RESUMO: Este trabalho teve por objetivo fazer uma análise das facetas da justiça penal negociada. A importância desse tema está relacionado com o crescimento da população carcerária brasileira concomitantemente com o aumento dos índices de criminalidade. Sendo assim, a justiça penal negocial foi analisada a partir dos institutos previstos no Direito Penal brasileiro em uma perspectiva sincrética das facetas positivas e negativas destes institutos. Por conta disso, no presente trabalho analisou-se o acordo de não persecução penal introduzido pela Lei 13.964/2019. Foi abordado ainda a Justiça Restaurativa dentro da perspectiva da justiça penal negocial. Para tanto, adotou-se uma metodologia de pesquisa de natureza qualitativa com o procedimento técnico de pesquisa bibliográfica. Ao final constatou-se que os institutos da justiça penal negociada são uma faca de dois gumes, evidenciando-se em suas facetas positivas e negativas. Tal constatação evidenciou também a necessidade de atuação da defesa técnica durante toda a investigação criminal para garantir a observância dos direitos e garantias fundamentais.
Palavras-chave: Justiça Penal Negociada. Acordo de Não Persecução Penal. Justiça Restaurativa.
SUMÁRIO: 1 INTRODUÇÃO. 2 ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL. 2.1 ORIGEM DO ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL. 2.2 REQUISITOS DO ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL. 2.3 HIPÓTESES DE NÃO CABIMENTO DO ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL. 2.4 APLICAÇÃO RETROATIVA DO ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL. 2.5 AS FACETAS DO ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL. 3 NOVAS PERSPECTIVAS DA JUSTIÇA PENAL NEGOCIADA COM A JUSTIÇA RESTAURATIVA. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS.5 REFERÊNCIAS.
INTRODUÇÃO
O controle informal e formal do comportamento desviante (delito) acompanha a sociedade desde seus primórdios. Ao assumir o monopólio da força, o Estado moderno tem a responsabilidade de pacificar a sociedade em seus conflitos. Nesse contexto, sendo a última ratio do Direito, o Direito Penal e Processo Penal assumem a árdua e difícil tarefa de controle social formal para proteger os bens jurídicos escolhidos pelo legislador e, sendo estes violados, aplica-se a sanção penal almejando alcançar a finalidade desta.
Por outro lado, o Direito Penal e Processo Penal podem servir como um sistema de garantia para os acusados contra a arbitrariedade estatal tendo em vista a disparidade de condições estruturais entre o acusado e o Estado acusador.
Com a evolução da sociedade, o Direito Penal e Processo Penal evoluíram também adotando novas perspectivas e institutos. Mas o giro punitivo com a expansão do encarceramento em massa, a sistemática violação dos direitos fundamentais dos presos no Brasil e ao mesmo tempo o crescente índice de crimes nos faz questionar o papel do Direito Penal e Processo Penal no controle social.
Por essa aparente falta de efetividade do Direito Penal faz com que se busque renovações e introdução de novos institutos almejando uma maior efetividade e redução do encarceramento no Brasil.
Alguns marcos legais como a Lei 9.099/95, Lei 12.850/13 e Lei 13.964/19 introduziram no sistema jurídico penal brasileiro institutos como a composição civil dos danos, a transação penal, a suspensão condicional do processo, a colaboração (ou delação) premiada e o acordo de não persecução penal. Tais institutos indicam uma nova perspectiva do Direito Penal, qual seja: a justiça penal negocial, assim como ocorre no Processo civil com o sistema de multiportas.
Diante do desafio do Direito Penal e a introdução desses novos institutos de um direito penal negocial temos que nos debruçar sobre as consequências de sua aplicação em uma perspectiva sincrética. Sendo assim, o foco norteador do presente trabalho é questionar as facetas da justiça penal negociada aplicada ao acorso de não persecução penal.
A problemática do trabalho em questão pode ser resumida da seguinte forma: a justiça penal negocial contribui para a redução do encarceramento no Brasil ou pode servir de instrumento de limitação das garantias e liberdades individuais?
O objetivo geral do trabalho é fazer uma abordagem da justiça penal negocial a partir do instituto do acordo de não persecução em uma perspectiva sincrética das facetas positivas e negativas deste instituto.
Como objetivo específico analisou-se o instituto do acordo de não persecução penal trazendo seu conceito, origem histórica, requisitos, hipóteses de não aplicação, retroatividade e as facetas deste instituto. Por último abordamos de forma breve alguns aspectos da Justiça Restaurativa na perspectiva da justiça penal negocial.
A relevância do tema e os motivos que o justificam é a crescente população carcerária brasileira concomitantemente com o aumento dos índices de criminalidade, bem como a sistemática violação dos direitos humanos das pessoas privadas de sua liberdade. Diante disso se faz necessário repensar e introduzir novos formas de controle social. Sendo assim, é de fundamental importância a abordagem dos institutos da justiça penal negocial para a construção de conhecimento.
Diante de todo esse panorama, a academia, sendo um ambiente de discursão e produção de conhecimento, não pode ficar de fora e deixar de debater um tema tão importante que afeta a dignidade da pessoa humana. Assim, a importância da pesquisa desse tema está no fato de discutir as facetas da justiça penal negocial.
Para tanto, o presente trabalho é dividido da seguinte forma: primeiramente será feita a análise do instituto do acordo de não persecução penal introduzido pela Lei 13.964/2019. Será abordado ainda a Justiça Restaurativa dentro da perspectiva da justiça penal negocial, para ao final tecer as considerações finais.
Como metodologia de pesquisa adotou-se um estudo de natureza qualitativa com o procedimento técnico de pesquisa bibliográfica. Serão utilizadas como fontes da pesquisa bibliográfica a legislação, a doutrina, princípios, relatórios, livros e artigos publicados em revistas científicas e na rede mundial de computadores.
2 ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL
Dentro dessa perspectiva de analise das facetas da justiça penal negocial o mais novo instituto jurídico é o Acordo de Não Persecução Penal (ANPP) introduzido pela Lei 13.964/2019 (conhecido como “pacote anticrime”) no art. 28-A do Código de Processo Penal. Conceituando o Acordo de Não Persecução Penal (ANPP) Lima (2020, p. 272) destaca que se trata de um negócio jurídico de natureza extrajudicial que necessariamente depende de homologação judicial. Ao se manifestar sobre a possibilidade de aplicação retroativa do ANPP aos processos em curso, o STJ (BRASIL, 2020, n.p) conceituou o instituto nos seguintes termos:
Em síntese, consiste em um negócio jurídico pré-processual entre o Ministério Público e o investigado, juntamente com seu defensor, como alternativa à propositura de ação penal para certos tipos de crimes, principalmente no momento presente, em que se faz necessária a otimização dos recursos públicos e a efetivação da chamada Justiça multiportas, com a perspectiva restaurativa.
