ADRIANO MICHEL VIDEIRA DOS SANTOS[1]
(orientador)
Resumo: O intuito do presente estudo é analisar o crime de liberdade sexual de estupro, pois é o único crime em que socialmente a vítima precise ser aceita e provar sua inocência, diante da sociedade e da justiça brasileira. Diante disso, faz-se necessário discutir e estimular uma reflexão na sociedade em geral, no que concerne ao processo de estigmatização ao qual a mulher foi submetida desde os primórdios da humanidade até os dias atuais, analisando a luta histórica das mulheres em busca de igualdade em direitos, que por muitas décadas foram violados, bem como a sua relação com o crime contra a liberdade sexual. Consequência disto, é que ocorre um silêncio que estimula a insistência nos crimes de violência sexual. Neste sentido, questiona-se: qual a influência do machismo estrutural no crime de liberdade sexual? Além disso, o objetivo geral é verificar quais as legislações que visam combater o crime de liberdade sexual. Já os objetivos específicos são: identificar quais são os tipos de violência contra a mulher; estudar quais são os crimes contra a liberdade sexual; e analisar quais são as formas de combater o machismo estrutural. A metodologia utilizada será de abordagem qualitativa, e através do método indutivo, para que possa ser elaborada uma pesquisa bibliográfica sobre o machismo estrutural e do estigma que as mulheres sofrem em caso de crime de violência sexual.
Palavras-chaves: Estigmatização. Liberdade sexual. Machismo. Violência sexual.
Abstract: The purpose of the present study is to analyze the crime of sexual freedom, as it is the only crime in which the victim needs to prove his innocence, in the face of Brazilian society and justice. Therefore, it is necessary to discuss and encourage reflection in society in general, with regard to the process of stigmatization to which women have been subjected since the dawn of humanity to the present day, analyzing the historical struggle of women in search of equality in rights that for many decades have been violated, as well as their relationship with the crime against sexual freedom. As a consequence of this, there is a silence that encourages insistence on crimes of sexual violence. In this sense, the question is: what is the influence of structural machismo in the crime of sexual freedom? In addition, the general objective is to verify which laws are aimed at combating the crime of sexual freedom. The specific objectives are: to identify the types of violence against women; study what are the crimes against sexual freedom; and analyze what are the ways to combat structural machismo. The methodology used will be of a qualitative approach, and through the inductive method, so that a bibliographic research about the structural machismo and the stigma that women suffer in the case of the crime of sexual violence can be elaborated.
Keywords: Stigmatization. Sexual freedom. Chauvinism. Sexual violence.
Sumário: Introdução.1. O processo de estigmatização da mulher. 1.1 Crimes contra a liberdade sexual. 1.1.1. Estupro. 1.1.2. Assédio Sexual. 1.1.3. Importunação Sexual. 1.1.4. Estupro de Vulnerável. 2. O crime de estupro no Brasil 2.1. Evolução legislativa do estupro. 2.1.1. Código Penal de 1830. 2.1.2. Código Penal de 1890. 2.1.3. Código Penal de 1940. 3. A cultura patriarcal e machismo no crime de estupro. 3.1. Revitimização da vítima. 3.2. Desqualificação da vítima. 3.3. Caso Mariana Ferrer. 3.4. A lei nº 13.718/18 e os crimes sexuais. Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
O presente artigo visa estudar sobre o instituto do machismo estrutural e sua relação com o crime de liberdade sexual. Tendo em vista que, o machismo estrutural é um dos grandes responsáveis pelo alto índice de crimes de violência sexual, pois é por meio dele que objetificam e sexualizam a mulher, além de criarem o padrão de mulher perfeita, com atributos que medem a honestidade, dignidade e o quanto ela deve ser respeitada.
Destarte que o combate aos crimes contra a liberdade sexual ainda tem sido o maior desafio, pois ao contrário dos outros crimes, neste a vítima não é legitimada de início, as próprias pessoas ao entorno da vítima se perguntam o que a mulher fez para acontecer tal ato. Em muitas vezes, a mulher é desqualificada por meio de várias formas, sendo elas: tentando justificar o ato criminoso concedendo a responsabilidade à vítima, no meio familiar desacreditando da mulher, no meio religioso com o intuito de esconder tais atrocidades e até mesmo no processo penal por meio de oitivas excessivas que exigem o depoimento perfeito.
Neste sentido, qual a influência do machismo estrutural no crime de liberdade sexual? Desta forma, as hipóteses de resolução da problemática ocorre por meio da análise do preconceito arraigado na sociedade sob o enfoque das pessoas violentadas e dos autores de crimes contra a dignidade sexual, ponderados a visão sociocultural e a postura do operador do direito acerca do tema.
Ademais, o objetivo geral é verificar quais as legislações que visam combater o crime de liberdade sexual. Já os objetivos específicos são: identificar quais são os tipos de violência contra a mulher; estudar quais são os crimes contra a liberdade sexual; e analisar quais são as formas de combater o machismo estrutural.
