Resumo: O objetivo do presente artigo é analisar a articulação entre a mídia e o feminicídio e a consequente manutenção do status quo da espetacularização e invisibilização da mulher no Brasil, fazendo um paralelo ao Caso Marcia Barbosa de Souza, última condenação brasileira na Corte Interamericana de Direitos, que demonstra como a imprensa segue perpetuando a reprodução de estruturas de opressão e violência contra a mulher.
Palavras-chave: Mídia. Feminicídio. Espetacularização. Invisibilização. Opressão. Violência contra a Mulher.
Sumário: 1. Introdução. 2. Contextualização sobre o feminicídio. 3. O discurso midiático sobre o feminicídio: 3.1. O paradoxo da espetacularização e invisibilização da mulher. 4. Conclusão. 5. Referências.
INTRODUÇÃO
A história demonstra que a cultura da violência contra a mulher, embora retratada nos excertos de notícias reportadas pelos veículos de informação brasileiros, é sempre amenizada e naturalizada no país. Há inegavelmente um paradoxo no que concerne ao discurso midiático sobre o feminicídio: de um lado a espetacularização dos casos concretos e de outro a invisibilização da mulher, reduzida a um não-ser, um mero objeto de ação do homem. De fato, essa espetacularização da violência e a abordagem da mídia brasileira nos casos de feminicídio corroboram a posição do Brasil no ranking de países que mais matam mulheres no mundo, demonstrando o complexo problema da violência sistemática de gênero. Dessa forma, dada a potencialidade dos discursos midiáticos, não se olvida a necessidade da adoção de perspectivas de gênero e de um maior direcionamento de protagonismo às mulheres.
2. CONTEXTUALIZAÇÃO SOBRE O FEMINICÍDIO
O assassinato de mulheres é habitual na sociedade patriarcal, onde estão submetidas ao controle e poder dos homens, quer sejam maridos, familiares ou desconhecidos. As causas destes crimes não se devem, a priori, a condições patológicas dos ofensores, mas à ideia de inferiorização e desejo de posse das mulheres, em muitas situações culpabilizadas por não cumprirem os papeis de gênero designados pela cultura.
O feminicídio é a manifestação mais grave da violência perpetrada contra a mulher e, em sociedades patriarcais e machistas, a condição feminina é o fator de risco mais relevante para a violência letal, notadamente quando conjugado com condicionantes, chamadas de interseccionalidades, especialmente as raciais, étnicas e de classe social (DAVIS, 2016, p. 68).[1]
O conceito de femicídio foi utilizado pela primeira vez por Diana Russel em 1976, perante o Tribunal Internacional Sobre Crimes Contra as Mulheres, realizado em Bruxelas, para caracterizar o assassinato de mulheres pelo fato de serem mulheres[2], definindo-o como uma forma de terrorismo sexual ou genocídio de mulheres. O conceito descreve o assassinato de mulheres por homens motivados pelo ódio, desprezo, prazer ou sentimento de propriedade. O femicídio, assim, é parte dos mecanismos de perpetuação da dominação masculina, estando profundamente enraizado na sociedade e na cultura.
Vale destacar, nessa linha, a lição de Iris Marion Young:
Nesse sentido estrutural estendido, opressão se refere às vastas e profundas injustiças que determinados grupos sofrem, como uma consequência de, algumas vezes inconscientes, assunções e reações de pessoas bem-intencionadas em suas interações ordinárias, na mídia e estereótipos culturais e em características estruturais de hierarquias burocráticas e mecanismos de mercado – basicamente, o processo normal da vida cotidiana.[3]
Os cenários onde ocorrem os feminicídios ajudam a compreender as suas determinantes. Os mais conhecidos e estudados são os cenários familiares e domésticos, uma vez que a família em sociedades patriarcais confere todo o protagonismo e poder ao homem, e nas relações entre parceiros íntimos as mulheres são consideradas propriedade dos maridos, companheiros, namorados e ex-companheiros. Tal situação pode ser explicada, de certa forma, como uma maneira de autoafirmação da masculinidade, entendida socialmente como uma posição de dominação e superioridade em relação às mulheres e, sobretudo, em relação às parceiras afetivas.
Assim, o feminicídio é concebido como um conceito complexo, fruto de uma construção histórico-social na qual as mulheres foram colocadas em posição de inferioridade e subordinação.
Nesse contexto, a mídia desponta como uma relevante ferramenta de difusão e perpetuação da afirmação da masculinidade e legitimação da violência estrutural de gênero.
3. O DISCURSO MIDIÁTICO SOBRE O FEMINICÍDIO
As inúmeras formas de violência contra a mulher se sustentam em uma realidade social de desigualdades profundas entre os gêneros. As mulheres estão inequivocamente em situação de inferioridade e subordinação relativamente aos homens. Nesse ponto, a mídia e o seu discurso acerca de casos concretos de feminicídio contribui para a manutenção desse cenário. As desigualdades de gênero são mantidas e até mesmo naturalizadas pela representação do mundo social (MIGUEL E BIROLI, 2010). O feminicídio é retratado como um espetáculo, em uma linguagem teatral e opressora.
