RESUMO: O presente trabalho científico estuda sobre o instituto da audiência de custódia e sua tardia previsão normativa no Código de Processo Penal (CPP) através da modificação dada pela Lei nº 13.964/2019 (Lei Anticrime). Foi realizada a conceituação do tema e um breviário histórico sobre a audiência de custódia no Brasil por meio da sua internalização através dos tratados internacionais da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), recepcionado por meio do Decreto nº 678/1992 e pelo Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (PIDCP), recepcionado pelo Decreto nº 592/1992, bem como, demonstrada a relevância da Resolução 213/2015 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) a qual deu novos contornos ao instituto da audiência de custódia no cenário nacional, verificando também a alteração normativa do art. 310 do CPP decorrente da Lei Anticrime. Posteriormente, foi desenvolvido um recorte ao tema considerando os aspectos positivos advindos da inserção da audiência de custódia no ordenamento jurídico pátrio alterando o Código de Processo Penal de 1941 por meio da Lei Anticrime, estabelecendo seus alcances constitucionais e a importância de determinação legal do prazo de 24 horas para realização da apresentação do preso perante autoridade judicial competente. Ao final, foram tecidas críticas em razão de falhas decorrentes das redações dos dispositivos legais, os quais ferem princípios constitucionais dos indivíduos presos e diminuem o alcance do instituto da audiência de custódia atribuído inicialmente em nível internacional por meio dos tratados da CADH e PIDCP. A pesquisa realizada foi dedutiva, tendo sua abordagem qualitativa, com uso de material bibliográfico e documental, possuindo ainda um caráter exploratório.
Palavras-chaves: Audiência de Custódia. Código Processual Penal. Lei Anticrime.
1. INTRODUÇÃO
O Código de Processo Penal está em vigência desde 1941, sendo anterior a promulgação da Constituição Federal de 1988. No entanto, sua redação vem sofrendo alterações com vistas em tornar o sistema processual penal brasileiro garantista através dos princípios constitucionais que visam resguardar a higidez e integridade na condução da marcha processual e pré-processual com respeito intimamente ligado aos direitos humanos.
Como uma destas alterações com vistas em resguardar o individuo recolhido ao cárcere, desde 1992 o Brasil é signatário da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), promulgada através do Decreto nº 678/1992, e o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (PIDCP), promulgado no país pelo Decreto nº 592/1992. Elas possuem em comum a previsão de que qualquer individuo preso ter como direito a apresentação, sem demora, perante autoridade judicial competente para verificar possibilidade da aplicação de medidas cautelares diversas da prisão.
Tal procedimento é reconhecido como “audiência de custódia” e só foi positivado no Código de Processo Penal no ano de 2019, através das alterações advindas da Lei nº 13.964/2019 (Lei Anticrime), a qual repercute no cenário nacional mediante várias controvérsias sobre sua redação e aplicabilidade prática.
Assim, tendo como base a exposição realizada acima, o objetivo deste artigo científico reside em buscar analisar os impactos das alterações promovidas pela Lei Anticrime ao Processo Penal. Deste modo, o problema enfrentado nesta oportunidade é: quais as implicações práticas advindas da positivação do procedimento de audiência de custódia no Código de Processo Penal brasileiro?
Para encontrar respostas ao problema suscitado acima, o presente artigo cientifico foi dividido em três capítulos. O primeiro buscou tracejar o caminho percorrido pelo instituto da audiência de custódia no plano internacional por meio dos tratados da CADH e PIDCP até sua efetiva positivação ao ordenamento jurídico pátrio no Código de Processo Penal. Em segundo momento, foram demonstrados os reflexos positivos advindos da alteração promovida pela Lei Anticrime ao inovar o ordenamento jurídico pátrio e fazer constar a obrigatoriedade de comparecimento do preso em audiência de custódia dentro do prazo de 24 horas. Por fim, foi realizado um levantamento dos impactos negativos que ainda persistem, apesar da previsão normativa que visa precipuamente efetivar direitos e garantias individuais dos presos.
Quanto ao motivo social, este artigo científico é relevante, pois irá compilar as alterações promovidas pela a Lei Anticrime ao Código de Processo Penal no tocante a obrigatoriedade de realização da audiência de custódia, tema o qual precisa ser aprofundado e disseminado para que o público em geral possua conhecimento sobre o instituto.
