RESUMO: Objetiva o presente artigo expor, em detalhes, os princípios recursais que têm aplicação no âmbito do processo penal, de modo a demonstrar os pontos em que há aproximação com o processo civil e, outrossim, aqueles em que há distanciamento. Para tanto, buscar-se-á, primeiramente, evidenciar a função essencial que a principiologia cumpre em sede recursal, para só então, em um segundo momento, adentrar-se na análise específica de cada recurso.
PALAVRAS-CHAVE: Processo penal. Princípios. Recursos.
ABSTRACT: The purpose of this article is to expose, in detail, the principles of appeal that are applied in the context of criminal proceedings, in order to demonstrate the points where there is approximation with the civil process and, also, those in which there is distance. To do so, we will seek, first, to highlight the essential function that principiology fulfills in appeals, and only then, in a second moment, to enter into the specific analysis of each.
KEYWORDS: Criminal proceedings. Principles. Appeals.
1 INTRODUÇÃO
Sob os influxos do movimento neoconstitucionalista e a correlata superação (ou, ao menos, releitura) do positivismo jurídico, os princípios passaram a adquirir posição de destaque nos ordenamentos nacionais.
Se antes eram entendidos apenas como ferramentas de interpretação ou, no máximo, como instrumentos de colmatação de lacunas, no pós-positivismo os princípios se tornaram protagonistas do processo de construção da normatividade.
Assim é que o conceito de norma jurídica se transmutou, passando a designar o gênero de que são espécies as regras e os princípios, ambos em igual medida dotados de incontestável força normativa.
Quanto a esse fenômeno, eis a lição da doutrina:
Vários juristas vão pôr em relevo a construção de um ordenamento jurídico com base não só em regras, mas também em princípios jurídicos. Essa perspectiva vai ter como objetivo central superar a concepção positivista atrelada a um sistema jurídico fechado, preso a um modelo de regras.
Ao longo da história do direito, os princípios jurídicos percorreram um longo caminho até se desgarrarem totalmente da noção de Direito Natural e alcançarem uma leitura que lhes atribuísse normatividade. Nesse sentido, deixaram de ser vistos como elementos de uma racionalidade especial e atemporal (divina ou universal), para pertencerem ao conceito de norma jurídica, passando essa a ser formada agora por duas espécies distintas: as regras jurídicas e os princípios jurídicos.[1]
Sob essa perspectiva, a análise da principiologia aplicável à legislação processual penal cresce em relevância, pois os efeitos de sua observância ou não implicam, não raro, na definição do destino a ser dado ao apelo.
É possível, por exemplo, que determinado recurso seja considerado inadmissível em virtude do descumprimento de princípio do processo penal que funciona, ele próprio, como condição de admissibilidade, ou então que, quanto ao mérito, seja a demanda julgada improcedente em razão de princípio que, por guardar conexão com o direito material, leva por necessário à absolvição.
O exame detalhado da principiologia pertinente, inclusive, por vezes se mostra imprescindível à escorreita identificação do recurso cabível e, também, dos efeitos que produzirá em relação à decisão que visa atacar.
Demais disso, no campo da legislação adjetiva penal, o desconhecimento de suas especificidades procedimentais comumente decorre da incompreensão dos princípios que lhe são aplicáveis. O contrário também é verdadeiro: a incompreensão da principiologia própria do processo penal leva, com frequência, ao entendimento ora equivocado, ora incompleto daquilo que o iter do CPP tem de específico.
2 CONCEITO E NATUREZA JURÍDICA DOS RECURSOS
Para o correto entendimento dos princípios que lhes são aplicáveis, necessária se faz a conceituação de “recursos”, bem como a definição de sua natureza jurídica.
Quanto ao tema, há extensa divergência doutrinária, sobressaindo-se três posições: a) mera decorrência do direito exercer a ação penal; b) inauguração de nova ação dentro da mesma demanda processual; c) forma de obtenção de reforma de decisões judiciais.
