ALEX DOUGLAS COELHO ARAUJO [1]
(coautor)
ADRIANO RIBEIRO CALDAS [2]
(orientador)
RESUMO: Neste artigo estudou-se a relevância de compreender a verdade processual para efetivação de sentenças/decisões, considerando a influência da sociedade no caso concreto. O estudo objetivou atingir o conceito de validade e verdade processual partindo das raízes do âmbito sociocultural, passando pelas teorias interpretativas e aplicações e por fim, apresentando o julgado do STF sobre a equiparação do racismo à homofobia. Foi utilizado o método dedutivo-interpretativo sobre a análise do processo e da verdade, das correntes de interpretação, seus paradigmas e ao caso concreto. Foi utilizada a metodologia de análise de pesquisa dogmático-jurídica de natureza bibliográfica, por meio da consulta de obras, revistas, legislação e jurisprudência brasileira. Concluiu-se, que a verdade processual é relativa, podendo ser mais próxima ou distante da verdade real, conforme a qualidade e a quantidade das provas e informações do processo. Concluiu-se, quanto à ADO 26, que há influência de elementos histórico-culturais na fundamentação das decisões, e que faltou técnica quanto a interpretação conforme (a Constituição) para equiparação de condutas discriminatórias em razão de orientação sexual e/ou identidade de gênero, tendo a técnica gerado uma inverdade processual e não enfrentou a questão da reserva legal em matéria penal.
Palavras-chave: verdade processual, interpretação, hermenêutica, ADO 26.
ABSTRACT: In this paper, we studied the relevance of understanding the procedural truth for the execution of sentences/decisions, considering the influence of society in the specific case. The study aimed to reach the concept of validity and procedural truth starting from the roots of the sociocultural scope, passing through interpretive theories and applications and finally, presenting the STF judgment on the equating of racism with homophobia. The deductive-interpretative method was used to analyze the process and the truth, the currents of interpretation, their paradigms and the concrete case. The methodology of analysis of dogmatic-legal research of a bibliographic nature was used, through consultation of books, magazines, legislation and Brazilian jurisprudence. It was concluded that the procedural truth is relative, and may be closer or farther from the real truth, according to the quality and quantity of the evidence and information of the process. It was concluded, regarding ADO 26, that there is an influence of historical-cultural elements in the reasoning of decisions, and that there was a lack of technique regarding the interpretation according to (the Constitution) to equate discriminatory conducts due to sexual orientation and/or gender identity, the technique having generated a procedural untruth and did not face the issue of legal reserve in criminal matters.
Keywords: procedural truth, interpretation, hermeneutics, ADO 26.
Sumário: 1. Introdução. 2. Processo e Verdade. 3. Paradigmas de interpretação - aplicação e decisão judicial. 3.1. O embate jurisdicional entre a metafísica clássica e a filosofia da consciência. 3.2. Três estágios hermenêuticos para o fundamento de uma decisão judicial. 3.3. A concretude do Direito enquanto sede de interpretação. 4. Análise de julgado do STF - ADO 26. 4.1. Teor do Acórdão. 4.2. Omissão legislativa. 4.3. Papel do Poder Judiciário em caso de omissão. 4.4. Reserva legal. 4.5. Elementos históricos e culturais. 4.6. Interpretação conforme. 4.7. Crítica à interpretação conforme. 4.8. ADO 26 - Avanço ou Retrocesso? 5. Conclusão. 6. Referências bibliográficas.
1 INTRODUÇÃO
A presente pesquisa é voltada para o estudo da relevância de se compreender a verdade real/processual para o desenvolver de sentenças/decisões, levando em conta a influência da sociedade em relação ao caso concreto.
Assim, tem-se por delimitação do tema a influência da sociedade e das raízes histórico-culturais de nosso país quando da decisão do magistrado numa sentença em que, por exemplo, tenha uma grande repercussão ou trate de uma problemática antiga, como o racismo e a homofobia.
Dessa forma, eis o problema de pesquisa: no que tange o direito material, qual a importância de se pesquisar, analisar a verdade real/processual para que a sentença venha a ser efetiva? Qual o tipo de verdade que se vivencia no processo? Quais as correntes ou teorias de interpretação e quais seus paradigmas? Qual o nível de influência que magistrados sofrem da sociedade até chegar ao veredicto? Até onde o princípio da imparcialidade do Juiz se adentra no processo? Que fatos podem ser juridicamente relevantes para o processo?
O desenvolvimento da pesquisa tem como base demonstrar que apesar do direito ser um conjunto sistemático de normas jurídicas, a ciência jurídica é um sistema de proposições que podem ser verdadeiras ou falsas, sendo a aferição da verdade dessas proposições de suma importância para decisões judiciais.
Desse modo, é demonstrada a noção da verdade, alguns paradigmas de interpretação, apresentando ao final a repercussão de um caso concreto e a decisão do julgador nesse caso, com a finalidade de mostrar o ponto de convergência ou divergência da sociedade e da hermenêutica do julgador em relação ao processo.
Assim, objetiva-se fazer um trabalho que consiga atingir o conceito de validade e verdade processual partindo das raízes do âmbito social cultural até a manifestação final do juiz, passando pelas teorias de interpretação e suas aplicações e por fim, apresentando o julgado do STF sobre a equiparação do racismo à homofobia.
Para finalizar essa parte e alcançar as considerações finais do artigo, propõe-se explanar, num primeiro momento, o conceito de verdade, qual tipo de verdade que se vivencia no processo, quais correntes ou teorias de interpretação, seus paradigmas e sua importância no processo. Depois, discute-se a relativização das decisões, explanando se a melhor decisão a ser tomada deve ser a correta ou a mais adequada ao caso concreto, trazendo um julgado do STF, qual seja, a ação de inconstitucionalidade por omissão, de relatoria do Ministro Celso de Melo, quanto à equiparação do crime de homofobia ao de racismo.
No artigo, utiliza-se o método dedutivo-interpretativo no que diz respeito à análise do processo e da verdade, das correntes de interpretação, seus paradigmas e ao caso concreto. Depois, como metodologia de análise, será utilizada a pesquisa dogmático-jurídica de natureza bibliográfica, por meio da consulta de obras, revistas, legislação e jurisprudência brasileira atinente à temática.
Por fim, ressalta-se que o presente artigo tem como relevância social e acadêmica a introdução ao debate da importância da validade da verdade para a efetivação de sentenças, sem intenção de findar o assunto, a fim de que também seja explorado por outros acadêmicos e venha somar à Academia de Direito.