A importância cientifica deste artigo cientifico reside em, por se tratar de uma alteração recente, ser relevante o estudo sobre o tema para que a comunidade acadêmica possua novas fontes de conhecimento e familiaridade com as modificações ocorridas ao texto legal do CPP.
Pessoalmente, a temática toca a autora, pois o instituto da audiência de custódia passou despercebido no ordenamento jurídico pátrio por um grande lapso temporal, sendo inaplicável mesmo havendo tratados internacionais recepcionados pelo Brasil por meio de Decretos e, ainda sim, sendo tardia sua aplicação prática.
Metodologicamente este artigo científico teve como método o qualitativo, pois, a partir do recorte temático realizado e dos dados coletados foi possível obter familiaridade com o tema escolhido (LAKATOS; MARCONI, 2003).
A pesquisa desenvolvida possui caráter exploratório, pois a partir da problemática levantada inicialmente, foram realizadas coletas de dados em bibliografias disponíveis as quais revelaram respostas ao questionamento (LAKATOS; MARCONI, 2003).
Quanto aos procedimentos metodológicos utilizados, a pesquisa foi realizada por meio de pesquisa bibliográfica e documental, através de leis, doutrina, jurisprudências e artigos científicos que versem sobre o tema (GIL, 2007).
2. AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA E SUA CONFORMIDADE AO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
Para o professor Caio Paiva (2015), “a audiência de custódia consiste na condução do preso, sem demora, à presença de uma autoridade judicial que deverá, a partir de prévio contraditório estabelecido entre o Ministério Público e a Defesa, exercer um controle imediato da legalidade e da necessidade da prisão” (PAIVA, 2015, p. 41).
Em âmbito internacional, esse instituto tem previsão em dois tratados internacionais, quais sejam: a CADH, da qual o Brasil é signatário desde 1992, ingressando no ordenamento jurídico pátrio através do Decreto nº 678/1992 e o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (PIDCP), promulgado no país pelo Decreto nº 592/1992.
Primeiramente, estabelece a CADH através do Decreto nº 678/1992 que:
Art. 7ª, item 5: Toda pessoa detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada pela lei a exercer funções judiciais e tem direito a ser julgada dentro de um prazo razoável ou a ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo (BRASIL, 1992, p. [?]).
Por sua vez, o PIDCP, internalizado através do Decreto nº 592 de 1992, em seu artigo 9ª, item 3 prevê que:
Qualquer pessoa presa ou encarcerada em virtude de infração penal deverá ser conduzida, sem demora, à presença do juiz ou de outra autoridade habilitada por lei a exercer funções judiciais e terá o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade. A prisão preventiva de pessoas que aguardam julgamento não deverá constituir a regra geral, mas a soltura poderá estar condicionada a garantias que assegurem o comparecimento da pessoa em questão à audiência, a todos os atos do processo e, se necessário for, para a execução da sentença (BRASIL, 1992, p. [?]).
Assim, os referidos tratados internacionais abordam a necessidade de a pessoa presa ser apresentada, sem demora, à presença de um juiz ou de outra autoridade judiciária competente. Com isso, busca-se um controle judicial imediato da prisão (PAIVA, 2015), para realização de avaliações de detenções ilegais ou arbitrárias, a prática de maus tratos ou torturas e a conveniência da manutenção da detenção.
Embora desde 1922 o Brasil seja signatário dos tratados internacionais mencionados, até o início de 2015 não havia ocorrência da realização de nenhuma apresentação pessoal nos termos exigidos pelos tratados do PIDCP e CADH (YUNG-TAY NETO, 2017). Até então, o entendimento era de que a apresentação pessoal do suspeito poderia ser substituída pelo envio do auto de prisão em flagrante dentro do prazo de 24 horas, nos termos do art. 306, §1º, do CPP.
A implantação das audiências de custódia no país só ocorreu em 2015, através do julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 347. Em seguida, esse instituto foi regulamentado pela Resolução nº 213/2015 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Posteriormente, positivado no ordenamento jurídico brasileiro com a Lei nº 13.964 de 2019 (Pacote Anticrime).
Em sede de discussão da ADPF nº 347 o seu objetivo precípuo residiu na discussão pela Suprema Corte sobre a crise prisional brasileira. Na oportunidade, ficou consignado, através da utilização do termo “audiência de custódia” que a sua realização seria feita dentro do prazo de 90 (noventa) dias por juízes e tribunais.