Dos conceitos apresentados acima, percebe-se que a natureza jurídica Acordo de Não Persecução Penal é de negócio jurídico de natureza extrajudicial e seu oferecimento é uma discricionariedade do Ministério Público, embora parte da doutrina mais garantista sustenta que é um direito subjetivo do investigado. Ademais, o ANPP pode ser classificado como uma norma de conteúdo híbrido, pois comporta matéria de direito material e processual penal.
Para além de conceitos e classificações, estudar as facetas de um instituto jurídico exige a dissecação do mesmo para depois remonta-lo, considerando as influencias incidentes, para só então entender as suas facetas. Para tanto abordaremos o instituto do acordo de não persecução penal trazendo sua origem histórica, requisitos, hipóteses de não aplicação, aplicação retroativa e as facetas deste instituto.
2.1 ORIGEM DO ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL
A origem do Acordo de Não Persecução Penal (ANPP) é inspirado em institutos da justiça penal negocial do direito estrangeiro. Nesse ponto Assunção (2020, p. 79, grifo do autor) destaca que:
O acordo se insere num contexto maior, de justiça negociada, conhecida como plea bargaining. Empregado de forma larga nos EUA e também responsável pelo grande encarceramento naquele país, o instituto chega ao Brasil com algumas restrições, numa análise comparada. Em síntese, não sendo caso de arquivamento, o MP poderá propor acordo de não persecução penal à pessoa investigada, desde que haja confissão formal e circunstanciada da prática da infração e seja aceita a submissão a uma série de condições.
No Brasil o ANPP teve início com o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) por meio de sua Corregedoria Nacional que instaurou procedimento de estudos e pesquisas para aperfeiçoar à atuação do Ministério Público. Dentre várias outras propostas apresentadas por esse estudo da Corregedoria Nacional do Ministério Público está a criação do instituto do acordo de não persecução penal que teve a seguinte justificativa:
Não há dúvidas que, em um mundo ideal, o correto seria que todos os processos penais fossem submetidos a um juízo plenário, em que a condenação é proferida no âmbito de um processo judicial, com estrita observância do contraditório e ampla defesa. No entanto, nosso país longe está desse mundo ideal e é imprescindível que se tome alguma providência para dar cabo à carga desumana de processos que se acumulam nas Varas Criminais do país e que tanto prejuízo e atraso causam no oferecimento de Justiça às pessoas, de alguma forma, envolvidas em fatos criminais. (CNMP, 2017, 29)
Perceba que a preocupação dos autores do estudo é com a grande demanda de processos criminais e o saturamento da capacidade do Poder Judiciário e do Ministério Público em dá resolutividade para essa demanda de processos. Além disso, os autores do estudo afirmam que os casos que serão abarcados com a instituição do acordo de não persecução penal são aqueles em que ao final do processo, ocorrendo a condenação, a pena privativa de liberdade seria substituída por restritiva de direito, nos moldes do art. 43 e seguintes do Código Penal.
Ao final da exposição dos motivos a comissão de estudos da Corregedoria Nacional do Ministério Público ressalta que com a implementação do acordo de não persecução penal ocorreria os seguintes “benefícios”:
Diante dessas razões, é que esta Comissão entende que, com o acolhimento das propostas aqui delineadas, haveria um grande avanço na qualidade do nosso Sistema de Justiça, já que haveria: a) uma celeridade na resolução dos casos menos graves (evitando-se, inclusive, que o nosso STF tenha que discutir questões bagatelares menores, como vem fazendo, que são completamente incompatíveis com a relevância que deve ter um Tribunal Supremo); b) mais tempo disponível para que o Ministério Público e o Poder Judiciário processem e julguem os casos mais graves, tendo a possibilidade, de tal maneira, de fazê-lo com maior tranquilidade e reflexão; c) haveria economia de recursos públicos, já que os gastos inerentes à tramitação do processo penal seriam reduzidos (ou seja, menos processos judicias, menos gastos); d) minoração dos efeitos deletérios de uma sentença penal condenatória aos acusados em geral, que teriam mais uma chance de evitar uma condenação judicial, dando um voto de confiança aos não reincidentes, minorando, também, os efeitos sociais prejudiciais de uma pena e desafogaria, também, os estabelecimentos prisionais. (CNMP, 2017, 32)
Com essas promessas ambiciosas indicadas acima, a proposta inicial do acordo de não persecução penal foi inserida na Resolução do CNMP nº 181/2017 que trata especificamente do procedimento investigatório criminal conduzido pelo Ministério Público, substituindo a Resolução do CNMP nº 13/2006. O acordo de não persecução penal foi previsto no art. 18 da Resolução do CNMP nº 181/2017 que posteriormente foi modificado pela Resolução do CNMP nº 183/2018.
Veja que o Conselho Nacional do Ministério Público, por meio de uma resolução, instituiu uma figura jurídico de natureza penal e processual penal que não tinha nenhuma previsão legal em lei. Por óbvio que a constitucionalidade do acordo de não persecução penal previsto na resolução foi questionada por violar diversos dispositivos e princípios da Constituição Federal de 1988, dentre eles o da reserva legal. Nesse sentido Avena (2020, p. 595) destaque que:
Este ato normativo sempre teve sua constitucionalidade questionada, na medida em que o art. 130-A, § 2º, da Constituição Federal estabelece como atribuições do CNMP as relacionadas ao “controle da atuação administrativa e financeira do Ministério Público e do cumprimento dos deveres funcionais de seus membros”, não lhe facultando a criação de institutos de natureza processual penal. Perceba-se que a alegada contrariedade à Constituição Federal foi objeto de Ações Diretas de Inconstitucionalidade ajuizadas pela Associação dos Magistrados Brasileiros (ADI 5790) e pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (ADI 5793), sustentando-se a inconstitucionalidade formal e material das normas da resolução do CNMP que tratam do acordo de não persecução. Até a época do fechamento da presente edição deste livro, não havia deliberação final do Supremo Tribunal Federal a respeito destas ADIs, havendo, porém, o prognóstico de extinção em face da perda de objeto, já que o ato normativo impugnado, no que tange ao acordo de não persecução penal, ficou prejudicado pela regulamentação agora realizada em nível de lei ordinária.
