RESUMO: Este artigo tem como objetivo analisar o conceito do crime de furto, suas modalidades e a controvérsia doutrinária e jurisprudencial existente a respeito da aplicabilidade ou não da majorante do repouso noturno ao furto qualificado. O estudo foi realizado como forma de ensejar a discussão sobre a recente superação jurisprudencial por parte do Superior Tribunal de Justiça, no que tange à inaplicabilidade da causa de aumento do repouso noturno ao furto qualificado, contribuindo para elucidação da ratio decidendi empregada pelo Tribunal no julgamento do Tema nº 1087 e esclarecendo acerca da aplicação do entendimento às instâncias ordinárias. O método dedutivo foi utilizado no trabalho, tendo sido realizada pesquisa bibliográfica e jurisprudencial sobre o tema em foco. Ao final, observou-se que o overruling realizado pelo STJ pode demonstrar, finalmente, uma tendência jurisprudencial em afastar o indevido bis in idem e a violação aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade que decorrem da aplicação cumulativa entre a majorante e as qualificadoras, em que pese não haja, até o presente momento, posição pacificada no Supremo Tribunal Federal.
Palavras-chave: crimes patrimoniais; furto qualificado; repouso noturno; inaplicabilidade; Superior Tribunal de Justiça.
SUMÁRIO: INTRODUÇÃO. 1. O CRIME DE FURTO: PREVISÃO LEGAL, NATUREZA JURÍDICA E CARACTERÍSTICAS. 2. A QUESTÃO TOPOGRÁFICA ENQUANTO TESE DEFENSIVA. 3. O ENTENDIMENTO DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA ANTERIORMENTE AO JULGAMENTO DO TEMA Nº 1087. 4. O OVERRULING JURISPRUDENCIAL DO STJ E A ATUAL INAPLICABILIDADE DA MAJORANTE DO §1º AO FURTO QUALIFICADO (§4º). CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS.
INTRODUÇÃO
Inicialmente, é importante destacar que há, no Código Penal Brasileiro, título específico prevendo os Crimes contra o Patrimônio, já que esses diferem-se de outras espécies delituosas com base no bem jurídico tutelado, o qual é, em última análise, o patrimônio, ainda que, eventualmente, possa atingir a outros bens de maneira reflexa.
Sendo assim, os delitos patrimoniais consistem em condutas típicas, ilícitas e culpáveis, nas quais há a prática de atos direcionados ao atingimento da propriedade privada e, geralmente, possuem um potencial ofensivo reduzido, relacionando-se à criminalidade desorganizada e à sua obra tosca, reforçando estereótipos de classe, gênero e raça e contribuindo, em grande medida, para a manutenção da seletividade do sistema penal.
Nesse sentido, as agências de controle social formal possuem uma clientela preferencial muito bem definida e acabam direcionando seu poder punitivo a esse público, utilizando-se, para tanto, de movimentos sociais e criminológicos de aumento do poder punitivo - tais como a Lei e Ordem e a Tolerância Zero - que buscam majorar as penas abstratamente cominadas aos delitos, endurecer regimes de cumprimento de pena e dificultar o gozo de benefícios da execução penal, como se essa estratégia pudesse efetivamente reduzir significativamente a criminalidade tosca.
Desse modo, há uma ampla previsão legal sobre causas de aumento de pena, qualificadoras e até mesmo circunstâncias que tornam a natureza jurídica dos delitos em hedionda – refletindo, assim, em todo o regime de execução penal – no que se refere aos crimes patrimoniais, tais como no furto, no roubo, na extorsão e no estelionato, ensejando, não raras vezes, punições que fogem ao razoável.
Sendo assim, o presente artigo buscará analisar a possibilidade (ou não) de cumulação entre a causa de aumento de pena do repouso noturno e as qualificadoras previstas para o furtoe o entendimento dos Tribunais Superiores a respeito.
1. O CRIME DE FURTO: PREVISÃO LEGAL, NATUREZA JURÍDICA E CARACTERÍSTICAS
O crime de furto está previsto no artigo 155 do Código Penal, dentro do título dos Crimes contra o Patrimônio, demonstrando essa natureza jurídica, devido ao bem jurídico que visa atingir, e possui, via de regra, a ação penal de natureza pública incondicionada[1].
