WIRNA MARIA ALVES DA SILVA
(orientadora)[1]
RESUMO: O presente artigo tem o desígnio dirimir sobre o crime de peculato, seu histórico, conceito, fazendo uma análise da aplicabilidade do princípio da insignificância nos crimes de peculato, sua evolução histórica, mostrar as correntes divergentes de entendimentos do Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal, fazendo uma posição crítica sobre essa aplicabilidade. Em suma, este trabalho busca mostrar a necessidade da aplicação do princípio da insignificância nos crimes cometidos contra a administração pública, fazendo jus a última ratio do direito penal.
Palavras-chave: Peculato, Princípio da Insignificância, Crimes contra a Administração Pública, Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça.
ABSTRACT: This article aims to settle the crime of embezzlement, its history, concept, analyzing the applicability of the principle of insignificance in crimes of embezzlement, its historical evolution, showing the divergent currents of understandings of the Superior Court of Justice and the Supreme Court Federal, taking a critical position on this applicability. In short, this work seeks to show the need to apply the principle of insignificance in crimes committed against the public administration, living up to the last ratio of criminal law.
KEYWORDS: Embezzlement, Principle of Insignificance, Crimes against Public Administration, Federal Supreme Court and Superior Court of Justice.
O presente artigo tem como objetivo analisar a aplicabilidade do princípio da insignificância nos crimes de peculato. Para isso, é necessário entendermos o conceito do princípio da insignificância e os requisitos para sua aplicação. Da mesma forma, o conceito de peculato, sua disposição legal e suas modalidades.
A República Federativa do Brasil se estabeleceu como um Estado Democrático de Direito, tendo uma busca constante de um direito penal, fragmentário e subsidiário, devendo ser invocado somente nas situações onde os demais ramos do direito não se encontrarem hábeis a propiciar pacificação social. Não cabe ao Direito Penal a proteção de todo e qualquer bem, mas sim a menor parcela deles. Sendo selecionado os bens considerados, em tese, mais importantes para ficarem sob a proteção do Direito Penal.
O Direito Penal por ser fragmentário, possui a incidência de alguns princípios, como o princípio da intervenção mínima, da lesividade e da adequação social, que funcionam como norteadores na seleção dos bens que deveram ser protegidos pelo Direito Penal. Com isso, temos também o princípio da insignificância, que a depender do caso, pode afastar a incidência das sanções graves do Direito Penal mesmo que o bem afetado esteja sob a proteção do mesmo.
Dentre os bens selecionados para estarem sob a proteção do Direito Penal, temos a Administração Pública, sendo tanto os bens pertencentes a ela bem como os bens que estão sob seus cuidados. Sendo estabelecido o crime de peculato para atos praticados por funcionário público contra a Administração em geral. Encontra-se disposto no artigo 312 do Código Penal, trazendo quatro modalidades, peculato apropriação, desvio, furto e culposo.
Sendo feito uma análise sobre a possibilidade da aplicação do princípio da insignificância nos crimes cometidos por funcionário público contra a administração em geral, em conjunto com o entendimento do Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal. Visto que, existe uma divergência de entendimento entre os tribunais superiores quanto a aplicabilidade do referido princípio nos crimes de peculato.
Diversos são os delitos previstos em nosso ordenamento jurídico, não sendo diferente no âmbito do Direito Penal, que devido ao seu caráter fragmentário, permite a incidência dos princípios da intervenção mínima, da lesividade e da adequação social, que impõe limite ao Direito Penal, após isso o Direito Penal seleciona os bens fundamentais que passarão a ficar sobre sua proteção. Dentre os bens tutelados como mais importantes e que precisam de uma atenção maior, temos os bens pertencentes ao Estado ou que estão sobre a sua proteção. Sendo tipificados como crime de Peculato ou crimes contra a administração pública.
O crime de peculato surge no direito Romano para definir o momento em que ocorre a subtração por parte do agente do bem pertencente ao Estado. Naquela época, a utilização do termo peculato era diversa do entendimento existente hoje. Desse modo, para que a conduta do agente caracterizasse crime de peculato bastava apenas que qualquer indivíduo (não sendo necessário a vinculação do mesmo com o Estado), subtraísse algum bem pertencente ao Estado. A origem do termo “peculato” vem do Latim, peculium ou pecus. Termo esse que era utilizado antes do surgimento da moeda no formato de peculatos ou depeculatos, a moeda usada no momento eram os animais, como bois e carneiros, representando a maior riqueza do Estado.