Como bem destacado acima, a discursão quanto a constitucionalidade da regulamentação do acordo de não persecução penal por meio resolução do Conselho Nacional do Ministério Público perdeu seu objeto, tendo em vista a sua regulamentação por lei ordinária. Todavia, esse histórico embrionário do acordo de não persecução penal é importante para entender os dispositivos em vigor que tratam a respeito do instituto.
Após diversas idas e voltas do “pacote anticrime” e outras mudanças na legislação penal, o Projeto de Lei nº 10.372/2018 aglutinou muitos dos temas que estavam sendo debatidos no Congresso Nacional, sendo que do referido Projeto de Lei originou a Lei 13.964/2019 (BRASIL, 2019) que alterou 18 diplomas legais. Dentre essas mudanças está a inserção do art. 28-A no Código de Processo Penal prevendo o acordo de não persecução penal.
Toda essa exposição do surgimento histórico do acordo de não persecução penal é importante para entender à atual redação legal do instituto e suas implicações jurídicas.
A primeira constatação é a semelhança entre as disposições do acordo de não persecução penal previsto na Resolução do CNMP nº 181/2017 (com a redação dada pela Resolução do CNMP nº 183/2018) e os dispositivos do art. 28-A no Código de Processo Penal. As disposições de ambos os diplomas são muitos semelhantes, ressalvadas alguns pontos. Sendo assim, percebe-se que o acordo de não persecução penal, embora tenha passado pelo crivo do Congresso Nacional, é um instituto jurídico que foi maturado no Conselho Nacional do Ministério Público e o Congresso Nacional realizou apenas pequenas alterações antes da aprovação.
A segunda constatação é a busca por novas formas de solução do conflito na seara criminal. Aquela concepção de que todos os litígios têm que passar pelo Poder Judiciário nas formas tradicionais já não atendem à demanda de volume de casos e até mesmo a resolutividade do ponto de vista prático. Por conta disso, novos movimentos por uma justiça multiportas é uma realidade.
Demonstrado esse breve histórico do surgimento do acordo de não persecução penal trataremos agora dos requisitos do referido instituto.
2.2 REQUISITOS DO ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL
Os requisitos do acordo de não persecução penal estão elencados no caput do art. 28-A do Código de Processo Penal. É importante destacar a semelhança dos requisitos do ANPP com os requisitos da substituição da pena privativa de liberdade por restritivas de direito previsto no art. 44 do Código Penal. Adiante abordaremos cada um dos requisitos do ANPP relacionado com os requisitos da substituição da pena privativa de liberdade por restritivas de direito.
O primeiro requisito previsto no caput do art. 28-A do Código de Processo Penal é que não seja o caso de arquivamento da investigação criminal, pois caso ocorra a hipótese de arquivamento não há o que se falar em acordo de não persecução penal, tendo em vista que o Ministério Público não terá as condições elementares para o oferecimento da denúncia. Perceba que o arquivamento retratado aqui é da investigação criminal que é gênero da qual o inquérito policial é espécie.
Nesse ponto a advocacia e a Defensoria Pública que militam na seara criminal devem ficar atentos para acompanhar e analisar as hipóteses de arquivamento da investigação criminal, como é o caso de ausência dos indícios de autoria e/ou prova da materialidade do crime, prescrição do crime ou alguma causa de exclusão da tipicidade, ilicitude e da culpabilidade. Pois o Ministério Público, mesmo sendo o caso de arquivamento, poderá utilizar o ANPP como forma de barganha para “impor” ao investigado restrições à sua liberdade sob o pretexto de que não seria o caso de arquivamento da investigação criminal. Ocorrendo tal hipótese a defesa pode se utilizar do remédio constitucional heroico, o Habeas Corpus, conforme vem admitindo, de forma excepcionalíssima, a jurisprudência.
O segundo requisito é que o investigado tenha confessado formal e circunstancialmente a prática da infração penal. O primeiro ponto a ser destacado é que o dispositivo fala em infração penal, ou seja, engloba tanto crimes como a contravenção penal. Quanto a confissão formal é circunstanciada Avena (2020, p. 600, grifo do autor) explica que:
Confissão formal é aquela realizada por escrito. Embora não haja menção legal, compreendemos que esta confissão deverá estar inserida no próprio termo do acordo formalizado, podendo, contudo, ser realizada em documento a ele anexo, com expressa referência a respeito no ajuste. E quanto ao “circunstancialmente”, significa que a proposta do ajuste pelo Ministério Público condiciona-se a que o investigado assuma, com o detalhamento de todas as circunstâncias, o cometimento do delito objeto do acordo. Logo, confissão meramente parcial, ou sob alegação de excludentes ou dirimentes (a chamada confissão qualificada), ou sem o esclarecimento das circunstâncias principais que contornaram a infração (e aqui incluímos a referência a quando e onde ocorreu, o modo de execução e a motivação) não viabilizam o ajuste.
Mais uma vez a presença da defesa técnica nesse momento é indispensável, pois esclarecerá ao investigado as vantagens e as consequências legais da confissão formal e circunstanciada.
Alguns autores sustentam a inconstitucionalidade do requisito da confissão formal e circunstanciada tendo em vista que violaria o princípio constitucional da vedação a autoincriminação (nemo tenetur se detegere - inciso LXIII do art. 5º, da CF/88). Em sentido contrário Avena (2020, p. 601) destaca que:
Assim não pensamos. Compreendemos, enfim, que, para efeitos de formalização do pacto de não persecução penal, nenhuma inconstitucionalidade há no fato de se estabelecer, como requisito, a confissão formal e circunstancial do investigado. Isto porque a efetivação do acordo de não persecução situa-se no plano da voluntariedade do investigado. Celebra-o, enfim, se o quiser, não havendo qualquer constrangimento a que o faça. Agora, se for de sua vontade acordar com o Ministério Público, precisará sujeitar-se aos requisitos legalmente previstos para tanto, entre os quais está o da confissão. Lembre-se, ainda, que a proibição constitucional é a de que seja o investigado ou acusado obrigado a se autoincriminar sob pena de consequências de ordem penal ou processual penal, o que não ocorre por ocasião da formalização do acordo, que, repita-se, é ato voluntário do imputado. Além do mais, com o cumprimento do ajuste, ocorrerá a extinção de sua punibilidade (art. 28-A, § 13), não implicando o anterior reconhecimento da responsabilidade criminal em qualquer implicação penal.
