Resumo: Dentre os direitos e garantias fundamentais estampados na Constituição da República, a liberdade é um dos mais importantes, quiçá o maior deles. Um dos instrumentos também previstos na Constituição para sua defesa é o habeas corpus. A regulamentação do habeas corpus encontra respaldo em lei infraconstitucional e as hipóteses para seu manejo são diversas, todas com a missão encampada pela Constituição: socorrer aquele que sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder. No campo do direito criminal, não há dúvidas de sua valiosa importância, haja vista que a utilização da privação da liberdade como punição para a prática de delitos. Este estudo buscou analisar o habeas corpus, esmiuçando o contexto histórico de sua criação, pincelando as características do remédio heroico e, ainda, discorrendo sobre as suas hipóteses de manejo no direito Pátrio atual.
Palavras-chave: direito constitucional; liberdade de locomoção; habeas corpus.
Abstract: Among the fundamental rights and guarantees stipulated in the Constitution of the Republic, freedom is one of the most important, perhaps the greatest of them. One of the instruments also provided for in the Constitution for its defense is habeas corpus. The regulation of habeas corpus finds support in infraconstitutional law and the possibilities for its management are diverse, all with the mission assumed by the Constitution: to help those who suffer or feel threatened to suffer violence or coercion in their freedom of movement, due to illegality or abuse of power. In the field of criminal law, there is no doubt of its valuable importance, given that the use of deprivation of liberty as a punishment for the commission of crimes. This study sought to analyze the habeas corpus, scrutinizing the historical context of its creation, highlighting the characteristics of the heroic remedy and also discussing its management hypotheses in current country law.
Key-works: constitutional law; freedom of movement; habeas corpus.
Introdução
No dia 23 de fevereiro do ano de 2006[1], nos autos do habeas corpus número 82.959-7, em controle difuso de constitucionalidade, o plenário do Supremo Tribunal Federal declarou inconstitucional o artigo 2º, §1º da Lei 8.072/90, conhecida como a Lei dos Crimes Hediondos. Referido artigo dispunha, quanto aos delitos listados na referida lei – hediondos, portanto, – o cumprimento de pena privativa de liberdade em regime integralmente fechado. Após o julgamento do caso concreto, com a notificação do Senado Federal, foi elaborada e ainda se encontra em vigor a Lei 11.464/2007, que passou a possibilitar a progressão de regime de cumprimento de pena para os crimes hediondos. Tal decisão retratou uma evolução jurisprudencial da corte e da jurisprudência pátria, consubstanciando-se em grande avanço nos direitos dos condenados pela prática de crimes hediondos, garantindo a tais apenados o direito à individualização da pena, previsto na Constituição da República.
Muito mais do que o brilhantismo do voto dos ministros que concederam a ordem pleiteada e declararam inconstitucional o mencionado artigo da Lei dos Crimes Hediondos, merece destaque a ação que propiciou a discussão: o habeas corpus.
No caso concreto, o writ foi redigido diretamente de dentro de uma cela. O impetrante: o próprio paciente, condenado em definitivo a uma pena de mais de 12 anos em regime integralmente fechado. As custas pagas para conhecimento de seu apelo: nenhuma. O conhecimento técnico e científico comum àqueles que advogam na Suprema Corte: nenhum, haja vista que o paciente e impetrante também não o possuía e lançou mão do direito de exercer sua capacidade postulatória para tal intento. A impetração: por meio de uma carta enviada à Suprema Corte.
Tais fatos destacam importantes características do habeas corpus, o qual permite a toda e qualquer pessoa defender o direito à liberdade de locomoção, seja para si ou para outrem, para brasileiro ou estrangeiro, interessado ou não na ordem, representado ou não por advogado, mesmo que hipossuficiente financeiramente.
De fato, tais características decorrem da missão constitucionalmente entregue ao habeas corpus: a salvaguarda do direito à liberdade de locomoção.
Por meio do habeas corpus, é franqueado ao Poder Judiciário a discussão dos mais diversos temas que afligem a sociedade, além de possibilitada a garantia individual buscada pelo impetrante.
Com raízes que remontam ao direito romano, o habeas corpus, assim como a jurisprudência das cortes superiores, evoluiu com o tempo e passou a ser admitido em diversas situações e de diferentes formas.
Podemos aqui memorar também uma inovação na jurisprudência pátria quando recentemente, no ano de 2018, o Supremo Tribunal Federal conheceu habeas corpus coletivo impetrado pela Defensoria Pública da União em favor de todas as mulheres presas, gestantes, puérperas, ou mães de crianças e deficientes sob sua guarda, e concedeu-lhes a ordem para garantir a conversão da prisão cautelar em prisão domiciliar[2], afastando, portanto, a necessidade de individualização do paciente.
A constante evolução da jurisprudência dos Tribunais Superiores pode garantir – como o fazem na grande maioria das vezes – a aplicação dos primados da justiça ao caso concreto. Neste diapasão, em razão das características que lhe são próprias, o habeas corpus possibilita aos jurisdicionados a facilitação do acesso ao Poder Judiciário.
1. Liberdade
A chegada de Adolf Hitler ao poder e, consequentemente, sua ascensão na Alemanha, com o domínio das terras europeias, o regime nazista cresceu vertiginosamente no mundo e tornou-se marco na História como um evento de terror e restrição de liberdades, em uma ditadura cuja base se solidifica na exclusão do indivíduo como ser pensante e indiferente ao Estado-Juiz.
Pelo recente histórico, com o término da II Guerra Mundial e a verificação das mais diversas atrocidades nela cometidas contra o homem, as razões históricas que levaram diversos países à constitucionalização da dignidade da pessoa humana tornaram-se evidentes e a recuperação da pluralidade do espaço público voltou a ser um ideal a ser conquistado. Nesse sentido, o Judiciário brasileiro foi ajustado conforme as constituições europeias do pós-guerra; todas analíticas.
