RESUMO: O surgimento da sociedade moderna acarretou a necessidade de serem reconhecidos novos direitos. Surgem, assim, os direitos transindividuais ou direitos difusos, cuja defesa exige a utilização de novos instrumentos processuais, com o abandono do individualismo aplicável ao processo civil clássico. Há dois fundamentos para a tutela de direitos coletivos: o fundamento político e o fundamento sociológico. O desenvolvimento destas novas ferramentas tem como escopo principal a garantia do direito de acesso à justiça.
ABSTRACT: The rise of modern society caused the need to be recognized new rights. Then, emerge transindividual rights or diffuse rights, whose defense requires the of new processual instrumencts, abandoning the individualismo of classic civil procedure. The protection of collective rights has two fundamentals: political and sociological. The development of these new tools aims to guarantee the right to acess justice.
O presente artigo tem como objetivo realizar uma reanálise bibliográfica acerca do surgimento da tutela coletiva de direitos, bem como da relevância do tema para a efetivação do acesso à justiça e do contraditório, direitos fundamentais com escopo no art. 5º da Constituição Federal de 1988.
Serão analisados os fundamentos político e sociológico da tutela coletiva de direitos, além de se promover exame perfunctório dos temas relacionados ao acesso à justiça e ao contraditório, com destaque à análise da tutela de direitos transindividuais.
1. DOS FUNDAMENTOS DA TUTELA COLETIVA
Em breves linhas, o surgimento da tutela coletiva decorre do reconhecimento de que as regras processuais aplicáveis para proteção de direitos individuais eram insuficientes para a salvaguarda de determinados interesses surgidos a partir da evolução da sociedade, que passou a conviver com fenômenos capazes de reordenar a vida das pessoas e, dessa maneira, a exigir novas formas de solução de litígios judiciais.
Nesse sentido, NEVES (2014, p. 08) aponta que os direitos transindividuais não podem ser efetivamente protegidos pela tutela individual – a qual, no Brasil, está basicamente prevista no Código de Processo Civil. Por isso, é compreensível o surgimento das ações de natureza coletiva, abarcando adaptações de determinados institutos processuais a fim de conferir efetiva tutela dos novos direitos surgidos.
A doutrina aponta dois principais fundamentos para o desenvolvimento de regras específicas para as demandas de cunho coletivo: sociológico e político. A seguir, serão realizados breves apontamentos acerca do tema, como forma de introduzir a necessidade de balizar o controle da legitimação adequada no processo coletivo.
De início, o surgimento das demandas coletivas tem relação direta com a economia processual. A expansão dos limites da vida em sociedade e o surgimento de novos direitos exigiram que o ordenamento jurídico buscasse soluções para o contínuo aumento no número de processos para tutela de determinados interesses, sem deixar de observar a inafastabilidade do controle judicial.
A partir disso, foram criados métodos como os recursos repetitivos, o incidente de resolução de demandas repetitivas (arts. 976 e ss. do CPC-2015) e outros, com o objetivo de reduzir recursos materiais e econômicos na prestação jurisdicional. É nesse contexto que começa a se desenvolver o processo coletivo, com o objetivo de atomizar conflitos que envolvem direitos difusos, coletivos stricto sensu e individuais homogêneos.
Além da diminuição no número de processos, outros benefícios advêm da economia processual, conforme destacam DIDIER JR. e ZANETI JR (2014, p.33): uniformização dos julgamentos com a consequente harmonização social, impedimento de decisões contraditórias e aumento de credibilidade dos órgãos jurisdicionais, além de reforço a segurança jurídica e a previsibilidade.
Ainda de acordo com DIDIER JR. e ZANETI JR. (2014, p. 33), o processo coletivo surge também para proporcionar o direito ao acesso à justiça. Apontam os autores que as demandas de massa e litigiosidade de massa decorrentes do processo de globalização, da crescente industrialização e urbanização – características principais da atual sociedade – exigiram a mudança do paradigma individualista no processo civil.
A urgência na criação de uma nova forma de tutela decorreu da necessidade de atender o princípio da inafastabilidade da jurisdição, elevado à categoria de direito fundamental pelo art. 5º, XXXV, da CF/88[1]. Nesse sentido, destaca-se trecho da obra de NEVES (2014, p. 10):
O acesso ao processo dos direitos transindividuais seria impossível com a aplicação do sistema criado para a tutela individual. E, nesse sentido, o princípio da inafastabilidade da jurisdição consagrada constitucionalmente seria flagrantemente desrespeitado. A única forma de fazer valer concretamente o princípio constitucional nesse caso, portanto, seria – como foi – com a criação da tutela coletiva.