Não obstante a posição acima representar o entendimento de um membro do Ministério Público, a inconstitucionalidade do requisito da confissão formal e circunstanciada passa necessariamente pela garantia ao investigado de ter o acompanhamento de uma defesa técnica qualificada que o esclarecerá as vantagens e as consequências da confissão. Mesmo sendo informado pela autoridade policial ou membro do Ministério Público sobre o direito constitucional ao silêncio, o investigado não tem a compreensão técnica e holística das consequências de sua confissão, assim como tem um profissional capacitado.
Dessa forma, nesse ponto os dispositivos normativos do ANPP devem ser alterados para garantir a presença da defesa técnica no ato da confissão formal e circunstanciada, assim como fez a Lei 12.850/13, e não apenas na celebração do ANPP com o Ministério Público.
Outra questão de intensos debates é a respeito da hipótese do descumprimento do ANPP previsto no § 10º do art. 28-A, do CPP, que possibilitaria o Ministério Público oferecer a denúncia. Todavia a pergunta que fica é o que acontecerá com a confissão do investigado? O Ministério Público poderá utiliza-la para oferecer a denúncia? O juiz, quando da sentença, poderá utilizar a confissão formal e circunstanciada do ANPP para condenar o acusado? Sobre esses questionamentos Avena (2020, p. 601 a 603, grifo do autor) se posiciona da seguinte forma:
A questão é: para efeitos deste oferecimento, é possível que o promotor utilize os termos da confissão? Entendemos que não existe óbice a essa utilização, mesmo porque a confissão foi prestada de modo espontâneo pelo investigado e, se ajuizada ação penal, foi porque o acusado a isto deu causa ao descumprir, injustificadamente, o ajuste realizado. E quanto ao juiz, tal confissão poderá ser utilizada como fonte de convencimento no momento da sentença? A resposta, aqui, condiciona-se à implementação ou não da disciplina do juiz das garantias, introduzida pela Lei 13.964/2019 ao Código de Processo Penal nos seus arts. 3º-B a 3º-F. [...] Primeira: é revogada, pelo STF, a medida cautelar citada e consequente instituição da figura do juiz das garantias no processo penal brasileiro. [...] Neste cenário, a confissão operada para efeitos do acordo que restou descumprido não estará acessível ao juiz no momento da sentença, razão pela qual não poderá dela se valer para formar sua convicção. Segunda: é mantida a suspensão da eficácia das normas que regulamentam o juiz das garantias ou declarada a inconstitucionalidade dessas regras pelo STF. Nesta hipótese, estarão disponíveis todos os elementos coligidos na fase investigativa ao juiz da sentença, razão pela qual não ficará ele impedido de utilizar a confissão realizada no âmbito do acordo de não persecução como argumento de convicção, subordinando-se, por óbvio, a que tal utilização seja meramente complementar das provas judicializadas.
Embasado em uma perspectiva constitucional entendemos que a solução dos questionamentos anteriores deve ser diversa da apresentada acima. O primeiro motivo seria porque a lei não disciplinou tal hipótese não devendo prevalecer a situação que mais prejudicará o réu, sob pena de violação da estrita legalidade. O segundo motivo é que o investigado abriu mão de sua garantia constitucional de não produzir prova contra si (inciso LXII do art. 5º, CF/88) almejando um “beneficio” que com a revogação do ANPP não existirá mais. Sendo assim nada mais justo do que a situação volte ao status quo ante, ou seja, nem o Ministério Público e nem o juiz poderá se utilizar da confissão do ANPP, sob pena de violarem garantias constitucionais.
O terceiro requisito é que a infração penal tenha sido praticada sem violência e grave ameaça a pessoa. Com a inauguração de uma nova ordem jurídica pela Constituição Federal de 1988 o ser humano foi elevado a viga mestra de todo o ordenamento jurídico, assim sendo, todos os ramos do direito devem atender um especial interesse na proteção do ser humano. Por conta disso, as infrações penais que coloquem em risco a integridade física e psicológica do ser humano devem ser reprimidas com uma maior intensidade, não admitindo assim a propositura do ANPP.
Um ponto interessante no tocante a esse requisito é a (im)possibilidade do ANPP nos crimes culposos decorrentes de ações violetas contra pessoas. Diante da omissão legislativa quanto a essa possibilidade a doutrina majoritária se manifesta pela possibilidade de aplicação do ANPP aos crimes culposos decorrentes de ações violetas contra pessoas (AVENA, 2020, p. 598).
Por fim, perceba que assim como na substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos há necessidade de que a infração penal tenha sido praticada sem violência e grave ameaça a pessoa.
O quarto requisito diz respeito ao quantum da pena mínima cominada para a infração penal que não poderá ser superior a 4 (quatro) anos, não fazendo distinção quanto a natureza da pena (prisão simples, detenção ou reclusão). O § 1º do art. 28-A, do CPP, estabelece que “para aferição da pena mínima cominada ao delito a que se refere o caput deste artigo, serão consideradas as causas de aumento e diminuição aplicáveis ao caso concreto” (BRASIL, 2019).
O requisito de pena mínima não superior a 4 (quatro) anos não foi um patamar aleatório. Nesse sentindo Avena (2020, p. 599) explica que:
[...] foi eleito pelo legislador por considerar que este patamar de pena vem sendo o utilizado no processo criminal como parâmetro objetivo de verificação da gravidade do crime. Como exemplo, o estabelecimento do regime aberto, que é viável ao indivíduo não reincidente que tenha sido condenado a pena inferior a quatro anos (art. 33, § 2º, c, do Código Penal).
Ademais, os membros do Ministério Público perceberam que na prática penal, as infrações penais com pena mínima não superior a quatro anos, mesmo com a condenação penal, esbaravam quase sempre na aplicação da substituição da pena privativa de liberdade por restritivas de direitos, tendo em vista que a maioria dos casos as penas são fixadas no mínimo legal. Inclusive o patamar de quatro anos é um dos requisitos da substituição da pena privativa de liberdade por restritivas de direitos.
O quinto e último requisito é que com aplicação do ANPP seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime. Veja que nesse requisito é exigido o cumprimento da finalidade da pena prevista no art. 59 do Código Penal. Todavia, tal requisito é totalmente subjetivo, pois vai depender de uma avaliação subjetiva do membro do Ministério Público se à aplicação do ANPP no caso concreto seria necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime.
