certo (LIMA, 2020).
O Tribunal Europeu de Direitos Humanos bem orienta sobre subdivisões da imparcialidade “objetiva’’ e “subjetiva’’ sob o prisma da “teoria da aparência’’ em seus julgados (RITTER, 2016). Por força da mesma, na dúvida inerente à imparcialidade, o afastamento do magistrado se mostra necessário (LIMA, 2020). Portanto, é imprescindível que as partes tenham a lucidez de que o magistrado é uma figura imparcial, sem qualquer envolvimento precedente ao caso, preservando a chamada “estética da imparcialidade’’ e consequentemente gerando confiança aos participantes do processo (ROSA; LOPES JUNIOR, 2019).
Dessa forma, os princípios mencionados corroboram com a retórica do sistema acusatório, que, conforme já exposto alhures, são sacrificados na sistemática inquisitorial. No Brasil, tem-se resquícios inquisitivos espalhados pelo processo penal instituído, os quais prejudicam estas garantias principiológicas e não permitem alcançar na totalidade um procedimento que seja justo e democrático.
3.INQUÉRITO POLICIAL E SUA RELEVÂNCIA PERANTE A SISTEMÁTICA PROCESSUAL ADOTADA NO BRASIL
O inquérito policial é um procedimento inquisitorial e com caráter preparatório, comandado pela autoridade policial, que tem como objetivo a cognição de provas com o intuito de causar justa causa para a ação penal, proporcionando ao titular da ação que ingresse em juízo (LIMA, 2020). Noutras palavras, são as atividades e diligências desempenhadas pelo Estado, que pretende verificar a autoria e a conjuntura de um suposto delito, tratando-se de uma espécie do gênero investigação preliminar (LOPES JUNIOR, 2021.)
A precípua finalidade do inquérito policial é a apuração do crime e a descoberta de seu autor com o escopo de fornecer ao titular da ação penal os elementos que possibilitem a promoção desta em juízo (NUCCI, 2021). É interessante destacar a autonomia que a autoridade policial possui para desenvolver o procedimento investigativo, mas deve-se ressaltar que a adoção de medidas restritivas de direitos fundamentais depende de decisão judicial.
3.1 Característica inquisitiva como móvel da divergência entre atos de investigação x atos de prova
As características do inquérito são diversas, variando em sua nomenclatura e no número de características de acordo com cada autor. Sua característica de procedimento inquisitivo – correlacionado com o tema do presente artigo, é uma das mais marcantes do inquérito policial, apesar de outras, como o seu caráter sigiloso, autoritário e oficioso. Conforme dito alhures, o inquérito tem uma função preparatória, sendo ela a de obter os elementos de informação que irão ser a base da denúncia ou da queixa-crime, e seu caráter inquisitivo vem justamente pelo fato de não ser próprio de sua natureza a presença obrigatória das garantias da ampla defesa e do contraditório (AVENA, 2019).
O inquérito policial é presidido pela autoridade policial, que no Brasil é exercida pela figura do delegado de polícia. Conforme a lei 12.830/13, em seu art. 2º, §1º e §2º, as investigações criminais ficarão por conta do delegado de polícia, tendo por meio o inquérito policial ou outro procedimento previsto em lei, objetivando a apuração das ocorrências fáticas, a existência e a autoria dos delitos. Ainda, será de sua função os pedidos de perícia, documentos e demais dados de interesse da apuração dos fatos (BRASIL, 2013). Em suma, deverá averiguar a autoria e materialidade de determinada conduta criminosa.
Perante seu caráter inquisitivo, alguns autores de forma radical afirmam que não há como conferir a um imputado, em sede de investigações, as garantias inerentes ao processo acusatório, como o contraditório e ampla defesa, pois o indiciado terá a qualidade de mero investigado, ou seja, apenas fará parte de uma pesquisa realizada pela autoridade policial, logo, não se trata ainda de um acusado (RANGEL, 2019).
Atualmente prevalece o entendimento que por mais que o inquérito tenha sua característica inquisitiva, as garantias de defesa não são totalmente excluídas, sendo que tais garantias irão incidir de forma mitigada, ou seja, com o contraditório e a ampla defesa de exercício facultativo, prescindível, apenas com oportunidade mandatória. Ademais, tal participação se dará apenas com a conclusão das diligências e não de forma contemporânea (CASTRO, 2016).