Por esses e outros fundamentos, a lei maior de um país, não só a Constituição da República Brasileira de 1988, bem como a maioria das Constituições Latino-Americanas, são fruto da luta contra o autoritarismo, desenhada em um contexto de busca da defesa e da realização de direitos fundamentais do indivíduo. Assim, na linha do constitucionalismo contemporâneo, incorporou-se expressamente ao seu texto o princípio da dignidade da pessoa humana, tal como se contém no art. 1º, III da Constituição da República.
Nesse sentido, Ingo Wolfgang Sarlet (2001, p. 111-112):
A qualificação da dignidade da pessoa humana como princípio fundamental traduz a certeza de que o art. 1º, inciso III, de nossa Lei Fundamental não contém apenas uma declaração de conteúdo ético e moral (que ela, em última análise, não deixa de ter), mas que constitui uma norma jurídico-positiva com status constitucional e, como tal, dotada de eficácia, transformando-se de tal sorte, para além da dimensão ética já apontada, em valor jurídico fundamental da comunidade.
Nessa conjuntura de significantes libertários, em 1942, no contexto de dominação nazista, fora escrito o mundialmente conhecido O Diário de Anne Frank, obra autobibliográfica, escrito em um esconderijo na Holanda onde Anne Frank se abrigava com sua família, escondida da perseguição nazista, cujo diário relata o cotidiano da garota alemã e judia que foi obrigada a crescer em um ambiente conturbado, privado de liberdades usuais, neste episódico período infeliz da História.
Nesse passo, desde os tempos mais idos da civilização, a liberdade acompanha toda a trajetória da vida humana em todas as dimensões possíveis (políticas, jurídica, econômica, existencial etc.). Para o mundo ocidental, ela se materializa como um dos valores mais caros. Sendo, inclusive, um valor acima da vida, como já alertava Dom Quixote (2013, p. 231):
A liberdade, Sancho, é um dos dons mais preciosos, que aos homens deram os céus: não se lhe podem igualar os tesouros que há na terra, nem os que o mar encobre; pela liberdade, da mesma forma que pela honra, se deve arriscar a vida, e, pelo contrário, o cativeiro é o maior mal que pode acudir aos homens.
Lado outro, malgrado sua acepção fundamental ao homem, esta, por sua vez, transcende o valor positivo, tendo em vista que ela também pode ser fruto da angústia existencial.
No entender de Sartre, a preocupação existencial de que o indivíduo deve fazer uma opção, ao deparar-se com tantas possibilidades em sua vida. Esta consciência de escolha, infelizmente, gera nele angústia; trata-se de uma angústia simples, gerada pela responsabilidade de opções, o homem é livre e responde por suas escolhas, não podendo culpar a outrem por suas glórias ou fracassos. Nesse ponto, ele afirma:
O homem é livre porque não é si mesmo, mas a presença a si. O ser que é o que é não poderia ser livre. A liberdade é precisamente o nada que é tendo sido no âmago do homem e obriga a realidade humana a fazer-se em vez de ser. [...], para a realidade humana, ser é escolher-se: nada lhe vem de fora, ou tampouco de dentro, que ela possa receber ou aceitar. Está inteiramente abandonada, sem qualquer ajuda de nenhuma espécie, à insustentável necessidade de fazer-se ser até o mínimo detalhe. Assim, a liberdade não é um ser: é o ser do homem, ou seja, seu nada de ser.[3]
Sendo, assim, para Jean- Paul Sartre, o homem é homem pela sua condição de ser livre. O homem é fruto de sua liberdade porque diuturnamente escolhe as ações que irá praticar. Logo, a liberdade não é uma conquista humana, ela é uma condição da existência humana.
Em outras palavras, a liberdade é, desta forma, um valor intrínseco da pessoa, superior a qualquer preço que queiram lhe fixar.
Neste sentido devemos memorar, inclusive, que a liberdade é a base dos direitos fundamentais de primeira geração.
Assim, como defesa da pessoa humana perante o Estado-Juiz, a inserção do cidadão em uma ordem jurídica certa e determinada faz dele objeto de proteção dessa mesma ordem, não apenas quando é vítima de um fato, mas, sim, também quando este é autor de tal fato. Ou seja, de nada valeriam as garantias fundamentais se a ordem jurídica só protegesse os lesados.
Na verdade, a Constituição de qualquer Estado Democrático de Direito deve ser orientada, de maneira preferencial, à proteção dos direitos da pessoa humana, a qual deve prevalecer sobre qualquer outra norma.
Sob esse aspecto, a Constituição da República Brasileira afirma como fundamento do Estado, além da soberania, a cidadania e a dignidade da pessoa humana (artigo 1°). Por esses pressupostos, pode-se dizer que a pessoa humana constitui o centro da ordem jurídica.
Dentre referidas garantias fundamentais dispostas na Constituição da República, há, como direito fundamental, o respeito à integridade física e moral do reeducando, conforme artigo 5º, XLIX.
Todavia, o Brasil, infelizmente, está ao lardo do respeito aos seus reeducandos que, na maioria das vezes, vivem reclusos em masmorras da modernidade cuja sociedade e desenha cada vez mais punitivista.
O caos nos presídios brasileiros é generalizado. As facções que atuam dentro dos presídios estão ligadas à parte da violência que os brasileiros enfrentam em seu cotidiano do lado de fora deles. A segurança das penitenciárias é precária e rebeliões são quase sempre inevitáveis.
Fatos confirmados, inclusive, pelo subcomitê da ONU que, ao visitar diversos presídios brasileiros, concluiu que há prática de tortura e maus-tratos e descreve a situação que encontrou como “cruel, desumana e degradante, devido à grave superlotação” (PINHA, 2016, on-line), afirmando, ainda, que o Estado Brasileiro é cumplice aos fatos descritos.
O problema é ainda mais impactante quando usamos como parâmetro um estabelecimento prisional de países desenvolvidos, mais precisamente os países europeus, cujas condições são melhores do que aquelas em que se encontram a maior parte dos presos brasileiros.