Tal requisito traz um grau de discricionariedade muito grande para o Ministério Público que segundo Avena (2020, 603, grifo do autor) vem contrabalancear o princípio da obrigatoriedade da ação penal:
Por fim, é condicionante da formalização do ajuste ser este considerado necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime. Ao contrário das anteriores, esta é constatação a ser realizada a partir da subjetividade do membro do Ministério Público com base nas peculiaridades do caso concreto, sem embargo de poder ser feita, também, em face da natureza do delito. Como já dissemos antes, na medida em que mitiga o princípio da obrigatoriedade da ação penal pública, o acordo de não persecução penal, além de observar os requisitos de sua formalização, deverá ser o bastante para que atenda as finalidades repressiva da infração praticada e preventiva de novas infrações do mesmo modo que o seria a tramitação do processo criminal (que, por si, já é fator de constrangimento ao réu) e a eventual superveniência de sentença condenatória.
Mais uma vez percebe-se a intenção dos membros do Ministério Público de trazer para antes do início do processo uma pretensão que, em tese, só seria alcançada ao final do processo e condenação criminal.
De todos os aspectos dos requisitos do ANPP apresentado acima o mais gritante deles é a necessidade da atuação da defesa técnica, seja advocacia ou Defensoria Pública, antes, durante e depois da celebração do ANPP. Isso porque no ANPP é exigido uma atuação proativa do investigado e este só poderá tomar decisões em “paridade” com o órgão acusatório se estiver sendo acompanhado por uma defesa técnica qualificada. A seguir abordaremos a hipóteses de não cabimento do ANPP.
2.3 HIPÓTESES DE NÃO CABIMENTO DO ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL
As hipóteses de não cabimento do acordo de não persecução penal estão estabelecidas no § 2º do art. 28-A do Código de Processo Penal que prever o seguinte:
§ 2º O disposto no caput deste artigo não se aplica nas seguintes hipóteses:
I - se for cabível transação penal de competência dos Juizados Especiais Criminais, nos termos da lei;
II - se o investigado for reincidente ou se houver elementos probatórios que indiquem conduta criminal habitual, reiterada ou profissional, exceto se insignificantes as infrações penais pretéritas;
III - ter sido o agente beneficiado nos 5 (cinco) anos anteriores ao cometimento da infração, em acordo de não persecução penal, transação penal ou suspensão condicional do processo; e
IV - nos crimes praticados no âmbito de violência doméstica ou familiar, ou praticados contra a mulher por razões da condição de sexo feminino, em favor do agressor. (BRASIL, 2019).
Embora exista algumas considerações a respeitos das hipóteses apresentadas acima elas são quase que autoexplicativas. Porém há uma hipótese de não cabimento do acordo de não persecução penal que era prevista na Resolução do CNMP nº 181/2017 e que não foi reproduzida no art. 28-A do CPP, estamos falando da vedação do ANPP para os crimes hediondos e equiparados previstos na Lei 8.072/90. Tratando desse ponto Lima (2020, p. 280, grifo do autor) ressalta que:
inexplicavelmente, a Lei n. 13.964/19 não reproduziu a presente vedação de maneira expressa, o que, à primeira vista, poderia levar o intérprete à conclusão precipitada de que o acordo de não persecução penal poderia ser celebrado em relação a tais delitos, conquanto preenchidos os requisitos anteriormente expostos. Não nos parece ser esta a melhor conclusão, sobretudo à luz do art. 28-A, caput, do CPP, que autoriza a celebração do acordo de não persecução penal desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime, requisito este que não se revela presente em crimes de tamanha gravidade, como o são os hediondos e equiparados. É nessa linha, aliás, o Enunciado n. 22 do Conselho Nacional de Procuradores-Gerais dos Ministérios Públicos dos Estados e da União (CNPG) e do Grupo Nacional de Coordenadores de Centro de Apoio Criminal (GNCCRIM): “Veda-se o acordo de não persecução penal aos crimes praticados no âmbito de violência doméstica ou familiar, ou praticados contra a mulher por razões da condição de sexo feminino, bem como aos crimes hediondos e equiparados, pois em relação a estes o acordo não é suficiente para a reprovação e prevenção do crime” (nosso grifo);
Inobstante o posicionamento apresentado acima, entendemos que andou bem o legislador ao excluir os crimes hediondos e equiparados da vedação do cabimento do ANPP. Isso porque trazer uma vedação Ope Legis não atenderia as peculiaridades do caso concreto quando se tratasse de crimes hediondos e equiparados, pois é perfeitamente possível que, no caso concreto, com a celebração do ANPP seja suficiente para a reprovação e prevenção do crime. O que não seria possível se houvesse essa vedação no texto legal do instituto.
Dos requisitos e das hipóteses do não cabimento do ANPP percebe-se uma semelhança quase que integral com os requisitos da substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos. Tal semelhança não é um acaso. Os membros do Ministério Público com a sua larga experiência na atuação criminal perceberam que as infrações penais que atendem os requisitos do ANPP, mesmo com a sentença penal condenatória, não seriam punidas com prisão, pois nesses casos seria aplicada a substituição da pena privativa de liberdade por restritivas de direito.
Diante dessa constatação, visando uma otimização do sistema de justiça, os membros do Ministério Público trazem para antes mesmo do início do processo uma consequência que só seria alcançada após um longo, caro e ineficaz processo de controle social formal. Assim, o resultado que só seria alcançado ao final do processo é trazido para o início deste processo.
2.4 APLICAÇÃO RETROATIVA DO ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL
Um dos temas com maior divergência na doutrina e na jurisprudência é a discursão sobre a possibilidade de aplicação retroativa do acordo de não persecução penal.
Conforme já destacamos acima, o ANPP pode ser classificado como uma norma de conteúdo híbrido, pois comporta matéria de direito material e processual penal. Dito isso, conforme previsão legal e entendimento da melhor doutrina e jurisprudência a lei processual penal não retroage, bem como a lei penal, salvo esta última para beneficiar o réu (inciso XL do art. 5º da CF/88 c/c parágrafo único do art. 2º do CP).
