Do poder requisitório da Defensoria Pública da União e da representação independentemente de mandato
Com vistas a viabilizar o desempenho da missão constitucional da Defensoria Pública (art. 134, CRFB), o legislador ordinário conferiu determinadas prerrogativas aos seus membros, dentre as quais se encontra o poder requisitório.
Com efeito, a Lei Complementar nº 80, de 12 de janeiro de 1994, que organiza a Defensoria Pública da União, do Distrito Federal e dos Territórios e prescreve normas gerais para sua organização nos Estados, dispõe que:
Art. 44. São prerrogativas dos membros da Defensoria Pública da União:
(…)
X – requisitar de autoridade pública e de seus agentes exames, certidões, perícias, vistorias, diligências, processos, documentos, informações, esclarecimentos e providências necessárias ao exercício de suas atribuições;
XI – representar a parte, em feito administrativo ou judicial, independentemente de mandato, ressalvados os casos para os quais a lei exija poderes especiais;
Inclusive, conforme o inciso XI, da Lei Complementar 80/94, acima transcrito, a Defensoria Pública possui também a prerrogativa de representar seus assistidos independentemente de mandato.
A respeito da natureza e da função social da aludida prerrogativa, leciona a doutrina especializada:
Em muitas situações, a requisição de documentos ou de informações se mostra suficiente para a orientação jurídica do assistido, pois lhe oferece os elementos necessários para adotar a solução mais propícia para uma situação concreta; os esclarecimentos de certa autoridade podem extirpar o que se transformaria numa futura ação judicial[i].
A doutrina ainda ressalta que “o descumprimento das prerrogativas da Defensoria Pública (dentre elas a de requisição) dá ensejo à utilização dos mais variados remédios processuais para defendê-las[ii]”.
De fato, ao se negarem a apresentar as informações requisitadas, os órgãos da Administração Pública não permitem à DPU avaliar a viabilidade jurídica ou necessidade de se ingressar em juízo em prol dos interesses de seus assistidos. Impedem, também, a prestação da devida orientação jurídica aos assistidos e a possibilidade de obter uma solução extrajudicial para o potencial litígio.
E mais: ao se recusarem a atender as requisições defensoriais, os órgãos públicos indicam que cabe ao assistido obter pessoalmente seus documentos médicos.
Referida orientação, com todo respeito, é uma ignomínia.
Transferir ao assistido da Defensoria Pública o dever de buscar sozinho as diligências probatórias anteriores à análise da viabilidade de seu direito é vilipendiar sua dignidade. Tudo é mais difícil ao pobre vulnerável, que já foi tantas vezes humilhado e execrado, inclusive nas mais variadas instituições públicas e particulares.
Ademais, a própria locomoção do assistido é agravada por questões financeiras ou pelo horário de atividade laborativa. Outrossim, os assistidos, em sua maioria, são pessoas com baixa instrução, causada pela marginalização social, de modo que não sabem o que pedir, a quem pedir, nem como pedir.
De modo a viabilizar o direito de acesso à justiça dos necessitados, as prerrogativas conferidas aos Defensores Públicos têm como objetivo a instrumentalização da função constitucional que lhes foi atribuída pelo art. 134 da Constituição Federal.
Resta claro, assim, que, o ordenamento jurídico conferiu à Defensoria Pública a prerrogativa de requisitar, isto é, de emitir ordens a serem cumpridas pelas autoridades públicas para obtenção de documentos e informações imprescindíveis ao exercício de suas atribuições, não podendo tais autoridades se furtarem a cumpri-las.
Não cabe ao destinatário exercer qualquer juízo de discricionariedade quanto ao cumprimento do poder requisitório, que possui presunção juris tantum de conformidade com o direito.
O não-atendimento, pela Administração Pública, das requisições efetuadas pela Defensoria Pública, que visam a obter elementos imprescindíveis ao desempenho de suas funções, constitui verdadeiro óbice à defesa dos necessitados, afrontando o direito fundamental do acesso à justiça.
Do tratamento discriminatório e anti-isonômico conferido à Defensoria Pública da União em relação ao Ministério Público e à autoridade policial
Assim como a Lei Complementar nº 80/94, a Lei Federal nº 8.625/93 (Lei Orgânica Nacional do Ministério Público), em seu art. 26, assegura aos membros do Ministério Publico a prerrogativa de “requisitar informações, exames periciais e documentos de autoridades federais, estaduais e municipais, bem como dos órgãos e entidades da administração direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios”
Do mesmo modo, o poder requisitório se estende às autoridades policiais, conforme dispõe o Código de Processo Penal em seu artigo 6º:
Art. 6º. Logo que tiver conhecimento da prática da infração penal, a autoridade policial deverá: (…)
III – colher todas as provas que servirem para o esclarecimento do fato e suas circunstâncias;
Logo, cabe à autoridade policial a adoção de todos os procedimentos necessários à coleta de provas, no âmbito da investigação policial, valendo-se do poder requisitório necessário à elucidação do fato criminoso.
Com efeito, a correta aplicação do princípio da isonomia, consagrado no caput do art. 5º da CF/88, impõe que seja dispensado um tratamento jurídico igualitário, formal e materialmente, aos membros da Defensoria Pública, aos membros do Ministério Público e às autoridades policiais.
Da ausência de violação ao sigilo profissional médico e à intimidade do paciente
Em geral, o sigilo profissional do médico e a intimidade do paciente são utilizados pelos agentes públicos como argumentos para se negarem a fornecer os prontuários médicos requisitados, salvo se houver autorização do paciente ou do representante legal ou, ainda, mediante decisão judicial. Assim, justificam a recusa no Código de Ética Médica (Resolução CFM nº 1.931/2009) e em atos correlatos emitidos pelo Conselho Federal de Medicina (CFM).