Nesse sentido, transcreva-se o que explica Renato Brasileiro de Lima, in verbis:
Quanto à natureza jurídica dos recursos, são encontradas várias correntes doutrinárias:
a) o recurso funciona como desdobramento do direito de ação que vinha sendo exercido até o momento em que foi proferida a decisão: a nosso ver, o recurso é uma fase do mesmo processo, um desdobramento da mesma ação. Ao ser interposto, o procedimento desenvolve-se em nova etapa da mesma relação processual;
b) o recurso funciona como nova ação dentro do mesmo processo;
c) o recurso funciona apenas como um meio destinado a obter a reforma da decisão, não importando se provocado pelas partes ou se determinado ex officio pelo juiz nas hipóteses em que a lei o obriga a adotar esta medida.[2]
3 PRINCÍPIOS RECURSAIS EM ESPÉCIE
3.1 PRINCÍPIO DA NON REFORMATIO IN PEJUS
No processo penal, prevalece que vigem dois sistemas quanto ao efeito devolutivo dos recursos, quais sejam, o da proibição da reforma para pior (non reformatio in pejus) e o do benefício comum.
Tem-se, na proibição da reforma para pior, a vedação de prolação de decisão que quantitativa ou qualitativamente agrave a situação do recorrente. Trata-se de sistema com aplicação nos casos em que apenas a defesa haja recorrido, quando então o órgão julgador, no mérito, não poderá prejudicá-la. Tamanha é a sua importância para o desenvolvimento democrático do processo penal que, com o tempo, passou a ser tratado como princípio específico desse ramo do direito.
Quanto ao benefício comum, consiste na possibilidade de, mesmo na hipótese de apenas o órgão acusatório ter recorrido, o juízo ad quem reconhecer, em prejuízo do recorrente e, no entanto, em favor do réu, matérias que não tenham sido objeto de impugnação no apelo.
No benefício comum, portanto, o órgão julgador pode prolatar decisão que favoreça tanto a parte recorrente quanto a parte recorrida, ainda que esta nada tenha objetado quanto à sentença, em evidente relativização pro reo da própria extensão (horizontalidade) do efeito devolutivo e da regra do tantum devolutum quantum appellatum.
Apesar de não previsto em dispositivo específico, entende-se que o Código de Processo Penal prevê o princípio da non reformatio in pejus em seu art. 617, que, apesar de relativo aos processo e julgamento do recurso em sentido estrito e da apelação, estende-se a todas as demais espécies recursais:
Art. 617. O tribunal, câmara ou turma atenderá nas suas decisões ao disposto nos arts. 383, 386 e 387, no que for aplicável, não podendo, porém, ser agravada a pena, quando somente o réu houver apelado da sentença.
Em virtude de fixar um efeito inicial e inafastável de recurso exclusivo da defesa – assegurar que, sob o prisma do réu, o conteúdo decisório da sentença representa o máximo de gravame que a ele poderá ser imposto, a doutrina afirma que o non reformatio in pejus configura o efeito prodrômico da sentença.
De origem grega (“pródromos”, é dizer, “aquilo que anuncia”), em termos processuais, o efeito em referência leva à fixação inicial e, se apenas a defesa houver recorrido, em regra imutável das consequências que a prática de determinado delito terá para o acusado na eventualidade de, ao final, ser definitivamente condenado.
Quanto ao tema, transcreva-se, abaixo, a explicação doutrinária:
Na reformatio in pejus indireta, o "efeito prodrômico" subsiste com base na sentença penal condenatória anulada, haja vista não ter sido impugnada pelo Ministério Público ou pelo querelante de forma específica. Transitando em julgado ponto que se formou em favor do acusado, ele terá o direito de não ver emitida contra si, em um segundo julgamento, uma sentença com conteúdo condenatório mais gravoso que o primeiro, seja em relação ao tipo penal e circunstâncias acolhidas, seja em razão do quantitativo da pena, que deve ter por limite àquele da sentença anterior.
O direito, não raras vezes, busca termos em outras ciências para melhor explicar seus fenômenos. Uma dessas ciências inspiradoras é a biologia. Também a medicina empresta termos aos juristas. Na medicina, prodrômico refere-se a uma fase que precede o desenvolvimento de uma doença ou os sinais e sintomas que antecedem a manifestação clínica característica de uma doença. De tal forma, prodrômico indica um antecedente que é determinante para os seus consequentes efeitos ou atos sucessivos. Algo como uma introdução, preâmbulo, que evidencia relação entre antecedente e consequente, entre prótese e apódose.[3]
Em sede jurisprudencial, inicialmente os Tribunais Superiores entendiam que, respeitado o quantum da pena, não haveria ofensa ao sistema em questão caso o órgão ad quem, por exemplo, reformasse a sentença para fins de condenar o recorrente não mais por furto simples, mas por furto qualificado.
