Resumo: A Lei nº 13.964/2019, promulgada em 24 de dezembro de 2019 e conhecida como Pacote Anticrime, trouxe ao nosso ordenamento jurídico a figura do juiz das garantias, que se afigura como um consectário do princípio acusatório e cuja aplicabilidade foi suspensa pelo Supremo Tribunal Federal. Nesse contexto, o presente artigo se propõe a trazer uma reflexão e análise acerca do instituto, os seus fundamentos e aplicabilidade, bem como o entendimento jurisprudencial acerca da temática.
Palavras-chave: Pacote Anticrime. Princípio acusatório. Juiz das garantias. Código de Processo Penal.
Sumário: Introdução. 1. O autoritarismo do CPP e o sistema acusatório. 2. Juiz das garantias. 3. Discussões doutrinárias e jurisprudenciais sobre a temática. 4. Considerações finais. Referências bibliográficas
Introdução
A temática abordada no presente artigo traz uma reflexão sobre a figura do juiz das garantias, defendido por alguns estudiosos, criticado por outros e cujos dispositivos que tratam de sua aplicação tiveram a sua eficácia suspensa pelo STF. O estudo aqui proposto objetiva realizar uma análise do tema e do entendimento jurisprudencial correlato.
Nesse contexto, o assunto é abordado à luz dos conceitos aplicáveis, no viés dos princípios e valores consagrados pela Constituição Federal de 1988, coletando-se informes e concepções oriundos da legislação e doutrina relacionadas ao assunto, além de fontes bibliográficas e consultas jurisprudenciais.
1.O autoritarismo do CPP e o sistema acusatório
Sabe-se que o Código de Processo Penal atualmente vigente no Brasil tem fortes traços de autoritarismo, considerando que foi promulgado no ano de 1941, ocasião em que o país vivenciava uma experiência ditatorial. Sob a égide de uma ditadura, podemos afirmar que vigorava um sistema repleto de medidas excepcionais, concentração e usurpação de poderes.
Nesse contexto, destaca-se a redação da Exposição de Motivos do Código de Processo Penal, que é clara ao dispor em seu n. II:
“De par com a necessidade de coordenação sistemática das regras do processo penal num Código único para todo o Brasil, impunha-se o seu ajustamento ao objetivo de maior eficiência e energia da ação repressiva do Estado contra os que delinquem. As nossas vigentes leis de processo penal asseguram aos réus, ainda que colhidos em flagrante ou confundidos pela evidência das provas, um tão extenso catálogo de garantias e favores, que a repressão se torna, necessariamente, defeituosa e retardatária, decorrendo daí um indireto estímulo à expansão da criminalidade. Urge que seja abolida a injustificável primazia do interesse do indivíduo sobre o da tutela social. Não se pode continuar a contemporizar com pseudodireitos individuais em prejuízo do bem comum. (...)”
Ocorre que, na contramão dos princípios que nortearam a promulgação do Código de Processo Penal, a Constituição Federal de 1988 consagrou valores que priorizam a dignidade da pessoa humana e uma série de direitos e garantias fundamentais que trazem como consectário lógico a aplicação, no Brasil, do sistema acusatório como modelo de processo penal que tem como principal característica a separação entre as funções de acusar, defender e julgar. Nesse sentido são as lições de Renato Brasileiro de Lima, consoante se passa a expor:
“ O sistema acusatório caracteriza-se pela presença de partes distintas, contrapondo-se acusação e defesa em igualdade de condições, e a ambas se sobrepondo um juiz de maneira equidistante e imparcial. (...) Como corolário, tem-se que o processo penal se constitui de um actum trium personarum, integrado por sujeitos parciais e um imparcial – partes e juiz, respectivamente. Somente assim será possível preservar o juiz na condição de terceiro desinteressado em relação às partes, estando alheio aos interesses processuais. Mas esta mera separação das funções de acusar e julgar não basta para a caracterização do sistema acusatório, porquanto a imparcialidade do magistrado não estará resguardada enquanto o juiz não for estranho à atividade investigatória e instrutória. Com efeito, nada adianta a existência de pessoas diversas no exercício das funções do magistrado e do órgão estatal de acusação se, na prática, há, por parte daquele, uma usurpação das atribuições deste, explícita ou implicitamente, a exemplo do que ocorre quando o magistrado requisita a instauração de um inquérito policial, dá início a um processo penal de ofício (processo judicialiforme), produz provas e decreta prisões cautelares sem requerimento das partes. ”[1]
É nesse sentido que a Constituição Federal, em seu artigo 129, inciso I, consagrou o sistema processual penal acusatório, ao dispor que a iniciativa para propositura da Ação Penal Pública, é do Ministério Público. Outrossim, é nesse sentido que surge o Pacote Anticrime e a figura do Juiz das garantias, como uma forma de se buscar a reformulação criminal de modo a garantir maior efetividade a determinados valores constitucionalmente assegurados, como ocorreu com a edição dos artigos 3ºA a 3ºF do Código de Processo Penal, que surgem com o intuito de consagrar a adoção do sistema acusatório e da garantia da imparcialidade no processo penal, trazendo a figura do Juiz das garantias.