Perante a inquisitoriedade do inquérito policial e sob a ótica do sistema processual penal acusatório, que em tese deve ser o adotado no Brasil, é de grande observância a distinção de atos de prova e elementos investigativos, também denominados de elementos informativos ou atos de investigação. O primeiro objetiva convencer o juiz de uma afirmação, integra o processo e está a serviço deste e servirá à sentença. O segundo é uma mera hipótese, serve para o cumprimento dos objetivos da fase pré-processual e não servem para formar a convicção do juiz na sentença, mas sim formar a opinio delicti do acusador (LOPES JUNIOR, 2021). Logo, prova será somente aquilo que consta do processo judicial, sendo o inquérito meras “informações’’ (RANGEL, 2019).
3.2 Valor probatório e suas divergências
É crucial especificar-se sobre o valor probatório do inquérito, ou seja, de qual maneira aquela investigação conclusa irá contribuir para o produto final do processo acusatório, sendo este a sentença. Tal valoração terá uma grande importância, pois conforme exposto alhures, o processo penal brasileiro tenta se encaminhar para a efetivação de um sistema acusatório, ao qual deve abolir atuações oficiosas dos magistrados na produção de provas e ter ampla observância aos princípios do contraditório, ampla defesa e imparcialidade, ao contrário do que acontece em sede de investigações preliminares, nas quais uma das características mais marcantes é o seu cunho inquisitivo.
Atualmente não se encontra mais a possibilidade de se condenar única e exclusivamente em face de elementos obtidos apenas no inquérito policial. Entretanto, ainda restam divergências sobre a sua relevância no processo penal, pois parte da doutrina e da jurisprudência entendem que o valor probatório do inquérito diante dos elementos colhidos deverá ser valorado como meros argumentos de reforço, possuindo valor probatório relativo. Outra parte da doutrina entende que os mesmos não poderiam ser utilizados nem mesmo a título obter dictum, pugnando seu (des)valor probatório integral e sua exclusão dos autos do processo.
3.2.1 Valor probatório relativo
O valor probatório do inquérito está previsto no próprio texto legal do artigo 155 do CPP (BRASIL, 2008) que prevê: “o juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas”.
Sendo assim, entende-se que a ratio decidendi de uma sentença penal condenatória, sendo este fruto de um processo acusatório, não pode ser fundamentada apenas no inquérito policial. Caso se permita, significaria um procedimento de natureza inquisitorial escudando uma sentença fruto de um processo acusatório. A sentença deve se pautar nas provas sob o crivo do processo judicial, com amplo grau de observância dos princípios do contraditório e ampla defesa. Logo, admite-se que as peças de informação colhidas no inquérito possam atuar como argumentos de reforço, tendo, portanto, um valor probatório relativo.
Ainda, para que os elementos investigativos colhidos no inquérito policial sejam analisados como obter dictum, faz-se necessário a produção de provas em juízo, devendo tais provas corroborarem com o que foi produzido em sede inquisitiva, fazendo jus a observância do contraditório e da ampla defesa. Sendo assim, o simples fato de haver “provas” tanto no curso do processo, como no inquérito, não autoriza o juiz a fundamentar sua sentença levando em consideração as duas fases, mas sim aquilo que foi produzido no processo judicial (RANGEL, 2019).
Assim, os elementos investigativos colhidos no inquérito policial somente devem ser apreciados se em conjunto com as demais provas colhidas em sede judicial, haja vista as características já mencionadas daquele, logo, todo o apurado no inquérito deverá ser confirmado em juízo. O simples fato de haver provas tanto no curso do processo, como no inquérito, não autoriza o juiz a fundamentar sua sentença levando em consideração as duas fases (RANGEL, 2019).