Com efeito, a desumanização da vítima mulher é feita pela sociedade e pela mídia, pelo apagamento de sua história, por sua invisibilização, com a consequência de nenhum estabelecimento de empatia. Insistir no entendimento de que os discursos apresentados pela mídia se impõem pela racionalidade e coerência é corroborar com a manutenção do status a quo da violência sistemática de gênero. A mídia não paira isenta, acima da sociedade. Não surpreende, dessarte, que, em uma sociedade marcada pelas estratificações e misoginias, a mulher seja reduzida a um não ser, tendo suas palavras um menor valor do que as palavras masculinas.
A esse respeito, temos como ilustração a 10ª condenação do Brasil no Sistema Interamericano de Direitos humanos, veiculada em 7 de setembro do 2021, o Caso Marcia Barbosa de Souza e outros vs Brasil é uma triste demonstração dos pontos aqui destacados.
O crime, apesar de ter sido praticado em meados de 1998, evidencia situação atual, Marcia Barbosa, mulher, preta, pobre e periférica foi vítima de feminicídio praticado por Aércio Pereira de Lima, um homem com status social ampliado pela posição de Deputado Estadual da Paraíba, o que ao fim, mesmo após a condenação pelo Tribunal do Juri em 16 anos de reclusão, lhe garantiu impunidade.
Importa para o presente trabalho apontar que todo o processo foi marcado por uma espetacularização midiática, repleta de questionamentos e indagações a despeito da vida privada da vítima, a vida sexual pregressa e o suposto envolvimento com entorpecentes foram utilizados para deslegitimar seu merecimento à vida, respeito e dignidade. Houve um show televisivo, com a devassa da intimidade da vítima servindo aos interesses da misoginia e do machismo estrutural, causando a vitimização terciária, isto é, levando a sociedade a vitimizá-la, restando impune socialmente o verdadeiro culpado.[4]
Além de morrer antes de cumprir qualquer pena, foi velado em Salão Nobre na Assembleia Legislativa da Paraíba com decretação de luto oficial no Estado por 3 dias, evidenciando a chicana no tratamento do Feminicídio no Brasil, e a necessidade de reflexão sobre os padrões contraditórios da imprensa na luta contra a violência e estereótipos de gênero.
3.1 O PARADOXO DA ESPETACULARIZAÇÃO E INVISIBILIZAÇÃO DA MULHER
No Brasil, como exemplificado anteriormente, o discurso midiático de casos de feminicídio carece de aprimoramento. As vítimas mulheres, na maioria das vezes, não são humanizadas pelos veículos de comunicação, já que não há nas matérias jornalísticas uma contextualização efetiva dos fatos.
Há, em verdade, um movimento contrário ao recomendado. A culpabilização e a invisibilização da mulher acabam se sobressaindo diante da espetacularização ocasionada pela mídia, que pouco colabora para que a sociedade compreenda mais acerca das políticas públicas de enfrentamento à violência contra a mulher.
De fato, a cobertura midiática dos crimes de feminicídio no país comumente romantiza os casos, buscando tornar atrativo o texto ao leitor através de um cenário teatralizado. São geralmente noticiados como delitos passionais, motivados por traições, ciúmes, crises, sem revelar o caráter misógino por trás dos assassinatos de mulheres (MELLO, 2015).
A banalização da violência constrói socialmente uma simbólica do lugar comum para o brutal, naturalizando condutas de domínio e ódio como traços do cotidiano. A agenda midiática passeia entre a linha da super exposição da barbárie, veiculando constantemente notícias dessa natureza, e da relativização da vida, ao reduzir a morte sistemática de mulheres à categoria da passionalidade.
Assim, todas as vezes em que a imprensa romantiza e naturaliza os casos de feminicídio, acaba por invisibilizar a mulher e a violência de gênero, retirando os aspectos determinantes que envolvem tal violência, quais sejam, misoginia e machismo.
Infere-se, dessarte, que a igualdade constitucionalmente garantida entre homens e mulheres é uma falácia na prática.
Por derradeiro, faz-se necessária a reflexão, com um fragmento de Butler: “nas condições bélicas contemporâneas, a condição compartilhada de precariedade conduz não ao reconhecimento recíproco, mas sim a uma exploração específica de populações-alvo, de vidas que não são exatamente vidas, que são consideradas “destrutíveis” e “não passíveis de luto” (BUTLER, 2016, p.53).
4. CONCLUSÃO
Não há dúvidas da influência da mídia na formação da opinião pública em relação a determinados temas. Os meios de comunicação agem como construtores privilegiados de representações sociais, notadamente sobre o crime e a violência.