Além disso, o tema abordado possui grande relevância para a sociedade e para o mundo acadêmico, visto que apresenta a abrangência do estudo sobre o processo de estigmatização ao qual a mulher foi submetida desde os primórdios da humanidade até os dias atuais, analisando a luta histórica das mulheres em busca de igualdade em direitos que por muitas décadas foram violados, bem como a sua relação com o crime contra a liberdade sexual.
A metodologia utilizada será de abordagem qualitativa, com intuito de gerar conhecimento para elaboração do texto científico, como o trabalho de conclusão de curso, se faz necessário descrever a complexidade do problema e a interação de variáveis, através do método indutivo que corresponde à extração discursiva do conhecimento a partir de premissas gerais aplicáveis a hipóteses concretas.
Do ponto de vista dos procedimentos técnicos, será elaborada pesquisa bibliográfica, por meio de doutrinas, artigos, sites. E a análise dos resultados alcançados através da pesquisa bibliográfica sobre o machismo estrutural e do estigma que as mulheres sofrem em caso de crime de violência sexual.
1 O PROCESSO DE ESTIGMATIZAÇÃO DA MULHER
Apesar dos Direitos conquistados até os dias atuais, as mulheres em pleno século XXI ainda são estigmatizadas perante a sociedade, uma vez que o histórico patriarcal e machista definem sua posição na sociedade. A relação do estigma com a violência sexual é uma realidade presente e pouco debatida, pois está enraizado na cultura brasileira, fazendo com que as próprias vítimas aceitem a posição e julgamento a qual lhe foi atribuída.
Rogério Greco sintetiza os efeitos dessa violência apontando suas consequências:
“A conduta de violentar uma mulher, forçando-a ao coito contra sua vontade, não somente a inferioriza, como também a afeta psicologicamente, levando-a, muitas vezes, ao suicídio. A sociedade, a seu turno, tomando conhecimento do estupro, passa a estigmatizar a vítima, tratando-a diferentemente, como se estivesse suja, contaminada com o sêmen do estuprador. A conjugação de todos esses fatores faz com que a vítima, mesmo depois de violentada, não comunique o fato à autoridade policial, fazendo parte, assim, daquilo que se denomina cifra negra” (GRECO, 2012. p. 334).
Abordando etimologicamente a palavra estigma nota-se que ao passar dos tempos foi adquirindo diferentes significados. De acordo com sua evolução histórica, já foi inicialmente utilizada para sinalizar as marcas corporais de escravos e criminosos. Na Idade Média, a palavra passou a designar as marcas da graça divina ou sinais físicos causados por doenças (GOFFMAN, 2020).
Ervin Goffman (2020, p.01) define como “a situação do indivíduo que está inabilitado para aceitação social plena”, de maneira mais clara explica:
“O termo estigma, portanto, será usado em referência a um atributo profundamente depreciativo, mas o que é preciso, na realidade, é uma linguagem de relações e não de atributos. Um atributo que estigmatiza alguém pode confirmar a normalidade de outrem, portanto ele não é, em si mesmo, nem horroroso nem desonroso (GOFFMAN, 2020, p.01)”.
Portanto, é possível verificar que ao longo da história a mulher passou por um processo depreciativo quando deixou de ser vista como um ser sagrado e passou a ser objeto de tentação, fonte de todo pecado e causadora de conflitos, e foi através do corpo e da sexualidade feminina que se iniciou a perseguição às mulheres e lhes foram atribuídas a inferioridade.
1.1 CRIMES CONTRA A LIBERDADE SEXUAL
Os crimes contra a dignidade sexual estão previstos no título IV do Código Penal, nos artigos 213 a 234 e têm como objeto jurídico a proteção da sexualidade, ou seja, o direito de escolher quando, como e com quem praticar atos de cunho sexual (BRASIL, 1940). Nesse sentido, vejamos a seguir o conceito do crime de estupro, assédio sexual, importunação sexual e estupro de vulnerável.
1.1.1 Estupro
O delito de estupro é a prática de cópula vaginica mediante violência ou grave ameaça. Este delito exige como autor imediato o homem, pois o tipo objetivo exige a introdução de pênis na vagina, contudo há a possibilidade de a mulher ser autora mediata do delito, por exemplo quando se utiliza incapaz para praticar o ato sexual em outra mulher. Também é possível a mulher agir em coautoria com um homem, praticando a violência ou grave ameaça, conforme entendimento de Claudio Campos (2020).
O Código Penal prevê em seu título IV os crimes contra a dignidade sexual, o primeiro a ser tratado no art. 213 é o estupro:
“Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso: Pena - reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos.
§ 1o Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave ou se a vítima é menor de 18 (dezoito) ou maior de 14 (catorze) anos: Pena - reclusão, de 8 (oito) a 12 (doze) anos.