Traduz-se em uma conduta que objetiva a subtração de coisa alheia – que é a pertencente a outrem[2] - móvel – aquela que pode ser removida sem sua desnaturação[3] - sem o emprego de violência ou grave ameaça, com o elemento subjetivo do tipo dividindo-se em geral – animus furandi, ou seja, dolo de furtar – e específico - animus rem sbihabendi, o qual reside no fim de assenhoramento definitivo do bem, motivo pelo qual o furto de uso é considerado fato atípico, já que carece do dolo específico em questão.
Observa-se que o delito difere-se do roubo, previsto no art. 157 do CP, pois este pressupõe o emprego de violência ou grave ameaça para consecução do resultado.
Ademais, ressalta-se que, de acordo com a doutrina majoritária[4] e a jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, adota-se, no ordenamento jurídico brasileiro, a teoria da apprehensio (amotio), segundo a qual o furto se consuma no momento em que cessa a clandestinidade por parte do agente - quando esse consegue deslocar o bem do local onde se encontrava, ainda que seja imediatamente perseguido e preso, sendo desnecessárias a posse mansa e pacífica e a retirada da esfera de vigilância da vítima.
Outrossim, a previsão legal do furto conta com privilegiadora, qualificadoras e majorante, dentre as quais buscar-se-á analisar mais detidamente a que decorre do repouso noturno, prevista no §1º do art. 155 do CP, e o furto qualificado, previsto no §4º do mesmo dispositivo, verificando sua (in)compatibilidade.
Quanto à causa de aumento de pena em questão, deve-se observar que incidirá na terceira fase da dosimetria penal, majorando a pena em um terço se o crime é praticado durante o repouso noturno – período da noite no qual, via de regra, as pessoas recolhem-se para dormir, pressupondo uma debilidade de vigilância e facilidade para execução do delito.
Por sua vez, os incisos previstos no §4º do art. 155 – quais sejam: a destruição ou rompimento de obstáculo; o abuso de confiança, a fraude, a escalada ou a destreza; o emprego de chave falsa; ou mediante o concurso de duas ou mais pessoas – qualificarão o delito, cominando-se pena mais gravosa a tais hipóteses (reclusão de dois a oito anos).
Diante do exposto, percebe-se que a aplicação cumulativa entre os parágrafos mencionados conduz à pena excessivamente elevada e manifestamente desproporcional, razão pela qual começou a ser questionada nos Tribunais.
2. A QUESTÃO TOPOGRÁFICA ENQUANTO TESE DEFENSIVA
A despeito da questão controversa sobre a inaplicabilidade da majorante do repouso noturno ter restado unanimamente decidida no julgamento do Tema nº 1087 do STJ, em sede de recursos repetitivos, há muito já era amplamente discutida em sede doutrinária e jurisprudencial.
Uma das principais teses para sua inaplicabilidade residia justamente na questão topográfica dentro do Código Penal. Isso porque a causa de aumento de pena foi inserida em parágrafo anterior ao que dispõe sobre as qualificadoras, posibilitando o desenvolvimento de tese defensiva segundo a qual tal fato denotava uma clara intenção do legislador em afastar a aplicação da majorante a essa modalidade delituosa.
A despeito dessa corrente doutrinária, existia outra que alegava que a divergência topógráfica decorria meramente de uma questão de organização textual.
Certo é que a discussão era bastante controvertida, com decisões jurisprudenciais em ambos os sentidos, embora a tese da questão topográfica não prevalecesse na prática, conforme entendeu o Supremo Tribunal Federal no julgamento do Habeas Corpus nº 130.952, julgado em 2016.
Não convence a tese de que a majorante do repouso noturno seria incompatível com a forma qualificada do furto, a considerar, para tanto, que sua inserção pelo legislador antes das qualificadoras (critério topográfico) teria sido feita com intenção de não submetê-la às modalidades qualificadas do tipo penal incriminador.
Se assim fosse, também estaria obstado, pela concepção topográfica do Código Penal, o reconhecimento do instituto do privilégio (CP, art. 155, § 2º) no furto qualificado (CP, art. 155, § 4º) -, como se sabe, o Supremo Tribunal Federal já reconheceu a compatibilidade desses dois institutos.