Na atualidade, todavia, prevalece na jurisprudência que a proibição de reforma para a pior deve ser aplicada de modo amplo, envolvendo não só modificações quantitativas, mas também qualitativas.
Nesse sentido, assim decidiu o Supremo Tribunal Federal:
Recurso ordinário em habeas corpus. 2. Apelação exclusiva da defesa. Dosimetria da pena. Configuração de reformatio in pejus, nos termos do art. 617, CPP. A pena fixada não é o único efeito que baliza a condenação, devendo ser consideradas outras circunstâncias, além da quantidade final de pena imposta, para verificação de existência de reformatio in pejus. Exame qualitativo. 3. O aumento da pena-base mediante reconhecimento de circunstâncias desfavoráveis não previstas na sentença monocrática gera reformatio in pejus, ainda que a pena definitiva seja igual ou inferior à anteriormente fixada. Interpretação sistemática do art. 617 do CPP. 4. Recurso provido para que seja refeita a dosimetria da pena em segunda instância.[4]
Nessa linha, igualmente, o Superior Tribunal de Justiça:
AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL. TRÁFICO DE DROGAS. ASSOCIAÇÃO. CAUSA DE DIMINUIÇÃO DE PENA DO ARTIGO 33, § 4º, DA LEI DE DROGAS. INCONSISTÊNCIA DO FUNDAMENTO DECLINADO NA SENTENÇA PARA O SEU AFASTAMENTO. RECURSO EXCLUSIVO DA DEFESA. IMPOSSIBILIDADE DE ALTERAÇÃO DA MOTIVAÇÃO PARA A MANUTENÇÃO DA DECISÃO RECORRIDA. REFORMATIO IN PEJUS VEDADA. AGRAVO PROVIDO. RECURSO ESPECIAL MINISTERIAL DESPROVIDO. 1. Na sentença condenatória, o magistrado singular deixou de aplicar a causa de diminuição de pena prevista no artigo 33, § 4º, da Lei n. 11.343/06 apenas em razão dos maus antecedentes da agravante. 2. O tribunal de origem, por sua vez, constatando que as anotações constantes na folha de antecedentes criminais não seriam idôneas para negativar tal circunstância, não só operou a diminuição da pena-base, mas, desconstituindo o único fundamento invocado para o afastamento da minorante, aplicou a redução do artigo 33, § 4º, da Lei n. 11.343/06, a despeito da condenação pela prática do delito de associação para o tráfico. 3. Sob o ponto de vista qualitativo, diante da inércia do órgão ministerial no tocante à fundamentação da negativa de aplicação da causa de diminuição de pena declinada na sentença condenatória, a substituição do fundamento inconsistente por outro idôneo em recurso exclusivo da defesa, seja pelo tribunal de origem, seja por esta corte superior de justiça, implica a configuração da repudiada reformatio in pejus. Precedentes do STF. 4. Agravo regimental provido para reformar a decisão agravada, negando-se provimento ao Recurso Especial interposto pelo ministério público do estado de minas gerais.[5]
Nessa linha de argumentação, faz-se mister destacar que se fala também no princípio da vedação da reforma para pior indireta (non reformatio in pejus indireta), segundo a qual em eventual revisão criminal, ação autônoma que apenas pode ser manejada em benefício do réu, a anulação do decreto condenatório anterior não autoriza que o juízo a quo a quem competir julgar o caso possa, na nova decisão, piorar a situação do réu.
É dizer: mesmo com o reconhecimento da nulidade da condenação primeira, essa condenação, ainda que nula, produz o efeito (prodrômico) de obstar que aquele que ingressou com a revisão criminal possa se ver prejudicado pelo uso de ação destinada, em essência, à tutela dos interesses do acusado.
Tamanha é a relevância que doutrina e jurisprudência pátrias emprestam a tal princípio que mesmo em casos de nulidade absoluta, matéria que pode ser reconhecida inclusive ex officio, a posição prevalente é no sentido da impossibilidade de prolação de decisão quantitativa ou qualitativamente pior à anterior, em que pese eivada de nulidade.