Portanto, buscou-se produzir um distanciamento do inquérito policial com relação à sentença condenatória, preservando assim as garantias do acusado, visto que se aquelas provas não forem corroboradas em juízo, serão inutilizáveis e ensejará uma absolvição por insuficiência probatória, nos termos do art. 386, VII do CPP (BRASIL, 2008). Não obstante a intenção de preservar as garantias constitucionais, surgiu uma outra problemática com relação às provas produzidas no procedimento inquisitivo, já que convenceriam de forma indireta o magistrado, gerando pré-julgamentos e agravando sua imparcialidade, surgindo a posição da impossibilidade da utilização do inquérito policial pelo juiz sentenciante.
3.2.2 (Des)valor probatório integral
Um dos elementos que marcam a característica inquisitiva do inquérito são seus atos de investigação, que podem obter valoração de acordo com o sistema jurídico, tomando por base a sentença. Assim, deve-se observar se tais atos podem ou não serem utilizados na condenação. Como já visto, em primeiro caso, os atos poderiam sim ser sopesados em uma sentença condenatória, desde que utilizados como argumento de reforço e corroborando com outras provas produzidas em juízo. Por outro lado, os atos da investigação preliminar servem em medidas de natureza endoprocedimentais e se esgotam no recebimento da denúncia, justificando apenas o processo, impossibilitando seu uso na sentença (LOPES JUNIOR; GLOECKNER, 2021).
Ainda de acordo com o art. 155 do CPP (BRASIL, 2008), a expressão “exclusivamente’’ mantém uma redação infeliz, possibilitando aos magistrados uma ampla utilização do inquérito, bastando apenas que invoquem algum elemento probatório produzido no processo. Logo, entende-se que o inquérito policial e seus atos não poderiam servir sequer como argumentos de reforço, pois descabe o uso de argumentos produzidos sob o cunho inquisitivo para valorar uma sentença que é fruto de um processo acusatório (LOPES JUNIOR, 2021).
Conforme exposto alhures, tais atos investigativos estão a serviço de uma instrução preliminar, servindo a um juízo de probabilidade, que não exigem ampla observância aos princípios constitucionais e são destinados à busca da autoria e materialidade que justifiquem o processo, desse modo, tem-se o valor probatório limitado dos mesmos. Portanto, tais elementos só poderiam ser sopesados no curso da instrução preliminar e em suas fases intermediárias, sendo que tais informações nessa fase ficariam adstritas ao oferecimento da denúncia ou opção por arquivamento do Ministério Público (LOPES JUNIOR; GLOECKNER, 2021).
De acordo com Vegas Torres (1993, p. 116, apud LOPES JUNIOR; GLOECKNER, 2021, p. 208), a conclusão é uma só: “as diligências levadas a cabo na instrução preliminar não podem servir como fonte de convencimento do órgão jurisdicional no momento da sentença”.
Então, é certo que a origem do problema estaria no fato de que os elementos informativos produzidos pelo inquérito estariam anexados ao processo, influenciando direta ou indiretamente no convencimento dos magistrados (LOPES JUNIOR, 2021). A razão pela qual essa influência seria um ponto negativo é nítida quando se pensa no comprometimento da imparcialidade do juiz sentenciante, analisada sob o prisma da teoria da dissonância cognitiva e da dificuldade da manutenção da originalidade cognitiva dos magistrados.
3.2.3 Breve introdução à teoria da dissonância cognitiva
A quadra de dissonância cognitiva foi identificada na psicologia, nos trabalhos realizados pelo professor Leon Festinger, especificadamente na obra “A Theory Of Dissonance Cognitive’’, publicada em 1957. O autor bem explica este fenômeno como um autoconvencimento já formalizado, no qual se buscam razões, por mais que fragilizadas, para ratificar as convicções previamente já concebidas (FESTINGER, 1975).
O fenômeno da dissonância cognitiva é bastante comum, e se manifesta de forma inevitável em contextos como “o contato com informações sobre alguém, colocando em risco suas primeiras impressões’’ conhecida por “dissonância pós-primeira impressão’’ (LOPES JUNIOR; RITTER, 2017. p. 68). A introdução dessa primeira impressão impacta diretamente no comportamento e na cognição do indivíduo que as obteve, apresentando maior dissonância com relação aos conhecimentos posteriores da mesma pessoa ou fato, incompatibilizando-as e prejudicando a manutenção da originalidade cognitiva.