Nesse sentido, aduz Cezar Roberto Bitencourt:
O crime de peculato tem suas raízes remotas no direito romano e caracterizava-se pela subtração de coisas pertencentes ao Estado. Essa infração penal recebia o nome de peculatus ou depeculatus, oriundo de período anterior à introdução da moeda, quando os animais (bois e carneiros) destinados ao sacrifício em homenagem às divindades consistiam na riqueza pública por excelência. Na verdade, o gado representava o patrimônio mais importante da sociedade da época, que o utilizava como moeda primitiva. As moedas, na sua origem, eram confeccionadas com pele de animais e só posteriormente passaram a ser cunhadas em metal, com a imagem de um boi (BITENCOURT, 2021, p.51)
Assim, é possível afirmar que o animal representa o bem mais importante daquela época, sendo utilizado inclusive como moeda primitiva. As penas adotadas eram severas, consistiam em trabalhos pesados em minas, podendo chegar à pena de morte. Esse tipo de sanção perdurou até a Idade Média e teve sua aparição no Brasil em 1830, por meio das Ordenações Filipinas. Somente no Código Penal de 1940 que chega à definição do crime de peculato, sem diferenciar os bens públicos dos particulares.
No âmbito do Direito Penal possuímos os crimes contra a administração pública praticados por funcionário público. Tal delito está disposto no artigo 312 do Código Penal que diz: “Apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou desvia-lo em proveito próprio ou alheio”, conhecido como Peculato.
O crime de peculato de peculato consiste na conduta delituosa praticada pelo agente (funcionário público ou terceiro que age em conjunto com o funcionário público) na intenção de se apropriar, desviar, furtar ou que negligência seu dever de cuidado.
O artigo 37 da Constituição Federal de 1988 diz: “A administração pública direta ou indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade e eficiência”. Os mencionados princípios fazem parte dos cincos princípios da Administração Pública (LIMPE). O princípio da legalidade fala do cumprimento da lei (lei acima dos interesses privados), o da impessoalidade é o tratamento igualitário (não deve existir discriminações entre os cidadãos e cidadãs), o da moralidade diz que deve seguir os princípios éticos previstos pela lei (obrigação dos funcionários públicos de agirem com ética) na publicidade deve haver a prestação de contas por parte dos agentes públicos para com a população (agindo com transparência) e a eficiência fala da boa gestão ou boa administração.
Se tratando do bem jurídico penalmente protegido, temos o patrimônio ou a própria administração pública. A proteção dos bens pertencentes a administração pública está ligada a diversos fatores, como preservação do erário público, a boa funcionalidade da administração pública, a probidade administrativa por parte dos funcionários públicos.
Nesse sentido, aduz Cezar Roberto Bitencourt:
A existência abstrata ou concreta de um crime — contra a Administração Pública — pressupõe a realização de uma conduta imoral, ainda que nem toda imoralidade possa, por si só, caracterizar um delito. Pode-se afirmar, com base nisso, que a prática de peculato caracteriza crime, em primeiro lugar, por uma lei específica prever a possibilidade de punição (art. 312 do CP), mas essa lei só resta legitimada porque o peculato ofende princípios fundamentais do pacto social democrático. Um servidor, por exemplo, que "desvia verbas, em proveito próprio ou alheio, pratica ato de improbidade administrativa, pois, além de lesar o patrimônio do erário público, ofende os princípios gerais da Administração Pública (BITENCOURT, 2021, p.57)
Desta forma, a conduta delituosa do agente fere com os princípios constitucionais da administração pública (LIMPE) e com a moral administrativa do Estado.
Quanto ao sujeito ativo do crime de peculato, temos o funcionário público que de acordo com o próprio artigo 312 do Código Penal diz que em regra o crime de peculato só poderá ser cometido por funcionário público, havendo exceção. Que prevê a prática de peculato furto por outra pessoa (particular) que não possui a qualidade especial de funcionário público, mas que passa a responder por tal delito caso pratique conduta em conjunto com funcionário público. Dessa forma, é necessário que pelo menos um dos autores reúna a condição especial de funcionário público, podendo os demais não possuir tal qualidade. É indispensável, contudo, que o particular (extraneus) tenha consciência da qualidade especial do funcionário público, sob pena de não responder pelo crime de peculato (BITENCOURT, 2021, p.59).