2.Juiz das garantias
A partir da necessidade de mudança da nossa legislação processual penal, e consequente adequação à nova ordem constitucional, a Lei nº 13.964/2019, promulgada em 24 de dezembro de 2019, trouxe os artigos 3ºA a 3º-F do Código de Processo Penal, dispositivos esses que, como será analisado a seguir, estão tendo a constitucionalidade questionada no STF.
Por meio da redação do art. 3ºA ficou consagrado que o processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação.
O artigo 3ºB, caput, consagra a figura do juiz das garantias, como sendo o juiz responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Poder Judiciário, como uma forma de garantir a imparcialidade do juiz da instrução e julgamento, que irá proferir a sentença.
Assim sendo, as atividades do juiz de garantias serão exercidas na fase de investigação, cabendo a ele, inclusive, a decisão de aceitar ou não aceitar a exordial acusatória oferecida pelo Ministério Público ou pelo ofendido.
Nas lições de Aury Lopes Jr, “o juiz das garantias é o guardião da legalidade, mas a ele é vedada a determinação de perícias ou requisição de documento de outros órgãos para investigar.”[2].
O assunto é abordado com maestria pelo doutrinador Renato Brasileiro de Lima, consoante trecho que se passa a expor em razão de representar uma explanação esclarecedora sobre a temática:
“A inovação introduzida pela Lei n. 13.964/19 guarda relação, portanto, com o reconhecimento explícito, por parte da legislação processual penal, do entendimento de que não há condições mínimas de imparcialidade num processo penal que autoriza que o mesmo julgador que interveio na fase investigatória tenha competência, mais adiante, para apreciar o mérito da imputação, condenando ou absolvendo o acusado. Ou seja, diante de possíveis prejuízos causados à imparcialidade do magistrado decorrentes do contato que teve com os elementos informativos produzidos na investigação preliminar, e as tomadas de decisões que teve que fazer, decretando, por exemplo, medidas cautelares pessoais, o que se está a buscar com a nova figura do juiz das garantias é o seu afastamento definitivo da fase processual, preservando-se, assim, sua imparcialidade para o julgamento do feito sem quaisquer pré-julgamentos, para que possa, enfim, adentrar o julgamento do feito sem amarras que possam comprometer sua imparcialidade, deixando de ser, assim, um terceiro involuntariamente manipulado no processo. Trata-se, pois, de uma verdadeira espécie de blindagem da garantia da imparcialidade.”[3]
3.Discussões doutrinárias e jurisprudenciais
Em que pese a importância da figura do Juiz das garantias para assegurar a imparcialidade como corolário do princípio da presunção da inocência e do devido processo legal, o art. 3º-B, assim como outros dispositivos introduzidos pelo Pacote Anticrime, sofreram duras críticas pela doutrina e estão sendo questionados perante o STF.
Nesse sentido, destaca-se o posicionamento daqueles que militam contra a aplicação do instituto, trazendo argumentos como o fato de que a alteração impactará fortemente o Poder Judiciário em seu aspecto orçamentário, considerando que a alteração geraria custos dispendiosos ao Estado.
Nesse sentido, na seara jurisprudencial, é importante destacar que os dispositivos legais que tratam do juiz das garantias e seus consectários tiveram a sua eficácia suspensa a partir da medida cautelar proferida pelo Min. Luiz Fux na condição de Ministro Relator das ADIs 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305 (j. 22/01/2020), todas ajuizadas com o objetivo de questionar a constitucionalidade formal e material da Lei nº 13.964/19.
Dentre os argumentos contrários à implementação do juiz das garantias e favoráveis à suspensão da eficácia dos dispositivos legais, podemos citar a violação à autonomia funcional do Poder Judiciário, considerando que a implantação do instituto irá alterar a divisão e a organização de serviços judiciários de forma substancial, exigindo “completa reorganização da Justiça criminal do país, preponderantemente em normas de organização judiciária, sobre as quais o Poder Judiciário tem iniciativa própria[4]”.