§ 2o Se da conduta resulta morte: Pena - reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos (BRASIL, 1940)”.
Desta forma, denomina-se estupro toda forma de violência sexual para qualquer fim libidinoso, incluindo por obvio, a conjunção carnal. Antes da Lei n º 12.015/2009, era necessário conjunção carnal para se configurar estupro.
1.1.2 Assédio Sexual
O assédio sexual caracteriza-se por constranger alguém, mediante palavras, gestos ou atos, a fim de obter vantagem ou favorecimento sexual, em razão da sua condição de superior hierárquico ou da ascendência inerente ao exercício de cargo, emprego ou função, conforme dispõe o art. 216 do Código Penal:
“Art. 216-A. Constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função.
Pena – detenção, de 1 (um) a 2 (dois) anos.
(...)
§ 2º A pena é aumentada em até um terço se a vítima é menor de 18 (dezoito) anos (BRASIL, 1940)”.
O assédio se perpetua por meio de insinuações, chantagens, piadas de conteúdo sexual, ameaças, ofensas e muitas outras formas que passam despercebidas pela própria vítima.
1.1.3 Importunação Sexual
A Lei 13.718, de 24 de setembro de 2018, instituiu novo tipo penal, previsto no artigo 215-A, do Código Penal, com a denominação jurídica de importunação sexual. Diz o tipo penal: "Praticar contra alguém e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro: Pena – reclusão, de um a cinco anos, se o ato não constitui crime mais grave" (BRASIL, 1940).
Esta nova tipificação surgiu da necessidade de amparar juridicamente mulheres que passaram a ser alvo de ataques sexuais nos transportes coletivos, conduta na qual ante era considerada contravenção penal.
1.1.4 Estupro de Vulnerável
O delito que se convencionou denominar de estupro de vulnerável, justamente para identificar a situação de vulnerabilidade em que se encontra a vítima, vejamos:
“Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos:
Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.
§ 1o Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.
§ 2o (VETADO)
§ 3o Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave: Pena - reclusão, de 10 (dez) a 20 (vinte) anos.
§ 4o Se da conduta resulta morte: Pena - reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos (BRASIL, 1940)”.
Considera-se vulnerável não somente a vítima menor de 14 (quatorze) anos, mas também aquela que possuiu alguma enfermidade ou deficiência mental, não tendo o necessário discernimento para a prática do ato, ou aquela que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência, conforme se verifica pela redação do § 1º do art. 217-A do Código Penal.
2 O CRIME DE ESTUPRO NO BRASIL
O estupro é o ato sexual praticado contra a vontade de outrem, este crime gera revolta social desde a antiguidade até os dias atuais, devido às circunstâncias em que a vítima é submetida sendo esta então obrigada a praticar o ato sexual contra a sua vontade.
Nesse sentido, Georges menciona acerca do aspecto histórico do crime de estupro, vejamos:
“Não se sabe ao certo a primeira vez que este nome foi dito, registros bibliográficos traz a citação de tal conduta no ano de 1974 no livro Rape: The First Sourcebook for Women, porém, sabe-se que este tipo de abuso já era previsto há muito tempo. Relatos bíblicos apresentam consequências graves para os estupradores, como a pena de morte. Interessante ressaltar que houve momentos em que para ser considerada vítima de estupro deveria preencher determinados requisitos, os quais para os tempos atuais parecem inimagináveis (VIGARELLO, 1998. p. 14)”.
Outro exemplo, temos os Hebreus, uma sociedade a qual baseava-se seu padrão de moralidade sexual na religião. Vejamos:
“Outros delitos contra a honestidade severamente punidos eram: a fornicação, a sedução, a violação e o rapto. Com respeito a fornicação, notemos que eram punidas fornicações com escravas (Lev 19, 20 ss.), o que demonstra o respeito, que o ser humano, como tal, independentemente de sua condição social, merecia do legislador hebreu. Ressalta neste ponto a incomparável superioridade moral da religião, do povo hebreu” (GIORDANI, 2004. p. 34).
Assim, nota-se a importância da religião para a criminalização de muitos abusos cometidos. Tal proteção foi se adequando ao passar do tempo a necessidade de cada povo. O crime de estupro foi positivado pela primeira vez no Código de Hamurábi, entre os séculos XVIII e XVII A. C. sendo assim, aquele que fosse flagrado violando uma mulher virgem, que morasse com os pais, era punido com a pena de morte (FERREIRA, 2020).
Portanto, a história do estupro é tão antiga quanto a humanidade. O que é relativamente recente é o repúdio da sociedade. E ainda falta uma resposta jurídica mais positiva para a investigação, correta produção de provas e punição, sem punir a vítima junto nesse processo.
2.1 EVOLUÇÃO LEGISLATIVA DO ESTUPRO
Para melhor compreensão acerca do tema, será estudo a evolução histórica legislativa do instituto do crime de estupro previsto no Código Penal, vejamos a seguir.