3.2.4 Contribuição da teoria da dissonância cognitiva para o (des)valor probatório integral do inquérito policial
O alemão Bernd Schunemann trouxe a teoria da dissonância cognitiva para dentro do processo penal, introduzindo sua aplicação em face do juiz e a sua atuação diante das decisões proferidas, analisando a necessidade em que o magistrado precisará lidar com duas opiniões incompatíveis, sendo uma primeira informação advinda dos “elementos investigativos’’ e a segunda das “provas obtidas no processo’’, questionando a possibilidade da criação de pré-julgamentos pelo responsável do julgamento da lide (LOPES JUNIOR, 2014).
Dentre as hipóteses analisadas pelo doutrinador alemão, duas trataram a respeito da insistência ou não, pelo juiz sentenciante, das informações obtidas em sede inquisitorial e o seu armazenamento frente às posteriores informações apresentadas no processo. Segundo Schunemann (2013, apud, RITTER, 2016, p. 122-123):
Dos 58 participantes, 14 (8 juízes e 6 promotores) tinham conhecimento dos autos e lhes era permitido inquirir testemunhas na audiência (grupo 1); 14 (9 juízes e 5 promotores) tinham conhecimento dos autos e não lhes era permitido inquirição de testemunhas (grupo 2); 17 (11 juízes e 6 promotores) não possuíam conhecimento dos autos, mas lhes era permitido inquirir testemunhas na audiência (grupo 3); e 13 (7 juízes e 6 promotores) não possuíam conhecimento dos autos, tampouco lhes era permitida a inquirição de testemunhas (grupo 4).
A primeira hipótese, que diz respeito ao comportamento do juiz ao sentenciar, foi testada por meio da comparação dos resultados das sentenças, condenatórias vs. absolutórias, à luz do (des)conhecimento dos autos da investigação preliminar e da (im)possibilidade de inquirição de testemunhas. O resultado obtido sugere que, nas mesmas condições fáticas, enquanto conhecendo-se os autos, independentemente da possibilidade de inquirir testemunhas, o juízo final condenatório é muito mais provável que o absolutório (10 para 4, respectivamente, em ambos os grupos 1 e 2), sem tal conhecimento, alterando-se significativamente a estatística, há mais probabilidade de absolvição (13 no grupo 3 e 7 no grupo 4), do que de condenação (4 no grupo 3 e 6 no grupo 4). Inclusive, especificamente em relação aos juízes, pôde-se observar que enquanto todos os 17 que conheciam os autos condenaram, os 18 que desconheciam dividiram-se em absolver (10) e condenar (8), podendo-se considerar confirmada a primeira hipótese.
Ainda, foi comprovado que os juízes que possuíam conhecimento prévio dos autos eram incapazes de reunirem elementos apresentados pela defesa de forma correta, permanecendo com a primeira impressão incriminadora. Logo, também restou comprovado a dificuldade frente às posteriores informações obtidas no processo (RITTER, 2016)
No mesmo ponto de vista, Jacobsen Gloeckner realizou uma pesquisa associando a teoria da dissonância cognitiva e o processo penal brasileiro. Em suma, o autor extraiu julgados da data entre 03/10/2012 e 31/21/2013, analisando 90 (noventa) acórdãos com o elemento de busca “prisão preventiva”, filtrando como objeto de exames os recursos de apelação, a fim de averiguar os impactos da decretação de uma prisão na decisão de mérito. Como resultado, todos confirmaram as decisões condenatórias ou reformaram as decisões de primeira instância, condenando em segundo grau. Logo, conclui-se por uma sucessão de decisões, fazendo com que o julgador muita das vezes valorize de forma sobrestimada as decisões passadas e também se contamine pelas decisões de uma prisão cautelar, prevalecendo suas primeiras impressões, a fim de evitar dissonâncias cognitivas (GLOECKNER, 2015).