2 PROCESSO E VERDADE
Inicialmente, convém dizer, que a ideia da verdade provém do latim “veritas” e carrega uma difícil definição. Para Nietzsche (2014), por exemplo, a verdade é um ponto de vista. Ele não define nem aceita a definição da verdade, com a justificativa de que não se pode alcançar uma certeza sobre a definição do oposto da mentira.
Isso porque, é um conceito extremamente abstrato e que dependendo da ótica, pode ter outro significado. Todavia, de modo geral, está associado à conformidade daquilo que se diz com aquilo que se pensa ou sente. Percebe-se que esse significado não abrange o teor do que se vê, apenas do que se pensa ou sente. Isso porque, o campo do que se enxerga é relativo de cada pessoa e, portanto, uma percepção atinente de cada um.
Esse caráter relativo da verdade, mormente o da verdade processual, vem muitas vezes descrito com alusão ao conceito de probabilidade, já que, sendo esta verdade não absoluta, necessariamente, ela passa a ser provável. (TARUFFO, 2013, p. 47).
Nesse sentido, cumpre explanar no presente artigo, sem qualquer pretensão de completude, alguns paradoxos que perfazem o conceito da verdade e que, de vários modos, caracterizam-na.
Importante iniciar com os antagonismos que cada pessoa tem à sua verdade pessoal, de modo tal que ninguém comete erros e qualquer construção do mundo é verdadeira para aqueles que nela creem, a exemplo de quando, em um contexto problemático e histórico, acreditava-se que os negros eram inferiores aos brancos ou que judeus eram inferiores aos alemães ou, ainda, que a Terra era plana e que o sol girava em torno dela.
Isso porque, independentemente da época, cada um tem a sua verdade pessoal, já que esta é delineada a partir de influências socioculturais, econômicas, educacionais e por vezes, geracionais, haja vista a crença em algo passado de pai para filho, de geração para geração.
Contudo, é considerável afirmar que o conceito do oposto da mentira vai muito além disso, mesmo que essas contradições sejam necessárias para a própria possibilidade de se ter uma opinião sobre a realidade e, assim, tonar-se possível questioná-la, considerando-se as narrativas subjetivas que a descrevem.
Dessa forma, com o fito de melhor precisar o significado que a verdade assume no contexto do processo, resta, então, demonstrar os tipos de verdades segundo a definição de que esta não deriva da coerência das narrações, mas da correspondência à realidade dos fatos e dos eventos que esses descrevem. (TARUFFO, 2013, p. 46).
Assim, têm-se a verdade material, que consiste na adequação daquilo que realmente é com aquilo que é dito, diferentemente da verdade formal que é a validade de uma conclusão à qual se chega seguindo as regras de inferências a partir de postulados e axiomas aceitos. Têm-se também a verdade absoluta, que sabidamente não se mostra relevante para o processo, haja vista ser ela conceituada como aquela que tem um fim em si mesma e para todos.
Ao passo que a verdade absoluta não tem importância para o processo, salienta-se o conceito da verdade relativa, que representa, segundo Taruffo (2013), uma aproximação àquela que se poderia considerar como correspondência perfeita dos enunciados aos fatos reais que esses descrevem, sendo este um grau de aproximação, maior ou menor, de acordo com a qualidade de informações sobre as quais se funda o conhecimento dos fatos dos quais se trata.
Na conjuntura do processo, isso significa dizer que a verificação da correspondência dos enunciados, ou seja, a verificação da verdade aos fatos materiais que descrevem obedece à qualidade e quantidade das provas/informações sobre as quais se funda a reconstrução dos fatos realizada pelo Juiz.
Nesse sentido, convém dizer que o senso comum pensa o processo a partir da necessidade de interpretação judicial em dada causa e a necessidade de, por meio do método bem construído, a resposta dada ser a mais justa e mais correta. (HIDALGO, 2011, p. 186)
Salienta-se que, o conhecimento da verdade relaciona-se com essa interpretação judicial mais justa no contexto em que, doravante o método no qual se desenvolve sua busca e a partir da quantidade e qualidade de informações de que se dispõe, determina-se o limiar daquilo que se entende por realização do direito material, que em um sentido mais autêntico, é a realização do próprio Direito, em sua dimensão social, política e jurídica.
Assim, na conjuntura processual, faz-se necessário frisar também a diferença traçada entre verdade e certeza, já que os conceitos de ambas podem, por vezes, influir no processo por parte de quem quer provar algo. Ocorre com muita frequência, que se diga estar certo sobre a verdade de uma afirmação, ou que uma afirmação é verdadeira porque alguém está certo disso, todavia, discursos genéricos assim são equivocados.
Isso porque, a verdade, permeia bastante o campo da objetividade e pela realidade dos fatos do que se fala. A certeza, por seu turno, é um status subjetivo, que diz respeito à psicologia daquele que fala, e corresponde a um grau elevado de intensidade do convencimento do sujeito em questão.
Ademais, essas duas noções são evidentemente distintas, visto que a certeza corresponde a um grau de persuasão que um sujeito tem a respeito da veracidade de um enunciado, podendo fazer distinções de acordo com o grau de certeza, que pode ser diferente dependendo do caso e da justificativa utilizada para sustentar-se a própria certeza.
No que diz respeito àquilo que interessa em maior escala ao presente estudo, a verificação da verdade tem suma importância quando da ética do justo processo. Frisa-se assim, o surgimento de duas noções diferentes, sendo a primeira delas, um processo justo quando são postas em prática todas as garantias processuais, fundamentais, e em particular aquelas que concernem às partes e a segunda, que diz respeito ao modo do qual o processo é arquitetado, sendo necessário assegurar as garantias fundamentais.
Essas duas percepções estão diretamente ligadas às teorias procedimentais e materiais-substanciais. Assim, de um lado têm-se as teses procedimentalistas que fazem do procedimento, o modo ideal de operar a democracia, a partir de uma universalização aplicativa, afastando qualquer possibilidade de intervenção substantiva, ou seja, da matéria. (STRECK, 2011, p. 81).
Por outro lado, têm-se a tese substancialista que, por seu turno, aplica a perspectiva de que a implementação dos direitos fundamentais-sociais, afigura-se como condição de possibilidade de validade da própria Constituição Federal, naquilo que, segundo Streck (2011) diz, representa de elo conteudístico que une política e direito.
Em síntese, a corrente substancialista é a mais adequada para uma decisão justa no processo, já que o conceito de decisão justa implica que a resolução da ação seja tomada em consideração a si mesma, distinguindo-a do procedimento do qual representa o resultado e a valorando segundo um critério autônomo, independente daquele empregado para a valoração da justiça do procedimento. (STRECK, 2011). Ou seja, a justiça da decisão não deriva exclusivamente da correção do procedimento e nessa não se exaure, e sim, no mérito, na matéria.
