LETÍCIA DE JESUS PEREIRA[1]
(orientadora)
RESUMO: O presente trabalha aborda uma análise da audiência de custódia como direito fundamental do preso, a partir da cultura do encarceramento. Partindo desse cenário, pretende responder à seguinte problemática: A audiência de custódia foi instituída no sistema prisional brasileiro conforme é estabelecida em lei, levando-se em conta que tem natureza jurídica garantista de direito fundamental do preso? Para isso, objetiva-se abordar o direito fundamental do preso à audiência de custódia, para que se elenque as suas garantias legais; discutir quais os benefícios trazidos com a instituição da audiência de custódia, no intuito de demonstrar as melhorias para o preso e se a não realização da audiência de custódia seria mera irregularidade ou violação a um direito fundamental. Para tanto, utilizou-se estudos bibliográficos e documentais, com abordagem qualitativa, apoiada em uma análise construída a partir de um estado do conhecimento na área. Verificou-se que apesar da audiência de custódia ser um direito fundamental do preso, há divergências quanto a esse instituto, uma vez que alguns argumentam que a não realização não acarretaria nenhum prejuízo ao preso, sendo apenas caracterizada mera irregularidade.
Palavras-chave: Audiência de custódia. Direito Fundamental. Garantia legal.
ABSTRACT: This paper is an analysis work about custody audience as a fundamental right of the prisioner, based on the culture of incarceration. From that, it aims to answer the question: the custody audience was instituted in the brazilian prision system as established by law, from the comprehension of the legal guarantee nature of the fundamental right of the prisioner? To understand that, it aims to study the fundamental right of the prisioner to custody audience, for the prisioner be aware of the legal guarantees; to discuss what the benefits of the custody audience, what improvements was made for prisioners and if the audience does not happens, results in irregularity or fundamental right violation. Therefore, it is a qualitative study and bibliographic-documentary research based on a previous knowledge on the area. It was verified that although custody audience is a fundamental right of the prisioner, there are divergences about this institute, once some argue that the non-fulfilment does not result in prejudice for the prisioner, just mere irregularity.
Keywords: Custody audience; Fundamental Right; Legal guarantee.
1 INTRODUÇÃO
A audiência de custódia é prevista em Tratados Internacionais de que o Brasil é signatário, como, por exemplo, na Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em que a caracteriza como uma medida que visa concretizar garantias como a ampla defesa e o contraditório, conforme está expresso no art. 5°, LV, da Constituição Federal de 1988. Foi incluída no ordenamento jurídico brasileiro por meio da Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019, modificando o texto do art. 310, do Código de Processo Penal.
Em consonância com o disposto nos tratados internacionais, pode-se caracterizar a audiência de custódia como uma proposta de garantia e que tem a pretensão de mitigar as violências físicas e morais sofridas por aquele a quem se acusa de cometimento de um delito.
De acordo com o CPP, após receber o auto de prisão em flagrante, no prazo máximo de até 24 (vinte e quatro) horas após a realização da prisão, o juiz deverá promover audiência de custódia. Nesse contexto, surgiu o seguinte problema de pesquisa: a audiência de custódia foi instituída no sistema prisional brasileiro conforme é estabelecida em lei, levando-se em conta que tem natureza jurídica garantista de direito fundamental do preso?
Diante disso, levando-se em conta esse contexto, o presente artigo irá analisar como se dá a aplicação da audiência de custódia no sistema prisional brasileira. Ademais, procura-se ainda verificar quais divergências presentes no tema, bem como quais são os benefícios ao preso.
Dessa forma, objetiva-se: apontar o direito fundamental do preso à audiência de custódia, discutindo quais os benefícios trazidos com a instituição da audiência de custódia e analisar se a não realização da audiência de custódia seria mera irregularidade ou violação a um direito fundamental.
Justifica-se a escolha desse tema uma vez que possui amplas discussões e diversos entendimentos divergentes. Ademais, com essa pesquisa, é possível perceber o impacto da audiência de custódia nos presos e nas prisões, haja vista que houve uma redução no encarceramento em massa, contribuindo, assim, com melhores condições para o preso.