De acordo com os dados do Levantamento Nacional de População Carcerária, o Brasil possui uma das maiores populações carcerárias do mundo. Em 2019, a população prisional era de aproximadamente 773.151 (setecentos e setenta e três mil e cento e cinquenta e um) pessoas privadas de liberdade em todos os regimes (BRASIL, 2020). Deste número, segundo a mesma pesquisa, 33% deste número, são presos provisórios que ainda não foram condenados e estão presos devido alguma modalidade de prisão cautelar (BRASIL, 2020).
Ainda em 2015, considerando o cenário de superencarceramento do país e buscando efetivar um direito previsto nos tratados internacionais incorporados ao ordenamento jurídico pátrio, o Conselho Nacional de Justiça lançou o “Projeto Audiência de Custódia”.
Posteriormente, o projeto foi regulamentado pela Resolução nº 213 do CNJ, de 15 de dezembro de 2015. A audiência de custódia aparece, portanto, como uma importante ferramenta no controle das prisões arbitrárias e ilegais, bem como de apuração e coibição das práticas de tortura e violência policial.
A partir de 2019, o termo “audiência de custódia” passou a integrar o ordenamento jurídico pátrio no Código de Processo Penal (CPP) introduzido pelas alterações da Lei nº 13.964/2019 (Pacote Anticrime), disciplinando através do seu art. 310 a obrigatoriedade de realização da audiência de custódia na ocorrência de prisão em flagrante dentro do prazo de 24 horas.
Outra alteração realizada pela Lei nº 13.964/2019 foi feita no art. 287 do CPP, no qual também prevê a obrigatoriedade de realização da audiência de custódia em casos de mandados judiciais de prisão temporária, preventiva ou cumprimento definitivo da pena.
Considerando a previsão legal da audiência de custódia no ordenamento jurídico pátrio, passaremos a analisar os avanços advindos de tal modificação legislativa.
3. ASPECTOS POSITIVOS A PARTIR DA VIGÊNCIA DE OBRIGATORIEDADE DA REALIZAÇÃO DE AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA NO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
Conforme já demonstrado, a inserção da previsão normativa de obrigatoriedade da realização de audiências de custódia no Brasil foi tardia. Para Bernardo de Azevedo e Souza (2015) este atraso deve ser considerado como comodismo por parte dos responsáveis pelas implementações de mecanismos jurídicos eficientes ao progresso do sistema processual penal brasileiro. Sobre o tema, vejamos as ponderações realizadas por Mateus Marques:
Diante do estudo realizado, é possível perceber que não basta o Brasil ter ratificado, no longínquo ano de 1992, o Pacto de San José da Costa Rica, se não houver comprometimento em relação à (necessária) alteração legislativa que altere o disposto no art. 306 do CPP determinando a apresentação do conduzido em até 24 horas após sua prisão à presença de um juiz ou alguém com poderes para representar. Nesse sentido, e em respeito aos deveres de proteção assumidos pelo estado brasileiro, essa lacuna só poderá ser devidamente ajustada quando houver comprometimento legislativo nesse sentido (MARQUES, 2016, p. 20).
Pelo exposto acima, cumpre destacar que apesar da tardia implementação do instituto da audiência de custódia no Brasil, através da Lei nº 13.964/2019 como um procedimento obrigatório, isto representa um grande avanço na consolidação de garantias constitucionais de proteção aos direitos humanos (ALBUQUERQUE; FUSINATO, 2020). Passaremos agora para análise pormenorizada dos avanços advindos da alteração legislativa dos arts. 310 e 287 do CPP.
Primeiramente, se observamos aos regramentos advindos do PIDCP e da CADH notaremos que estabelecem tão somente a necessidade de apresentação do preso a uma autoridade judicial sem determinar o prazo para realização deste procedimento. Com a redação conferida pela Lei nº 13.964/2019 (Lei do Pacote Anticrime), ficou estabelecido que este prazo deve ser de 24 horas contados a partir da prisão em flagrante. A Resolução nº 213 do CNJ desde 2015 já estabelecia igual prazo para apresentação. No entanto, existem controvérsias em razão de possíveis inconstitucionalidades da referida resolução, tendo em vista que é competência legislativa privativa da União regulamentar matéria de Direito Processual Penal (ANDRADE; ALFLEN, 2016).