Ademais, a teoria material-substancialista parece a mais adequada, também tendo em vista que é desarrazoado, considerando a pretensão de se construir as bases de um Estado Social Democrático de Direito no Brasil, destinar ao Poder Judiciário tão somente a função de zelar pelo respeito aos procedimentos para a formação da opinião e da vontade política, a partir da própria cidadania, como dita a corrente procedimentalista.
Em suma, a análise da decisão relativa à veracidade ou falsidade dos fatos no âmbito do processo não pode partir senão da determinação de quais fatos se trata, ou seja, da construção das narrativas relativas aos fatos da causa, o que dá ensejo à estima da teoria da verdade relativa, sendo esta a mais adequada.
Por fim, em relação ao processo, este é justo se, e desde que, conforme dita a teoria material-substancialista seja correto o procedimento em que se articula, residindo aí a importância da análise da verdade, visto que, por conseguinte, a apuração desta é necessária, ainda que insuficiente, sozinha, para determinar a justiça das decisões. Isso em razão de que, é perfeitamente possível que as partes e até mesmo os advogados do processo não tenham qualquer interesse na descoberta desse escopo aqui explanado.
3 PARADIGMAS DE INTERPRETAÇÃO - APLICAÇÃO E DECISÃO JUDICIAL
Na presente seção aborda-se o embate jurisdicional entre a metafísica clássica e a filosofia da consciência; três estágios hermenêuticos para o fundamento de uma decisão judicial; e a concretude do Direito enquanto sede de interpretação.
3.1. O embate jurisdicional entre a metafísica clássica e a filosofia da consciência
Como critério de aferição da prestação jurisdicional, sua aplicação e decisão, é importante demonstrar a forma pela qual a mesma ainda se encontra presa aos esquemas abarcados pela metafísica clássica e filosofia da consciência, principalmente no que tange a dicotomia sujeito/objeto (VIEIRA, 2013, p. 21).
Assim, elenca Vieira (2013), alguns paradigmas de linguagem que norteiam a atuação do poder judiciário e que acabam por influenciar na aplicação e decisão judicial. Isso porque, a atuação da jurisdição em nada se concretiza se estiver distante do paradigma filosófico que a norteia.
Portanto, é interessante denunciar os problemas existentes nas decisões, perpassando necessariamente pela superação desses paradigmas, os quais ainda hoje se baseia a atuação do poder jurisdicional.
O primeiro paradigma é a metafísica clássica, que se entende por um período de gênese, por meio do pensamento grego, até o surgimento da modernidade, com a obra de Descartes. Nesse período, a filosofia da linguagem possuía notadamente um perfil mais objetivista, em que a linguagem tinha como função, servir como instrumento, ou seja, ser meio de expressão, designação de objeto ideal. (STRECK, 2013, P. 22).
A metafísica clássica é mais bem compreendida com a análise de Platão, cujo pensamento norteou toda a era helenística. Compreende-se assim, que a linguagem desempenha em Platão um verdadeiro ataque às teorias da significação, então em voga, na filosofia grega. Para este renomado filósofo, uma palavra é justa, certa, na medida em que traz a coisa à apresentação, isto é, na medida em que é apresentação da coisa. (VIEIRA, 2013, P. 22)
Dessa forma, é fácil compreender que Platão concebe como função da linguagem, o instrumento hábil que busca demonstrar a ideia de determinada coisa, sua essência imutável. Sendo importante ressaltar essa concepção para o estudo da verdade, no que diz respeito ao fato de que esta não se dá por meio da linguagem, que acaba por se tornar insuficiente para expressar aquilo que é imutável no mundo das coisas.
Portanto, para Platão, somente no mundo não sensível das ideias (metafísico) pode-se buscar a verdade. Ele buscava a verdade “nas coisas mesmas”. (VIEIRA, 2013, P. 27).
Outrossim, é com Descartes e Kant que nasce e se desenvolve a metafísica moderna, calcada na filosofia da consciência, igualmente importante para melhor compreensão da verdade.
Como brevemente exposto, acreditava-se na metafísica clássica, em que o objeto era autônomo, ou seja, existia independemente do intérprete, de sua experiência. Deste modo, nesse período a linguagem era considerada como mero meio, instrumento, por meio do qual os sentidos eram comunicados. (VIEIRA, 2013, P. 31).
Todavia, Descartes traz a ideia do “cogito”, o qual configurava-se no primeiro ponto de quebra do paradigma objetivista e essencialista criado na metafísica clássica, haja vista que o sujeito e o subjetivismo passavam a ter mais importância para a teoria moderna.
Isso porque, o conhecimento não surge mais nessa teoria, pela “visão” de um objeto, mas pela “produção”, fruto da espontaneidade criadora do homem, fruto da vontade de aprender e se desenvolver racionalmente, como sujeito pensante mesmo. Dessa maneira, para Descartes, o sujeito por meio de sua racionalidade, é o ponto ideal da verdade e o ponto de partida para qualquer conhecimento.
A metafísica kantiana, por seu turno, eleva a filosofia sobremaneira ao campo da subjetividade. Diz ele: “das coisas conhecemos a priori só o que nós mesmos colocamos nelas.” Ou seja, para conhecermos sobre algo basta que pensemos ou interpretemos subjetivamente o que estamos vendo.
Ademais, entende-se por essa teoria, como aquela em que, segundo STRECK, “assujeitam-se as coisas”, ou seja, o sujeito não se orienta pelo objeto, mas o objeto é orientado pelo sujeito, que é o ponto central do nosso conhecimento.
Por fim, é interessante ressaltar que para o processo é de fundamental importância ter esse embasamento lógico da filosofia clássica e moderna, tendo em vista que decidir é interpretar e interpretar é aplicar. Assim, as teorias ora apresentadas acrescentam sobremaneira na forma de ver o Direito, principalmente quanto à análise da decisão judicial, ao buscar suas condições de possibilidade. (VIEIRA, 2014, P.35).
3.2. Três estágios hermenêuticos para o fundamento de uma decisão judicial
Os estudos da interpretação ganharam mais reconhecimento após o advento das constituições pós-guerra, haja vista que a partir disso, passaram a surgir as mais diversas concepções sobre os princípios constitucionais, bem como a positivação do direito. Dessa forma, tratar de hermenêutica é uma tarefa complexa, pela qual para o senso comum, nada mais é do que a “arte de interpretar”, porém, seu significado vai muito além disso.
A hermenêutica compreende mais ou menos um conjunto de regras/métodos com o objetivo de interpretar e compreender corretamente os diversos textos que povoam o cenário cultural humano, seja no campo da arte (literatura, poesia), seja no campo religioso (interpretação de textos sagrados), seja no âmbito jurídico (interpretação de textos de lei, decreto, jurisprudência, etc). (STRECK, 2014, P. 209).