Conforme concluiu-se pelas pesquisas feitas pelos doutrinadores alhures, a condenação é mais corriqueira quando o juiz possui conhecimento dos atos de investigação, que também podem englobar prisões preventivas em seu curso, reiterando assim a quadra de dissonância cognitiva pós-primeira impressão, na qual preserva-se a percepção inicial do indivíduo, fazendo com que o mesmo busque elementos que a corrobore, independentemente se certo ou errado, através de uma “busca seletiva de informações’’ (SCHUNEMANN, 2013, apud LOPES JUNIOR, 2014). Logo, é prejudicial o contato direto do julgador com os elementos informativos obtidos pelo inquérito, visto a impossibilidade da manutenção de sua originalidade cognitiva (RITTER, 2016).
As razões para esse fenômeno são apontadas por Pellegrini Grinover (1996, p.239, apud LOPES JUNIOR, GLOECKNER, 2014):
Em primeiro lugar, porque quem realiza o juízo de pré-admissibilidade da acusação é o mesmo juiz que proferirá a sentença no processo (exceto no caso do júri); Em segundo lugar, porque os autos do inquérito são anexados ao processo e assim acabam influenciando direta ou indiretamente no convencimento do juiz.
No Brasil, não raro se tem a figura da autoridade judiciária intervindo de alguma forma na fase investigatória, sendo chamada para ser o juiz sentenciante do mesmo feito. Ocorre que para a preservação da imparcialidade, a divisão entre um juiz responsável pela sentença e outro pelas investigações preliminares se tornam imprescindíveis. Ademais, ao avaliar a permanência do inquérito policial no processo sob o prisma da respectiva teoria em estudo, restam evidentes os impactos de sua dissonância cognitiva na prolação de uma sentença condenatória.
Com a chegada da lei 13.964/19 - denominada de pacote anticrime, o legislador brasileiro trouxe novas regras com alto grau de importância e repercussão para o processo penal brasileiro, possibilitando a aproximação do código de processo penal e das garantais fundamentais do polo passivo na ação penal, instituindo o juiz das garantias e a exclusão do inquérito dos autos do processo, como solução das problemáticas apresentadas, a fim de preservar a originalidade cognitiva e a imparcialidade do magistrado sentenciante.
4.JUIZ DAS GARANTIAS E SEUS IMPACTOS NO INQUÉRITO POLICIAL
4.1 Breves considerações acerca do juiz das garantias no processo penal brasileiro
O instituto do juiz das garantias foi inserido no Código de Processo Penal Brasileiro pelo art. 3º-B da lei 13.964/19 (BRASIL, 2019), que prevê: “O juiz das garantias é responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Poder Judiciário [...]’’. Assim, antecedendo o protocolo da ação penal, o juiz atuante nas fases de investigações terá a atribuição de resguardar os direitos fundamentais dos investigados, como também preservar a legalidade da investigação. Dessa forma, existirá a presença de dois juízes: o juiz das garantias e o juiz da instrução, este responsável pela sentença (SCHREIBER, 2020).
Logo, não se tem mais a prevenção como condição de fixação da competência do juiz, sendo o contrário: o juiz que atuar na investigação estará impedido de atuar no processo criminal (DIAS; ZAGHLOUT, 2020). Assim, o magistrado responsável pela instrução e prolação da sentença não será mais o responsável pelas decisões inerentes às investigações preliminares, ficando esta última a cargo do juiz das garantias (BRASIL, 2019).
A participação dos magistrados nas investigações preliminares é notória quando observado a necessidade da decretação de prisões cautelares ou qualquer outra medida cautelar, seja real ou pessoal, na qual o magistrado cria um “preconceito’’ e consequentemente o vinculará até fim de sua atuação. Entretanto, tais atribuições ficarão a cargo do juiz das garantias. Portanto, o magistrado sentenciante preservará sua “originalidade cognitiva’’, recebendo o processo sem preconcepções e sem os efeitos decorrentes da dissonância cognitiva (SANTOS, 2020).
Pelas mesmas razões, o instituto contribuirá com as denominadas imparcialidades “subjetiva’’ e “objetiva’’. A primeira, por não admitir que o juiz que participe dos atos investigatórios seja o mesmo que prolate a sentença, evitando objeções prévias (RITTER, 2016). A segunda, por corroborar com a “estética da imparcialidade’’, ante a ausência de envolvimento prévio com a lide (ROSA; LOPES JUNIOR, 2019).