Ao fim e ao cabo, como forma de efetivação dos direitos fundamentais, sejam individuais ou coletivos, seja de pessoas livres ou privadas da liberdade em razão da prática de crimes, o habeas corpus se mostra como um importante instrumento Constitucional. De modo primeiro, protege o ir e vir. No mais, protege o indivíduo de todo e qualquer arbítrio por parte do Estado-Juiz.
Neste diapasão, é importante instrumento em qualquer das fases da punição estatal e deve ser franqueado de forma irrestrita para a defesa do direito à liberdade de locomoção.
2. Habeas corpus e o direito à liberdade de locomoção
Habeas corpus, remédio heroico, remédio constitucional, writ, mandamus. Diversas são as denominações comumente utilizadas pela doutrina e jurisprudência pátria para a denominação do instituto em estudo. Contudo, a Constituição da República Federativa do Brasil, em vigor e promulgada aos 05 de outubro de 1988, o denomina tão somente como habeas corpus, expressão latina que pode ser traduzida como “tomai o corpo”.
Hodiernamente, o habeas corpus é previsto em diversos tratados e convenção de direitos humanos. Neste sentido, não podemos deixar de mencionar que o mandamus também consta como garantia fundamental em diversos documentos, tais como a Declaração Universal de Direitos Humanos (1948), a Convenção Européia (1950) e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (1969).
Por sua vez, no ordenamento jurídico pátrio, a previsão a nível constitucional do habeas corpus encontra correspondência no artigo 5º, inciso LXVIII da Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, o qual prevê que
Conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder.
De uma rápida análise do texto da Constituição é possível constatar que o habeas corpus busca preservar o direito de liberdade de locomoção do indivíduo. Contudo, não é apenas um direito do indivíduo, mas é também verdadeira garantia constitucional, nos termos da Constituição da República.
No âmbito infralegal, o habeas corpus encontra previsão no Decreto-Lei nº 3.689/1941, qual seja, o Código de Processo Penal, especificamente no artigo 647 e seguintes. Possui, ainda, peculiaridades disciplinadas em diversos atos normativos dos tribunais de justiça, a fim de que sejam previstas e regradas as situações específicas de cada órgão do Poder Judiciário.
Ao longo dos séculos, tal qual ocorreu com os diversos institutos do Direito, o habeas corpus sofreu e ainda sofre constante evolução em seu conceito e características, os quais passaremos à análise neste capítulo, iniciando-se pelos antecedentes históricos no mundo e, em especial, na evolução ocorrida no direito pátrio e constitucional.
2.1 Antecedentes históricos
Em que pese a ausência de um consenso na doutrina, muitos apontam que a origem do habeas corpus, ainda que tímida, remonta ao direito romano clássico. Não poderia ser diferente, uma vez que, de maneira geral, os variados institutos do Direito possuem origem no direito romano.
No direito romano, portanto, a ação equivalente ao habeas corpus era denominada interdictum de homine libero exhibiendo, a qual pode ser traduzida como o “interdito para exibir o homem livre”.
Nas palavras de Heráclito Antônio Mossin (2013, p. 11), referida ação visava “reclamar o homem livre que era retido ilegalmente”. Conforme ensina o professor, a ação em questão,
[...] tinha por finalidade precípua tutelar quaisquer espécies de violência e coação ilegais contra a pessoa, e não somente, como acontece no estágio atual do instituto, a proteção do direito de ir, vir e ficar do indivíduo, enfim, sua liberdade corpórea, [...].
A retenção a que se faz menção, que era objeto da actio ad exhibendum (ação de exibição), dizia respeito a ato coativo indevido praticado pelo particular que retinha indevidamente, ilegalmente o homem livre, conforme registro em fragmento do Digesto: hoc interdictum et in absentem esse rogandum Labeo scribit: sed si non defendatur, in bona ejus eundum ait.[4]
Válter Kenji Ishida (2015, p. 3), por sua vez, aponta outro antecedente histórico :
Outra possibilidade: o direito ibérico. Salienta Frederico Marques (ob. cit., p. 347) que a origem do habeas corpus, segundo outros autores, estaria vinculada aos Fueros de Aragão (Foros de Aragão) ou ainda aos Fueros de Viscaya (Foros de Viscaya), de 1527, estes limitando a prisão à ordem do juiz ou ao caso de flagrante delito. Isaac Sabbá Guimarães (ob. cit., p. 146-148) especifica esses foros editados no Reino de Aragão. Existiam a firma de derecho, servindo para inibir atuação futura dos juízes, e a firma de agravios hechos, quando a atuação dos magistrados já estava consumada. A decisão caberia ao Justitia Mayor. Em um momento posterior, o Justitia Mayor poderia deferir medidas que atenuassem a situação prisional daqueles submetidos ao processo criminal ou mesmo conceder-lhes a liberdade. Essa segunda fase se denominava Manifestación de personas e tinha como escopo evitar abusos de autoridades prisionais ou de particulares. Inseria o estabelecimento de dois regimes prisionais: o da prisão cautelar e o da prisão decorrente de condenação.
Referido autor ainda cita o Foro De Manifestationibus personarum, originário das Cortes de Teruel (1428), ao tempo do rei Alfonso V. O Justitia poderia conceder a ordem de manifestación. O procedimento não permitia procrastinações por parte da autoridade que mantinha a pessoa presa. Para manter a segurança pessoal do preso, havia possibilidade de mantê-lo preso, mas sob a fiscalização do Justitia, ou então fornecer a “casa por cárcere”, ou seja, uma forma de prisão domiciliar. O Justitia zelava pela administração dos estabelecimentos penitenciários, sendo a autoridade máxima, sobrepondo-se até ao rei e aos seus delegados. O procedimento evoluiu de tal forma que era possível aos manifestados (presos provisórios) a concessão da liberdade provisória mediante fiança (caplieuta). O procedimento de manifestación poderia ser requerido por aragonês ou estrangeiro que estivesse de passagem, pelo próprio preso ou por terceira pessoa em seu nome. Todavia, havia uma restrição: a manifestación de personas não era permitida aos plebeus que não eram sujeitos de direitos. Também as pessoas submetidas ao Tribunal do Santo Ofício (religioso) não poderiam se valer da manifestación. O centralismo foi um óbice ao progresso da manifestación e a partir do século XVII o procedimento caiu em desuso.