Adotou-se como procedimentos metodológicos estudos bibliográficos e documentais, especialmente dos textos normativos e decisões judiciais, motivo pelo qual, apresenta-se uma pesquisa com abordagem qualitativa, apoiada em uma análise construída a partir de um estado do conhecimento na área.
Para responder o problema proposto e atingir o objetivo geral de analisar se a audiência de custódia segue o rito processual conforme o que está previsto na lei, com o fim de se observar a aplicabilidade da lei na garantia dos direitos do preso, o texto está organizado em três seções: 1) a audiência de custódia no direito brasileiro; 2) audiência de custódia como direito fundamental do preso; e c) a crença social na prisão como meio de justiça.
2 A AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA NO DIREITO BRASILEIRO
A Convenção Americana de Direitos Humanos, ratificada pelo Brasil, institui a audiência de custódia como sendo uma medida que visa concretizar direitos e garantias como a ampla defesa e o contraditório (art. 5°, LV, CF), evidenciada pelo diploma normativo nos seguintes termos:
Toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais e tem o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo. (BRASIL, 1992).
Diante disso, pode-se perceber que esse momento de apresentação dos presos para uma autoridade competente ratifica uma técnica humanizada, evitando, com isso, possíveis ilegalidades e descumprimentos a direitos fundamentais que podem acontecer em uma prisão, como, por exemplo, a violação da integridade física do preso.
Nesse cenário, evidencia-se que a audiência de custódia foi instituída no Brasil com uma proposta garantista, para mitigar as violências referentes aos presos, sendo o momento adequado para discutir a legalidade da prisão e para gerar o impedimento aos maus tratos aos presos, em respeito ao artigo 5º, LV, da CF (SANTOS, 2016, p.6).
Contudo, mesmo que a audiência de custódia seja um direito fundamental, inerente ao preso, há inúmeras discussões sobre a temática no ordenamento jurídico, uma vez que surge o questionamento se com essa implementação no direito brasileiro diminuiria o encarceramento, relaxando e evitando-se prisões ilegais, ou se seria mais uma norma criada sem sua devida aplicabilidade, levando-se em consideração a logística e recursos do sistema judiciário e, também, o seu abarrotamento.
Na esteira desse raciocínio, é importante frisar que no ano de 2021 completou seis anos da implementação das audiências de custódia no Brasil, de modo que a medida é considerada um marco, pois, de acordo com o site do Conselho Nacional de Justiça, reduziu em 10% a taxa total de presos provisórios no país, evitando, assim, o aumento da população carcerária.
Em segunda análise, vale ressaltar que conforme dados presentes no site do Conselho Nacional de Justiça, observou-se que no período entre janeiro de 2015 e dezembro de 2020, foram realizadas 670.140 mil audiências de custódia, das quais 399.197 mil (59,6%) resultaram em prisão preventiva; em 270.102 mil casos (40,3%) houve a concessão de liberdade.
Contudo, apesar desses dados positivos trazidos pelo site do CNJ, é sabido que nem todos os estados da Federação têm essa efetividade da audiência de custódia, uma vez que há estados extremamente pobres, que não possuem nenhuma vara em sua comarca e sequer realizam a audiência de custódia dentro do prazo estabelecido em lei.
Nesse sentido, é nítido que o prazo de 24 horas se faz necessário para concretizar essa natureza garantista da audiência de custódia, pois, de acordo com dados sobre a realidade carcerária brasileira, encaminhados ao Conselho Nacional do Ministério Público, extraídos pela Human Rights Watch (organização internacional não governamental que defende e realiza pesquisas sobre os direitos humanos), atos de tortura e agressões praticados por policiais e agentes penitenciários contra presos ocorrem – na maioria das vezes - nas primeiras horas em que o indivíduo está preso (TORQUATO, 2021, p.8).
Acerca da importância da realização da audiência de custódia dentro do prazo legal, vale ressaltar algumas peculiaridades do ordenamento brasileiro. Como é cediço, a realização do ato em discussão dentro do prazo de 24 horas demonstra-se um grande desafio, uma vez que a audiência de custódia deve ser realizada com a participação conjunta dos membros do Ministério Público e da Defensoria Pública (na hipótese em que o indivíduo não possuir advogado constituído). Porém, dependendo da localização e estrutura da comarca, seria necessário realizar um deslocamento com o preso para se dirigir à autoridade judiciária mais próxima. Importante destacar também que deve ser levado em consideração a existência de diversas localidades de difícil acesso nas mais variadas regiões do país (REBES, AQUOTTI, SANCHES, 2018).