4.2 Exclusão do inquérito policial dos autos do processo e a manutenção da originalidade cognitiva do magistrado sentenciante
Com a implementação do Juiz das Garantias, se torna viável a exclusão do inquérito policial dos autos do processo. Mais importante que a não participação do magistrado nas investigações preliminares, é a privação do seu contato com os atos investigativos do inquérito, devido a sua natureza inquisitiva. A exclusão do inquérito dos autos do processo supre de vez a problemática da imparcialidade do juiz com relação ao seus pré-julgamentos, eliminando, portanto, o risco de uma possível valoração antecipada, que acontece de forma inconsciente, haja vista a não ocorrência do seu contato com os elementos investigativos produzidos em sede inquisitorial.
Assim, artigo 3º-C, §3º do CPP (BRASIL, 2019) preconiza:
Os autos que compõem as matérias de competência do juiz das garantias ficarão acautelados na secretaria desse juízo, à disposição do Ministério Público e da defesa, e não serão apensados aos autos do processo enviados ao juiz da instrução e julgamento, ressalvados os documentos relativos às provas irrepetíveis, medidas de obtenção de provas ou de antecipação de provas, que deverão ser remetidos para apensamento em apartado.
O juiz da instrução não poderá ter acesso ao conteúdo do inquérito policial, ficando restrito ao parquet e a defesa. Reiterando o sistema acusatório no processo penal brasileiro, os elementos investigativos produzidos na investigação preliminar não servirão nem mesmo como argumento de reforço em uma sentença condenatória, visto que os inquéritos permanecerão acautelados na secretaria do juízo das garantias, excepcionalmente em relação às provas cautelares, antecipadas e irrepetíveis (SANTOS, 2020).
No campo da dissonância cognitiva, diante da ausência de contato com as informações constantes no inquérito, a cognição do juiz evitará uma quadra de “primeira impressão’’ negativa em relação aos fatos, não direcionando as decisões futuras daquele processo com base no que se produziu sem a observância do contraditório e da ampla defesa, evitando os efeitos decorrentes da dissonância cognitiva, como o confronto diante da incompatibilidade das informações e consequentemente uma possível inclinação prejudicial ao processo (RITTER, 2016).
Com relação à denominada “originalidade cognitiva”, conhecida por ser uma garantia que sempre deve se fazer presente nos juízes criminais, revela que o juiz só deve ter conhecimento do respectivo caso e das provas na devida fase processual, ou seja, com observância de todas as garantias expostas alhures (LOPES JUNIOR, 2021).
É nítido que no processo penal brasileiro, diante dos resquícios de uma estrutura inquisitiva, o magistrado já inicia o processo contaminado, principalmente em face dos elementos produzidos no inquérito policial, prejudicando sua imparcialidade, conforme exposto alhures. Logo, tal medida de exclusão incidirá em uma perfeita quadra da manutenção da “originalidade cognitiva’’ do julgador, haja vista a não formação de convicções prévias dos fatos (RITTER, 2016). Assim, será possível um maior aproveitamento do debate entre as partes, regidos por um processo acusatório com a presença das garantias constitucionais, permitindo decisões concisas e sem base inquisitiva.
Pelas mesmas razões, a contribuição para a imparcialidade é colossal. A “estética da imparcialidade’’ é inerente, reforçando ainda mais a necessidade de o juiz ter que aparentar ser imparcial no processo penal brasileiro, mantendo assim a denominada “imparcialidade objetiva’’ e dando segurança para as partes, como também não criará preconcepções antes do momento oportuno, resguardando a imparcialidade “subjetiva’’ (ROSA; LOPES JUNIOR, 2019).
Portanto, a implementação da exclusão dos autos do inquérito derroga de forma tácita o art. 155, caput, do CPP, adotando a posição pelo (des)valor probatório integral do inquérito, prezando pela manutenção da originalidade cognitiva do julgador e a preservação da imparcialidade, reforçando então o caráter acusatório do processo penal brasileiro (SANTOS, 2020).
Nada obstante, todas as medidas atinentes ao capítulo do Juiz das Garantias estão suspensas, por força de liminar concedida pelo Supremo Tribunal Federal nas ADIs 6.298, 6299, 6300 e 6305 (BRASIL, 2020).