Apesar de referida menção ao direito ibérico, é mesmo sobre o direito romano e o direito inglês que a doutrina mais se debruça ao estudar o surgimento do habeas corpus.
Nesta esteira de ideias, Norberto Avena (2017, p. 789), por sua vez, chama a atenção para a divergência de posicionamentos na doutrina:
Oscila a doutrina quanto ao momento histórico em que surgiu o habeas corpus. Alguns apregoam que este instituto surgiu em consequência de uma ação contemplada no Direito Romano, chamada de interdictum de libero homine exhibendo, pela qual se facultava a todo cidadão o direito de reclamar a liberdade ao homem que estivesse ilegalmente preso. Outros afirmam que a sua origem remonta ao ano de 1679, na Espanha, por ocasião do reinado de Carlos II. Sem embargo destas opiniões, a maioria dos escritores sustenta que o writ teve sua origem remota na Constituição da Inglaterra de 1215 (Magna Charla Libertatum), outorgada pelo Rei João-Sem-Terra.
De fato, a maioria da doutrina aponta que a história deste instituto remonta a origem com a promulgação da Magna Charta Libertatum, do Rei João Sem Terra, no ano de 1215, na Inglaterra, a qual, por tamanha importância, passou a ser chamada como mãe do habeas corpus (ISHIDA, 2015, p. 4).
Conforme dispunha referida carta, o writ of habeas corpus pôde ser vislumbrado a partir da necessidade de apresentação da pessoa física do preso perante a autoridade judiciária:
Nenhum homem livre será detido ou sujeito à prisão, ou privado dos seus bens, ou colocado fora da lei, ou exilado, ou de qualquer modo molestado, e nós não procederemos nem mandaremos proceder contra ele senão mediante um julgamento regular pelos seus pares ou de harmonia com a lei do país.[5]
Examinando a ordem prevista na Carta Magna, Hélio Tornaghi[6] aduz que:
O habeas corpus é, no Direto inglês, do qual se origina, uma ordem de apresentação pessoal de alguém, um mandado de condução. O juiz quer a presença física de alguma pessoa. Por isso expede uma ordem escrita (writ) para que seja apresentado o corpo da pessoa (habeas corpus), isto é, seja feito de corpo presente. Essa apresentação pode ter vários fins e, daí, os diversos tipos de habeas corpus (ad deliberandum et recipiendum; ad faciendum; ad testificandum). Mas a expressão habeas corpus, em mais nada, habeas corpus por antonomásia, designa o habeas corpus ad subjiciendum, ordem ao carcereiro ou detentor de uma pessoa para apresenta-la, e de indicar o dia e a causa de sua prisão, a fim de que ela faça (ad faciendum), de que se submeta (ad subjiciendum) e receba (ad recipiendum) o que for julgado correto pelo juiz. Esse foi chamado, por William Blacstone, o mais célebre mandado (writ) do Direito inglês e baluarte permanente de nossas liberdades (the stable balwark o four libertatis).
Em que pese a repercussão positiva, a Magna Carta era constantemente violada pelo Rei João Sem Terra e até mesmo após sua morte pelos demais reinados que se seguiram.
Sob o reinado déspota de Carlos I, o Parlamento convocou assembleia para o que seria outro grande marco na história do habeas corpus: a proclamação da Petition of Right, no ano de 1628. Fernando Capez[7] resume o contexto histórico em que se deu a proclamação da Petition of Right:
Sob Carlos I, que pretendia governar sem leis e sem nobreza, a campanha dos ingleses pela liberdade recomeçou. Detestado por seu autoritarismo e arbitrariedade, chegou a impor certo imposto geral e sistemático, denominado ship money, o que desencadeou uma série de protestos da nobreza, repelidos com violência e prisões ilegais. Essa situação perdurou até que o movimento de oposição determinou mais tarde a chamada Petition of Rights (Petição de Direitos), uma declaração formal redigida por Thomas Wentworth, onde foram reafirmadas as liberdades públicas fundamentais e o respeito às leis de habeas corpus. O rei viu-se forçado, afinal, a dar seu consentimento expresso à Petição, em 7 de junho de 1628, o que foi uma grande conquista em defesa dos direitos individuais. Contudo, mesmo depois da Petição de Direitos, as ordens de habeas corpus eram denegadas a todo momento, ou, o que era ainda pior, simplesmente desobedecidas.
Apesar da novidade, as ordens de habeas corpus ainda eram constantemente desobedecidas, o que levou à promulgação da lei denominada Habeas corpus Act, de 1640, após revolução que retirou o rei Carlos I do poder.
Posteriormente, referida lei foi alterada pela Lei conhecida por Habeas corpus Act, de 1679, a qual, efetivamente, instituiu o procedimento da garantia constitucional em estudo. Nas palavras do professor Fernando Capez (2020, p. 833):
As reivindicações libertárias continuaram, e, em 1679, já sob o reinado de Carlos II, surge o Habeas corpus Act, consagrando-se o writ of habeas corpus, como remédio eficaz para a soltura de pessoa ilegalmente presa ou detida. Por meio do writ of habeas corpus, a pessoa que estivesse sofrendo uma restrição à sua liberdade podia pedir ao juiz a expedição de uma ordem, a fim de que o responsável pela ilegal detenção a apresentasse para se constatar a legitimidade do encarceramento. O writ, entretanto, limitava-se a atender pessoas acusadas de crime, não tendo aplicação para os demais casos de prisão ilegal.