E quando a norma for híbrida ela vai retroagir? Conforme entendimento da melhor doutrina e jurisprudência aplica-se a regra geral de irretroatividade da norma, salvo quando ela for benéfica ao réu. Nesse sentido cita-se o entendimento do STF encartado na ADI nº 1719-DF:
PENAL E PROCESSO PENAL. JUIZADOS ESPECIAIS. ART. 90 DA LEI 9.099/1995. APLICABILIDADE. INTERPRETAÇÃO CONFORME PARA EXCLUIR AS NORMAS DE DIREITO PENAL MAIS FAVORÁVEIS AO RÉU. O art. 90 da lei 9.099/1995 determina que as disposições da lei dos Juizados Especiais não são aplicáveis aos processos penais nos quais a fase de instrução já tenha sido iniciada. Em se tratando de normas de natureza processual, a exceção estabelecida por lei à regra geral contida no art. 2º do CPP não padece de vício de inconstitucionalidade. Contudo, as normas de direito penal que tenham conteúdo mais benéfico aos réus devem retroagir para beneficiá-los, à luz do que determina o art. 5º, XL da Constituição federal. Interpretação conforme ao art. 90 da Lei 9.099/1995 para excluir de sua abrangência as normas de direito penal mais favoráveis ao réus contidas nessa lei. (STF - ADI: 1719 DF, Relator: JOAQUIM BARBOSA, Data de Julgamento: 18/06/2007, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJe-072 DIVULG 02-08-2007 PUBLIC 03-08-2007 DJ 03-08-2007 PP-00029 EMENT VOL-02283-02 PP-00225 RB v. 19, n. 526, 2007, p. 33-35). (BRASIL, 2007).
Nesse sentido o entendimento que vem prevalecendo no STJ e no STF é pela retroatividade do ANPP, desde que não tenha havido o recebimento da denúncia:
O acordo de não persecução penal (ANPP) aplica-se a fatos ocorridos antes da Lei nº 13.964/2019, desde que não recebida a denúncia. STJ. 5ª Turma. HC 607.003-SC, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 24/11/2020 (Info 683). Essa é também a posição da 1ª Turma do STF sobre o tema: HC 191464 AgR, Rel. Roberto Barroso, julgado em 11/11/2020. (CAVALCANTE, 2021). Grifo nosso.
Com o entendimento dos Tribunais superiores indicado acima a retroatividade da aplicação do ANPP fica limitada ao recebimento da denúncia. Porém a doutrina mais garantista sustenta a retroatividade do ANPP até mesmo para os casos com o trânsito em julgado, nesse sentido Betta (2021, n. p) destaca que:
Após estas ponderações, enfatizamos que a norma prevista no art. 28-A, que introduziu a acordo penal, que gera extinção da punibilidade e afasta a reincidência, deve retroagir aos fatos pretéritos, por ser norma de natureza híbrida, mais benéfica, nos termos do art. 5º LX da CRFB/1988 c/c art. 2º parágrafo único do CP, não podendo sofrer limitação temporal.
Esse último posicionamento parece ser o mais acertado. Por ser uma norma de conteúdo híbrido entendemos que o ANPP poderá ser aplicado aos processos mesmo que tenha havido o trânsito em julgado da sentença penal condenatório em obediência ao princípio constitucional previsto no inciso XL do art. 5º da CF/88. Isso porque o ANPP é, desde que cumprida as condições estabelecidas, uma causa de extinção de punibilidade, ou seja, norma de conteúdo material.
Adotar entendimento diferente do indicado acima viola também o princípio da isonomia, tendo em vista que podemos ter dois indivíduos que praticaram fatos semelhantes, mas terão um tratamento diferenciado. Para exemplificar tal situação de desigualdade imagine que o agente primário “Pumba” tenha praticado um furto em outubro de 2019 e a denúncia foi recebida em novembro de 2019. Outro agente primário “Timão” também praticou um furto em outubro de 2019, mas até março de 2020 a denúncia não foi recebida, sendo que este se beneficiou do ANPP. Já o agente “Pumba” não teve essa “sorte” e foi processado e condenado.
Dessa forma percebe-se que limitar à aplicação da retroatividade do ANPP ao recebimento da denúncia viola o princípio constitucional da retroatividade da lei mais benéfica, bem como o princípio constitucional da isonomia (art. 5°, XL, da CF/88).
2.5 AS FACETAS DO ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL
A instituição do acordo de não persecução penal é mais um instrumento que vem reforçar a necessidade da justiça penal negocial. Das disposições apresentadas anteriormente sobre o ANPP percebe-se a importância da atuação da defesa técnica durante toda a investigação criminal é não apenas na celebração do ANPP.
O acordo de não persecução penal é um instrumento e como tal poderá ser utilizado para perseguir os fins almejados pelo instituto como a redução da judicialização convencional da persecução penal de casos menos graves com a otimização da prestação jurisdicional e dos recursos materiais e humano. Tratando do impacto da justiça penal negocial, Lopes Júnior (2020, p. 315, grifo do autor) destaca que:
Se fôssemos pensar uma estrutura escalonada de negociação, levando em consideração seus requisitos e condições impostas, seria disposta na seguinte ordem:
1º transação penal
2º acordo de não persecução
3º suspensão condicional do processo
4º acordo de delação premiada
Se fizermos um estudo dos tipos penais previstos no sistema brasileiro e o impacto desses instrumentos negociais, não seria surpresa alguma se o índice superasse a casa dos 70% de tipos penais passíveis de negociação, de acordo. Portanto, estão presentes todas as condições para um verdadeiro “desentulhamento” da justiça criminal brasileira, sem cairmos na abertura perversa e perigosa de um plea bargaining sem limite de pena, como inicialmente proposto pelo “Pacote Moro” e, felizmente, rechaçada pelo Congresso Nacional. Portanto, é um poderoso instrumento de negociação processual penal que requer uma postura diferenciada por parte dos atores judiciários, antes forjados no confronto, que agora precisam abrir-se para uma lógica negocial, estratégica, que demanda uma análise do que se pode oferecer e do preço a ser pago (prêmio), do timing da negociação, da arte negocial. Nesse terreno, é preciso ler Alexandre MORAIS DA ROSA e seus vários escritos sobre a “teoria dos jogos aplicada ao processo penal”.
Inobstante o impacto causado no sistema de justiça criminal, quanto à possibilidade de redução da população carcerária em decorrência da instituição do ANPP entendemos que não terá grande impacto, tendo em vista que as situações abrangidas pelo ANPP seriam abrangidas, ao final do processo, pela substituição da pena privativa de liberdade por restritivas de direitos.
Outro ponto positivo quanto à aplicação do ANPP é a possibilidade de o agente ter a extinção da punibilidade decretada (§ 13 do art. 28-A, do CPP), desde que cumprida as condições, sem que haja tal anotação na certidão de antecedentes criminais, exceto para os fins de nova utilização do mesmo instituto dentro do prazo de cinco anos.