5.CONCLUSÃO
Conforme os aspectos levantados na presente pesquisa, o artigo 155 do Código de Processo Penal não se encontra em consonância com o sistema processual desenhado pela Constituição brasileira, ou seja, o sistema acusatório, que deve ser sempre buscado pelo processo penal vigente.
No Brasil, observa-se que a Constituição bem tenta abarcar um processo penal acusatório, não obstante a ausência de previsão expressa do referido sistema, o que permite a presença de dispositivos com caráter inquisitivo no CPP, prejudicando a imparcialidade jurisdicional, a abolição de arbitrariedades e causando a incerteza do sistema prevalente.
O inquérito policial, um dos procedimentos responsáveis pelas investigações preliminares, é marcado pelo seu caráter inquisitivo. Portanto, é necessário definir limites no valor probatório deste procedimento. Assim, atualmente prevalece o seu valor de prova relativo, podendo ser sopesado apenas em situações nas quais se tenha a produção de provas em juízo, servindo apenas como argumentos de reforço.
Nada obstante, tem-se também a posição pelo (des)valor probatório do inquérito, que objetiva a sua não permanência no processo, ante a total ausência de valor probatório dos atos investigativos. Ao serem analisadas as pesquisas em torno da teoria da dissonância cognitiva e o processo penal, vê-se que o magistrado ao adentrar no processo após ter contato prévio com os atos investigativos ou após ter atuado na fase investigativa e na instrução, encontrar-se-á com a sua originalidade cognitiva prejudicada, influindo pré-julgamentos negativos que serão sopesados em uma sentença condenatória.
Logo, a figura do juiz das garantias é imprescindível em um processo penal acusatório e a verdadeira separação de funções, no qual haverá um juiz responsável pelos atos endoprocedimentais, realizados ainda no inquérito policial e atuando até o recebimento da denúncia, como também o juiz das garantias, sendo este responsável pela instrução e julgamento do processo. Ainda, se torna possível a exclusão do inquérito policial dos autos do processo, fazendo com que este cumpra sua função até a admissão da denúncia, e principalmente, evitando que o juiz responsável pela instrução e julgamento tenha sua originalidade cognitiva prejudicada, não ocasionando quadras de dissonância cognitiva e nem tendo risco de criar preconcepções na prolação da sentença.
Como forma de solucionar as problemáticas que vigoram no código de processo penal brasileiro aqui apresentadas, os artigos. 3º-A ao 3-F, da lei 13.964/19, conhecida por pacote anticrime, trouxeram a figura do juiz das garantias e a exclusão do inquérito dos autos do processo, não obstante estarem com eficácia suspensa pelo Supremo Tribunal Federal.
Tais implementações permitirão um processo penal igualitário entre as partes, permitindo a atuação de dois juízes em fases distintas do processo, prevalecendo a imparcialidade em todas as suas formas. Ademais, as implementações dos dispositivos também derrogariam o art. 155 do CPP, impossibilitando o uso do inquérito policial até mesmo como argumento de reforço, ante a sua exclusão dos autos, assim mantendo a originalidade cognitiva do juiz sentenciante, optando pela adoção da posição do (des)valor probatório integral do inquérito policial.
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[1] Coautor. Bacharelando no Curso de Direito do Centro Universitário Santo Agostinho. E-mail: [email protected]
[2] Doutorando em Ciências Criminais pela PUCRS. Mestre em Direito pela UCB. Especialista em Direito Penal e Processual Penal –ESA/UFPI. Professor do Centro Universitário Santo Agostinho. Defensor público. E-mail: [email protected].
Bacharelando no Curso de Direito do Centro Universitário Santo Agostinho - UNIFSA. Estagiário na Defensoria Pública do Estado do Piauí.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, Adriano Carneiro. (Des)valor probatório do inquérito à luz do instituto do juiz das garantias e da teoria da dissonância cognitiva Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 27 abr 2022, 04:35. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/58253/des-valor-probatrio-do-inqurito-luz-do-instituto-do-juiz-das-garantias-e-da-teoria-da-dissonncia-cognitiva. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Gabrielle Malaquias Rocha
Por: BRUNA RAFAELI ARMANDO
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