Logo, a linguagem e a forma como se constrói a narrativa da violência de gênero pela cobertura midiática são de extrema relevância no sentido de como os crimes de feminicídio serão vistos pelos leitores.
Através de paralelo ao caso de Márcia Barbosa de Souza, apontamos como a mídia pode influenciar no descrédito da vítima, deslegitimando-a enquanto pessoa merecedora de valor e respeito, afastando dos holofotes o culpado, contribuindo para a manutenção da situação alarmante e endêmica da violência de gênero no Brasil.
Desse modo, vemos que os veículos de imprensa, ora através de romantização, naturalização e alegação de passionalidade, ora por especulações sobre a vida íntima e privada das mulheres vítimas de agressões e crimes, acabam por justificarem e até mesmo legitimarem a violência contra a mulher, perpetuando o status quo. Há, nessa estratégia, um jogo perigoso que reserva a culpa para a vítima.
Assim, inobstante toda a espetacularização midiática em torno do feminicídio, tal forma de violência de gênero continua escondida e invisibilizada no que tange aos reais fatores de sua permanência na atualidade.
Com efeito, o questionamento acerca da responsabilidade dos veículos midiáticos de informação na abordagem dos crimes de feminicídio é essencial para o combate e enfrentamento do delito em testilha.
5. REFERÊNCIAS
BUTLER, Judith. Quadros de guerra. Quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2016.
CARCEDO, Ana. No olvidamos ni aceptamos: Femicidio en Centroamérica 2000-2006. San José: Associación Centro Feminista de Información y Acción (CEFEMINA); 2010.
CORTE IDH. Sítio eletrônico Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Marcia Barbosa de Souza e outros vs. Brasil, 2021. Disponível em: <https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_435_por.pdf>. Acesso em 8 de fev. de 2022.
DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. Tradução de Heci Regina Candiani. São Paulo: Boitempo, 2016.
MELLO, Adriana Ramos. Feminicídio: breves comentários à Lei 13.104/15. Direito em movimento, v. 23, p. 47-100, p. 50, 2015.
MIGUEL, Luis Felipe; BIROLI, Flávia. “A produção da imparcialidade: a construção do discurso universal a partir da perspectiva jornalística”, Revista Brasileira de Ciências Sociais, 2010; 25(73), 5976.
MONÁRREZ, Julia Estela Fragoso. Feminicidio sexual serial em Ciudad Juarez: 1993-2001. Debate Feminista 2002; 25(13):1-16.
RUSSEL D, CAPUTTI J. Femicide: the politics of women killing New York: Twayne Publisher; 1992.
SAFFIOTI, Heleieth I. B. Gênero, patriarcado, violência. 2. ed. São Paulo: Graphium, 2011.
SARPI, Letícia Longo; FONSECA-MACHADO, Mariana de Oliveira; BUSSADORI, Jamile Claro de Castro. A violência contra a mulher em foco: o que é publicado pela mídia impressa no Brasil? In: 13° MUNDO DE MULHERES & FAZENDO GÊNERO 11, 2017, Florianópolis. Pôster.
YOUNG, Iris M. Five faces of opression. In: ASUMAH, Sth N,; NAGEL, Mechthild. Diversity, social justice, and inclusive excellence: transdisciplinar and global perspectives. Albany: Sate University of New York Press, 2014. P – 3-32.2014.
[1] DAVIS, Angela Mulheres, raça e classe. Tradução de Heci Regina Candiani. São Paulo: Boitempo, 2016, P - 68.
[2] RUSSEL D, CAPUTTI J. Femicide: the politics of women killing New York: Twayne Publisher; 1992.
[3] YOUNG, Iris M. Five faces of opression. In: ASUMAH, Sth N,; NAGEL, Mechthild. Diversity, social justice, and inclusive excellence: transdisciplinar and global perspectives. Albany: Sate University of New York Press, 2014. P – 3-32.2014.
[4] CORTE IDH. Caso Marcia Barbosa de Souza e outros vs. Brasil. Sítio eletrônico Corte Interamericana de Direitos Humanos, 2022. Disponível em: <https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_435_por.pdf>. Acesso em 8 de fev. de 2022.
Advogada, inscrita nos quadros da Ordem dos Advogados do Brasil - Seccional Paraná sob o nº 74.371, formada em 2014 pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná.Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Cândido Mendes, 2018 e em Direito Tributário pela Faculdade Cidade Verde, 2020. Pós-graduanda em Direitos Humanos pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul 2021- presente.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GARCIA, Flavia Augusta rodrigues. “Em cartaz - a invisibilização da mulher”: o paradoxo da espetacularização midiática do feminicídio no Brasil Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 16 maio 2022, 04:21. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/58396/em-cartaz-a-invisibilizao-da-mulher-o-paradoxo-da-espetacularizao-miditica-do-feminicdio-no-brasil. Acesso em: 22 nov 2024.
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