2.1.1 Código Penal de 1830
Desde a Constituição de 1824 sucederam 06 (seis) anos até a elaboração do Código Criminal do Império, que foi sancionado em 16 de dezembro de 1830, por D. Pedro I. Tal regulamentário passou por críticas de doutrinadores, haja vista o ele nível de generalização na redação das transgressões sexuais. Sobre o tema, Prado leciona:
“O Código Criminal do Império de 1830 elencou vários delitos sexuais sobre a rubrica genérica estupro. A doutrina da época, todavia, repudiou tal técnica de redação. O legislador definiu o crime de estupro propriamente dito no artigo 222, cominando-lhe pena de prisão de três a doze anos mais a constituição de um dote em favor da ofendida. Se a ofendida fosse prostituta, porém, a pena prevista era de apenas um mês a dois anos de prisão” (PRADO, 2001. p. 195).
Fica evidente a grande discriminação considerando a pureza da vítima, a qual tinha a pena mais branda caso fosse uma garota de programa. No mais, há também uma discriminação em relação a vítima, pois apenas as mulheres poderiam ser consideradas vítimas, sendo que para homens não havia punição.
2.1.2 Código Penal de 1890
Editado em 11 de outubro de 1890, o Código Penal Republicano incluía em seus artigos 268 e 269, as penas e a tipicidade para o crime de estupro, respectivamente. Encontrava- se no Título VII (Da Corrupção de Menores, dos Crimes Contra a Segurança da Honra e Honestidade das Famílias e do Ultraje Público ao Pudor):
“Art. 268. Estuprar mulher virgem ou não, mas honesta:
Pena: de prisão celullar por um a seis anos.
§ 1º Si a estuprada for mulher pública ou prostituta:
Pena: de prisão cellular por seis meses a dois anos.
§2º Si o crime for praticado com o concurso de duas ou mais pessoas, a pena será aumentada da quarta parte.
Art. 269. Chama-se estupro o acto pelo qual o homem abusa com violência de uma mulher, seja virgem ou não” (PRADO, 2001. p. 195).
O Código Penal de 1890, portanto, delimitou que o crime de estupro ocorre apenas em relação a mulher, ou seja, violência ou abuso carnal em face da mulher. Trazendo, portanto, as definições de violência e estupro para os fins desse crime. O legislador, assim, não descreveu apenas elementos e circunstâncias para o crime de estupro, mas foi mais profundo, esclarecendo o que entendia a respeito da violência. Tal atitude limitou a doutrina e a jurisprudência pois ambas geralmente fazem a exegese dos dispositivos (FERREIRA, 2020).
No mais, o Código Penal Republicano, influenciado pela tendência evolutiva do direito penal, como já havia sido demonstrado com as Ordenações Filipinas, em contraste com o Estatuto Criminal do Império, trouxe penas mais leves que os códigos anteriores, pois culminava uma punição de 01 (um) a 06 (seis) anos.
Muito criticado, houve vários projetos com a finalidade de substituir este Código Penal. Entretanto, ele não foi alterado em sua totalidade, mas foi alterado paulatinamente, tendo sido acrescido muitas leis especiais para complementá-lo. Este foi um dos principais motivos para a criação da Consolidação das Leis Penais. Sendo assim, este foi o motivo determinante para a criação da Consolidação das Leis Penais de 1932 (FERREIRA, 2020).
No que toca ao crime de estupro não houve qualquer alteração entre os dispositivos do Código Penal de 1980 e 1932, até a numeração do artigo foi mantida, sendo que a diferença sutil foi algumas atualizações ortográficas realizadas na Consolidação. Veja-se:
“Da violência carnal.
(...)
Art. 268. Estuprar mulher virgem ou não, mas honesta:
Pena – de prisão celular por um a seis anos.
§ 1.º Si a estuprada for mulher pública ou prostituta:
Pena – de prisão celular por seis meses a dois anos.
§ 2.º Si o crime for praticado com o concurso de duas ou mais
pessoas, a pena será aumentada da quarta parte.
Art. 269. Chama-se estupro o ato pelo qual o homem abusa com violência de uma mulher, seja virgem ou não. Por violência entendesse não só o emprego da força física, como o de meios que privarem a mulher de suas faculdades psicológicas, e assim da possibilidade de resistir e defender-se, como sejam os anestésicos e narcóticos em geral” (PIERANGELLI, 1980. p. 373).
Assim, a violência era entendida não apenas como o emprego de força psicológica, como também aqueles privem a mulher de suas faculdades psicológicas normais, como por exemplo os narcóticos e quaisquer outros medicamentos similares.