Levando-se em conta essa problemática, é importante debater sobre a realização das audiências de custódia através de videoconferência. A priori, há grande divergência doutrinária e jurisprudencial a respeito da realização da audiência de custódia por esse meio.
Em primeira análise, vale ressaltar que esse meio de realização da audiência foi instituída pela Lei nº 11.900/2009, que acrescentou o §2º e incisos ao artigo 185 do Código de Processo Penal, determinando que, excepcionalmente, o interrogatório do réu possa ser realizado por sistema de videoconferência, conforme segue a seguir:
§ 2º Excepcionalmente, o juiz, por decisão fundamentada, de ofício ou a requerimento das partes, poderá realizar o interrogatório do réu preso por sistema de videoconferência ou outro recurso tecnológico de transmissão de sons e imagens em tempo real, desde que a medida seja necessária para atender a uma das seguintes finalidades:
I - prevenir risco à segurança pública, quando exista fundada suspeita de que o preso integre organização criminosa ou de que, por outra razão, possa fugir durante o deslocamento;
II - viabilizar a participação do réu no referido ato processual, quando haja relevante dificuldade para seu comparecimento em juízo, por enfermidade ou outra circunstância pessoal;
III - impedir a influência do réu no ânimo de testemunha ou da vítima, desde que não seja possível colher o depoimento destas por videoconferência, nos termos do art. 217 deste Código;
IV - responder à gravíssima questão de ordem pública.
A problemática diante desse parágrafo e respectivos incisos, encontra-se na seguinte questão: se a audiência de custodia, que tem natureza garantista e que segundo o ex-ministro do STJ, Néfi Cordeiro, serve para possibilitar que o magistrado avalie a legalidade da prisão, e, consequentemente decida pela manutenção da prisão provisória, com o uso da videoconferência para a realização da audiência de custódia, como seria possível essa “humanização”, o contato entre magistrado e preso?
O primeiro ponto que deve ser debatido baseia-se no argumento segundo o qual a realização da audiência de custódia que se realiza por videoconferência, não segue a natureza jurídica garantista da mesma, uma vez que, desvirtua-se tal instituto processual, pois esse contato virtual entre o juiz e o preso, não é suficiente para que o magistrado forme a sua convicção a respeito da legalidade e os motivos da prisão em questão.
Para Cintra Júnior (2016, p. 99), o sistema de videoconferência “impossibilita perfeita percepção da personalidade do réu, quer para fins de concessão de liberdade provisória, quer para a atividade futura de individualização da pena, se for o caso de condenação”.
Nesse sentido, os doutrinadores que não concordam com a realização da audiência de custódia por videoconferência, seguem a ideia de que, como o objetivo da audiência de custódia é disponibilizar um contato do juiz com o preso, por esse meio de realização, estaria retirando a função da audiência de custódia.
Dito isso, em contrapartida, deve-se ressaltar os doutrinadores que divergem da opinião exposta acima e defendem a realização da audiência de custódia através da videoconferência. De acordo com a Lei nº 11.900/2009, §2º e seus respectivos incisos, a audiência de custódia só será realizada por videoconferência, em casos excepcionais, esses estabelecidos em lei. Dessa forma, deve-se levar em consideração a “praticidade” e vantagem da audiência de custódia ser realizada através desse método, vez que gera a redução de gastos públicos, haja vista que a escolta policial para condução dos presos até a audiência demanda alto custo aos cofres públicos (REBES; AQUOTTI; SANCHES, 2018, p. 6).
Ademais, outra vantagem que se tem com a realização da audiência de custódia por meios tecnológicos está baseada na celeridade processual, levando-se em consideração que tudo seria gravado, e assim não teria a necessidade de se ditar depoimentos, o que as vezes pode fracionar uma audiência de instrução e julgamento em várias dias.
Assim sendo, como para a realização da videoconferência se faz necessário apenas uma rede de internet e algum recurso tecnológico de transmissão de sons e imagens em tempo real, torna-se mais viável a garantia da realização da audiência dentro do prazo de 24 horas, já que não haveria, nesse caso, dificuldades que impossibilitariam a apresentação do preso ao magistrado.