Ressalta-se a importância de se compreender que a hermenêutica não pretende apenas reunir um conjunto de conhecimentos teóricos acerca do problema interpretativo-compreensivo, mas, conforme o iluminismo, ela busca também produzir critérios para a afirmação da certeza e da objetividade no processo de interpretação e compreensão, residindo aí sua importância para a aferição da verdade e ulterior decisão justa. (STRECK, 2014, P. 209)
Para Heidegger por exemplo, a hermenêutica conceitua-se como um elemento antropológico, por meio do qual toda compreensão se encontra já fundamentada em uma compreensão que o ser humano tem de si mesmo, enquanto ser histórico dotado de existência, ou seja, compreender a nós mesmos e a nossa história é condição de possibilidade para que possamos compreender textos, palavras, histórias e, portanto, possamos interpretar.
Assim, segundo Streck (2014), a hermenêutica teve que passar por três estágios para entendermos seu conceito como o que acima foi exposto. São eles: hermenêutica especial, teoria geral da interpretação e a hermenêutica fundamental.
Acorde à classificação do renomado hermeneuta, têm-se que a hermenêutica especial caracterizava-se como aquela marcada pela fase da transição da idade média para a idade moderna, em que se descobriu os escritos profanos e a necessidade de interpretá-los, também no contexto da Reforma Protestante, que existia a necessidade de se buscar outra justificativa para a interpretação da bíblia que não tivesse reduzida à imposta pela igreja. (STRECK, 2014, P. 211).
Essa fase é também conhecida como hermenêutica teológica, já que se dedicava à arte da interpretação dos textos sagrados, sendo considerada também como uma fase especial, tendo em vista que funcionava como uma disciplina especial para a interpretação de textos. Frisa-se destacar ainda, que essa época foi importante para estabelecer uma das preocupações fundamentais da hermenêutica, qual seja: demonstrar ser um contraponto refletido contra qualquer tipo de absolutismo dogmático.
Por seu turno, o estágio da hermenêutica como teoria geral da interpretação, teve como considerável participação de estudo e definição, o filósofo, teólogo e hermeneuta, Friedrich Schleiermacher, que muito contribuiu no que diz respeito aos problemas dos mal-entendidos que poderiam surgir na compreensão de um texto, o que corroborava para uma interpretação completamente distinta do sentido que o autor imprimia. (STRECK, 2014, P. 212)
A solução e método apresentado por Schleiermacher era, segundo Streck (2014), uma continuidade do modelo circular da tradição, por meio do qual o intérprete se movimentaria do todo para a parte e da parte para o todo, de modo a apurar a compreensão a cada movimentação realizada. Esse estudo, então denominado como “círculo hermenêutico”, preservaria o sentido original e a compreensão finalmente estaria de acordo com o que o autor teria imprimido.
Por fim, têm-se também a hermenêutica fundamental, da qual Heidegger, em sua obra “Hermenêutica da Faticidade”, diz ser esta utilizada para compreender o ser fático do “ser-aí” e permitir a abertura do horizonte para o qual ele se encaminha, que é a própria existência. Assim, é possível captar que o fenômeno principal de Heidegger ao expor essa ontologia, é a compreensão, haja vista que é a partir daí que o estudo da hermenêutica passa a ter raízes existenciais. (STRECK, 2014, P.213).
3.3. A concretude do Direito enquanto sede de interpretação
O acontecer da interpretação ocorre a partir de uma fusão de horizontes, já que compreender é sempre o processo de fusão dos supostos horizontes para si mesmos. Assim, segundo STRECK (2014), é possível e necessário desmistificar a tese corrente no senso comum teórico dos juristas, de que o juiz primeiro decide e depois justifica/fundamenta sua decisão.
Sucede-se que, é ilógico pensar dessa maneira, tendo em vista que racionalmente primeiro se pensa e interpreta sobre algo, para depois decidir. O julgador não decide para depois buscar a fundamentação, e sim, o contrário. Isso porque, a interpretação não é um ato de vontade e de impulso e se assim o fosse, incorreria no descumprimento do que preconiza o princípio da imparcialidade e do juiz natural.
Assim, é interessante lembrar que o Direito possui uma especificidade que reside na relevante circunstância de que a interpretação de um texto normativo depende de sua conformidade com um texto de validade superior, ou seja, da Constituição. Esta que, mais do que um texto, é a própria condição de possibilidade hermenêutica de outro texto, fenômeno construído historicamente como produto de um pacto constituinte. (STRECK, 2014, P. 229).
Por fim, como cediço, não se interpreta, sob hipótese alguma, um texto jurídico desvinculado da antecipação de sentido representado pelo sentido que o intérprete da constituição tem. Nem o texto infraconstitucional pode ser visto apartado do sentido da Constituição, nem esta pode ser vista como se fosse um ser sem categoria.
Por isso, as condições de possibilidades para que o intérprete, sendo ele o julgador ou não, possa compreender um texto implicam a existência de uma pré-compreensão (seus prejuízos) acerca da totalidade (que a sua linguagem possibilita) do sistema jurídico-político-social. E sendo a Constituição o fundamento de maior validade de todo o ordenamento jurídico, de sua interpretação/aplicação, adequada ou não, é que surgirá a sua efetividade ou inefetividade. (STRECK, 2014, P. 231).
4 ANÁLISE DO JULGADO DO STF - ADO 26
A Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão 26 foi proposta pelo Partido Popular Socialista (PPS) em face de alegada inércia legislativa atribuída ao Congresso Nacional que estaria frustrando a tramitação e a apreciação de proposições legislativas apresentadas com o objetivo de incriminar todas as formas de homofobia e de transfobia, em ordem a dispensar efetiva proteção jurídico-social aos integrantes da comunidade LGBTI+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transsexuais, Intersexos, e todas as outras demais identidades).
Assim, é importante analisar o processo de argumentação na ADO 26, em especial quanto à equiparação do crime de homofobia ao de racismo.
Este tópico fica assim dividido: teor do acórdão; omissão legislativa e papel do poder judiciário; reserva legal; elementos históricos e culturais; interpretação conforme; crítica à interpretação conforme do termo racismo; e ADO 26 - Avanço ou retrocesso?