De todo modo, a partir da vigência da Lei nº 13/964/2019 consolidando o prazo de 24 horas para apresentação do preso, a Resolução nº 213 do CNJ teve seus efeitos cessados quanto ao tema em questão e em razão de possíveis inconstitucionalidades (ALBUQUERQUE; FUSINATO, 2020).
Em segundo plano, a obrigatoriedade de realização de audiências de custódia com previsão expressa dentro do Código de Processo Penal brasileiro surge como um mecanismo que visa constitucionalizar o sistema penal, consubstanciando garantias fundamentais e visando consolidar o processo penal de forma mais humana (ALBUQUERQUE; FUSINATO, 2020).
Assim sendo, com a nova redação do art. 310 do CPP, estão inseridos alguns princípios processuais fundamentais pertinentes a obrigatoriedade de apresentação do preso, quais sejam: o principio da presunção de inocência (art. 5º, LVII da CFRB/1988), necessidade de fundamentação das decisões judiciais (art. 93, IX, CFRB/1988), excepcionalidade das prisões cautelares (art. 5º, LXVI, CFRB/1988), contraditório e da ampla defesa (art. 5º, LV, CFRB/1988).
Para além das abordagens realizadas acima, cumpre destacar que com a inserção de tal previsão normativa, ocorre um controle imediato por parte da autoridade competente com vistas em verificar a legalidade da prisão e sua possível conversão em outras medidas, revelando um combate ao encarceramento em massa que é enfrentado no Brasil (ALBUQUERQUE; FUSINATO, 2020).
Apesar de avanços significativos com a previsão expressa pelo Código de Processo Penal brasileiro da obrigatoriedade de realização das audiências de custódia, ainda existem lacunas e significativos aspectos negativos a serem ponderados sobre o tema, dos quais passaremos a verificar no próximo capítulo.
4. RESSONÂNCIAS NEGATIVAS DAS ALTERAÇÕES PROMOVIDAS NO ART. 310 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL PELA LEI Nº 13.964/2019
Apesar dos significativos avanços experimentados com a inserção da obrigatoriedade de realização das audiências de custódia dentro do prazo de 24 horas no Código de Processo Penal, ainda existem falhas que persistem para a efetivação de tal direito e garantia ao preso. A redação do art. 310 do CPP indica que:
Art. 310. Após receber o auto de prisão em flagrante, no prazo máximo de até 24 (vinte e quatro) horas após a realização da prisão, o juiz deverá promover audiência de custódia com a presença do acusado, seu advogado constituído ou membro da Defensoria Pública e o membro do Ministério Público, e, nessa audiência, o juiz deverá, fundamentadamente:
[...]
§ 2º Se o juiz verificar que o agente é reincidente ou que integra organização criminosa armada ou milícia, ou que porta arma de fogo de uso restrito, deverá denegar a liberdade provisória, com ou sem medidas cautelares.
[...]
§ 4º Transcorridas 24 (vinte e quatro) horas após o decurso do prazo estabelecido no caput deste artigo, a não realização de audiência de custódia sem motivação idônea ensejará também a ilegalidade da prisão, a ser relaxada pela autoridade competente, sem prejuízo da possibilidade de imediata decretação de prisão preventiva (BRASIL, 1941, p. [?]).
A partir da leitura do dispositivo legal mencionado acima, cumpre observar que sua redação conferiu a obrigatoriedade de apresentação do preso para autoridade competente apenas para os casos de flagrante delito, não sendo suportada nas demais modalidades de prisões existentes dentro do Código Processual Penal brasileiro. Assim, foram deixadas de fora as hipóteses de prisão preventiva, prisão temporária e a prisão para cumprimento definitivo de pena.
Apesar da restrição contida no art. 310 do CPP, o art. 287 do mesmo diploma legal aduz que “se a infração for inafiançável, a falta de exibição do mandado não obstará a prisão, e o preso, em tal caso, será imediatamente apresentado ao juiz que tiver expedido o mandado, para a realização de audiência de custódia”. Assim, o referido artigo buscou tratar da realização de audiência de custódia nas hipóteses de prisões que decorrem de mandado judicial. No entanto, a redação deste dispositivo pode incorrer em algumas interpretações equivocadas. Vejamos:
Em um primeiro momento, o dispositivo pode gerar a interpretação de que, nos casos de prisão decorrente de decisão judicial, a única hipótese em que deve ser realizada a audiência de custódia é quando o mandado não é apresentado pela autoridade no momento da detenção. Ou, em um segundo momento, pode dar a entender que a apresentação do indivíduo detido limita-se aos casos de infrações inafiançáveis (HAUSHAHN, 2020, p.46).