Por outro lado, a defesa técnica atuante no campo criminal, seja advocacia ou Defensoria Pública, devem ficar atentos e atuantes na defesa intransigente dos direitos e garantias fundamentais, pois o ANPP é uma faca de dois gumes que foi forjada e está sendo segurada pelos membros do Ministério Público. Ou seja, o Ministério Público com o ANPP ganha um instrumento de grande peso que deverá ser contrabalanceado pela atuação da defesa técnica afim de equilibrar a balança da justiça.
O ANPP por se um instrumento de justiça penal negociada pressupõe à atuação da defesa técnica em todo o desenrolar da investigação criminal e não só apenas na celebração do ANPP, inclusive com a utilização da investigação defensiva. Adiante abordaremos brevemente a Justiça Restaurativa sob a ótica da justiça penal negociada.
3 NOVAS PERSPECTIVAS DA JUSTIÇA PENAL NEGOCIADA COM A JUSTIÇA RESTAURATIVA
A história da humanidade demonstra diversas formas e sistemas para lidar com o conflito entre os indivíduos. Com a instituição do Estado moderno e à assunção do monopólio da força por este são estabelecidas as regras do “jogo” para administrar os conflitos. Com a tripartição do Poder do Estado é conferido ao Poder Judiciário a missão de dizer o direito e pacificar os conflitos com a prestação jurisdicional.
Das penas corporais o Direito Penal “evoluiu” para a pena privativa de liberdade. As mais diversas condutas desviantes (delitos) têm como “remédio” a pena privativa de liberdade.
O Estado tem o monopólio da força e o Ministério Público é eleito a ser a parte adversa ao infrator, sendo a vítima deixada a margem do processo cujo o seu bem jurídico foi violado. Primeiro o Estado retira da vítima o seu “direito de punir” o agente violador do seu bem jurídico e depois ela é colocada de lado no processo.
Tal sistema de administração da justiça criminal mencionado acima provocou consequências como encarceramento em massa e o questionamento quanto a efetividade e necessidade do atual sistema de administração dos conflitos.
Por um lado, a vítima não é restaurada em seu bem jurídico violado, o infrator sofre as mazelas do sistema de justiça criminal e o Estado não consegue cumprir os fins almejados da pena, prevenção e retribuição.
É nesse caldo histórico social que a Justiça Restaurativa se apresenta como uma forma alternativa na administração dos conflitos que pode ser utilizada de forma alternativa ou cumulativamente com o sistema de justiça tradicional.
Aparentemente a Justiça Restaurativa pode dá a entender que é uma pratica nova, todavia a sua base existencial acompanha o homem desde os tempos mais remotos da humanidade, nesse sentido que:
A Justiça Restaurativa não é criação da modernidade ou pós-modernidade, já que a restauração é um processo existente nas mais antigas sociedades e ainda vigente em diversos sistemas sociais e comunitários. Na modernidade, o Estado, dentro da estrutura atual, foi concebido deitando suas raízes em Hobbes, Rousseau e Locke e a concentração da resolução dos conflitos com a razão iluminista, sepultou qualquer forma de resolução de litígio por método não científico. (SALIBA, 2009, p. 146 apud BITTENCOURT, 2017).
Do contexto histórico apresentado acima percebe-se que a Justiça Restaurativa, ainda que não utilizada como principal sistema de resolução de conflito, acompanha a humanidade desde os seus primórdios.
No Brasil a Justiça Restaurativa ganhou maior relevância com aprovação da Resolução nº 225 de 31/05/2016 pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Tal Resolução dispôs sobre a Política Nacional de Justiça Restaurativa no âmbito do Poder Judiciário. O art. 1º da Resolução nº 225/2016 do CNJ conceitua Justiça Restaurativa nos seguintes termos:
Art. 1º. A Justiça Restaurativa constitui-se como um conjunto ordenado e sistêmico de princípios, métodos, técnicas e atividades próprias, que visa à conscientização sobre os fatores relacionais, institucionais e sociais motivadores de conflitos e violência, e por meio do qual os conflitos que geram dano, concreto ou abstrato, são solucionados de modo estruturado na seguinte forma:
I – é necessária a participação do ofensor, e, quando houver, da vítima, bem como, das suas famílias e dos demais envolvidos no fato danoso, com a presença dos representantes da comunidade direta ou indiretamente atingida pelo fato e de um ou mais facilitadores restaurativos;
II – as práticas restaurativas serão coordenadas por facilitadores restaurativos capacitados em técnicas autocompositivas e consensuais de solução de conflitos próprias da Justiça Restaurativa, podendo ser servidor do tribunal, agente público, voluntário ou indicado por entidades parceiras;
III – as práticas restaurativas terão como foco a satisfação das necessidades de todos os envolvidos, a responsabilização ativa daqueles que contribuíram direta ou indiretamente para a ocorrência do fato danoso e o empoderamento da comunidade, destacando a necessidade da reparação do dano e da recomposição do tecido social rompido pelo conflito e as suas implicações para o futuro. (BRASIL, 2016).
Do conceito de Justiça Restaurativa extrai-se que ela é conjunto ordenado e sistêmico de princípios, métodos, técnicas e atividades próprias que traz como agentes centrais o ofensor, a vítima e a comunidade que por meio do diálogo e outras técnicas vão construir a solução para aquele conflito no caso concreto. Destacamos que o Conselho Nacional de Justiça está empenhado para expandir, implementar e efetivar as práticas de Justiça Restaurativa (BRASIL, 2020).
Perceba que meios e os resultados almejados da Justiça Restaurativa são construídos pelo ofensor, pela vítima e pela comunidade em cada caso concreto. Exigindo assim uma atuação ativa das partes envolvidas, o que pode acarretar em dificuldades de diálogos e entendimento que precisam ser contornados, nesse sentido Bittencourt (2017, n.p) destaca que:
Levadas em consideração, tais dificuldades demonstram, claramente, que a justiça restaurativa não lança mão de processo mais “fácil”’ de resolução do conflito, mas sim, de uma metodologia mais ampla e complexa que avança na gênese humana, nos sentimentos; traz fenômenos, caso a caso, muito mais complexos à tona e analisa-os com profundidade jurídica, psicológica e até psiquiátrica.