Inicialmente, cumpre ressaltar que não compete à autarquia federal (CFM) restringir prerrogativas legais conferidas à Defensoria Pública. Nesse sentido, o Código de Ética Médica e os atos correlatos emitidos pelo Conselho Federal de Medicina são atos hierarquicamente inferiores à lei e jamais podem ampliar ou restringir o conteúdo e o alcance das leis ordinárias e complementares, sob pena de afronta à ordem constitucional vigente.
Em outras palavras, o sigilo médico não está previsto no texto constitucional, nem em lei, mas apenas em resolução do Conselho Federal de Medicina. Não restam dúvidas de que eventuais resoluções de conselhos profissionais não se sobrepõem à Constituição Federal, tampouco revogam as leis do país, afigurando-se impertinente, ilegal e desprovida de razoabilidade utilizá-la como fundamento para recusa do cumprimento de requisições da Defensoria Pública, do Ministério Público ou de qualquer autoridade policial que apure crime de ação penal pública.
Outrossim, os casos de restrição por reserva de jurisdição devem decorrer diretamente do texto constitucional. De acordo com o Min. Celso de Mello, no julgamento do MS 23452/RJ, “o postulado de reserva constitucional de jurisdição importa em submeter, à esfera única de decisão dos magistrados, a prática de determinados atos cuja realização, por efeito de explícita determinação constante do próprio texto da Carta Política , somente pode emanar do juiz, e não de terceiros, inclusive daqueles a quem haja eventualmente atribuído o exercício de poderes de investigação próprios das autoridades judiciais”.
Consoante o art. 5º, XII, da Constituição Federal, são casos de restrição por reserva de jurisdição: a) diligência de busca domiciliar; b) quebra de sigilo das comunicações telefônicas e c) ordem de prisão, salvo em caso de flagrante delito.
Registra-se que o próprio Código de Ética Médica, ato infralegal, excetua do dever de sigilo médico o motivo justo, dever legal ou consentimento do paciente (art. 73).
Portanto, o sigilo profissional não é absoluto, não é sujeito à restrição por reserva de jurisdição e deve sucumbir diante de interesses dotados de função social (motivo justo), como é o caso do o fornecimento de informações às autoridades públicas legitimamente constituídas.
Em relação ao direito à intimidade, tal direito não prevalece diante da necessidade de se proteger outros direitos também considerados fundamentais, de acordo com a jurisprudência:
PROCESSUAL PENAL – HABEAS CORPUS – QUEBRA DE SIGILOS BANCÁRIO, FISCAL E DE COMUNICAÇÕES TELEFÔNICAS (ARTIGO 5º, X E XII, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL) –
Os direitos e garantias fundamentais do indivíduo não são absolutos, cedendo em face de determinadas circunstâncias, como, na espécie em que há fortes indícios de crime em tese, bem como de sua autoria.
Existência de interesse público e de justa causa, a lhe dar suficiente sustentáculo.
III. Observância do devido processo legal, havendo inquérito policial regularmente instaurado, intervenção do órgão do parquet federal e prévio controle judicial, através da apreciação e deferimento da medida. (Tribunal Regional Federal da 2ª Região, Habeas Corpus nº 95.02.22528-7/RJ, Terceira Turma, Rel.: Des. Valmir Peçanha, julgado em 14.11.1995).
Assim, não é razoável a recusa no fornecimento dos documentos indispensáveis ao exercício da função constitucional da Defensoria Pública, sob a justificava de preservar a intimidade daqueles que são seus próprios assistidos.
A respeito da possibilidade de afastamento do sigilo profissional, assim entende o Superior Tribunal de Justiça:
RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA. ADMINISTRATIVO E CRIMINAL. REQUISIÇÃO DE PRONTUÁRIO. ATENDIMENTO A COTA MINISTERIAL. ÉTICA. QUEBRA DO SIGILO PROFISSIONAL. NÃO VERIFICAÇÃO. O sigilo profissional não é absoluto, contém exceções, conforme depreende-se da leitura dos respectivos dispositivos do Código de Ética. A hipótese dos autos abrange as exceções, considerando que a requisição do prontuário médico foi feito pelo juízo, em atendimento à cota ministerial, visando apurar possível prática de crime contra a vida. Precedentes análogos. Recurso desprovido. (Superior Tribunal de Justiça, RMS 11453/SP, Rel.: Min. José Arnaldo da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 17.06.2003)
Portanto, a recusa da Administração Pública em atender às requisições da Defensoria Pública viola as normas constitucionais e legais, além de afrontar o próprio Código de Ética Médica, que tranquilamente excepciona o sigilo médico nos casos em que houver motivo justo ou dever legal.
REFERÊNCIAS:
[i] LIMA, Frederico Rodrigues Viana de. Defensoria Pública, Salvador, JusPODIVM, 2010, p. 350
[ii] LIMA, Frederico Rodrigues Viana de. Defensoria Pública, Salvador, JusPODIVM, 2010, p. 348
Defensora Pública Federal. Especialista em Direito Penal e Criminologia. Foi advogada, com atuação na área criminal. Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MOURA, Raquel Giovanini de. Prerrogativa requisitória da Defensoria Pública da União, recusa de atendimento pela Administração Pública e sigilo médico Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 19 maio 2022, 04:07. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/58421/prerrogativa-requisitria-da-defensoria-pblica-da-unio-recusa-de-atendimento-pela-administrao-pblica-e-sigilo-mdico. Acesso em: 22 nov 2024.
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