2.1.3 Código Penal de 1940
Com a chegada do Código Penal de 1940 (BRASIL, 1940), o estupro foi definido no art. 213, situando-se no Título VI (Dos crimes contra os costumes), Capítulo (Dos crimes contra a liberdade sexual); em seu artigo 224, identificava o crime de estupro de vulnerável, arguindo uma violência presumida quanto se era praticado o ato sexual (conjunção carnal) com determinados sujeitos passivos que se enquadrariam a estes tidos vulneráveis:
“O Código contemplou o estupro no Título VI (Dos Crimes Contra os Costumes), Cap. I (Dos Crimes Contra a Liberdade Sexual), art. 213. Afastando-se prudentemente do direito anterior, o legislador enunciou o tipo de delito de estupro de maneira simples e com maior precisão (...). Dos casos de violência presumida bem como das formas qualificadas e das causas especiais de pena, tratou o capítulo geral. Sendo essas regras gerais aplicáveis às espécies dos arts. 213 e 222, foi de boa técnica inserir-se no final um cap. VI com as disposições comuns (...)” (FERREIRA, 2020).
A evolução dos Códigos Penais trouxe uma melhor definição jurídica quanto ao tema, de forma a melhorar a capitulação e o enquadramentos dos fatos ao tipo penal, em síntese, há um melhoramento técnico por parte dos legisladores.
Nélson Hungria, o qual a autoria do Código Penal é, normalmente, atribuída, relata que o novo projeto utilizou de alguns temas específicos dos códigos penais suíço, polonês e dinamarquês, além daquele projeto de Vírgílio de Sá que foi ofertado anteriormente, em 1927. Em 04 de novembro de 1940 foi entregue esse projeto a comissão revisora e, por incrível pareça, foi sancionado logo após, por volta de três dias, o que originou no Decreto-Lei nº 2848. Contudo, cumpre ressaltar que apenas entrou em vigência em 1º de janeiro de 1942 (FERREIRA, 2020).
No que toca ao delito de estupro, este ficou inserido, conforme já explicitado, no Título VI, Capítulo I, com a redação original que descrevia “art. 213. Constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça: pena – reclusão, de três a oito anos” (BRASIL, 1940).
Passados alguns anos, foi elaborado um novo Código Penal, também pelo mesmo autor, Nélson Hungria. O texto da lei continuou inalterado, isto é, a mesma previsão de pena e tempo aplicável. Todavia, este código não entrou em vigência no Brasil, pois teve sua revogação definitiva pela Lei 6.578/78, a qual manteve a vigência do Código de 1940 (FERREIRA, 2020).
3 A CULTURA PATRIARCAL E MACHISMO NO CRIME DE ESTUPRO
É sabido que, por um grande período de tempo, os crimes sexuais tiveram como bens juridicamente protegidos a propriedade, uma vez que a mulher não tinha autonomia e era considerada propriedade de seu pai ou marido, e posteriormente, os costumes, relegando um papel subsidiário à dignidade sexual e integridade das mulheres, conforme entendimento de Mariana Carneiro Rosa (2020).
Entretanto, a despeito das mudanças legislativas em relação ao que é protegido pela criminalização da violência sexual, a sociedade, ainda hoje, procura justificar tais crimes através das atitudes das mulheres vítimas. Embora falem especificamente do crime de estupro, explicam Vilhena e Zamora a visão que a sociedade mantém acerca das mulheres vítimas:
“O estupro é justificado de diferentes formas nas diferentes culturas. Frequentemente utiliza-se o argumento do “consentimento” as mulheres violadas, na realidade, consentiram no ataque ou pediram por ele, ao usarem roupas curtas, coladas, perfume e maquiagem chamativos. Ignora-se, com tal argumento, que mulheres de hábito de freira ou de burca também são violentadas. A ideia de que a mulher na verdade queria permite trivializar o estupro, relativizá-lo, em muitos casos, e até considera-lo excitante, não apenas na pornografia, como também na esfera legal, já que é comum que à vítima caiba o ônus da prova, isso quando não é transformada em ré” (VILHENA, 2004, p. 117).
Ora, para a sociedade, o comportamento e a vida pregressa da mulher estão diretamente associados à possibilidade de a mesma sofrer uma violência sexual. Em verdade, os modelos de conduta entendidos como tipicamente femininos são explicados culturalmente como a melhor forma de se evitar tal violência. “Se a mulher é cuidadosa e não se desvia dos ditames comportamentais do seio social, certamente tem menores chances de ser vítima. Em resumo, para o seio social a mulher só é violentada sexualmente se der algum motivo, o qual está imbricado com a sua moral sexual” (LIMA, 2012, p.17-18).
Observa-se que culturalmente é entendido que quem tem que se proteger e se comportar de forma a evitar a violência sexual é a mulher. Em nenhum momento o homem é questionado, visto que sua sexualidade é considerada irrefreável, e o assédio, praticado por esses, tido como normal. Sendo assim, são comuns questionamentos às mulheres violentadas sobre o que estavam vestindo no momento do crime, se haviam ou não consumido bebida alcoólica, se estavam desacompanhadas e por qual motivo transitavam na rua em horários avançados. Em contrapartida, enquanto as mulheres vítimas são questionadas acerca de aspectos referentes à sua moral social e sexual, os homens autores desses crimes têm sua imagem socialmente construída como a de doentes e/ou psicologicamente desequilibrados. O agressor é construído socialmente como um indivíduo com algum desvio comportamental, o que torna irreal a possibilidade de homens de comportamento sexual adequado serem considerados como criminosos (ROSA, 2020).