Tem-se, aí, o peculiar caso em que, em benefício do acusado, a legislação permite que sentença absolutamente nula continue a produzir efeitos no mundo jurídico.
Há respeitável corrente doutrinária, todavia, que advoga que essa posição representa flagrante violação constitucional.
Para essa corrente, minoritária, não se pode admitir que disposição constante apenas da legislação infraconstitucional (art. 617 do CPP) e que, frise-se, em termos literais sequer se aplicaria a todo e qualquer recurso, prevaleça sobre o princípio do juiz natural, por exemplo, que possui previsão expressa no art. 5º, XXXVII, da CF/88.
Afinal, a inobservância de normas de competência quanto à matéria, por exemplo, é tema relativo ao princípio do juiz natural e, consoante pacificamente se entende, matéria cujos preceitos, caso inobservados, levam à nulidade absoluta do feito.
Estar-se-ia, assim, a admitir o desenvolvimento de interpretação da Constituição à luz da legislação infraconstitucional, em ofensa à logicidade hermenêutica basilar[6].
Em que pese a força de tais argumentos, deve ser reforçado que majoritariamente e sem maiores embargos, com base na ideia de que na persecução criminal se devem buscar interpretações em favor libertatis, o réu não pode ser prejudicado pelo manejo de instrumento processual por ele utilizado de modo exclusivo.
Trata-se de princípio que, inclusive, aumenta a responsabilidade do órgão acusatório, que deve atuar sempre de modo a zelar que, durante a persecução criminal, toda e qualquer matéria potencialmente passível de recurso seja objeto, de modo tempestivo, da impugnação correspondente.
De igual sorte, o princípio da non reformatio in pejus, seja direta ou indireta, impede que o órgão julgador possa, sem anterior manifestação da defesa ou pleito recursal da acusação, promover a correção de erros materiais. Trata-se de matéria que, tal como as nulidades absolutas, podem ser reconhecidas de ofício e que, todavia, também da mesma forma como ocorre com as nulidades absolutas, não podem fundamentar eventual reforma para a pior.
Ademais, mesmo no âmbito do Tribunal do Júri, em que tem aplicação o princípio constitucional da soberania dos veredictos (art. 5º, XXXVIII, “c”, da CF/88), o princípio em comento tem prevalência.
Forte na ideia de que a soberania dos veredictos, não obstante concretizadora do direito fundamental de participação popular no julgamento de crimes dolosos contra a vida, possui natureza relativa (assim como os demais direitos dotados de fundamentalidade), de modo majoritário se entende que, uma vez anulada em virtude de recurso exclusivo da acusação anterior decisão prolatada pelo Júri, a sentença que lhe sobrevenha não pode agravar a situação do recorrente.
Isto porque a soberania dos veredictos é princípio cuja gênese remonta à garantia do direito do acusado pela prática de crimes de especial gravidade de ser julgado por outros cidadãos, seus pares, em reforço do caráter democrático dessa forma de julgamento.
Trata-se da firme posição jurisprudencial:
EMENTA: HABEAS CORPUS. PENAL. IMPETRAÇÃO CONTRA DECISÃO MONOCRÁTICA. CONFIGURAÇÃO DE FLAGRANTE ILEGALIDADE. TRIBUNAL DO JÚRI. CONDENAÇÃO POR HOMICÍDIO DUPLAMENTE QUALIFICADO E LESÕES CORPORAIS. NOVA PRONÚNCIA. ALEGADA IMPOSSIBILIDADE DE REFORMATIO IN PEJUS INDIRETA. AUSÊNCIA DE RECURSO DA ACUSAÇÃO. CARACTERIZADA PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO PUNITIVA NAS INSTÂNCIAS DE ORIGEM EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE DO PACIENTE. PRECEDENTES. HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDO. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO. 1. A soberania relativa do veredicto do conselho de sentença não enseja o agravamento da pena com base em novo julgamento pelo tribunal do júri em consequência de recurso exclusivo da defesa. 2. O Supremo Tribunal Federal tem admitido o reconhecimento da prescrição da pretensão punitiva derivada de contagem de prazo adstrito a pena fixada em condenação posteriormente anulada quando questionada exclusivamente por recurso da defesa. 3. A Constituição da República impõe a necessária motivação de decisão judicial, principalmente em providência restritiva de direito, não se admitindo exceção à observância desse dever. 4. Habeas corpus não conhecido, mas concedida a ordem, de ofício, para reconhecer a extinção da punibilidade do paciente e determinar o trancamento da ação penal.[7]
3.2 PRINCÍPIO DA TAXATIVIDADE
Tendo em vista o próprio conceito de recurso e sua natureza jurídica, apenas se admite a interposição daquele que tenha expressa previsão em lei editada por ente com competência para tanto – no caso, a União, ex vi do art. 22, I, da Constituição Federal.