Nesse interim, é evidente que o uso da videoconferência para a realização de audiência de custódia não ofende os direitos do preso, pois o contraditório e a ampla defesa permanecem assegurados. Assim, nota-se que o uso desse instituto se torna necessário, pois se mostra extremamente adequado à evolução tecnológica, visto que contribui com a celeridade processual.
Nesse contexto, como é cediço, em 2020 a Organização Mundial de Saúde declarou a pandemia do Corona vírus e o Brasil, assim como outros países, passou por várias mudanças, repercutindo na economia, na política, bem como na maneira de trabalhar de milhões de pessoas. Com o Poder Judiciário não foi diferente.
No início da pandemia o CNJ apresentou a recomendação nº 62/20, e estabeleceu em seu artigo 8º disposição acerca das audiências de custódia no Brasil:
[...] os Tribunais e magistrados em caráter excepcional e exclusivamente durante o período de restrição sanitária, como forma de reduzir os riscos epidemiológicos e em observância ao contexto local de disseminação do vírus, considere a pandemia de Covid-19 como motivação idônea, na forma prevista pelo artigo 310, §§ 3º e 4º, do Código de Processo Penal, para a não realização de audiências de custódia.
Além disso, com a finalidade de garantir o acesso à justiça no período da pandemia, foi estabelecido pelo CNJ a resolução de nº 313, que preconizou as medidas a serem adotadas pelo Poder Judiciário nesse período. Desse modo, ficou determinada a suspensão do trabalho presencial de magistrados e servidores, bem como a suspensão do atendimento presencial de partes, advogados e interessados.
Nesse cenário, ficou suspensa a realização da audiência de custódia na modalidade presencial, realizando-se apenas na modalidade por videoconferência. Em virtude disso, o número de realização de audiências por esse meio subiu de maneira elevada, colaborando, assim, com a celeridade processual, mesmo estando em uma pandemia.
3 AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA COMO DIREITO FUNDAMENTAL DO PRESO
Como foi dito no tópico anterior, por conta da pandemia do Corona Vírus, iniciada em 2020 no Brasil, as audiências de custódias ficaram temporariamente suspensas, surgindo, com isso, a seguinte problemática: como ficaria a garantia do direito fundamental do preso à audiência de custódia, uma vez que as mesmas estariam suspensas? Afinal, a não realização da audiência de custódia seria mera irregularidade ou violação a um direito fundamental? São esses pontos que serão debatidos adiante.
Em primeira análise, como foi exposto acima, sabe-se que a audiência de custódia se caracteriza como um direito fundamental, uma vez que está previsto em normas legais e supralegais. Diante disso, como esse instituto processual está ratificado em tratados internacionais, regulamentado pelo CNJ, é evidente que a não realização da audiência de custódia, estaria, assim, afrontando o direito fundamental do preso a esse instituto.
Nesse contexto, a não realização da audiência de custódia não se trata de mera irregularidade, mas de uma afronta aos direitos fundamentais do preso. Todavia, apesar de se entender que a não realização da audiência de custódia se insurge contra a efetivação dos direitos fundamentais dos presos, vale ressaltar que muitas decisões de Tribunais Superiores entendem que a não realização da audiência de custódia trata-se de mera irregularidade, caso haja a conversão do flagrante em preventiva, como é possível se observar no seguinte acórdão:
PROCESSUAL PENAL. RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. ROUBO MAJORADO. PRISÃO EM FLAGRANTE. AUSÊNCIA DE AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA. SUPERVENIÊNCIA DE DECRETAÇÃO DA PREVENTIVA. NULIDADE NÃO CONFIGURADA. AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO DO DECRETO PRISIONAL. SEGREGAÇÃO CAUTELAR DEVIDAMENTE FUNDAMENTADA NA GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA. CONTUMÁCIA DELITIVA INVIABILIDADE DE ANÁLISE DE POSSÍVEL PENA A SER APLICADA. CAUTELARES DIVERSAS. IMPOSSIBILIDADE. RECURSO ORDINÁRIO NÃO PROVIDO. I - Não se vislumbra ilegalidade passível de concessão da ordem de ofício quando não realizada a audiência de custódia, uma vez que a jurisprudência desta Corte é firme no sentido de que eventual nulidade do flagrante fica superada com a superveniência do decreto de prisão preventiva(precedentes).Processo RHC 85101 / MG, RECURSO ORDINARIO EM HABEAS CORPUS 2017/0127723-4Relator(a) Ministro FELIX FISCHER (1109) Órgão Julgador T5 -QUINTA TURMA Data do Julgamento 15/08/2018. Data da Publicação/Fonte DJe 21/08/2018.