Sem desprezar a relevância do fundamento político estudado anteriormente, parece-nos que o acesso à justiça figura como principal razão para o surgimento do processo coletivo. Isso porque as regras de processo individual não são suficientes, como pontuado, para resolver litígios que envolvam direitos de coletividade indeterminada (ex: lesão ao meio ambiente) e porque há outras demandas que, embora de natureza individual, não conseguiriam ser tratadas de forma individual (ex: direitos do consumidor).
O direito ao acesso à justiça será trabalhado em seguida em conjunto com o princípio do contraditório por entendermos que nada adianta proporcionar o ingresso ao Poder Judiciário sem que também seja garantida a possibilidade de participar efetivamente do processo e de influenciar na sentença proferida ao final.
2. DO ACESSO À JUSTIÇA E DO CONTRADITÓRIO
De início, importante esclarecer que o direito ao acesso à justiça traz consigo diversas discussões. No entanto, no presente trabalho coligir-se-ão apenas as principais premissas básicas de tão importante direito, com a finalidade de alinhá-lo ao principal objetivo deste estudo que se refere à representação adequada nas tutelas coletivas.
RAMOS (2014, p. 586) apresenta o seguinte conceito ao direito em análise:
O direito de acesso à justiça (ou direito de acesso ao Poder Judiciário ou direito à jurisdição) consiste na faculdade de requerer a manifestação do Poder Judiciário sobre pretensa ameaça de lesão ou lesão a direito. Concretiza-se, assim, o princípio da universalidade da jurisdição ou inafastabilidade do controle judicial, pelo qual o Poder Judiciário brasileiro não pode sofrer nenhuma restrição para conhecer as lesões ou ameaças de lesões a direitos.
Ainda de acordo com as lições de RAMOS, o direito de acesso à justiça possui duas facetas: (i) formal, consistente no reconhecimento do direito de acionar o Poder Judiciário e outra (ii) material ou substancial, consistente na efetivação desse direito. Nesse segundo aspecto, enquadra-se a aceitação da tutela coletiva de direitos e da tutela de direitos coletivos, que possibilita o acesso à justiça de várias demandas reprimidas.
MENDES e BRANCO (2012, p. 443), escorados em premissas delineadas no direito alemão, definem que o art. 5º, XXXV, da CF/88, (a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito) prevê o direito à proteção judicial efetiva, que se relaciona com outras garantias constitucionais, como a duração razoável do processo, o duplo grau de jurisdição, publicidade e contraditório e ampla defesa.
De fato, há que se reconhecer a relação de interdependência entre os direitos de acesso à justiça e do contraditório. Conforme indicado anteriormente, o acesso ao Estado-juiz não pode ser garantido exclusivamente sob o ponto de vista formal, sendo necessário assegurar que a tutela judicial seja efetiva, proporcionando às partes ampla participação e poder de influência sobre a sentença. Nota-se que essa faceta recebe maior destaque no processo coletivo brasileiro, no qual o legislador definiu o rol taxativo de legitimados que irão representar em juízo direitos de outros grupos.
2.2 DO PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
A Constituição Federal de 1988 elevou à categoria de fundamental o devido processo legal, ao prever no artigo 5º, inciso LIV, que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. Cuida-se, nas palavras de DIDIER JR. (2014, p. 47), de um direito fundamental de conteúdo complexo, que se traduz na ideia de um processo justo e equitativo.
Nessa senda, a própria Lei Maior previu alguns corolários da aplicação do devido processo legal, por meio dos quais este se concretiza. Assim, a norma constitucional veda a utilização de provas ilícitas, determina a razoável duração do processo, proíbe a constituição de juízos de exceção, garante o acesso à justiça etc.
Dentre os corolários do due processo of law, destaca-se o princípio do contraditório. O destaque é merecido, pois em conformidade com lição de DIDIER JR. (2014, p. 55), trata-se de reflexo do princípio democrático na estruturação do processo. De fato, a democracia exige participação, que só é efetivada, no processo, quando há observância do contraditório.