Conforme ressaltado acima, a Justiça Restaurativa não é o “caminho” mais “fácil” para buscar a solução dos conflitos, porém é uma forma holística que busca analisar a singularidade de cada caso concreto para a partir daí convidar os envolvidos no conflito a construir uma solução para o mesmo.
Inobstante os institutos jurídicos de justiça penal negociada abordados anteriormente como a transação penal, a suspensão condicional do processo, a colaboração premiada e o ANPP, a Justiça Restaurativa tem um potencial incrível a ser desenvolvida nesse campo do controle social formal, nesse sentido Bittencourt (2017, n.p) ressalta que:
Colocados todos esses aspectos, temos que a difusão da justiça restaurativa no direito brasileiro vem sendo erigida sobre novos interesses e valores que surgiram na seara jurídica, que nos demonstraram a urgência de se questionar as limitações do sistema penal atual e a necessidade de buscar, com embasamento científico, alternativas mais humanas e adequadas. Em análise última, é exatamente esse o grande mérito da justiça restaurativa, vale dizer, alcançar, em muitos casos, a pacificação das relações sociais de forma mais efetiva, a partir da ideia de atendimento dos indivíduos diretamente afetados para recolocá-los em uma circunstância melhor do que a crise em que se encontram, alça-los a uma situação ideal, desejada não só para eles, mas por todos os sujeitos de direito tutelados pelo ordenamento. E isso se faz, neste particular, por meio do atendimento tanto do agressor quanto da vítima.
Nesse sentido, a Justiça Restaurativa não é um modelo pronto de solução de conflitos sociais e sim um modelo em constate mutação e construção para atender os anseios das partes envolvidas pautada nos direitos e garantias fundamentais. Sendo que a solução do problema é elaborada pelos seus destinatários e não um terceiro (juiz).
No final do processo com a sentença judicial geralmente não se pacifica aquele conflito, apenas o transfere para uma coisa julgada, a vontade das partes é substituída pela vontade da lei externada pelo juiz, todavia, o conflito ainda subsiste. Por outro lado, o enfoque principal da Justiça Restaurativa é na resolutividade efetiva do conflito por isso que as partes são convidadas para reconhecerem o problema/conflito e justas buscarem a solução para ele.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A história da humanidade é marcada por avanços e retrocessos, com o Direito Penal não é diferente. Novas legislações e institutos jurídicos podem significar avanços e/ou retrocessos no marco fundamental do ordenamento jurídico brasileiro, a Constituição Federal de 1988. Isso se deve a complexidade das relações sociais que tem seus reflexos no ordenamento jurídico.
A complexidade e a evolução das relações sociais exigem uma constante atualização do ordenamento jurídico e de seus institutos. Nessa perspectiva, com a instituição do Estado moderno e o controle social por meio do Direito Penal este sofreu grandes transformações ao longo do tempo. Uma das perspectivas de transformação do Direito Penal é a justiça penal negociada que tem suas facetas positivas e negativas.
Quanto ao acordo de não persecução penal podemos afirmar que sua origem histórica no Brasil demonstra que este instituto foi gestado pelos membros do Ministério Público e aprovado pelo Congresso Nacional com pequenas alterações. Mesmo havendo discursões quanto a sua natureza jurídica e a constitucionalidade de alguns requisitos, entendemos que foi um avanço na otimização da prestação jurisdicional.
Em contrapartida, para equilibrar a balança da justiça, à atuação da defesa técnica durante toda a investigação criminal é essencial para evitar que o acordo de não persecução penal seja utilizado como barganha pelo Ministério Público. Assim, o acordo de não persecução penal é uma faca de dois gumes evidenciando-se em suas facetas positivas e negativas.
Quanto a possibilidade do acordo de não persecução penal impactar na redução da população carcerária entendemos que tal instituto tem baixo impacto tendo em vista que as situações abrangidas pelo acordo de não persecução penal seriam abarcadas pela substituição da pena privativa de liberdade por restritivas de direito, além da incidência dos outros institutos da justiça penal negociada.
Nessa perspectiva de justiça penal negociada, a Justiça Restaurativa demonstra um grande potencial a ser desenvolvido na medida em que o ofensor, a vítima e a comunidade são atores centrais na construção da solução do conflito no caso concreto. Todavia, a Justiça Restaurativa também mostra as suas facetas positivas e negativas na busca da solução do conflito.
Desse modo, entendemos que, em alguns casos, as propostas despenalizantes podem ser benéficas para o autor da infração e desfavoráveis para a vítima ofendida, bem como as referidas propostas podem ser ineficazes e inconsistentes. É inequívoco que evitar o prolongamento da lide com a solução simples e rápida do conflito é uma grande benesse, porém não podemos afirmar que isso acarreta na redução da criminalidade, mas sim como uma grande perspectiva a ser desenvolvida e aprimorada no âmbito da Justiça Criminal.
Todas essas considerações sobre as facetas da justiça penal negociada, por si só, não são capazes de trazer avanços sociais na promoção dos direitos humanos se não vierem acompanhadas de capacitação e mudança do paradigma de atuação dos operadores do sistema de justiça tradicional como juízes, promotores, advogados, defensores públicos, serventuários, delegados e as policias civis e militares.
REFERÊNCIAS
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AVENA, Norberto. Processo penal. – 12. ed., – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2020.
BETTA, Emerson de Paula. A retroatividade do ANPP: impossibilidade de limitação temporal. Revista Consultor Jurídico, 26 de janeiro de 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-jan-26/tribuna-defensoria-retroatividade-anpp-impossibilidade-limitacao-temporal. Acesso em: 30 maio 2021.
BITTENCOURT, Ila Barbosa. Justiça restaurativa. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Teoria Geral e Filosofia do Direito. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga, André Luiz Freire (coord. de tomo). 1. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017. Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/138/edicao-1/justica-restaurativa. Acesso em: 31 maio 2021.
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Advogado graduado pelo Instituto Camillo Filho (ICF), pós-graduando em Direito Civil e Processo Civil pela Escola do Legislativo da ALEPI, pós-graduando em Direito Penal e Processo Penal pela Escola Superior de Advocacia (ESA - OAB-PI).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FILHO, FRANCULINO JOSÉ DA SILVA. Acordo de não persecução penal e as facetas da justiça penal negocial Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 08 jun 2022, 04:18. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/58619/acordo-de-no-persecuo-penal-e-as-facetas-da-justia-penal-negocial. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Gabrielle Malaquias Rocha
Por: BRUNA RAFAELI ARMANDO
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