4.1. Teor do Acórdão
Nos termos do acórdão de 13 de junho de 2019 (p. 10) a ação direta de inconstitucionalidade foi conhecida parcialmente por unanimidade de votos, e por maioria, julgada procedente, com efeito geral e vinculante, para: a) reconhecer o estado de mora inconstitucional do Congresso Nacional na implementação da prestação legislativa destinada a cumprir o mandado de incriminação a que se referem os incisos XLI e XLII do art. 5º da Constituição, para efeito de proteção penal aos integrantes do grupo LGBTI+; b) declarar, em consequência, a existência de omissão normativa inconstitucional do Poder Legislativo da União; c) cientificar o Congresso Nacional, para os fins e efeitos a que se refere o art. 103, § 2º, da Constituição c/c o art. 12-H, “caput”, da Lei nº 9.868/99; d) dar interpretação conforme à Constituição, em face dos mandados constitucionais de incriminação inscritos nos incisos XLI e XLII do art. 5º da Carta Política, para enquadrar a homofobia e a transfobia, qualquer que seja a forma de sua manifestação, nos diversos tipos penais definidos na Lei nº 7.716/89, até que sobrevenha legislação autônoma, editada pelo Congresso Nacional, seja por considerar-se, nos termos deste voto, que as práticas homotransfóbicas qualificam-se como espécies do gênero racismo, na dimensão de racismo social consagrada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento plenário do HC 82.424/RS (caso Ellwanger), na medida em que tais condutas importam em atos de segregação que inferiorizam membros integrantes do grupo LGBTI+, em razão de sua orientação sexual ou de sua identidade de gênero, seja, ainda, porque tais comportamentos de homotransfobia ajustam-se ao conceito de atos de discriminação e de ofensa a direitos e liberdades fundamentais daqueles que compõem o grupo vulnerável em questão; e e) declarar que os efeitos da interpretação conforme a que se refere a alínea “d” somente se aplicarão a partir da data em que se concluir o presente julgamento, nos termos do voto do Relator, vencidos os Ministros Ricardo Lewandowski e Dias Toffoli (Presidente), que julgavam parcialmente procedente a ação, e o Ministro Marco Aurélio, que a julgava improcedente
Votaram os ministros Celso de Mello, Edson Fachin, Alexandre de Moraes, Roberto Barroso, Rosa Weber, Luiz Fux, Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes, Marco Aurélio, e Dias Toffoli.
Votaram para reconhecer a omissão dez ministros, sendo o voto divergente do Ministro Marco Aurélio.
Votaram para equiparação à lei 7.716, oito ministros, tendo sido três votos divergentes, dos Ministros Ricardo Lewandowski, Marco Aurélio e Dias Toffoli.
4.2. Omissão legislativa
A Constituição em seu art. 5º, XLI determina que “a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais”, o que serve como garantia ao objetivo fundamental de “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” previsto no art. 3º, IV do texto constitucional.
No art. 5º, XXXIX o texto constitucional determina que “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”. A Constituição não define crimes nem comina penas, o próprio texto constitucional atribuiu essa tarefa à lei. O art. 5º, XLI é, portanto, como exposto no acórdão, um mandado de incriminação, ou seja, é um comando dado ao legislador para que criminalize determina conduta e comine uma pena respectiva.
A redação do art. 5º, XLI tem uma grande amplitude semântica, não exemplificando quais hipóteses de discriminações atentatórias aos direitos e liberdades fundamentais deveriam ser criminalizadas. Alguns dispositivos são mais específicos, art. 5º, XLII por exemplo, define que “a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei”. Portanto, há um aparente largo grau de liberdade ao legislador ordinário para definir em que consistiriam essas discriminações atentatórias aos direitos e liberdades fundamentais.
Em relação ao mandado de incriminação, caso não obedecido pelo legislador, poderia este incorrer em omissão total ou omissão parcial. Não é possível se falar em omissão total quanto ao mandado art. 5º, XLI, ante a existência da Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989.
A referida lei inicialmente punia apenas os crimes resultantes de preconceitos de raça e de cor. A Lei nº 9.459, de 15 de maio de 1997 inseriu ao rol de proteção da primeira lei “etnia, religião ou procedência nacional”, passando, portanto, a punir “os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”.
Não há referência direta a discriminação ou preconceito em razão de orientação sexual ou identidade de gênero, sendo assim, tais grupos, pelo menos até o advento da ADO 26, não se encontravam inseridos no âmbito de aplicação da lei, estando, portanto, fora do alcance da tutela penal.
Portanto, não é possível dizer que o legislador está em omissão total em relação ao mandado de incriminação do art. 5º, XLI da Constituição; o que é possível ser analisado é se houve omissão parcial no caso, em relação a algum dos grupos que deveria ter sido tutelado pelo dispositivo, o que foi entendido pelo Supremo Tribunal Federal, salvo o Ministro Marco Aurélio, como existente.
4.3. Papel do Poder Judiciário em caso de omissão
Quanto ao papel do Poder Judiciário em caso de omissão, nos termos do acórdão da ADO 26 (p. 3), o Poder Judiciário ao realizar sua atividade hermenêutica deve tornar efetiva a ação estatal na prevenção e repressão aos atos de preconceito e/ou de discriminação praticados contra pessoas integrantes de grupos sociais vulneráveis.
No voto do Ministro Celso de Mello (p. 127), destaca-se que o procedimento hermenêutico realizado pelos órgãos do Poder Judiciário do ordenamento positivo não se confunde com o processo de elaboração legislativa. O ministro, entretanto, dispõe que o ordenamento normativo nada mais é senão a sua própria interpretação, e que a interpretação, atividade típica do Poder Judiciário, não importa usurpação das atribuições normativas dos demais poderes.
Quanto aos efeitos, o Ministro Celso de Mello (p. 80) significa que ação direta por omissão deve ser vista e qualificada como instrumento de concretização das cláusulas constitucionais frustradas, em sua eficácia, pela inaceitável omissão do Poder Público, impedindo-se, desse modo, que se degrade a Constituição à inadmissível condição subalterna de um estatuto subordinado à vontade ordinária do legislador comum.
Como elemento de concretização, portanto, definiu-se no acórdão que até a edição de lei pelo Congresso Nacional, as condutas de preconceito e de discriminações contra orientações sexuais e identidades de gêneros seriam penalizadas nos termos já existentes para os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.
4.4. Reserva legal
Para o Ministro Celso de Mello (p. 62) a definição típica das condutas delituosas está subordinada ao postulado constitucional da reserva absoluta de lei formal (CF, art. 5º, XXXIX), o que inviabiliza qualquer pleito cujo acolhimento implique desconsideração dessa garantia fundamental, segundo a qual não há crime nem pena sem lei anterior que os defina, excluída, portanto, a possibilidade de utilização de provimento jurisdicional como sucedâneo de norma legal.
Apesar de o ministro ter esse posicionamento, no caso, parece ter havido uma certa flexibilização do preceito constitucional da reserva legal, já que em seu voto determinadas condutas (preconceito ou discriminação contra orientações sexuais e identidades de gênero) passaram a ser definidas como crimes e a ter cominadas penas sem que o tenha sido editada lei em sentido estrito.