Caso isso ocorra, haverá concurso de agentes entre o funcionário público e o particular (quem praticou a subtração do bem público), pois a consumação necessita da ação conjunta de ambos. É necessário que o funcionário público faça uso da vantagem que possui através do seu cargo para a realização da conduta e que o particular que não possui vínculo com a administração pública tenha conhecimento da qualidade de funcionário público. Assim, caso um dos autores não tenha a qualidade de funcionário público ou o particular que praticou o fato não tenha conhecimento dessa qualidade não responderá pelo crime de peculato.
STF, “Crime próprio, que admite participação” (Inq 3634-DF, 2.ª T., rel. Gilmar Mendes, 02.06.2015, v.u). Ainda: STJ “A descrição de conduta de conselheiro de tribunal de contas que, no exercício da presidência, em conjunto com servidores, saca e se apropria de vultosas quantias em espécie oriundas do próprio tribunal preenche o tipo do peculato-apropriação (art. 312, caput, 1.ª parte, do CP)” (APn 702-AP, Corte Especial, rel. João Otávio de Noronha, 03.06.2015, v.u.) (NUCCI, 2019, p.1432).
O sujeito passivo é o Estado, é o titular do bem jurídico protegido. No caso do bem protegido pode entrar o bem que estava em poder do Estado (em seus cuidados) e sofreu a lesão, nesse caso proprietário do bem móvel será o sujeito passivo.
Um exemplo seria um indivíduo que teve alguns bens apreendidos, dentre eles um automóvel, que passa a ficar em poder e cuidados do Estado, na garagem de uma delegacia. Um funcionário público subtrai o automóvel utilizando-se da qualidade especial que possui. Nesse caso, o sujeito será o Estado e o titular (proprietário) do bem.
Conforme leciona Cezar Roberto Bitencourt:
Na realidade, o Estado é sempre sujeito passivo primário de todos os crimes, desde que avocou a si o monopólio do ius puniendi, daí o caráter público do direito penal que somente tutela interesses particulares pelos reflexos que sua violação acarreta na coletividade. Com efeito, a lei penal protege, em primeiro plano, o interesse da ordem jurídica geral, cujo titular é o Estado e, secundariamente, o interesse do particular (BITENCOURT, 2021, p.60)
Desta forma, o sujeito passivo nos crimes cometidos contra a administração pública sempre vai ser o Estado, contudo, sempre que o bem de algum particular for lesado será o titular do bem o sujeito passivo secundário, havendo dupla ofensa aos bens jurídicos protegidos.
Encontra-se na primeira parte do artigo 312 do Código Penal, que prevê a apropriação por parte do funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tenha posse em razão do cargo. Segundo diz Greco que a conduta com o verbo apropriar necessita ser compreendida no sentido de assumir assim como propriedade, receber para si, apossar-se forma indevidamente o dinheiro, valor, ou algum diferente bem móvel, público ou particular, de que tem a posse ou detenção, em razão do cargo.
Para se configurar peculato apropriação, é necessário que além da realização da conduta do agente (funcionário público), que o mesmo pratique a conduta se valendo da sua condição de funcionário público.
Sobre o assunto, diz Cezar Roberto Bitencourt:
O objeto material da ação penal tipificada deve ser dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que o agente tem a posse (abrangendo a detenção e a posse indireta, desde que lícita) em razão do cargo (ratione officii). A exemplo do que ocorre com a apropriação indébita, o funcionário público apodera-se do objeto material que se encontra em sua posse, agindo como se proprietário fosse praticando atos de animus domini (BITENCOURT, 2021, p.70)
Assim, no peculato apropriação existe a inversão do ânimo sobre o objeto, o funcionário que tem a posse do bem em razão do cargo passa a se comportar como se o bem fosse seu.
A segunda parte do caput do artigo 312 do Código Penal trata do peculato-desvio. Modalidade que se configura pelo desvio de um bem móvel sendo este dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tenha posse em razão do cargo.