Diz-se, assim, que os recursos se submetem ao princípio da taxatividade, de modo que é vedado às partes ou mesmo ao magistrado, de modo casuístico, promover a criação de instrumento recursal não previso na legislação de regência.
É o princípio da taxatividade, inclusive, que fundamenta a forte divergência existente no que toca à existência, ou não, da correição parcial.
Isto porque, em que pese tratada pela doutrina enquanto espécie de recurso voltado ao ataque de atos tumultuários do processo, nas ações de competência da justiça estadual a correição parcial não encontra previsão em qualquer diploma normativo, sendo por vezes utilizada com base em disposição das leis de organização judiciária de cada Estado ou, então, em aplicação extensiva da Lei 5.010/66, que, todavia, é voltada apenas às lides da Justiça Federal em primeira instância.
Importante destacar, ademais, que a taxatividade recursal não impede o uso da interpretação extensiva ou mesmo da aplicação analógica de ouros dispositivos legais, a exemplo do que comumente ocorre com o recurso em sentido estrito, previsto no art. 581 do CPP, com fundamento no que autoriza o art. 3º do mesmo Códex.
3.3 PRINCÍPIO DA UNIRRECORRIBILIDADE
Assim prevê o art. 593, §4º, do Código de Processo Penal:
§ 4º Quando cabível a apelação, não poderá ser usado o recurso em sentido estrito, ainda que somente de parte da decisão se recorra.
Do dispositivo supratranscrito se extrai, com clareza, o princípio da unirrecorribilidade, segundo o qual contra as decisões judiciais caberá a interposição de apenas e tão somente um recurso, ainda que haja, em seu conteúdo, matérias impugnáveis por diferentes espécies recursais.
Trata-se de princípio que visa assegurar o regular curso do iter processual, de modo a reduzir a possibilidade de tramitação concomitante de recursos submetidos a ritos procedimentais distintos. Busca-se, assim, evitar o tumulto do processo.
Registre-se, por imperioso, que a unirrecorribilidade não significa que o impedimento de utilização de um único recurso para combater duas decisões judiciais distintas. Embora não se trate de prática comum, inexiste qualquer vedação no ordenamento quanto ao tema, sendo inclusive medida que, atendidos os pressupostos recursais objetivos e subjetivos, favorece a celeridade e a efetividade processuais.
Demais disso, em casos de sucumbência recíproca, além do recurso adesivo (que, em verdade, funciona como meio/técnica de interposição e não propriamente como um recurso específico, ante a taxatividade), entende-se que não há de se falar em violação à unirrecorribilidade.
Isto porque, sendo ambas as partes reciprocamente sucumbentes em relação ao quanto decidido em uma mesma decisão judicial, faculta-se às duas, obviamente de modo separado, a utilização da mesma espécie recursal para atacá-la. Por possuírem os recursos igual natureza jurídica, não há de se falar em violação à unirrecorribilidade, pois somente caberá o manejo do apelo expressamente previsto na legislação para combater, em específico, aquele decisum.
3.4 PRINCÍPIO DA VOLUNTARIEDADE
Também extraível do conceito exposto no tópico primeiro, o princípio da voluntariedade corresponde à necessidade de a parte, de forma livre, fazer uso da opção de interpor o recurso que se entenda cabível ao caso. É ínsito a todo e qualquer recurso que a decisão de recorrer seja expressão de manifestação da vontade da parte ou de seu procurador, sendo vedado ao Estado, enquanto responsável pelo exercício da jurisdição, a intervenção no animus dos potenciais recorrentes no particular.