Ou no voto do ministro Celso de Mello há uma contradição, ou há uma justificativa que adeque o exposto pelo ministro quanto à reserva legal e a decisão que equiparou os crimes de homofobia e transfobia aos crimes da lei 7.716.
Para o ministro Ricardo Lewandowski (p. 514) a extensão do tipo penal para abarcar situações não especificamente tipificadas pela norma penal incriminadora parece atentar contra o princípio da reserva legal, que constitui uma fundamental garantia dos cidadãos, que promove a segurança jurídica de todos; (p. 511) não sendo viável invocar os precedentes concretistas por conta de uma distinção fundamental a incidir no caso: o processo diz respeito a matéria penal, sujeita a reserva legal absoluta.
Para o ministro Marco Aurélio (p. 553) a estrita legalidade, no que direciona à ortodoxia na interpretação da Constituição Federal em matéria penal, não viabiliza ao Tribunal, em desconformidade com expressa e clara restrição contida na Lei Maior, esvaziar o sentido literal do texto, mediante a complementação de tipos penais.
Ainda destaca o Ministro Aurélio (p. 554) que operada a transmutação dos delitos previstos na legislação de regência em crimes com descrições típicas indeterminadas mediante interpretação judicial, a delimitação do alcance do tipo penal não mais estará vinculada à lei em sentido estrito, mas, antes, ao subjetivismo dos magistrados no exercício das funções ínsitas ao Estado-Juiz, em prejuízo da tão almejada segurança jurídica, ausente prévia delimitação das condutas alcançadas pelo texto legal.
Por último, para o Ministro Marco Aurélio (p. 556) eventual opção pela criminalização de condutas motivadas pela “orientação sexual e/ou identidade de gênero, real ou suposta, da vítima” há de se dar na esfera própria, em outra parte da Praça dos Três Poderes que não o Plenário do Supremo, não podendo, possível omissão, ser suplantada por exegese extensiva da legislação em vigor.
Portanto, o Ministro Celso de Mello, apesar de ter um grande apreço à reserva legal, conseguiu chegar a um raciocínio para equiparação de uma conduta a um crime, por fundamentos que serão detalhados nas próximas seções. Os Ministros Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio, por outro lado, deram ainda maior destaque à legalidade estrita, tendo os dois, e o Ministro Dias Toffoli que seguiu o voto do Ministro Ricardo Lewandowski, divergido da posição majoritária do julgamento, e não equiparando as condutas homofóbicas e transfóbicas ao crime de racismo, ressaltando, em suma, não ser possível invocar os precedentes concretistas devido a matéria penal estar sujeita a reserva legal absoluta, que o direito penal não pode ficar vinculado ao subjetivismo dos magistrados, e que a criminalização, ainda que existente omissão, deveria ser feita pelo poder competente, o legislativo.
4.5. Elementos históricos e culturais
Dos elementos que são utilizados para se chegar à verdade processual, o principal elemento que se analisa nesta pesquisa, é influência da sociedade e das raízes histórico-culturais do nosso país em relação ao caso concreto, em especial em casos de grande repercussão ou de problemáticas antigas. Verifica-se em diversos pontos na fundamentação do acórdão da ADO 26 referências a fatores reais, históricos e contemporâneos, da sociedade que servem como justificação da decisão dos magistrados.
No voto do Ministro Celso de Mello (p. 65) é dado destaque à perseguição histórica em relação à comunidade homossexual brasileira durante o período da Coroa Portuguesa, tendo as Ordenações do Reino (Afonsinas, 1446; Manuelinas, 1521; Filipinas, 1603) previsto rigorosa criminalização, incluindo pena capital, além ainda da atuação do Santo Ofício. Portanto, a questão da homossexualidade no Brasil foi tratada historicamente e institucionalmente com cruel repressão.
Ainda no voto do Ministro Celso de Mello (p. 72), quanto ao cenário contemporâneo, se destaca que os dados estatísticos demonstram que a comunidade LGBT no Brasil é, reiteradamente, vítima das mais diversas formas de agressão motivadas, única e exclusivamente, pela orientação sexual e/ou identidade de gênero dos indivíduos, e ainda, que o Brasil ocupa o primeiro lugar no ranking mundial desse tipo de violência. O ministro (p. 75) termina a seção de seu voto valorando os números como assustadores e, citando Paulo Roberto Iotti Vecchiatti, de que se verifica no Brasil, uma verdadeira banalidade do mal homofóbico e transfóbico.
Portanto, pode-se perceber que os elementos histórico-culturais são levados em consideração pelo magistrado como fundamentação de sua decisão no caso concreto, sendo que foi observado no Brasil uma perseguição histórica e institucional em razão de orientação sexual e identidade de gênero que perduram até os dias atuais.
4.6. Interpretação conforme
O método de interpretação utilizado para fazer a equiparação foi o de interpretação conforme a Constituição. Branco e Mendes (2021) ao dispor sobre este método de interpretação, concluem que se uma norma infraconstitucional, pelas peculiaridades da sua textura semântica, admite mais de um significado, sendo um deles coerente com a Constituição e os demais com ela incompatíveis, deve-se entender que aquele (o compatível) é o sentido próprio da regra em exame. Conforme já exposto, vale destacar que conforme Streck (2013) a interpretação de um texto normativo depende de sua conformidade com um texto de validade superior, a Constituição.
O Ministro Celso de Mello (p. 115) traz uma noção de racismo que não se resume a um conceito de ordem estritamente antropológica ou biológica, projetando-se, ao contrário, numa dimensão abertamente cultural e sociológica, abrangendo, inclusive, as situações de agressão injusta resultantes de discriminação ou de preconceito contra pessoas em razão de sua orientação sexual ou em decorrência de sua identidade de gênero.
Para o ministro, portanto, a interpretação de “racismo” como um conceito cultural e sociológico, e não apenas biológico ou antropológico, seria aquela, portanto, a interpretação conforme a Constituição.
O Ministro Celso de Mello (p. 130), sumariza que o entendimento por ele exposto não envolve aplicação analógica in malam partem, inadmitida em matéria penal, não formula tipos criminais nem comina sanções penais, pois constitucionalmente inviável tipificação de delitos e à cominação de penas mediante provimentos jurisdicionais, ainda que emanados do Supremo Tribunal Federal, mas que se limita à mera subsunção de condutas homotransfóbicas aos diversos preceitos primários de incriminação definidos em legislação penal já existente (Lei nº 7.716/89), na medida em que atos de homofobia e de transfobia constituem concretas manifestações de racismo, compreendido este em sua dimensão social: o denominado racismo social
Portanto, tal interpretação permite ao ministro superar a questão da reserva legal, por ele mesmo tão ressaltada, pois a partir dessa interpretação seria possível inserir no tipo de racismo as condutas preconceituosas ou discriminatórias contra pessoas por sua orientação sexual ou identidade de gênero.