Dessa forma, observa-se que este acórdão do Superior Tribunal de Justiça, expõe que a decretação da prisão preventiva seria suficiente para sanar a ausência da audiência de custódia da prisão em flagrante (MONTEIRO, 2021, p.360). Em outros termos, para os Ministros do STJ, tudo que foi dito anteriormente acima sobre o direito fundamental do preso à audiência de custódia, deixa de ser considerado, uma vez que, para eles, a não realização da audiência de custódia seria apenas mera irregularidade quando restasse comprovado o preenchimento dos requisitos para a decretação da prisão preventiva.
Seguindo essa linha de raciocínio, apesar dos Ministros fazerem parte dessa Corte Especial, é nítido que esses entendimentos estão em dissonância com o sentido garantista do processo penal, levando-se em consideração que faz-se necessária a audiência de custódia para a decretação de todas as prisões cautelares.
Nesse sentido, Monteiro (2018, p.365) ressalta que o juiz pode até relaxar a prisão e converter o flagrante em preventiva, mas sempre com a realização da audiência de custódia, pois caso contrário, não seria mais o flagrante que estaria irregular, mas sim a própria prisão preventiva.
Infere-se, portanto, que se a audiência de custódia foi criada justamente para efetivação dos direitos fundamentais e a Constituição Federal prevê que a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária competente, a ausência da audiência de custódia se torna requisito essencial para validação da prisão e não mera irregularidade (MONTEIRO, 2021, p.365).
De acordo com Madeira (2021, s/p), a audiência de custódia se configura um instituto extremamente importante, não devendo ser encarada como uma simples audiência, ou na falta dessa, mera irregularidade, tendo em vista que atua na preservação dos direitos humanos, materializando a aplicação do princípio da dignidade da pessoa, com objetivo de atenuar os reflexos da cultura punitivista praticada no Brasil. Torna-se, portanto, direito do preso ser apresentado de forma rápida ao magistrado competente para analisar a legalidade e a necessidade da prisão, uma vez que o encarceramento provisório deve ser uma medida excepcional e último recurso para aplicação de sanção às infrações penais, haja vista a liberdade ser regra no Estado Democrático de Direito e nas relações de poder estabelecidas entre as instituições de Estado e o cidadão.
Assim sendo, para Madeira (2021, online), audiência de custódia tem papel imprescindível para garantir o respeito aos direitos do indivíduo preso e de forma contundente coibir com a prática de tortura e abuso policial de qualquer forma, podendo-se afirmar, inclusive, que a audiência de custódia se assemelha a uma espécie de controle externo das atividades policiais. Pode, ainda, auxiliar na luta contra o encarceramento em massa, uma vez que possibilita identificar prisões arbitrárias e ilegais (ROLIM, 2019).
4 A CRENÇA SOCIAL NA PRISÃO COMO MEIO DE JUSTIÇA
Segundo Rodrigues (2020, p. 169), a obra “Vigiar e Punir- Nascimento da Prisão” de Michel Foucault, retrata uma análise histórica sobre a pena como meio de coerção, de obediência e de aprisionamento do ser humano. Através do seu livro, Foucault revela a face social e política do controle social aplicado ao direito.
Como é cediço, sabe-se que no Brasil a cultura do encarceramento é um instrumento muito vigente no país, tendo em vista que a sociedade vê a prisão como uma forma de repressão à criminalidade e também como um meio de fazer com que o detento “pague” pelo crime que cometeu, nascendo, assim, a crença social na prisão como meio de justiça. Por conta disso, o Brasil encontra-se entre os países que possuem maior população carcerária, conforme dados obtidos no site do Departamento Penitenciário Nacional.