Tanto é assim que o chamado recurso de ofício não se encaixa, em termos técnicos, no conceito de recurso, funcionando em verdade como condição de eficácia de certas decisões judiciais. Eis, aí, a ratio do entendimento sumular n. 160 do Supremo Tribunal Federal:
É nula a decisão do tribunal que acolhe, contra o réu, nulidade não argüida no recurso da acusação, ressalvados os casos de recurso de ofício.
Deve ser destacado, ademais, que a voluntariedade funciona como reforço do princípio dispositivo, assegurando que o Estado-juiz não decida além do que as partes, no uso de suas faculdades processuais, pleiteiem junto ao Poder Judiciário.
É essa noção de dispositividade, lado outro, que deixa evidente que a interposição ou não de recursos é, em essência, claro ônus das partes sucumbentes, que, optando por não o exercer, devem se submeter aos efeitos correspondentes.
Ao não recorrer de sentença que condenou o réu sem a qualificadora requerida na peça de ingresso, o Ministério Público, por exemplo, assume o ônus de, em virtude do non reformatio in pejus, ver obstada toda e qualquer hipótese de agravar a situação do acusado.
De igual forma, ao optar por não recorrer contra sentença que tenha imposto condenação com base em argumentos frágeis, o condenado opta por não levar ao conhecimento do órgão julgador argumentos outros capazes, por si sós, de alterar o resultado do julgamento, assumindo o risco de manutenção do decisum.
Vê-se, assim, que há manifesto diálogo entre os princípios recursais, com possibilidade de os efeitos de um, como o princípio da proibição de reforma para a pior, guardarem relação com as consequências de outro, a exemplo da voluntariedade.
3.5 PRINCÍPIO DA DIALETICIDADE
Após o regular exercício da ampla defesa, com a correspondente apresentação da peça defensiva e, assim, a instauração da controvérsia, deve o magistrado se debruçar sobre as alegações das partes e, igualmente, o acervo probatório dos autos para fins de prolatar a decisão pertinente.
Assim é que, com base no princípio da consubstanciação e na prova produzida nos autos, o quanto decidido pelo julgador é delimitado pelos fatos narrados pela acusação e pela manifestação da defesa em relação a eles.
Com a prolação do decisum, deve-se examinar a eventual ocorrência de sucumbência para, então, definir se os pressupostos subjetivos de admissibilidade (interesse e legitimidade) estão presentes, pois à parte que não é sucumbente, por óbvio, não é facultada a possibilidade de recorrer.
Nessa ordem de ideias é que exsurge o princípio da dialeticidade, segundo o qual os argumentos de fato e de direito do recurso devem guardar pertinência dialética com o quanto decidido pelo órgão julgador.
É dizer, as alegações do recorrente, expostas com vista a levar o órgão ad quem a reformar, invalidar ou complementar a decisão de piso, necessariamente precisam rebater, de modo específico, aquilo que constou na ratio decidendi da sentença, pois, do contrário, o apelo sequer será conhecido.
Discute-se, em sede doutrinária e jurisprudencial, se o recurso que se limita a repetir a literalidade do texto da defesa preliminar ou mesmo das alegações finais anteriormente apresentadas observa, ou não, o princípio da dialeticidade.
Apesar de não sem críticas da doutrina, a jurisprudência trilha no sentido da possibilidade da mera reprodução na apelação, por exemplo, do conteúdo das peças de defesa que lhe precederam, o que é admitido com fundamento nos direitos ao contraditório, à ampla defesa e ao duplo grau de jurisdição.
Nesse sentido:
(...) a reprodução, na apelação, dos argumentos contidos na petição inicial não impede, por si só, o conhecimento do recurso, mormente quando da fundamentação se extraia irresignação da parte com a sentença prolatada (...)[8]
(STJ - AgRg no AREsp 207336 SP 2012/0152659-4)
Em que pese o recorrente ter se limitado a reproduzir o conteúdo dos argumentos deduzidos em sede de Réplica, os motivos de fato e de direito encontram-se evidenciados nas razões de recurso, de modo que não se verifica a violação ao Princípio da Dialeticidade Recursal."