Novamente, em 1816, a Inglaterra promulgou um novo Habeas corpus Act, para suprimir as falhas da legislação anterior.
Enquanto o instituto evoluía no direito inglês, começou a surgir também no direito de outros países, a exemplo do direito norte-americano, no fim do século XVII, por meio da common law; do direito argentino, por meio da introdução no Código de Procedimentos em 1887; do direito português, com a promulgação da Constituição de 1911; dentre outros.
2.2 Evolução no direito pátrio e constitucional
Voltando os olhos ao direito pátrio, primeiramente, é de importante destaque apontar, conforme ensina o professor Heráclito Antonio Mossin (2013, p. 19), que
[...] a legislação reinol em nenhum momento tratou do instituto do habeas corpus. Assim é que as ordenações Afonsinas, Manuelinas e Filipinas, embora posteriores ao ano de 1215, também não cuidaram desse importantíssimo instituto.
O surgimento, na visão do referido professor (MOSSIN, 2013, p. 20), ocorreu com o Decreto de 23 de maio de 1821, promulgado após partida de D. João VI para Portugal. Em referido documento eram previstos direitos de proteção à liberdade física do indivíduo, aspectos da prisão em flagrante, proibição de prisão sem culpa formada, prazo para o término do processo, publicidade da audiência, proteção dos direitos humanos do preso, dentre outros.
Nas palavras do referido professor,
[...] embora nenhuma menção fizesse aquele diploma ao habeas corpus, nada mais claro que a necessidade de um instrumento legal capaz de abarcar os direitos individuais ali contidos. Diante dessa razão, fica assentado que essa legislação foi a primaz para o surgimento do writ tutelador do direito de ir, vir e ficar do cidadão no Brasil.[8]
Posteriormente, no ano de 1824, foi promulgada a Constituição do Império, porém, o habeas corpus ainda não foi previsto na referida Constituição. Contudo, a despeito da ausência de menção expressa ao habeas corpus, a doutrina aponta sua previsão implícita, inspirado no decreto anteriormente referido.
Nos termos do artigo 179, §8º da referida Constituição:
Ninguém será preso, sem culpa formada, exceto nos casos declarados em lei; e nestes, dentro do prazo de 24 horas, contadas da entrada na prisão, sendo em cidades, vilas ou outras povoações próximas aos lugares da residência do juiz, e, nos lugares remotos, dentro de um prazo razoável, que a lei marcará, atenta à extensão do território, o juiz por uma nota por ele assinada, fará constar ao réu o motivo da prisão, os nomes de seu acusador e os das testemunhas, havendo-as.[9]
José de Alencar[10] foi um grande defensor da ideia de que o habeas corpus surgiu implicitamente na constituição. Em suas palavras
Alguns pensam que o habeas corpus data do Código de Processo (1832); minha opinião é contrária. Entendo que, embora caiba aos autores do código do processo a gloria de terem compreendido e tratado de desenvolver o pensamento constitucional, todavia o habeas corpus é um instituto constitucional, o habeas corpus está incluído, está implícito na Constituição, quando ela decretou a independência dos Poderes e quando deu ao Poder Judiciário o direito exclusivo de conhecer tudo quanto entende com a liberdade pessoal.
A despeito de tal entendimento, forte nas premissas de diversos defensores de tal tese, a expressa menção do instituto do habeas corpus no direito pátrio ocorreu com a promulgação do Código Criminal do Império, no ano de 1830.
Nos artigos 183 a 188 do referido código, restaram previstos diversos tipos penais relativos a condutas de autoridades que, de alguma forma, atentassem contra o direito ao habeas corpus. A exemplo, era tipificada penalmente a recusa ou retardamento de concessão de ordem de habeas corpus, bem como a recusa ou retardamento ao seu cumprimento.
Contudo, não se passava de simples menção, já que o Código Criminal disciplinava o direito penal material, ou seja, tipificava tipos penais relacionados ao habeas corpus. Não restou disciplinado o conceito ou as características do referido instituto.
Faltava, portanto, a efetiva instituição e disciplina processual do instituto do habeas corpus.
A ausência de previsão e disciplina do instituto, apesar da menção no Código Penal, é explicada por Alberto Zacharias Toron (2018, p. 40) que, em sua obra dedicada ao mandamus, esclarece que a tramitação dos códigos penal e processual ocorreu de maneira simultânea, contudo, a conclusão da elaboração das leis e consequente promulgação ocorreu em períodos diversos. Em suas palavras:
O instituto do habeas corpus, de fato, vem referido pela primeira vez em nosso ordenamento jurídico nos artigos 183 a 188 do Código Criminal do Império de 1830, que punia desde o juiz que viesse a embaraçar ou retardar a concessão da ordem “quando lhes forem regularmente requeridas” (art. 183) até aquele se se recusasse a prestar auxílio ao oficial encarregado da execução de uma “ordem legítima de habeas corpus” (art. 188). O curioso é que embora houvesse tutela penal à ordem de habeas corpus, este só veio a ser contemplado entre nós com o advento do Código de Processo Criminal de Primeira Instância [...]. O paradoxo do compasso legislativo é explicável pelo fato de que o trâmite dos Projetos de Códigos se dava em paralelo na Câmara. Todavia, o Criminal acabou sendo promulgado antes do correlato Código processual, o que gerou um paradoxo de termos normas incriminadoras de um instituto ainda inexistente.
Assim, dois anos depois, foi promulgado o Código de Processo Criminal, o qual, efetivamente, foi a primeira lei no país a prever e disciplinar o habeas corpus.
Conforme dispunha o artigo 340 do referido código,
Todo cidadão que entender que ele ou outrem sofre uma prisão ou constrangimento ilegal em sua liberdade tem direito de pedir uma ordem de habeas corpus em seu favor.[11]
O Código de Processo Criminal de 1832 inovou no ordenamento jurídico trazendo diversas previsões até hoje presentes no direito pátrio, as quais evoluíram para o atual cenário do habeas corpus no país, bem como do direito processual penal.