Conforme pode-se observar na obra de Michel Foucault, a partir do momento que a pessoa comete o ilícito, além de se tornar “inimigo” do Estado, torna-se também o inimigo da sociedade, é por conta disso que a população brasileira tem uma necessidade de ver o criminoso sendo encarcerado, pois, somente assim é que ele pagará pelo seu crime.
Com base no exposto acima, vale ressaltar que parcela da população se insurge contra as prisões cautelares e contra as medidas cautelares diversas da prisão, por achar que com a aplicação desses institutos, o criminoso sairá impune e não pagará pelo crime que cometeu.
A população brasileira enxerga na condução do criminoso ao cárcere, uma forma de garantir a sua punição, todavia, esquece que a regra no Brasil é a liberdade. Assim, fica olvidado pela sociedade, que o encarceramento provisório deve ser uma medida excepcional e o último recurso para aplicação de sanção às infrações penais. (CREMASCO, 2021, p.3). É com base nisso que, muitas pessoas acham que a justiça brasileira “é fraca”, ou então que “a polícia prende e a justiça solta”, por não saber das inúmeras garantias e direitos individuais fundamentais previstos na CRFB/88, os quais asseguram ao indiciado ou acusado a liberdade durante o curso da investigação e do próprio processo (COSTA; TURIEL, 2017, online).
Na esteira desse raciocínio, é nítido a falta de informação para essas pessoas, uma vez que, utilizam dessas expressões para se referir ao momento que o criminoso, no lugar de ir para o cárcere, é beneficiado com uma prisão cautelar ou uma medida cautelar diversa da prisão, a qual está garantida por lei.
Nesse mesmo sentido, expõe a advogada Renata Pimenta de Medeiros, em seu artigo “Prisão preventiva e a confusão da opinião pública”:
O erro, ao se pensar que ‘bandidos’ são libertados mesmo tendo-se a certeza de que cometeram crime, ocorre quando, utilizando-se dos poderes que lhe são conferidos, as autoridades competentes difundem a ideia de que ‘foi preso porque cometeu crime e deve pagar pelo que fez’, enquanto que, na verdade, ‘foi preso, em caráter provisório e cautelar, pois preenchia ao menos um dos requisitos da prisão preventiva, descritos no art. 312 do CPP’ (MEDEIROS, 2016, online).
Esse sentimento social é comum, primeiramente por não saberem distinguir o cerceamento provisório do definitivo. Em segundo lugar, tem-se que a prisão, além de ser um método de ressocialização, um “castigo”, serve como um meio de vingança da sociedade para com aquele que comete o delito (SERRA, BENINI, 2016, online). Dessa forma, o sentimento de revolta surge quando o preso tem concedido algum desses benefícios previstos em lei.
Outrossim, diante o exposto, surge mais uma problemática vista por parcela da população brasileira: a audiência de custódia contribuiria ou não para a impunidade dos criminosos?
Em primeira análise, deve-se ressaltar o que já foi exposto anteriormente, que a audiência de custódia tem como finalidade evitar agressões policiais ao preso e também proporcionar a ele um contato com o juiz, para que se observe a legalidade da prisão. Contudo, pode-se atribuir à audiência de custódia mais uma finalidade, a da prevenção à cultura da prisão, com o intuito de combater a cultura do encarceramento em massa (ALMEIDA, 2020, online).
Sabe-se que o Direito Penal é regido pelo Princípio da Intervenção Mínima, assim, o jurista Fernando Capez discorre sobre o tema:
Da intervenção mínima, decorre, como corolário indestacável, a característica de subsidiariedade. Com efeito, o ramo penal só deve atuar quando os demais campos do Direito, os controles formais e sociais tenham perdido a eficácia e não sejam capazes de exercer essa tutela [...] Pressupõe, portanto, que a intervenção repressiva no círculo jurídico dos cidadão só tenha sentido como imperativo de necessidade, isto é, quando a pena se mostrar como único e último recurso para a proteção do bem jurídico, cedendo a ciência criminal a tutela imediata dos valores primordiais da convivência humana a outros campos do Direito, e atuando somente em último caso (ultima ratio) (CAPEZ, 2016, online).