(TJDFT - Acórdão 1111624, maioria, Relator: EUSTÁQUIO DE CASTRO, 8ª Turma Cível, data de julgamento: 21/6/2018)
Trata-se de posição, todavia, que se limita aos recursos de natureza ordinária, uma vez que, para o Tribunal da Cidadania e para o STF, não se admite que no recurso especial ou no recurso extraordinário o recorrente adote semelhante proceder:
O simples repisar de alegações recursais, sem apresentação de tese jurídica capaz de infirmar a decisão agravada, viola o princípio da dialeticidade e o disposto no § 1º do art. 1.021 do CPC/2015, torna o recurso inadmissível e atrai a incidência da multa prevista no § 4º do mesmo artigo.
"O princípio da dialeticidade recursal impõe ao recorrente o ônus de evidenciar os motivos de fato e de direito suficientes à reforma da decisão objurgada, trazendo à baila argumentações capazes de infirmar todos os fundamentos do decisum que se pretende modificar, sob pena de vê-lo mantido por seus próprios fundamentos, a teor do que dispõem as Súmulas 284 e 287 do STF.”[9]
Tendo em vista possuírem requisitos de admissibilidade específicos, bem como que a cognição que é exercida em seus julgamentos é restrita, limitando-se à verificação de questões de direito e não de fato, tanto no “Resp” quanto no “RE” é imprescindível que os recorrentes indiquem os pontos do acórdão recorrido sobre os quais recaem suas irresignações.
4 CONCLUSÃO
Face ao exposto, resta claro que no processo penal se aplicam princípios específicos e, ainda, que aqueles que também têm incidência no processo civil sofrem, no iter da legislação adjetiva criminal, manifesta releitura, de modo a se adequarem às especificidades do CPP.
A compreensão da principiologia do processo penal no que toca aos recursos criminais é, pois, tema de importância evidente, uma vez que possibilita a identificação do que foi objeto de sucumbência e, por conseguinte, daquilo que pode ou não ser levado ao conhecimento do órgão julgador em sede recursal.
Diferentemente do processo civil, onde em regra os interesses em litígio são de natureza eminentemente disponível, no processo penal o bem jurídico em cotejo é sempre, ao final, o direito à liberdade individual, que, forte nas premissas da Constituição, é dotado de máxima fundamentalidade.
A principiologia recursal do CPP tem como base a proteção do status libertatis do indivíduo, ao qual deve ser assegurada a regularidade do andamento de processo voltado a aplicar a legislação substantiva em marcos estritamente democráticos, tudo com vista a garantir a força normativa dos ditames constitucionais.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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_________. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no AREsp 207336 SP 2012/0152659-4.
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_________. Supremo Tribunal Federal. RHC 126763, Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI, Relator(a) p/ Acórdão: Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 01/09/2015, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-018 DIVULG 29-01-2016 PUBLIC 01-02-2016.
FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional/ Bernardo Gonçalves Fernandes - 9. ed. rev. ampl. e atual. - Salvador. JusPOOIVM, 2017.
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[1] FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional/ Bernardo Gonçalves Fernandes - 9. ed. rev. ampl. e atual. - Salvador. JusPODIUM, 2017, p. 230.
[2] LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação especial criminal comentada. Volume único. Salvador: Juspodivm, 2020, p. 1729-1730.
[3] TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de direito processual penal. - 14. ed. rev. e atual. - Salvador: Ed. JusPodivm, 2015, pg. 1027-1028.
[4] STF - RHC 126763, Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI, Relator(a) p/ Acórdão: Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 01/09/2015, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-018 DIVULG 29-01-2016 PUBLIC 01-02-2016.
[5] STJ - AgRg-REsp 1.382.376; Proc. 2013/0158315-6; MG; Quinta Turma; Rel. Min. Jorge Mussi; DJE 30/03/2016.
[6] Nesse sentido: TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. 33ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2011. p. 499.
[7] STF - HC 165376, Relator(a): Min. CÁRMEN LÚCIA, Segunda Turma, julgado em 11/12/2018, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-138 DIVULG 25-06-2019 PUBLIC 26-06-2019.
[8] STJ - AgInt no REsp 1623353/RS.
[9] STF - RMS 30842 AgR/DF.
Graduado em Direito pela Universidade Federal de Sergipe e especialista em Ciências Criminais pela Faculdade Guanambi/BA.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOTERO, Victor Figueiredo. Legislação adjetiva criminal: princípios recursais Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 06 maio 2022, 04:19. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/58317/legislao-adjetiva-criminal-princpios-recursais. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Gabrielle Malaquias Rocha
Por: BRUNA RAFAELI ARMANDO
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