Neste sentido, o artigo 341 regulamentou o pedido de habeas corpus dispondo que deveria ser deduzido por meio de petição, indicando-se o nome da pessoa que sofrera a violência e daquele que lhe causara, o conteúdo da ordem que originou a prisão, as razões em que se funda a alegada ilegalidade da prisão e a assinatura e juramento sobre a verdade de tudo o que se alega.
Ao seu turno, nos artigos 344 e 355 do referido código eram previstas as possibilidades de concessão da ordem de ofício e requisições de informações.
Por sua vez, o artigo 353, definiu as hipóteses que caracterizavam a prisão ou o constrangimento ilegal: a prisão sem justa causa; o excesso de prazo da prisão do réu preso sem ser processado; decorrente de processo nulo; a prisão determinada por autoridade incompetente; e, por fim, a permanência da prisão quando já cessado o motivo que a justificava.
A redação da referia lei, nas palavras de Pontes de Miranda[12], era motivo de elevado reconhecimento, já que “o Código do Processo Criminal de 1832 inspirou-se, como se vê, no Habeas corpus Act inglês de 1679 e 1816, adquirindo, todavia, feitura característica – e, por que não dizer? – excelentemente nacional”.
Em 1871 um novo marco na evolução histórica do habeas corpus ocorreu com a promulgação da Lei 2.033, de 20 de setembro.
Com o advento de referida lei, restou reconhecido o direito de uso do mandamus por estrangeiros e de concessão em casos de ameaça de constrangimento ilegal. Assim, na história do habeas corpus, no ano de 1871, já contávamos com a possibilidade de manejo da ordem de maneira preventiva e repressiva.
Interesse anotar que, neste momento histórico, a lei falava em cidadão e, diante da escravidão que ainda imperava no país, o habeas corpus não protegia os escravos, ainda tidos como coisas. Mas isso não era óbice para óbice Luiz Gama, conforme explica Alberto Zacharias Toron:
Abrindo um parêntesis, o escravo não podia, em princípio, impetrar ou mesmo ser beneficiado com o habeas corpus, pois era tido como coisa, mercadoria. É que o Código de Processo Criminal de Primeira Instância, n´já citado art. 340, confinava a capacidade postulatória ao “cidadão”. Sem embargo, anota NELSON CÂMARA que Luiz Gama, o advogado dos escravos, “argumentava com a lei de 1831, que proibira o tráfico negrereiro, bem como com a subsequente lei proibitiva de 1850 (Eusébio de Queiroz), para demonstrar que o infeliz havia ingressado em território brasileiro em condição de liberdade, pois o tráfico, estando abolido, a própria legislação abolidora acolhia tal entendimento. Argumento muito com a Lei do Ventre Livre (Lei Feijó), como argumentou com a lei que obrigava o registro de matrícula e o preço de aquisição do escravo. E argumentava com a lei que considerava o abandono do escravo por mais de cinco anos como forma de concessão de liberdade”. [13]
Ainda sobre os antecedentes legais anteriores à previsão constitucional, Heráclito Antonio Mossin (2013, p. 19) aponta dois documentos legais editados com força de lei, pelo Governo Provisório, quais sejam, os decretos de n. 510, de 22 de junho, e o de n. 914-A, de 23 de outubro, ambos de 1890.
Contudo, o habeas corpus somente foi elevado à garantia constitucional com a sua previsão na Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1891.
No artigo 72, §22, a Constituição Republicana previa que: “Dar-se-á o habeas corpus sempre que o indivíduo sofrer ou se achar em iminente perigo de sofrer violência ou coação por ilegalidade ou abuso de poder”.
Heráclito Antonio Mossin (2013, p. 29) aponta a importância de elevação do habeas corpus a nível constitucional:
A regra constitucional inserta operou, induvidosamente, grande mutabilidade no direito daquela época. É que, ao elevar o habeas corpus à qualidade de dogma constitucional, lhe deu maior consistência, além de proporcionar mais segurança no sentido de sua maior durabilidade. Há de convir que é muito mais difícil a reforma de um texto constitucional, notadamente nos idos de 1981, quando o conservadorismo imperava, oportunidade em que se promulgava a primeira Constituição republicana, do que a revogação de uma lei processual penal, em que o processo legislativo é bem mais singelo.
A partir desta primeira previsão a nível constitucional, o habeas corpus restou previsto em todas as demais constituições, tanto as outorgadas como as promulgadas, até a atualidade.
Interessante debate doutrinário e jurisprudencial surgiu, à época, em torno de qual era abrangência do texto constitucional em relação ao habeas corpus.
Com efeito, com o advento da disposição constitucional garantindo o mandamus ao indivíduo que sofrer ou se achar em iminente perigo de sofrer violência ou coação, por ilegalidade ou abuso de poder, a interpretação do texto constitucional possibilitava o alargamento dos direitos fundamentais tutelados pelo habeas corpus.
De fato, a Constituição não limitou o campo de incidência da ilegalidade ou abuso de poder, como o fez o Código de Processo Criminal ao dispor que cabia habeas corpus nas hipóteses em que o indivíduo sofria uma prisão ou constrangimento ilegal em sua liberdade.
Na Constituição, importante repetir, o habeas corpus era previsto para coibir a violência ou coação por ilegalidade ou abuso de poder. Não restava previsto, portanto, que tal coibição visava proteger tão somente o direito de liberdade.
Em razão da ausência de limitação da previsão de concessão da ordem, surgiram diversas vozes sustentando, portanto, que o habeas corpus poderia ser utilizado para salvaguardar outros direitos além da liberdade de locomoção.
Surge, de tais debates, a chamada doutrina brasileira do habeas corpus e, em Rui Barbosa, encontramos seu maior defensor.