Neste sentido, o legislador, ao introduzir a audiência de custódia, buscava evitar que tal ramo do Direito não se sobrepujasse e, consequentemente, excedesse a capacidade dos sistemas prisionais (SERRA, BENINI, 2016, online). Dessa forma, com a introdução desse instituto, fica cristalino mais uma finalidade que pode ser atribuída à audiência de custódia, ao do combate ao encarceramento em massa.
Tal finalidade fica evidenciada no momento em que se finda a audiência de custódia e o juiz deve adotar algum procedimento, dentre eles: decidir entre o relaxamento da prisão em flagrante, a conversão em prisão preventiva, ou pela concessão de liberdade provisória, com ou sem a imposição de medidas cautelares diversas da prisão (SERRA, BENINI, 2016, online).
É nesse contexto que surge o questionamento, ou até certa indignação em algumas pessoas, com relação a audiência de custódia contribuir ou não para a impunidade dos criminosos, tendo em vista que o juiz tem a opção de adoção desses procedimentos, que pode resultar na não condução do preso ao cárcere.
Em suma, surge o sentimento dito anteriormente, uma vez que observam que ao invés de levar o criminoso ao cárcere, lhe é dado uma oportunidade diversa da prisão. Sendo assim, criam a errada impressão de que com a concessão desse benefício, após a audiência de custódia, o preso não pagaria pelo crime cometido.
Infere-se, portanto, que quando não se leva em consideração que o Direito Penal é regido pelo princípio da intervenção mínima, acreditam que a audiência de custódia contribuiria para a impunidade dos criminosos. Em resumo, pode-se afirmar que:
Quem vive a realidade da Justiça brasileira não nega que, no Brasil, existe uma verdadeira cultura do encarceramento. Apesar das inúmeras garantias e direitos individuais fundamentais previstos na CRFB, os quais assegurariam ao indiciado ou acusado a liberdade durante o curso da investigação e do próprio processo, o que se observa é a prisão como regra. No Brasil, a prisão provisória tem sido usada como verdadeira antecipação de pena ou com finalidade diversa da que a legitimaria sob a ótica da cautelaridade. Por conta dessa cultura do encarceramento, o número de presos provisórios no país é na média de 40% da população carcerária. (COSTA; TURIEL,online).
Logo, apesar de toda divergência a respeito da realização da audiência de custódia, se ela contribuiria ou não para a impunidade dos criminosos, apesar dos diversos entendimentos sobre o tema, vale frisar a sua nítida contribuição para a não superlotação dos cárceres, seguindo com seu o intuito de combater a cultura do encarceramento em massa.
Seguindo essa linha de raciocínio, pode-se atribuir à audiência de custódia outra finalidade, a qual está intrinsecamente ligada ao fato da audiência de custódia combater a superlotação das prisões. Nesse caso, pode-se citar que ela também auxilia na garantia da dignidade e integridade física do preso no cárcere.
Sabe-se que atual situação vivenciada pelo sistema prisional brasileiro se encontra em desacordo com os preceitos de direitos humanos e garantias fundamentais conferidos aos acusados e condenados em processos criminais (CREMASCO, 2021, p.8).
É notório que no Brasil, muitas prisões possuem superlotação, faltando infraestrutura e não suportando a quantidade de presos que se encontram no cárcere, isso ocorre tanto por falta de investimentos nesses lugares, quanto pelo fato de conter um número maior de encarcerados do que o suportado.
A realidade das prisões no Brasil não se encontra da maneira que deveria ser, pois, falta estrutura básica para garantir a dignidade física do preso, com isso, mesmo o Brasil sendo signatário de diversos tratados internacionais que visam a proteção dos direitos humanos, percebe-se que ele não se coaduna com o que está expresso nesses tratados, Dagmara Ferreira discorre sobre o tema, trazendo que:
O Brasil é um dos países que mais ratifica Tratados Internacionais, principalmente voltados à proteção dos direitos humanos. Dentre os quais se podem citar: Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (PIDCP), de 1966 e a Convenção Interamericana sobre Direitos Humanos, conhecida como Pacto de São José da Costa Rica (CADH), de 1969, e consequentemente se enquadra como um país preocupado com a proteção aos direitos fundamentais. Embora seja fundamental esclarecer que o quadro em que se encontra o Sistema Prisional Brasileiro, atualmente não condiz nada com os direitos expressos nos Tratados do qual é signatário (FERREIRA, 2018, p.26).