Independentemente do entendimento dado ao artigo 287 do CPP, não havendo a realização da audiência de custódia nas prisões que decorrem de ordem judicial, ocorre manifesta macula nas garantias e direitos dos presos, visto que não existe nos tratados internacionais que o Brasil é signatário (CADH e PIDCP) nenhum tipo de menção ou restrição quanto ao tipo de prisão e aplicação das audiências de custódia.
Tanto o CADH e PIDCP preconizam a universalidade da medida para todos os presos, independentemente da modalidade de prisão. Andrade e Alflen ao tratar sobre o tema relatam que a audiência de custódia é um instituto que reflete em todas as pessoas que possuem a sua liberdade restringida de alguma forma (ANDRADE; ALFLEN, 2017). Laura Gigante Albuquerque e Júlia Tormen ao tratar sobre o tema ressaltam que:
As arbitrariedades e, principalmente, abusos por parte de quem está realizando a prisão estão vinculados ao ato da detenção, sendo irrelevante, portanto, se é derivado de um flagrante ou de ordem judicial. Por essa razão, se faz de extrema importância que a audiência de custódia ocorra após toda e qualquer prisão, uma vez que a rápida apresentação da pessoa presa resguarda a sua integridade física e psíquica no momento de vulnerabilidade frente aos agentes policiais (ALBUQUERQUE; FUSINATO, 2020, p. 583).
Pelo exposto acima, observamos que não houve preocupação legislativa com a edição da Lei nº 13.964/2019 em consolidar a realização da audiência de custódia de forma plena para todos os tipos de prisão, mesmo com a preexistência do CADH e PIDCP, abrindo margem para que ocorra a realização de apresentações de forma insuficiente ou até mesmo que seja dispensado tal procedimento, visto que não há previsão expressa em normal legal processual penal quanto à universalidade do procedimento para todos, independentemente da modalidade de prisão.
De igual modo, pela redação do §2º do art. 310, do CPP, observamos manifesta inconstitucionalidade por violação direta ao principio da presunção de inocência (art. 5º, LVII, CFRB/1988) dada a restrição de concessão da liberdade provisória se houver ocorrência de reincidência ou o individuo for integrante de “organização criminosa armada ou milícia, ou que porta arma de fogo de uso restrito” (BRASIL, 1941, p. [?]).
Quando a autoridade competente estiver diante de alguma das hipóteses mencionadas acima a regra é adotar a prisão provisória, não havendo como aplicar nenhuma medida cautelar diversa da prisão. Neste mesmo interim, ocorre também quebra ao principio da excepcionalidade da prisão provisória, visto que nestes casos o encarceramento não é a última medida a ser adotada pela autoridade competente, na verdade, ela será a única medida.
Por fim, outra alteração drástica resultante das alterações promovidas pelo Pacote Anticrime consiste na redação do §4º do art. 310 do CPP a qual alterou o termo inicial de contagem do prazo de 24 horas. Inicialmente, o §1º do art. 1 da Resolução nº 213 do CNJ destacava que o termo inicial de contagem seria a partir “da comunicação do flagrante à autoridade judicial competente” (BRASIL, 2015, p. [?]).
Com a vigência da Lei nº 13.964/2019 este prazo passou a ter como termo inicial é contado em 24 horas após a realização da prisão (art. 310, caput, CPP). Em questões práticas, houve uma redução drástica do tempo para que seja realizada a audiência de custódia.
Não bastante, o §4º do art. 310, CPP infere que após mais 24 horas, ou seja, 48 horas da detenção do individuo, não ocorrendo realização da audiência de custódia sem motivação idônea, caberá o relaxamento da prisão (BADARÓ, 2020).
Assim sendo, críticos relatam que o referido texto legal não é condizente com a realidade brasileira, tendo em vista que a previsão normativa desconsidera “dificuldades práticas locais de várias regiões do país, bem como dificuldades logísticas decorrentes de operações policiais de considerável porte” (BRASIL, 2020, p. 8). Ocorre que, em razão de interpretações diversas, principalmente ao que seria uma “motivação idônea” para a não realização da audiência de custódia, o §4º do art. 310 teve sua eficácia suspensa por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade 6.298/DF de relatoria do Min. Luiz Fux.