Nesse caso, leia-se, crime contra os costumes machistas, pois era crime apenas no caso de um homem atentar contra uma mulher. E só era um crime, pois feria os direitos de marido ou de pai do homem em questão. O fato de a mulher ter sido violentada só importava porque seria vergonhoso para o pai ou marido, não por ela ter sofrido (LEMOS, 2020).
A cultura do estupro só é possível onde há machismo, sexismo, onde as desigualdades entre os gêneros são tão grandes, que a desumanização da mulher se torne algo normal. A mulher não merece ser estuprada, ela não é um objeto, não pertence ao homem, ou à Igreja, ou à família ou a ninguém.
3.1 REVITIMIZAÇÃO DA VÍTIMA
O termo revitimização está em textos e reportagens sobre exploração infantil, violência contra mulher e, agora, no projeto de lei que tipifica violência institucional praticada por agentes públicos no atendimento às vítimas de violência. A proposta, aliás, foi aprovada na Câmara e segue para análise do Senado, o que dever acontecer ainda em 2021, conforme mencionou Nathália Geraldo (2020).
A revitimização ou vitimização secundária é uma expressão que tem se tornado mais recorrente na Justiça brasileira. Está ligada mais à esfera institucional, mas também pode ser associada ao comportamento de alguém que julga ou discrimina uma vítima de um crime nas redes sociais ou em conversas com amigos.
3.2 DESQUALIFICAÇÃO DA VÍTIMA
A desqualificação demanda a utilização de fatores absolutamente irrelevantes à violência, como a vida pregressa da vítima, sua conduta sexual, suas roupas, sua conduta nas redes sociais, seus hábitos; tudo com o objetivo de delimitar que apenas a mulher tida como santa seria digna de defesa caso sofra violências.
Ademais, a desqualificação desumaniza todas as mulheres já que a única mulher que merece defesa, não é uma figura real, não é um ser humano. Ainda que a mulher que sofra violência represente a figura da dona de casa abnegada, a desqualificação vai encontrar algum elemento que a desumanize, seja porque o estupro foi cometido por seu marido, ou porque o estupro seria sua única forma de experiência sexual em razão de sua aparência física, conforme entendimento de Mariana Serrano e Amanda Claro (2020).
3.3 CASO MARIANA FERRER
Para ter maior relevância sobre o estudo, é necessário mencionar um exemplo de caso relacionado ao tema, onde ocorreu o comprometimento de um processo de grande repercussão, que é o caso da Mariana Ferrer, pois houve a substituição da promotoria, mudança de depoimento e desaparecimento de imagens, fatores que contribuíram para a acusação do André de Camargo Aranha, porém só acarretou na sua inocência após ser indiciado por estupro de vulnerável em 2018 sob acusação de ter violentado a jovem ora mencionada durante uma festa em Jurerê Internacional, conforme mencionou Beatriz Accioly, Luciana Terra e Luanda Pires (2020).
“Apesar da existência de provas contundentes acerca tanto do estado de vulnerabilidade de Ferrer – em razão do efeito de substâncias entorpecentes – bem como da consumação do ato – a partir da comprovação do rompimento do hímen e da existência de DNA e sêmen do réu no corpo e nas roupas da vítima -, o juiz responsável pelo caso, Rudson Marcos, acolheu o pedido de absolvição apresentado pelo promotor Thiago Carriço, representante do Ministério Público” (ACCIOLY; TERRA; PIRES, 2020, p.01).
Ora, foi fundamentado pelo promotor que era impossível que o agressor percebesse que a vítima não estava em condições de consentir ou não o ato praticado, que se torna algo contraditório conforme o entendimento do magistrado, que afirma que ninguém pode assegurar que a vítima pudesse conscientemente consentir qualquer interação sexual no estado em que se encontrava.
“A ausência de intencionalidade ou a premissa de que o acusado não tinha como perceber que Ferrer estava entorpecida não excluem um ponto central para a existência de uma situação de violência sexual: condição sine qua non, o consentimento é a principal métrica para relações sexuais éticas, respeitosas e mutuamente prazerosas. Além dos fundamentos utilizados para absolvição na sentença prolatada em setembro de 2020, também causou revolta nacional o vídeo da audiência publicado pelo The Intercept. Nas imagens, Mariana é reviolentada, exposta e humilhada pelo advogado de defesa Cláudio Gastão da Rosa Filho. O juiz, por sua vez, se mantém inerte, sem reprimir ou colocar fim aos ataques deferidos contra a moral e a pessoa da vítima, intervindo apenas para arguir se ela precisava de tempo para se recompor e tomar água, após Ferrer afirmar, com razão, que a forma como estava sendo tratada não era digna nem aos acusados de crimes hediondos. Diante da divulgação das indecorosas posturas do advogado e do juiz, juristas e especialistas de todo o país manifestaram-se a respeito do caso. Para o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes, as cenas são estarrecedoras. No ofício que instrui a abertura de procedimento para investigação da conduta do juiz, o conselheiro do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) Henrique Ávila afirma que as chocantes imagens do vídeo mostram o que equivale a uma sessão de tortura psicológica no curso de uma solenidade processual” (ACCIOLY; TERRA; PIRES, 2020, p.01).