Conforme explica Heráclito Antônio Mossin (2013, p. 31):
Foi Rui Barbosa, inexoravelmente, quem deu a mais larga e ampla abrangência ao texto da Carta Republicana de 1891. Para ele, o writ não operava-se instrumentalmente só para amparar a liberdade física do indivíduo, o ius manendi, eundi e veniendi, ia além, posto que seu âmbito deveria compreender qualquer que fosse a liberdade, qualquer direito individual transgredido por arbitrariedade ou ilegalidade. A Constituição Federal contém regras que devem ser interpretadas em termos amplos, não podendo ser restringidas apenas para compreender a circunscrição do remédio constitucional relativamente aos abusos ou ilegalidades cometidos contra a liberdade de locomoção.
Andrei Koener (1999, p. 177), ao dissertar sobre a atuação de Rui Barbosa em defesa do habeas corpus explica que
[...] o habeas corpus era para ele um instrumento da ordem pública, com o qual o Judiciário poderia impedir que a autoridade política atuasse ilegalmente no que diz respeito à liberdade dos cidadãos. O habeas corpus era a primeira de todas as garantias para o cidadão. Era um instituto excepcional, no sentido de que seria o instrumento por excelência de defesa da liberdade individual. (...) Rui Barbosa apresentava esses elementos de modo a abrir as mais amplas possibilidades de utilização do habeas corpus pelos indivíduos, e, ao mesmo tempo, deixar à autoridade os critérios mais estritos de defesa. Ele argumentava que, além das prisões e detenções ilegais, se deveria ampliar o campo de aplicação do habeas corpus a outros direitos individuais. Essa extensão justificava-se, inicialmente, porque o princípio fundamental das Constituições livres era que em todas as situações em que houvesse um direito individual lesado, deveria existir um instrumento judiciário para eliminar esta injustiça. (...) Outro argumento era pragmático: se a característica das instituições livres era a existência de garantias simples e eficazes contra atentados aos direitos individuais e se não existiam no Brasil writs que garantiam os cidadãos nos Estados Unidos e Inglaterra, seria necessário ampliar o âmbito de aplicação do habeas corpus, como garantia para todos os direitos individuais. Um terceiro argumento em favor da ampla aplicabilidade do habeas corpus decorria do seu reconhecimento na Constituição, com que o instituto adquiriria o estatuto de garantia constitucional, consagração que não tinha durante o Império, quando era uma instituição da legislação ordinária. Enfim, pelo próprio enunciado genérico do artigo 72, §22, a Constituição Federal teria rompido “abertamente” com a concepção estrita do habeas corpus no regime anterior.”
Contrariamente ao posicionamento de Rui Barbosa manifestaram-se outros juristas, tais como Pedro Lessa e Pontes de Miranda, os quais sustentavam uma posição restritiva do uso do mandamus e direcionada à proteção da liberdade de ir e vir do indivíduo, tão somente.
Quanto aos debates da época, Heráclito Antônio Mossin (2013, p. 37) aponta que:
Não resta a menor dúvida, tendo em linha de consideração o que restou transcrito e considerado, que a doutrina e a jurisprudência republicanas deram uma interpretação muito elástica ao preceito que elevou o habeas corpus a dogma constitucional, dando-lhe a verdadeira e genuína característica de instrumento protetor e tutela de direito individual, diga-se de passagem, do que havia lhe dado o Direito inglês. Ao que tudo indica, aquela inspiração teve como modelo o interdictum de homine exhibendum ou as Cartas de seguro, cuja abrangência superava a proteção exclusiva da liberdade física do indivíduo – ius manendi, ambulandi, eundi, veniendi ultro citroque.
Não bastasse a ausência de delimitação do direito tutelado, o que, por si só, já era pano de fundo para o debate em questão, ainda era importante observar que, à época, o habeas corpus era o único instrumento previsto na Constituição para a defesa de direitos.
Contudo, com a reforma constitucional provocada pela emenda de 3 de setembro de 1926, restou restrita a incidência do writ com a nova redação do artigo 72, §22, que passou a dispor que “Dar-se-á o habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar em iminente perigo de sofrer violência por meio de prisão ou constrangimento ilegal em sua liberdade de locomoção.”
Assim, a reforma da Constituição de 1891 tentou colocar uma pá de cal na discussão travada na doutrina e jurisprudência. De fato, tentou, uma vez que a doutrina explica que, não obstante a limitação imposta pela reforma da Constituição, a posição liberal ainda continuou prevalecendo.
Nos ensinamentos de Heráclito Antonio Mossin (2013, p. 42):
Ao que se vislumbra pelos dados históricos, que devem ser aglutinados como um todo, não obstante o legislador constituinte ter usado no texto constitucional reformado a expressão “liberdade de locomoção”, para, dessa forma, não permitir que o habeas corpus fosse usado para a tutela de outras liberdades, a verdade inconcussa é que a posição liberal continuou prevalecendo. Aliás, esse comportamento até certo ponto era perfeitamente justificável, porquanto não existia outro remédio para a tutela das liberdades individuais, exceto quando o conflito intersubjetivo de interesses tivesse como socorro as vias ordinárias.
Ainda segundo o Autor, um novo capítulo para a celeuma ocorreu com a promulgação da Constituição de 1934, que novamente trouxe em seu bojo disposição que dava margens ao alargamento interpretativo:
Seguindo os passos históricos do habeas corpus no direito pátrio, há de se deixar firme que a tendência liberal culminou em ter o conforto da consagração constitucional na Magna Carta de 16 de julho de 1934, que em seu art. 113, n.23, deu àquele instituto a largueza que ostentava ele na Constituição de 1891 e, por via de consequência, desprezou o sentido restritivo que havia lhe dado a reforma de 1926.[14]
Com efeito, o artigo 113, n. 23 da Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil dispunha que:
Dar-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer, ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade, por ilegalidade ou abuso de poder. Nas transgressões disciplinares não cabe habeas corpus.