Por todo o exposto, cumpre inferir que a Lei nº 13.964/2019 ao tratar sobre audiências de custódia deixou a desejar em vários aspectos, conforme demonstrado ao longo deste artigo cientifico. Por mais que o intuito de sua positivação tenha logrado êxito em alguns aspectos, ainda existem pontos a serem aperfeiçoados para tornar o instituto sólido e efetivamente garantista dentro do ordenamento jurídico pátrio.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este artigo científico analisou as alterações promovidas pela Lei nº 13.964/2019 ao Código de Processo Penal com a inserção do procedimento de audiência de custódia como obrigatório dentro do prazo de 24 horas a partir da prisão do individuo. Constatamos que em resposta ao problema enfrentado nesta pesquisa, e possível afirmar que ocorreram implicações práticas positivas e negativas a partir da positivação de obrigatoriedade da apresentação do preso dentro de 24 horas perante autoridade judicial competente.
Apesar de críticas em razão das alterações advindas pela Lei Anticrime, o estabelecimento por lei federal de prazo para apresentação do preso para que se verifique a legalidade e a necessidade da prisão representa importante marco ao combate do encarceramento em massa, problema enfrentado pelo Brasil há muitos anos. Sua inserção ao Código de Processo Penal brasileiro significa avanço para enfretamento da crise carcerária que assola o país.
No entanto, conforme demonstrado neste artigo cientifico, o legislador não cuidou de assegurar tal direito de forma universal. A bem da verdade, a alteração promovida pela Lei Anticrime restringiu aplicação da audiência de custódia tão somente aos casos de prisão em flagrante delito (art. 310, caput, CPP) ou, aos casos de prisões que decorrem de ordem judicial (art. 287, CPP).
Ao segmentarem a aplicação do procedimento de apresentação do preso em audiência de custódia e não aplicarem a todo o tipo de prisão, o ordenamento jurídico pátrio abre lacuna para que ocorra o enfraquecimento da efetividade do instituto, vez que podem ocorrer apresentações insuficientes ou até mesmo inocorrência de realização da audiência de custódia, visto que não há previsão expressa de obrigatoriedade de sua realização para todos os tipos de prisão.
Ao mesmo tempo em que a apresentação do preso sob o procedimento de audiência de custódia representa significativos ganhos e salvaguardam direitos e garantias fundamentais. A redação dada ao art. 310, §2º do CPP recai em maculas ao principio da presunção de inocência e da excepcionalidade da pena.
Todas estas considerações demonstram, entre ganhos e retrocessos, que ainda são necessárias modificações ao texto normativo para que este se adeque aos ditames constitucionais e aos tratados internacionais. O Direito Processual Penal não pode e nem deve estar aquém dos direitos e garantias fundamentais inerentes aos presos.
REFERÊNCIAS
ALBUQUERQUE, Laura Gigante; FUSINATO, Júlia Tormen. A Audiência de Custódia na Lei Anticrime (Lei nº 13.964/2019): Entre Avanços e Retrocessos. Revista da Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul – Ano 11, n. 26 (jan./jun. 2020). – Porto Alegre: DPE.
ANDRADE, Mauro Fonseca; ALFLEN, Pablo Rodrigo. Audiência de Custódia no Processo Penal Brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2ª ed., 2016.
BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo penal [livro eletrônico] -- 6. ed. -- São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020. Disponível em: https://proview.thomsonreute rs.com/launchapp/title/rt/monografias/104402244/v8. Acesso em 10 de set. 2021.
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YUNG-TAY NETO, Pedro de Araújo. O processo de implantação da audiência de custódia no Distrito Federal. 2017. 234 f., il. Dissertação (Mestrado em Direitos Humanos e Cidadania) - Universidade de Brasília, Brasília, 2017.
Formada em Direito pela Universidade Federal do Maranhão. Pós Graduada em Penal e Processo Penal pela Uniamérica. Técnica Judiciária no Tribunal Regional do Trabalho da 16a Região.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LIMA, Ithaiara Carvalho. Análise acerca da audiência de custódia e das alterações promovidas pela lei nº 13.964/2019 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 24 jun 2022, 04:07. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/58738/anlise-acerca-da-audincia-de-custdia-e-das-alteraes-promovidas-pela-lei-n-13-964-2019. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Gabrielle Malaquias Rocha
Por: BRUNA RAFAELI ARMANDO
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