Ademais, observou-se que a implantação geraria uma violação à autonomia financeira do Judiciário, considerando que a medida causará um impacto financeiro relevante, haja vista que exigirá que o Poder Judiciário redistribua recursos humanos e materiais para a implementação da figura do juiz das garantias. Além desses aspectos materiais, a mudança também é questionada em virtude de suposta inconstitucionalidade formal, sobre a qual não adentraremos ao mérito por extrapolar os objetivos deste trabalho.
Transcreve-se abaixo trecho da decisão do Ministro Luiz Fux sobre o assunto:
“O juiz das garantias é instituto que corrobora os mais avançados parâmetros internacionais relativos às garantias do processo penal, tanto que diversos países já o adotam, não sendo uma novidade no cenário do direito comparado. A atuação do juiz na fase preliminar da investigação e a afetação da imparcialidade é tema que desperta, há tempos, a atenção do Tribunal Europeu de Direitos Humanos. (...) O sistema instituído pela Lei nº 13.964/2019 avança em relação às centrais ou aos departamentos de inquérito, visto que, além de dispor sobre o recebimento da denúncia pelo juiz das garantias, determina o impedimento do magistrado que exercer essa função de participar da instrução e do julgamento da ação penal, minimizando, de forma mais efetiva, os fatores de contaminação subjetiva do julgador do processo e reforçando sua imparcialidade. Em verdade, verifica-se que muitas das críticas formuladas ao juiz das garantias são relativas ao plano prático, e não propriamente aos planos legal e constitucional. (STF – ADI: 6299 DF 0035998-76.2019.1.00.0000, Relator: LUIZ FUX, Data de Julgamento: 15/01/2020, Data de Publicação: 03/02/2020)
Considerações Finais
A partir de uma análise acerca do contexto em que foi inserida a figura do juiz das garantias em nosso direito processual penal, em cotejo com a consagração do sistema acusatório e outros institutos previstos pela Lei nº 13.964/2019, verificou-se os seus aspectos positivos e a busca pela efetivação de valores trazidos pela Constituição Federal de 1988.
Nesse contexto, em que pese a discussão sobre a viabilidade prática do instituto, e a suspensão da eficácia do respectivo dispositivo legal pelo STF, esse trabalho trouxe uma breve análise sobre os seus fundamentos, deixando clara, mais uma vez, a importância de se buscar a imparcialidade do órgão julgador como uma forma de garantir a isonomia em suas mais diversas vertentes.
Concluímos, assim, pela importância da compreensão da figura do juiz das garantias e da necessidade de uma legislação processual penal que venha a se conformar, gradativamente, aos ditames dos valores constitucionalmente assegurados pela Carta Magna.
Referências bibliográficas
LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal: volume único – 8. Ed. Ver., Salvador: Ed. JusPodivm, 2020.
LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. 17. Ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020 (e-book) Disponível em: https://books.google.com.br/books?id=u3PWDwAAQBAJ&pg=PT183&hl=ptBR&source=gbs_selected_pages&cad=2#v=onepage&q=juiz%20das%20garantias&f=false. Acesso em:02 de outubro de 2021.
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 16. ed. São Paulo: Malheiros, 1999.
DE CARVALHO, L.G. Grandinetti Castanho. Processo Penal e Constituição. Princípios Constitucionais do Processo Penal. 4ªed. Rio de Janeiro. Lumen Juris. 2006.
BRASIL. DECRETO-LEI Nº 3.689, DE 3 DE OUTUBRO DE 1941.CÓDIGO DE PROCESSO PENAL.Rio de Janeiro, 03 de outubro de 1941. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decretolei/del3689.htm.Acesso em: 25 set. 2021.
BRASIL. LEI Nº 13.964, DE 24 DE DEZEMBRO DE 2019. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13964.htm Acesso em: 25 set. 2021.
[1] LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal: volume único. 8. ed. rev. ampl. e atual. – Salvador: Ed. Juspodivm, 2020.pg. 43/44.
[2] LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. 17. Ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020. (e-book) Disponível em: https://books.google.com.br/books?id=u3PWDwAAQBAJ&pg=PT183&hl=pt-BR&source=gbs_selected_pages&cad=2#v=onepage&q=juiz%20das%20garantias&f=false. Acesso em:02 de outubro de 2021.
[3] LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal: volume único. 8. ed. rev. ampl. e atual. – Salvador: Ed. Juspodivm, 2020.pg. 115.
Graduada em Direito pela UFRN. Pós Graduada em Ciências Penais pela Universidade Cândido Mendes.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: OLIVEIRA, Maryana Ferreira Vieira. O sistema processual acusatório e o juiz das garantias Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 17 maio 2022, 04:20. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/58404/o-sistema-processual-acusatrio-e-o-juiz-das-garantias. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Gabrielle Malaquias Rocha
Por: BRUNA RAFAELI ARMANDO
Precisa estar logado para fazer comentários.