Diz o Cezar Roberto Bitencourt em sua obra:
O verbo núcleo desviar tem o significado, neste dispositivo legal, de alterar o destino natural do objeto material ou dar-lhe outro encaminhamento, ou, em outros termos, no peculato-desvio o funcionário público dá ao objeto material aplicação diversa da que lhe foi determinada, em benefício próprio ou de outrem (BITENCOURT, 2021, p.76)
Desta forma, o agente utilizando-se da qualidade de funcionário público, desvia o bem dando um final diferente da destinação original. Esse desvio deve ser para benefício próprio ou de terceiros, caracterizando o elemento subjetivo especial do tipo.
Encontra-se previsto no primeiro parágrafo do artigo 312 do Código Penal. O peculato furto apresenta de imediato uma diferença entre o peculato apropriação e o peculato desvio, devido o funcionário público não ter a posse do bem, diferente do peculato apropriação e desvio. No peculato furto, o funcionário público não tem a posse do bem, mas subtrai ou age para que outro agente o subtraia para benefício próprio ou alheio.
A conduta típica não é mais de apropriação e sim de subtração (furto). O sujeito ativo não tem a posse da res nem o crime ocorre em virtude de sua função, mas aproveita-se ele da facilidade que a condição de funcionário lhe concede para praticar a conduta. Essa qualidade não é causa do resultado, mas se revela em ocasião para a sua ocorrência. Ausente a facilidade criada pelo exercício do cargo e função não ocorre o peculato, mas simples furto (MIRABETE, 2015, p.288).
Necessariamente deve existir um funcionário público que pratique tal delito utilizando-se da qualidade de servidor público, que o mesmo faça isso para benefício próprio ou para benefício de outrem, ou age para que outro agente (particular) que não possui a qualidade de funcionário público subtraia o bem também para benefício próprio ou alheio, devendo o particular ter a ciência da qualidade de funcionário público do agente.
Assim, se houver a participação de um particular conforme dito anteriormente haverá concurso de agentes entre o particular que subtraiu o bem e o funcionário público, passando o particular a responder por peculato mesmo não tendo a qualidade de funcionário público.
Previsto no segundo parágrafo do artigo 312 do Código Penal, fala sobre a inobservância do dever de cuidado do funcionário público que é designado para a proteção e segurança do patrimônio da administração pública. O funcionário, por negligência, imprudência ou imperícia, permite que haja apropriação ou desvio (caput), subtração ou concurso (§ 1º) (MIRABETE, 2015, p.289).
No peculato culposo o funcionário público não age diretamente para que o fato ocorra, o fato ocorre pela sua falta de cuidado, o mesmo tem o dever especial de proteção e cuidado com o bem devido a sua negligência permite indiretamente a lesão ao bem protegido. Neste caso o funcionário público responde na modalidade culposa e quem o praticou na modalidade dolosa.
Diante disso, após o entendimento sobre os crimes praticados por funcionário público contra a administração pública em geral, faz-se necessário o entendimento sobre o princípio da insignificância e sua aplicabilidade no referido crime.
4 PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA
Quanto a origem do princípio da insignificância, tem-se dois entendimentos divergentes. A primeira corrente de entendimentos acredita que tal princípio surgiu no Direito Romano antigo, a segunda nega o surgimento do princípio da insignificância no Direito Romano, defendendo que o mesmo surgiu juntamente com o princípio da legalidade, durante o iluminismo, conhecido também como Século das Luzes ou Era da Ilustração.
Porém, o entendimento majoritário afirma que o mencionado princípio surgiu do Direito Romano através do brocado “mínima non curat praetor”. Tal expressão já era utilizada na idade média para dizer que o praetor ou o pretor (magistrado) não deveria se preocupar com questões insignificantes. Ou seja, o magistrado só deveria se preocupar em resolver questões (condutas) que gerassem lesões graves ou afetassem bens realmente importantes, deixando de lado casos insignificantes.
Assim no que diz evolução histórica, versa (DA SILVA, 2006, p. 88):
É quase pacífico doutrinariamente que o princípio da insignificância promana do bocardo mínima non curat praetor; todavia no que tange à origem dessa máxima há controvérsia sobre a sua existência no Direito Romano antigo. Assim, existem duas correntes de entendimento sobre sua origem, e consequentemente do princípio penal sub examem , a saber: a primeira corrente proclama sua existência no Direito Romano antigo (...); a segunda nega sua existência naquele Direito.
O aspecto existente hoje a respeito do princípio da insignificância se dar através de Claus Roxin, que utilizando o brocado “mínima non curat praetor” formulou um entendimento mais amplo sobre o que deveria ser considerado insignificante. Reintroduzindo no ano de 1964, na Alemanha, o princípio de bagatela ou princípio da insignificância.