Verifica-se que a defesa acaba extrapolando ao realizar atos de tortura psicológica ao tentar culpar a vítima pelos atos ocorridos, o que vão contra a moral e a ética, além de afrontar os direitos às mulheres, como demostrado no caso da Mariana Ferrer. A iniciática é deixar de julgar o agressor de forma clara, para julgar tão somente a vítima e a sua conduta. Ora, o Judiciário deve ser um local de acolhimento para as vítimas, e não de um local de humilhações e desestímulo a denúncias.
“A manutenção de práticas como a sofrida por Mariana, em que as vítimas são constantemente reviolentadas ao procurarem o sistema de Justiça, contribui de forma direta para a subnotificação de crimes sexuais no país. Prova disso é que apesar de o Brasil ter ultrapassado a marca de 65 mil casos de violência sexual apenas em 2018 – mais de 180 estupros por dia – estima-se que apenas pouco mais de 7% dos casos tenham chegado às autoridades. Os dados são do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. É o número mais alto desde 2009, quando houve uma mudança na tipificação do crime de estupro no código penal brasileiro, e o atentado violento ao pudor passou a ser enquadrado como estupro. Hoje, a cada hora, quatro meninas de até 13 anos são estupradas no Brasil, sendo que, ainda segundo o Fórum, 96% dos criminosos são do sexo masculino e 75% dos autores do estupro são conhecidos das vítimas. Segundo pesquisa dos institutos Patrícia Galvão e Locomotiva, 97% das brasileiras com mais de 18 anos já passaram por situações de assédio sexual no transporte público ou em táxis. A maioria das mulheres entrevistadas, cerca de 71%, afirma conhecer alguma mulher que já foi assediada no espaço público” (ACCIOLY; TERRA; PIRES, 2020, p.01).
No Brasil, é recorrente tais condutas como aconteceu no caso da Mariana Ferrer, pois ao inocentar o agressor, contribuiu para a cultura do estupro, e abertura de precedente com sérias consequências para a sociedade e o meio jurídico, dado que crimes sexuais ocorrem em ambientes privados e as provas são os testemunhos das partes, bem como o auxílio de meios de comunicação para realizar a denúncia e sobre qualquer ato de violência.
Portanto, neste caso, trata-se de grave violação aos direitos humanos e das mulheres que é um paradigma para uma mudança estrutural na proteção de todas as vítimas de violência que denunciam e busca ajuda ao judiciário.
3.4 A LEI Nº 13.718/18 E OS CRIMES SEXUAIS
Com vistas ao anseio popular pelo maior rigor quanto à punibilidade dos crimes sexuais, em 24 de setembro de 2018, o Brasil promulgou a Lei 13.718/18. A legislação alterou o Código Penal e trouxe inovações como a tipificação do crime de importunação sexual, conduta considerada anteriormente como a contravenção penal de importunação ofensiva ao pudor, trouxe causa de aumento de pena ao estupro coletivo e ao corretivo, que é aquele praticado contra lésbicas e gays pela sua opção sexual e tipificou ainda a pornografia de revanche e a publicação de imagens íntimas de mulheres nas redes sociais, crime conhecido como revenge porn, conforme entendimento de Mariana Carneiro Rosa (2020).
Outra grande mudança trazida pela alteração legislativa é a modificação do artigo 225 do Código Penal que reconfigurou os crimes sexuais como de ação penal pública incondicionada, escolha legislativa que permite a persecução penal independente de manifestação volitiva da vítima.
“Após citada alteração, a vítima de um crime sexual é impelida a participar do processo penal, sendo o objeto deste capítulo analisar as implicações advindas da escolha do legislador sob a perspectiva da privacidade e liberdade sexual da vítima versus o evidente caráter punitivista da norma. Com a evolução da sociedade, a resolução de conflitos passou a ser responsabilidade do Estado que representado pelo juiz tem o dever de aplicar o direito ao caso concreto, dando respaldo a sociedade da violação que foi praticada” (ROSA, 2020, p. 01).
Conforme salientado por Souza o jus puniendi não é uma faculdade estatal, mas sim um poder/dever de punir aquele que violar a norma penal prevista no ordenamento brasileiro. Entretanto, esse poder do Estado possui limitação, só podendo ser exercido através do devido processo legal, observando-se ainda os princípios do contraditório e ampla defesa, nos moldes do art. 5º, LV da Constituição da República (SOUZA, 2020).