De acordo com NEVES (2013, p. 64), a doutrina clássica apontava a concretização do princípio em questão por meio de dois elementos: informação e possibilidade de reação. A evolução histórica do postulado em análise, no entanto, ampliou seu sentido, passando a prever outras duas importantes garantias: o poder de influenciar a decisão e a vedação à surpresa (arts. 9º e 11 do CPC-15).
Relevante ressaltar que o contraditório, em regra, será exercido de forma preliminar. Sem embargo o CPC-15 estabelece diversas exceções ao contraditório prévio. A possibilidade de exercício postergado de tão importante direito decorre da necessidade de se assegurar a efetividade do processo, que, em determinadas situações poderá ser sufragada pelo decurso de tempo[2].
A partir disso, conclui-se que o respeito ao princípio do contraditório não decorre somente de regras processuais. Sua observância está atrelada diretamente a normas constitucionais de elevadíssimo grau de importância – circunstância que maximiza a necessidade de buscar meios aptos a garantir, cada vez mais, seu pleno exercício no processo.
Sobre o tema, vale coligir in litteris a redação do artigo 7º do Código de Processo Civil de 2015, segundo o qual “é assegurada às partes paridade de tratamento em relação ao exercício de direitos e faculdades processuais, aos meios de defesa, aos ônus, aos deveres e à aplicação de sanções processuais, competindo ao juiz zelar pelo efetivo contraditório”.
O respeito ao contraditório pressupõe a igualdade das partes. Conforme lição de NEVES (2016, p. 262), a completa realização do princípio do contraditório, em especial quando analisado como forma de garantir a “paridade de armas” no processo, exige uma igualdade real entre as partes para que as reações possam efetivamente igualar suas situações no processo.
A submissão ao contraditório não se limita aos processos intersubjetivos. Com efeito, em processos coletivos este princípio tem sua importância ainda mais acentuada.
Nessa toada, nota-se que a defesa de direitos coletivos no ordenamento jurídico decorre da necessidade de ampliar os meios de acesso à justiça, em conformidade com o entendimento dos autores Bryant Garth e Mauro Cappelletti que desenvolveram em conjunto o “Projeto de Florença”, indicando a tutela coletiva como segunda onda renovatória do acesso à justiça.
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NOTAS:
[1] Embora não seja tema do presente estudo, vale ressaltar que a doutrina reconhece que ao lado da dimensão subjetiva dos direitos fundamentais (correspondente à noção de que os direitos fundamentais são direitos, ou seja, condições jurídicas protegidas porque titularizadas pelas pessoas, atribuindo posições jurídicas de vantagem a seus titulares), há, ainda, uma dimensão objetiva. Por esta, os direitos fundamentais traduzem valores básicos e consagrados na ordem jurídica, que devem ser observados por todo ordenamento jurídico, inclusive pelo processo, o qual deve ser construído e estruturado em consonância com os direitos fundamentais.
[2] Nessa senda, o art. 9º CPC-15 estabelece que o contraditório será exercido posteriormente na tutela provisória de urgência; nas hipóteses de tutela da evidência quando (i) as alegações de fato puderem ser comprovadas apenas documentalmente e houver tese firmada em julgamento de casos repetitivos ou em súmula vinculante ou (ii) quando se tratar de pedido reipersecutório fundado em prova documental adequada do contrato de depósito, caso em que será decretada a ordem de entrega do objeto custodiado, sob cominação de multa e, ainda; na decisão prevista no art. 701. Humberto Teodoro Junior lembra de outras hipóteses distribuídas pelo corpo do NCPC (p. 137), tais como as medidas liminares inaudita altera parte, não só nas tutelas provisórias de urgência ou de evidência (arts. 294 a 311), mas, ainda, nas ações de procedimento especial, à exemplo das possessórias (art. 562) e nos embargos de terceiro (art. 678).
pós-graduado em Direito Processual Civil pela Universidade Anhanguera-Uniderp; servidor público exercendo o cargo de analista judiciário no Tribunal de Justiça do Estado do Pará.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RODRIGUES, JOÃO RAFAEL MONTEIRO. Os fundamentos e os princípios que permeiam a tutela de direitos coletivos Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 08 jun 2022, 04:16. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/58617/os-fundamentos-e-os-princpios-que-permeiam-a-tutela-de-direitos-coletivos. Acesso em: 22 nov 2024.
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