Inexistindo vedação legal e contradição lógica, nada obsta a convivência harmônica entre a causa de aumento de pena do repouso noturno (CP, art. 155, § 1º) e as qualificadoras do furto (CP, art. 155, § 4º) quando perfeitamente compatíveis com a situação fática.
STF. 2ª Turma. HC 130952, Rel. Min. Dias Toffoli, julgado em 13/12/2016[5].
A partir dessa controvérsia recorrente surgiu a necessidade de afetação do Tema n° 1087 do STJ, visando à pacificação da questão.
3. O ENTENDIMENTO DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA ANTERIORMENTE AO JULGAMENTO DO TEMA Nº 1087
Anteriormente à decisão sobre o tema ora tratado, o STJ possuía diversos precedentes que sustentavam que a aplicação da causa de aumento de pena no furto qualificado justificava-se tão somente pelo cometimento do delito no período noturno, já que haveria uma maior facilidade para seu sucesso em razão da precariedade da vigilância nesse momento, sendo irrelevante apurar se as vítimas de fato encontravam-se dormindo ao tempo do fato ou em qual local o crime ocorreu.
Para a configuração da circunstância majorante do § 1º do art. 155 do Código Penal, basta que a conduta delitiva tenha sido praticada durante o repouso noturno, dada a maior precariedade da vigilância e a defesa do patrimônio durante tal período e, por consectário, a maior probabilidade de êxito na empreitada criminosa, sendo irrelevante o fato das vítimas não estarem dormindo no momento do crime, ou, ainda, que tenha ocorrido em estabelecimento comercial ou em via pública, dado que a lei não faz referência ao local do crime.
STJ. 5ª Turma. AgRg-AREsp 1.746.597-SP, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 17/11/2020.
STJ. 6ª Turma. AgRg nos EDcl no REsp 1849490/MS, Rel. Min. Antonio Saldanha, julgado em 15/09/2020.
Alegavam ainda que, por se tratar de circunstâncias aplicáveis em momentos diferentes da dosimetria penal, não haveria de se falar em indevido bis in idem na cumulação entre as duas.
Ademais, a tese defensiva da incompatibilidade decorrente da posição topográfica da majorante do § 1º também não encontrava expressiva aceitação jurisprudencial, sendo considerada absolutamente minoritária.
Nesses termos entendeu o STF, em sede de julgamentos de Habeas Corpus[6], quando fixou a legitimidade da incidência da causa de aumento de pena por crime cometido durante o repouso noturno no caso de furto praticado na forma qualificada.
No entanto, em virtude de ampla irresignação defensiva, a questão seguiu sendo contestada nos Tribunais, fazendo com que, em virtude dos princípios da economia processual, da celeridade, da eficiência e da segurança jurídica, surgisse a necessidade de afetar-se o tema para ser julgado em sede de recuros repetitivos.
4. O OVERRULING JURISPRUDENCIAL DO STJ E A ATUAL INAPLICABILIDADE DA MAJORANTE DO §1º AO FURTO QUALIFICADO (§4º)
Na última quarta feira, 25/05/2022, o STJ finalmente julgou o Tema n° 1087, decidindo, acertadamente, que não é possível a incidência da majorante do repouso (art. 155,§1°, do CP) noturno em furtos qualificados (art. 155, §4º, do CP), devendo a decisão ser necessariamente observada pelas instâncias ordinárias e representando verdadeiro overruling, ou superação jurisprudencial, uma vez que, até então, os Tribunais Superiores entendiam de maneira contrária.
O voto do relator, Ministro João Otávio de Noronha - que considerou o aumento de pena nessas circunstâncias apto a ensejar punições desproporcionais – foi unanimamente acatado pelos demais Ministros do STJ.
Desse modo, a inaplicabilidade da majorante ao furto qualificado não foi rechaçada pela tese da posição topográfica, mas sim pelo fato de que as duas hipóteses decorrem, em verdade, do mesmo motivo.
Ora, o furto praticado durante o repouso noturno é punido mais gravemente porque diminui a capacidade de vigilância da vítima e amplia a possibilidade de sucesso da empreitada criminosa, enquanto as qualificadoras, quaisquer que sejam, atuam de maneira similar, uma vez que o resultado será o mesmo: ocasionarão uma facilidade maior para a subtração do bem.