Desta forma, estabelece o princípio da insignificância que o Direito Penal só deve ser invocado quando houver gravidade na lesão provocada ou no bem jurídico protegido. Inexistindo esse fato, não deve ser utilizado o Direito Penal devido as suas graves sanções. Entendendo que em lesões insignificantes não deve haver a incidência das sanções do Direito Penal, por serem mais severas, sendo utilizado apenas em condutas que afrontem o bem jurídico protegido.
A utilização de tal princípio só é possível devido ao caráter fragmentário do Direito Penal. Para estabelecer os bens que serão protegidos pelo Direito Penal faz-se uso do princípio da intervenção mínima, que vai limitar o poder do Estado de punir. Através desse limite imposto, será definido até onde poderá chegar o Direito Penal, selecionando inclusive, as condutas que serão vistas como socialmente adequadas.
Para que possamos entender melhor o conceito do princípio da insignificância é necessário falarmos sobre o conceito de crime. O crime, em seu conceito analítico, é constituído pelo fato típico, pela ilicitude e pela culpabilidade. Para o reconhecimento do fato típico, é necessário a existência de alguns elementos, sendo eles, conduta (dolosa ou culposa, comissiva ou omissiva), resultado, nexo de causalidade (momento existente entre a conduta e o resultado) e tipicidade (formal e conglobante).
O princípio da insignificância começa a se materializar com o entendimento da tipicidade penal. A tipicidade penal se divide em formal e conglobante, sendo a formal a adequação perfeita da conduta praticada pelo agente com o tipo penal. Já a conglobante, surge da análise de dois elementos, a existência da conduta antinormativa por parte do agente e a existência de lesão ou perigo de lesão ao bem juridicamente protegido, conhecido como tipicidade material.
Diz Greco:
Além da necessidade de existir um modelo abstrato que preveja com perfeição a conduta praticada pelo agente, é preciso que, para que ocorra essa adequação, isto é, para que a conduta do agente se amolde com perfeição ao tipo penal, sea levada em consideração a relevância do bem que está sendo objeto de proteção. Quando o legislador penal chamou a si a responsabilidade de tutelar determinados bens – por exemplo, a integridade corporal e o patrimônio -, não quis abarcar toda e qualquer lesão corporal sofrida pela vítima ou mesmo todo e qualquer tipo de patrimônio, não importando o seu valor (GRECO, 2016, p.113).
Portanto, tem-se o legislador atento quanto a elaboração das leis, se preocupando apenas com condutas que resultem em lesões graves aos bens juridicamente protegidos, deixando de fora do seu amparo aqueles considerados inexpressivos.
Com isso, voltamos a falar sobre o entendimento de Claus Roxin, que vai de encontro com o princípio da fragmentariedade. Tal princípio permite ao Direito Penal a divisão dos bens por ele protegido, trazendo para o âmbito de sua proteção os bens que julgar de mais importância para o bom convívio em sociedade.
Conforme preleciona Assis Toledo:
Segundo o princípio da insignificância, que se revela por inteiro pela sua própria denominação, o direito penal, por sua natureza fragmentária, só vai aonde seja necessário para a proteção do bem jurídico. Não deve ocupar-se de bagatelas (ASSIS TOLEDO, 1994, p.133).
Sobre sua aplicação, o princípio da insignificância não incide sobre todos os tipos penais. Existe a possibilidade de tal aplicação em condutas delituosas contra o patrimônio, administração pública, nos crimes de tráfico de drogas (desde que em pequena quantidade, caracterizando para uso próprio).
Diante disso, podemos concluir que não será possível a aplicação do referido princípio sobre qualquer infração penal, sendo feito a análise de qual delito poderá se beneficiar. Com isso, poderá haver decisões absurdas em delitos que gerem lesões inexpressivas pelo não uso do princípio da insignificância.
5 APLICAÇÃO DO PRINCIPIO DA INSIGNIFICÂNCIA NO CRIME DE PECULATO DE ACORDO COM OS TRIBUNAIS SUPERIORES
5.1 Entendimento do Superior Tribunal de Justiça.
Para o Superior Tribunal de Justiça é inaplicável o princípio da insignificância nos crimes contra a administração pública (Súmula n. 599, Corte Especial, DJe de 27/11/2017). De acordo com o entendimento do STJ não se deve olhar para o valor do bem e sim para a moralidade administrativa que está atrelada a ele.