4.7. Crítica à interpretação conforme
O que “raça” e “racismo” significam? Cada pessoa tem uma verdade pessoal quanto ao conceito de raça e racismo. O processo da ADO 26 também procurou definir uma verdade quanto ao conceito de racismo, utilizando a técnica de interpretação conforme (a Constituição) para chegar a uma verdade processual, que não é uma verdade absoluta, mas uma verdade relativa.
A verdade relativa, vale relembrar, é definida por Taruffo (2013) como uma aproximação àquela que se poderia considerar como correspondência perfeita dos enunciados aos fatos reais que esses descrevem, sendo este um grau de aproximação, maior ou menor, de acordo com a qualidade de informações sobre as quais se funda o conhecimento dos fatos dos quais se trata.
A interpretação do ministro Celso de Mello, equiparando condutas homofóbicas e transfóbicas ao racismo causa est. O conceito de racismo, apesar de, é claro, possuir variações semânticas, tem um substrato biológico essencial; o ministro Celso de Mello, ainda que acompanhando de alguns autores, parece estar mudando o sentido da palavra, alterando de forma ampliativa os seus elementos delimitadores. Nesse sentido, alguns conceitos da palavra raça:
ra·ça
(italiano razza)
substantivo feminino
1. Divisão tradicional de indivíduos cujos caracteres físicos biológicos são constantes e hereditários (ex.: raça amarela, raça branca, raça negra, raça vermelha). [Os progressos da genética levam hoje a rejeitar qualquer tentativa de classificação racial.]
2. Subdivisão de uma espécie animal (ex.: raças bovinas; raça de cães).
3. Conjunto de ascendentes e descendentes de uma família, um povo; geração. = DESCENDÊNCIA, ESTIRPE, FAMÍLIA, GERAÇÃO, LINHAGEM
4. Conjunto de pessoas da mesma profissão, das mesmas tendências (ex.: raça dos poetas).
5. [Figurado] Conjunto de indivíduos ou coisas da mesma qualidade. = CASTA, CLASSE, ESPÉCIE, JAEZ, LAIA, TIPO
6. [Informal] Coragem, determinação ou espírito de luta (ex.: atleta com raça).
7. Mínima quantidade de qualquer coisa (ex.: não mostrou raça de qualquer escrúpulo). = SINAL, VESTÍGIO
8. [Regionalismo] Réstia de sol.
substantivo masculino
9. [Portugal, Informal] Expressão usada para exprimir contrariedade ou descontentamento (ex.: o raça da rapariga só faz disparates; o raça do carro não quer andar).
"raça", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2021, https://dicionario.priberam.org/ra%C3%A7a [consultado em 29-05-2022].
Sem dúvidas o racismo, a homofobia e a transfobia têm diversas características semelhantes, gerando discriminação e exclusão de grupos, mas a identidade de um certo número de atributos entre os termos não eliminam as diferenças próprias de cada um dos termos.
O termo discriminação, por exemplo, pode incluir o racismo, a homofobia e a transfobia, além de outras formas de discriminações (e.g. capacitismo e sexismo). Portanto, discriminação pode ser considerada um gênero do qual racismo, homofobia e transfobia seriam espécies. O ministro parece estar aproximando ou mesmo igualando o conceito de racismo, que é mais específico, ao de discriminação, que é mais genérico, de forma a englobar a homofobia e transfobia.
O racismo no caso específico do Brasil tem como vítima principal a população negra. O Projeto de Lei 668/1988, que foi transformado na Lei Ordinária 7716/1989, tem sua Justificação voltada à população negra, ressaltando as privações desta população ao direitos da cidadania devido à prática odienta do racismo. Não há qualquer citação a orientação sexual ou identidade de gênero em sua tramitação.
Nesse sentido, para o Ministro Marco Aurélio (p. 553) ao versar a discriminação ou o preconceito considerada “a raça, a cor, a etnia, a religião ou a procedência nacional”, a Lei nº 7.716/1989 não contempla a decorrente da orientação sexual do cidadão ou da cidadã.
Conforme a American Anthropological Association (1998) a ideologia quanto à raça foi utilizada como estratégia para dividir, hierarquizar e controlar pessoas colonizadas; justificar desigualdades sociais, econômicas e políticas entre pessoas; e no nazismo a ideologia quanto a raça e diferenças raciais culminou no extermínio de onze milhões de pessoas de raças consideradas inferiores.
Conforme já exposto anteriormente neste artigo, pessoas levaram a questão racial ao status de uma verdade pessoal, realmente acreditando na superioridade de uma raça em relação outra, de modo que a construção de mundo baseada nessa verdade pessoal era considerada verdadeira.
Assim, não é possível negar a dimensão social do racismo, os efeitos sociais quanto à percepção racial podem ser os mais diversos; podem existir sociedades tolerantes, nas quais a percepção racial, se existir, não implica discriminações ou preconceitos, e também podem existir sociedades extremamente intolerantes, ao ponto de chegar a genocídios raciais.
Entretanto, toda essa dimensão social do racismo, muitas vezes preponderante, não elimina o caráter biológico intrínseco do racismo, muito menos o confunde com o conceito de orientação sexual ou identidade de gênero.
Portanto, a argumentação do ministro Celso de Mello, seguida sem grandes alterações pelos demais ministros que votaram seguindo aquele, apesar de ser bastante extensa e bem fundamentada em diversos outros aspectos, parece ter faltado em técnica quanto a interpretação conforme (a Constituição) do termo “racismo”, chegando a uma “inverdade processual”. Ainda, com a devida vênia, parece ter sido técnica do ministro para evitar enfrentar a questão da reserva legal.
4.8. ADO 26 - Avanço ou Retrocesso?
De acordo com o que foi explanado no tópico anterior, acerca do teor da ADO 26, percebe-
se que o STF usou, como ponto de percepção para chegar a equiparação do crime de racismo ao de homofobia, suas verdades pessoais acerca do tema. Assim, fazendo referência ao que já exposto na anteriormente no presente artigo, a verdade pessoal é aquela que sofre influências culturais, geracionais, históricas e sociais, independentemente da época em que a pessoa se encontra.
Eis o cerne do problema, qual seja: o STF teria sofrido essas influências, ainda que fosse desarrazoado em face do que preconiza no art. 5º, XXXIX, de nossa carta magna e o princípio da separação de poderes?