Acerca da ação penal dos crimes sexuais, leciona Mariana Carneiro Rosa:
“De acordo com o artigo 100 do Código Penal a ação penal pode ser pública ou privada. A ação pública é de titularidade do Ministério Público e se subdivide em incondicionada ou condicionada à representação da vítima. Quanto à ação privada, a mesma se subdivide em privada, personalíssima e subsidiária da pública. A ação penal pública é a regra. Tratando-se de ação penal pública incondicionada o Ministério Público não possui discricionariedade e conveniência sobre a ação, devendo dar início à persecução criminal sempre que estiverem presentes indícios suficientes de autoria e prova da materialidade do crime, não necessitando de qualquer solicitação ou autorização para iniciar o processo” (ROSA, 2020, p. 01).
Quanto à ação penal pública condicionada a representação “esta fica com seu início condicionado à manifestação de vontade do ofendido, visto que em tipos penais como os de delitos contra a dignidade sexual a exposição em que a vítima é submetida é mais gravosa que o crime em si” (CAPEZ, 2019. p. 713).
É justamente com o intuito de preservação da privacidade da vítima que os crimes sexuais praticados contra pessoas maiores de 18 anos permaneceram por muitos anos sob o processamento da ação penal pública condicionada a representação, ficando a cargo da vítima decidir se queria ou não a instrução criminal.
CONCLUSÃO
Como exposto, verificou-se que mulher foi inserida na sociedade com o escopo de procriar, cuidar dos filhos, destinada aos afazeres domésticos, não podia dispor livremente de um patrimônio e não tinha liberdade sexual, resultado disto, é que por muito tempo as mulheres sequer eram consideradas cidadãs, não tinham direito à educação e nem ao sufrágio. Com a relação de domínio do homem sobre a mulher, foi imposta às mulheres regras de como agir, o que falar, vestimenta, entre outras formas de “etiquetamento”, os quais se não fossem seguidos levariam à uma marginalização, e até mesmo para subsidiar atos de violência sexual.
Portanto, o presente estudo teve como propósito a análise dos crimes contra a dignidade sexual no âmbito do crime do estupro. O artigo buscou descortinar a relação íntima entre patriarcado e o machismo a fim de esclarecer que os crimes sexuais contra as mulheres são estruturais, presente em todas as camadas da sociedade, naturalizados e disseminados, ainda que implicitamente e que causa à elas, consequências físicas, psicológicas e em seu meio social.
Ademais, o machismo estrutural é um dos grandes responsáveis pelo alto índice de crimes de violência sexual, pois é por meio dele que objetificam e sexualizam a mulher, além de criarem o padrão de mulher perfeita, com atributos que medem a honestidade, dignidade e o quanto ela deve ser respeitada. Além disso, boa parte da sociedade se engana achando que o machismo não se configura somente quando há marcas (sejam elas físicas, psicológicas ou emocionais), mas também por meio de uma brincadeira, constrangimentos ou ataques verbais, no entanto, a violência é a expressão mais notável deste.
O Brasil é um país de cultura patriarcal e que relega papel subsidiário às mulheres, influenciando fortemente à maneira como essas vítimas de crimes sexuais são tratadas pela sociedade. Não raras as vezes em que se desconfiam muito mais da idoneidade da mulher violentada do que da pessoa do infrator.
Por fim, passou-se ao exame das implicações advindas às vítimas quanto à reconfiguração da ação penal, posto que, conforme exposto, a alteração trazida pela Lei 13.718/18 não considerou a importância da preservação da intimidade da pessoa violentada sexualmente. Desconsiderando ainda o caráter vexatório de tais crimes e a carga traumática carregada pela ofendida.
A gravidade dos crimes sexuais, sobretudo o estupro, e o anseio social sobre a necessidade de enrijecimento das punições dos infratores devem ser considerados, entretanto, o caráter punitivista da norma não pode se sobrepor à dignidade humana e sexual do indivíduo maior e capaz, e portanto, apto a escolher se quer ou não dar início ao processamento de seu agressor.
Através do estudo, foi possível observar e concluir que as consequências dos crimes sexuais às mulheres vão muito além das marcas físicas e psicológicas deixados pelo agressor, pois a exposição da vítima mulher não podem continuar tendo um peso maior do que é de fato mais grave, que a ocorrência de um crime sexual.
Ao observar tudo que envolve um delito contra a dignidade sexual, observa-se que é cada vez mais crucial educar, descontruir estereótipos, exaltar o poder feminino, debater sobre a violência de gênero e apontar caminhos para compreensão das causas para, consequentemente, dirimir a ocorrência dos crimes ligados à dignidade sexual, contribuindo para o desenvolvimento de uma sociedade preocupada em assegurar direitos essenciais a uma existência digna.
REFERÊNCIAS
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