Conforme o artigo 37 da Constituição Federal de 1988, a Administração pública direta e indireta deve seguir os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, todos esses princípios estão ligados tanto a proteção dos bens públicos como para a boa funcionalidade administrativa.
Deste modo toda ação cometida por funcionário público contra a administração pública constituirá em ser dirigido pelo princípio da moralidade administrativa. Nesta definição Meirelles (2012, p. 90) garante que o agente público, como possuidor de capacidade de atuação deve, fundamentalmente, distinguir o Bem do Mal, o Honesto do Desonesto. Deste modo ao atuar, não poderá desfavorecer o artifício ético do seu procedimento.
AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. CRIME CONTRA A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. PECULATO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. INAPLICABILIDADE. INCIDÊNCIA DO ENUNCIADO N.º 83 DA SÚMULA DO STJ. ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE ORIGEM EM CONSONÂNCIA COM A ORIENTAÇÃO JURISPRUDENCIAL DESTA CORTE SUPERIOR. 1. O aresto objurgado alinha-se a entendimento assentado neste Sodalício no sentido de ser incabível a aplicação do princípio da insignificância aos delitos cometidos contra a Administração Pública, uma vez que a norma visa a resguardar não apenas a dimensão material, mas, principalmente, a moral administrativa, insuscetível de valoração econômica. 2. Incidência do óbice do Enunciado n.º 83 da Súmula do STJ, também aplicável ao recurso especial interposto com fundamento na alínea a do permissivo constitucional. 3. Agravo a que se nega provimento. (STJ - AgRg no AREsp: 572572 PR 2014/0212773-0, Relator: Ministro JORGE MUSSI, Data de Julgamento: 08/03/2016, T5 - QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 16/03/2016)
"[...] PECULATO. [...] PEDIDO DE APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. CRIME CONTRA A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. INVIABILIDADE.
PROTEÇÃO DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA, INSUSCETÍVEL DE VALORAÇÃO ECONÔMICA. [...] É inaplicável o princípio da insignificância aos crimes praticados contra a Administração Pública, pois a norma penal visa resguardar não apenas a dimensão material, mas, principalmente, a moralidade administrativa, insuscetível de valoração econômica (APn n. 702/AP, Ministro João Otávio de Noronha, Corte Especial, DJe 1º/7/2015).
[...]" (AgRg no HC 188151 SP, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR,SEXTA TURMA, julgado em 23/02/2016, DJe 07/03/2016)
Desta forma, temos de acordo com decisão do Superior Tribunal de Justiça o entendimento da inaplicabilidade do princípio da insignificância nos crimes de peculato, devendo o funcionário público prezar sempre pela moralidade administrativa (STJ, 2011, online).
5.2 Entendimento do Supremo Tribunal Federal
O Supremo Tribunal Federal vem com o entendimento totalmente divergente daquele adotado pelo Superior Tribunal de Justiça, entendendo que o princípio da insignificância deve ser reconhecido e adotado nos crimes cometidos contra a administração pública, desde que seja analisado a presença de vetores, tais como: (a) a mínima ofensividade da conduta do agente, (b) a nenhuma periculosidade social da ação, (c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e (d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada.
A segunda turma do Supremo Tribunal Federal já adotou em diversos casos o princípio da insignificância, fazendo a mitigação da Súmula 599 do Superior Tribunal de Justiça.
Neste sentido, o Supremo Tribunal Federal admite a possibilidade da aplicação do princípio da insignificância, desde que sejam analisados a presença dos vetores já mencionados. Porém, quando inexistir a presença dos vetores torna inaplicável o princípio da insignificância como pode ser visto em decisões do Supremo Tribunal Federal.