Destarte, é válido lembrar que esse mesmo artigo determina que “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”. Logo, é sabido que, para uma lei ter sua existência, é necessário que passe pelo crivo e análise do poder legislativo. Porém, como demonstrado anteriormente, no conteúdo da ADO 26, constava a criminalização da homofobia a partir de um critério que não se perfazia no âmbito da competência privativa do legislativo, qual seja, a função jurisdicional apta a tipificar condutas, individual e separadamente.
Essa criminalização da homofobia partiria de um critério equiparativo a um crime que surgiu em um outro contexto histórico e que, apesar de igualmente ofender uma minoria, não tem o mesmo grau de complexidade e de sofrimento, haja vista uma matéria tratar sobre raça e a outra sobre gênero.
Frisa-se que, como dito no capítulo anterior do presente artigo, a interpretação não é um ato de vontade e nem de impulso, sendo no mínimo razoável uma ação como essa imperar no sentido da individualização e procedimento legal do crime de homofobia, com base no processo legislativo que toda lei passa, sem arbitrariedades ou possível violação funcional.
Outrossim, Montesquieu, em sua obra “Espíritos das leis” (1996), concebe a teoria da separação dos poderes como forma de melhor governança de um Estado, a partir da compreensão dos freios e contrapresos, visando o controle e autonomia de cada poder para decidir sobre o que lhe convir, não ultrapassando os limites funcionais de cada um e regendo-se sempre pela harmonia entre si.
Dessa forma, estar em harmonia com os limites funcionais de cada um é também estar em harmonia com o próprio autolimite. Esse autolimite diz respeito à encontrar equilíbrio, não só quando decidir sobre a sociedade e para a mesma, mas também para evitar descompassos, arbitrariedades e ativismo judicial, principalmente quando tratar de matéria tão delicada.
5 CONCLUSÃO
A verdade absoluta não se mostra relevante para o processo; a verdade processual é uma verdade relativa, que pode ser mais próxima ou distante da verdade absoluta, conforme a qualidade e a quantidade das provas e informações do processo.
Existem duas noções quanto a um processo justo. A primeira noção é procedimental, o processo justo seria aquele que todas as garantias processuais são respeitadas, e a segunda noção é substancial, o processo justo seria aquele que implementa os direitos fundamentais. A segunda noção parece mais adequada, ainda mais considerando as pretensões constitucionais em matéria de direitos fundamentais do Estado brasileiro, sendo desarrazoado destinado ao Poder Judiciário apenas a função de zelar pelo respeito às normas procedimentais.
A atuação jurisdicional se encontra vinculada a um determinado paradigma filosófico. No primeiro paradigma, a metafísica clássica, a verdade existiria no mundo das ideias, e não no mundo sensível, o objeto existiria independente do sujeito. No segundo paradigma, a metafísica moderna, há uma inversão da relação entre sujeito e objeto, sendo o objeto orientado pelo sujeito.
A hermenêutica pretende estabelecer critérios de interpretação certos e objetivos. Em classificação de Streck (2013) a hermenêutica passou por três estágios: (i) hermenêutica especial ou teológica, do qual se destaca o contraposto ao absolutismo dogmático (ii) teoria geral da interpretação, do qual se destaca o “círculo hermenêutico”, técnica de interpretação do todo para a parte, e da parte para o todo e (iii) hermenêutica fundamental, em que a o estudo da hermenêutica passa a ter raízes existenciais.
É importante destacar que a interpretação deve preceder a decisão, o julgador não pode primeiro decidir e depois tentar fundamentar sua decisão. A interpretação não é um ato volitivo, o julgador deve se manter imparcial e não deixar suas convicções pessoais afetarem sua decisão. Também, o julgador-intérprete não pode deixar de observar em seu processo interpretativo o texto constitucional, sendo a Constituição para Streck (2013) a própria condição de possibilidade hermenêutica de outro texto.
Na ADO 26 utilizou-se uma interpretação para se chegar a uma decisão de equiparação da homofobia e transfobia ao crime de racismo (Lei 7.716).
Quanto ao primeiro ponto trazido na delimitação do tema da pesquisa, pode-se perceber que os elementos histórico-culturais foram levados em consideração como fundamentação da decisão no caso concreto, sendo que foi observado no Brasil uma perseguição histórica e institucional em razão de orientação sexual e identidade de gênero que perduram em alto grau até os dias atuais.
A interpretação do termo racismo como racismo social permitiu superar a questão da reserva legal, pois a partir dessa interpretação seria possível inserir no tipo de racismo da Lei 7.716 as condutas preconceituosas ou discriminatórias contra pessoas por sua orientação sexual ou identidade de gênero, e não se estaria criando um crime ou cominando uma pena.
Entretanto, toda essa dimensão social do racismo, muitas vezes preponderante, não elimina o caráter biológico intrínseco do racismo, muito menos o confunde com o conceito de orientação sexual ou identidade de gênero, não estando estes grupos abarcados no âmbito da Lei 7.716, estando nesse sentido o Ministro Marco Aurélio.
No entendimento do STF, parece ter faltado em técnica quanto a interpretação conforme (a Constituição) do termo “racismo”, chegando a uma “inverdade processual”. Ainda, com a devida vênia, parece ter sido técnica para evitar enfrentar a questão da reserva legal.
Fazendo uma análise propriamente da questão da reserva legal, três ministros entenderam não ser possível invocar os precedentes concretistas devido a matéria penal estar sujeita a reserva legal absoluta, destacando ainda que o tipo penal não pode ficar vinculado ao subjetivismo dos magistrados, e que a criminalização, ainda que existente omissão, deveria ser feita pelo poder competente, o legislativo.
Uma abordagem argumentativa melhor sobre o tema poderia ter sido feita pelo Supremo Tribunal Federal com base na teoria das colisão de princípios, mas somente os ministros vencidos enfrentam realmente a questão da reserva legal, tendo se posicionado sobre sua prevalência em relação a omissão em matéria penal.
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[1] Acadêmico do Curso de Direito do Centro Universitário Santo Agostinho. E-mail: ([email protected]).
[2] Orientador e professor do Curso de Direito do Centro Universitário Santo Agostinho. E-mail: ([email protected]).
Acadêmica do Curso de Direito do Centro Universitário Santo Agostinho
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LIMA, Maria Victoria Nogueira. A verdade processual e a justificação das decisões judiciais Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 09 jun 2022, 04:19. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/58634/a-verdade-processual-e-a-justificao-das-decises-judiciais. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Fernanda Amaral Occhiucci Gonçalves
Por: MARCOS ANTÔNIO DA SILVA OLIVEIRA
Por: mariana oliveira do espirito santo tavares
Por: PRISCILA GOULART GARRASTAZU XAVIER
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