Sendo assim, punir o agente duas vezes por sua intenção de reduzir a vigilância da vítima e facilitar a subtração do bem enseja o vedado bis in idem, além de também conduzir à aplicação de uma pena manifestamente desproporcional se fixada de per si – sem a análise de circunstâncias do caso concreto que, eventualmente, permitam a exasperação da pena.
De qualquer modo, o Tribunal ressalvou que na hipótese do fato de a conduta ser cometida a noite gerar concretamente uma maior gravidade ao crime, essa circunstância deverá ser sopesada pela autoridade judiciária como uma circunstância judicial negativa, capaz, tão somente, de aumentar a pena-base na primeira fase da dosimetria penal, nos termos do art. 59 do Código Penal.
CONCLUSÃO
Após a análise sobre o crime de furto e considerando os efeitos penais estigmatizantes e desproporcionais que decorrem da aplicação cumulativa entre a majorante do repouso noturno e das qualificadoras, conclui-se que a mudança jurisprudencial adotada pelo Superior Tribunal de Justiça não apenas foi acertada, como também se fazia necessária para se coadunar com princípios básicos do processo penal democrático, tais como o da proporcionalidade, da razoabilidade, da individualização da pena e da vedação às penas perpétuas, conforme previsão no art. 5º, XLVI e XLVII, alínea b, da Constituição Federal.
Ademais, a despeito de, até o presente momento, o Supremo Tribunal Federal só ter apreciado o tema em sede de Habeas Corpus individuais, na prática o entendimento cunhado pelo STJ no julgamento do Tema nº 1087 prevalecerá, tendo em vista que essa decisão tem caráter mais favorável ao réu, de modo que o Ministério Público não conseguirá suscitar a discussão e posterior pacificação no STF, já que, por inexistir afronta direta à Constituição no caso, é incabível a interposição de Recurso Extraordinário.
Sendo assim, na realidade, a decisão tomada em 25/05/2022 possui, verdadeiramente, um caráter de definitividade sobre o tema – ao menos até então – devendo ser acatado pelas instâncias ordinárias e, assim, servindo para evitar penas desproporcionais e desarrazoadas e possibilitando a sua efetiva individualização.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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[1] Poderá ser também de natureza privada subsidiária da pública em havendo inércia por parte do órgão acusatório e interesse do ofendido, nos termos do art. 29 do Código de Processo Penal.
[2] A coisa sem dono (res nullius) e a coisa própria não podem ser objeto de furto. In: SALIM, Alexandre; DE AZEVEDO, Marcelo André. Direito Penal – Parte Especial – Dos Crimes contra a Pessoa aos Crimes contra a Família. Volume 2. 9. ed. rev. e atual. Salvador: Editora Juspodivm, 2020, p. 260.
[3] Ibidem, p. 261.
[4] SANCHES, Rogério Cunha. Manual de Direito Penal - Parte Especial (Arts. 121 ao 361). Volume Único. 9. ed. rev. e atual. Salvador: Editora Juspodivm, 2017.
[5] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, STF. Habeas Corpus n° 130.952/MG, Rel. Min. Dias Toffoli, julgado em 13/12/2016. Disponível em: https://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/772644896/habeas-corpus-hc-130952-mg-minas-gerais-0007605-8320151000000/inteiro-teor-772644906?ref=juris-tabs. Acesso em: 30/05/2022.
[6] Ibidem.
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, STJ. 6ª Turma. Habeas Corpus n° 306450-SP, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 4/12/2014. Disponível em: https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/865097634/habeas-corpus-hc-306450-sp-2014-0260612-2. Acesso em: 30/05/2022.
Advogada e servidora pública. Formada em Direito pela Universidade Federal do Pará e pós-graduada em Direito Administrativo pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Possui atuação cível, penal, consumerista e administrativa.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FERNANDA SILVA MARCIãO, . Uma Análise Jurisprudencial sobre a (In)Aplicabilidade da Majorante do Repouso Noturno no Furto Qualificado Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 08 jun 2022, 04:53. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/58620/uma-anlise-jurisprudencial-sobre-a-in-aplicabilidade-da-majorante-do-repouso-noturno-no-furto-qualificado. Acesso em: 22 nov 2024.
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