Ementa: HABEAS CORPUS ORIGINÁRIO. PECULATO-FURTO. CRIME MILITAR. MUNIÇÕES DE USO RESTRITO DAS FORÇAS ARMADAS. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. IMPOSSIBILIDADE. DENÚNCIA QUE PERMITE AO ACUSADO O EXERCÍCIO DA AMPLA DEFESA. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. INVIABILIDADE. RELEVÂNCIA PENAL DA CONDUTA. 1. O acórdão impugnado está em conformidade com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, no sentido de que “o trancamento da ação penal pela via restrita do habeas corpus é medida excepcional, somente admissível quando transparecer dos autos, de forma inequívoca, a inocência do acusado, a atipicidade da conduta ou a extinção da punibilidade” ( RHC 119.607, Rel. Min. Luiz Fux). 2. A denúncia descreve suficientemente os fatos, ao menos em tese, caracterizadores do crime de peculato-furto (art. 303, § 2º, do Código Penal Militar) e está embasada em elementos concretos colhidos no curso do inquérito policial militar. Peça inaugural que permite ao acusado o pleno exercício do direito de defesa. 3. A subtração de munições de uso restrito, de propriedade das Forças Armadas, não permite a aplicação do princípio da insignificância penal. 4. Habeas Corpus indeferido. (STF - HC: 108168 PE, Relator: Min. ROBERTO BARROSO, Data de Julgamento: 19/08/2014, Primeira Turma, Data de Publicação: DJe-170 DIVULG 02-09-2014 PUBLIC 03-09-2014)
Assim, é possível notar que as decisões do Supremo Tribunal Federal ocorrem após a análise de cada caso, mesmo possuindo entendimento favorável quanto a aplicação da insignificância penal e que a ação estatal do Direito Penal só deve ser invocada quando realmente necessário, quando não houver a presença dos vetores não será possível tal aplicação.
O presente estudo verificou que o crime de peculato em regra só será cometido por funcionário público, podendo se caracterizar peculato apropriação, desvio, furto ou culposo. Ainda, que o princípio da insignificância exerce um papel muito importante dentro do direito penal, desafogando o judiciário, fazendo com que o direito penal seja invocado apenas em lesões a bens necessários para o convívio em sociedade e quando os outros ramos do direito não puderem solucionar o problema.
Para falarmos da possibilidade da aplicação do princípio da insignificância no crime de peculato, baseia-se no entendimento entre as cortes superiores, que possuem divergência quanto a isso. Possuindo duas linhas de raciocino uma pelo Superior Tribunal de Justiça e a outra pelo Supremo Tribunal Federal.
Desta forma, o ordenamento jurídico analisa a perspectiva da execução do mencionado princípio nos crimes contra administração pública, mais precisamente no crime de peculato, efetuado unicamente por funcionário público. Não obstante, a harmonia do princípio da insignificância nunca é pacífica, existindo divergências por meio de doutrinadores e pensamentos jurisprudenciais.
Deste modo o tema objeto do presente trabalho de conclusão de curso ainda é controvertido no que fere acerca da aplicação do direito ao fato concreto. Por isso, foi de suma importância se fazer um estudo a respeito do contexto histórico e conceito do princípio da insignificância, além de averiguar qual era a sua natureza jurídico-penal do instituto.
O Superior Tribunal de Justiça entende que não é possível a aplicabilidade do princípio da insignificância nos crimes cometidos contra a administração pública por se tratar da moralidade administrativa. Em contraponto, temos o entendimento do Supremo Tribunal Federal aplicando o princípio da insignificância nos crimes cometidos contra a administração pública desde que seja analisado pontos objetivos e subjetivos sendo eles: o reduzido grau de reprovabilidade do agente, a mínima ofensividade da conduta, inexistência de periculosidade social, maus antecedentes, e habitualidade.
Em suma, a divergência de entendimentos existentes nos tribunais superiores acarreta em uma insegurança jurídica, não existindo lei expressa sobre tal aplicabilidade. Quanto a decisão de não aplicar o referido princípio nos crimes praticados contra a administração pública, quando o bem lesado não causar relevante prejuízo para o erário público, temos o direito penal se preocupando com lesões irrelevantes e sendo utilizado quando outro ramo do direito poderia resolver, gerando decisões diferentes para casos semelhantes.
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[1] Mestra em Direito Internacional Tributário e Econômico pela Universidade Católica de Brasília - UCB. Doutoranda em Ciências Criminais pela escola de Direito da PUC/RS.
Graduada em direito do Centro Universitário Santo Agostinho.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CARVALHO, EMANUELY CRISTINY SILVA DE. A aplicabilidade do princípio da insignificância nos crimes de peculato Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 09 fev 2024, 04:56. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/58633/a-aplicabilidade-do-princpio-da-insignificncia-nos-crimes-de-peculato. Acesso em: 22 nov 2024.
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