Considerando tudo o que foi exposto acima, sabendo que o Brasil possui um sistema prisional que destoa do previsto nos tratados internacionais, pode-se dizer que a audiência de custódia contribui para a efetivação do que está estipulado nos tratados, uma vez que ao combater à superlotação dos cárceres, está contribuindo, assim, com melhores condições para com aqueles que estão presos.
Conforme dados obtidos no Sistema de Audiência de Custódia do CNJ, em um relatório de 6 anos, entre os meses de fevereiro de 2015 a fevereiro de 2021 foram realizadas 823.185 mil audiências de custódia em todo o país, sendo que deste total foram concedidas 328.748 liberdades, num percentual de 39,93% (CREMASCO, 2021, p.16).
Diante disso, a audiência de custódia se torna o caminho para a redução do encarceramento descontrolado, e garante o mínimo de dignidade e integridade ao preso, observando-se, assim, os princípios constitucionais e os direitos fundamentais (FERREIRA, 2018, online).
Destarte, levando-se em consideração tudo o que foi exposto, conclui-se, portanto, que:
[...] há uma crise no sistema carcerário brasileiro, um descaso com diversas unidades prisionais, uma superlotação carcerária e diversos presos em situação de prisão irregular e até mesmo ilegal, as audiências de custódia surgem como uma das medidas para possibilitar a melhoria nas condições de vida no cárcere brasileiro (REKZIEGEL, 2020, online).
Dessa forma, apesar dos diversos entendimentos sobre a audiência de custódia, diante do que foi pesquisado e enfatizado nesse trabalho, fica claro a importância da audiência de custódia no sistema prisional brasileiro, além de ser um direito fundamental do preso, devendo, portanto, ser garantido.
5 CONCLUSÃO
O presente trabalho teve por objetivo apresentar as alterações trazidas com a instituição da audiência de custódia no sistema prisional brasileiro, e também os reflexos dessas mudanças para os presos. Em virtude disso, fica nítido que a sociedade ainda tem um pensamento deturpado quanto a realização da audiência de custódia por acharem que as decisões que fundamentam a soltura do preso, revela certo grau de impunidade.
Verificou-se que, apesar do ordenamento jurídico brasileiro ser um sistema com uma alta demanda para se realizar em 24 horas a audiência de custódia, observa-se que quando a audiência é realizada dentro do prazo legal, fica mais fácil observar a legalidade da prisão, inclusive quanto a presença ou não de agressão física policial com o preso.
Outrossim, por ser um instrumento jurídico que está positivado em lei e até em tratados internacionais, observa-se que a audiência de custódia é um direito fundamental do preso e que deve ser efetivado, e a não realização não se trata de mera irregularidade, mas sim de uma afronta a esse direito fundamental.
Portanto, a não realização da audiência de custódia pode deixar preso injustamente uma pessoa que poderia ter a concessão de alguma prisão cautelar prevista nos incisos do art. 310 do Código de Processo Penal. Vale ressaltar, a partir do trabalho, que apesar de diversos entendimentos quanto ao tema, se faz mister a realização da audiência de custódia, conforme está estabelecida em lei, vez que a mesma é garantia fundamental e deve ser cumprida.
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[1] Advogada. Assessora Jurídica na PGE/MA. Coordenadora Adjunta e Professora do Programa de Graduação em Direito (IESMA/UNISULMA). Especialista em Direito Penal e Processo Penal (FDDJ). Mestranda do PPGD (UNIMAR). Mestranda do PPGFOPRED (UFMA) E-mail: [email protected]
Advogada. Pós-Graduanda em Direito Público. E-mail: [email protected]
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FONSECA, MIRNA GOMES PIRES DA. Audiência de custódia como direito fundamental do preso: uma análise a partir da cultura da prisão Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 10 maio 2022, 04:17. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/58348/audincia-de-custdia-como-direito-fundamental-do-preso-uma-anlise-a-partir-da-cultura-da-priso. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Gabrielle Malaquias Rocha
Por: BRUNA RAFAELI ARMANDO
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