Contudo, referida Constituição inaugurou o mandado de segurança no direito pátrio, o qual restou disciplinado no artigo 113, n. 33:
Dar-se-á mandado de segurança para a defesa de direito certo e incontestável, ameaçado ou violado por ato manifestamente inconstitucional ou ilegal de qualquer autoridade. O processo será o mesmo do habeas corpus, devendo ser ouvida a pessoa de direito público interessada.
Assim, já não era mais possível dar ao habeas corpus a mesma abrangência do texto original da Constituição de 1981. Destarte, à época, firmou-se o entendimento de que o direito de locomoção era tutelado pelo habeas corpus. Os demais direitos, a seu turno, pelo mandado de segurança.
A Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de 1937, limitou a incidência do habeas corpus aos atentados à liberdade de ir e vir, conforme constou do artigo 122, n. 16:
Dar-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar na iminência de sofrer violência ou coação ilegal, na sua liberdade de ir e vir, salvo nos casos de punição disciplinar.
Apesar de referida Constituição não disciplinar o mandado de segurança, a celeuma sobre a incidência do habeas corpus para defesa de todo tipo de liberdade restou definida em razão da expressa previsão de incidência no campo da liberdade de locomoção.
Por sua vez, a Constituição de 1946 trouxe em sua redação tanto o habeas corpus como o mandado de segurança, fórmula essa que se seguiu até os dias atuais e concluiu a discussão sobre o campo de incidência do habeas corpus.
Na história do habeas corpus pátrio ainda é importante ressaltar que durante a ditadura de 1964, por meio do Ato Institucional número 5 de 1968, ficou suspensa a garantia do habeas corpus nos casos de crimes políticos contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular.
O Ato Institucional número 6, datado de 1º de fevereiro de 1969, por sua vez, atingiu o processamento do habeas corpus uma vez que vedou o uso do mandamus substitutivo do recurso ordinário constitucional, o que deixou o conhecimento da coação mais lento.
Finalmente, com o advento da Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988, restou disciplinado o fundamento constitucional atual para o habeas corpus, nos termos do artigo 5º, inciso LXVIII, o qual dispõe que:
Conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder.
Por opção e até mesmo em razão da instituição do Estado Democrático de Direito, não foi reproduzida em seu texto a disposição de vedação ao uso do habeas corpus como substitutivo do respectivo recurso, como outrora imposto pelos atos institucionais.
2.3 O Habeas Corpus hoje
Superada a evolução histórica e constitucional, passamos a um breve estudo do habeas corpus, seu conceito, natureza jurídica, requisitos e procedimento.
Da origem histórica já delineada, constatamos que habeas corpus é uma expressão em latim que, etimologicamente, significa “tomai o corpo”. Tal expressão remete à intenção do instituto em análise uma vez que o habeas corpus visava a apresentação de alguém preso perante o juiz. Significava, nas palavras de Guilherme de Souza Nucci (2020, n.p.), o “meio de se obter o comparecimento físico de alguém perante uma Corte.”
Contudo, Edilson Mougenot Bonfin pontua que o significado original da expressão não mais se justifica nos tempos atuais:
Atualmente, tal significado não mais se justifica, já que as questões veiculadas no habeas corpus são de direito – em regra não se falando, portanto, em apresentação do prisioneiro –, ainda que no procedimento perante o juízo de primeiro grau haja a possibilidade de apresentação do paciente. O significado de habeas corpus no ordenamento jurídico vigente consubstancia-se em "ordem de libertação" ou em “ordem de cessação de constrangimento ilegal. [15]
Guilherme de Souza Nucci (2020, p. 1205) ainda explica as modalidades de habeas corpus que surgiram na evolução do instituto:
Dentre as espécies históricas, destacam-se os seguintes tipos: a) habeas corpus ad respondendum: destinava-se a assegurar a transferência do preso de um lugar a outro para responder a uma ação penal; b) habeas corpus ad testificandum: destinava-se a trazer uma pessoa sob custódia para prestar um testemunho; c) habeas corpus ad satisfaciendum: destinava-se à transferência de um preso já condenado a um tribunal superior, a fim de se executar a sentença; d) habeas corpus ad subjiciendum: voltado a assegurar plenamente a legalidade de qualquer restrição ao direito de liberdade, apresentando-se o preso à Corte e os motivos do encarceramento, para apreciação judicial.
Atualmente, no direito pátrio, o habeas corpus é conceituado como o remédio constitucional destinado à proteção da liberdade de locomoção do indivíduo, ameaçada por ilegalidade ou abuso de poder.
Por remédio constitucional, Ingo Wolfgang Sarlet et al (2019, n.p.) explica que:
Denomina-os a doutrina pátria remédios, no sentido de que são meios colocados à disposição dos indivíduos e cidadãos para provocar a atuação das autoridades em defesa do padecimento de direitos declarados. E a noção de remédios, usada em seu sentido figurado, por óbvio, é boa, já que tanto denota o fato de servirem para prevenir lesões como para reparar aquelas que eventualmente já tenham ocorrido.
O habeas corpus, direito e garantia constitucional, verdadeiro remédio constitucional, assumiu tamanha importância no ordenamento jurídico, conforme aponta Aury Lopes Junior:
Tal é a importância do instrumento, não só no plano jurídico-processual, como também no campo social, que PONTES DE MIRANDA afirmava, já em 1916, que o writ possuía uma extraordinária função coordenadora e legalizante, que contribuía de forma decisiva para o desenvolvimento social e político do País, impedindo inclusive a exploração da classe social baixa pelo coronelismo, que para isso contava com o auxílio da polícia e das autoridades políticas. [16]
Em que pese regulado na lei processual penal vigente, com disposições constantes do capítulo destinado aos recursos no processo penal, o habeas corpus possui natureza jurídica de ação e caracteriza-se como meio autônomo de impugnação. Por tal razão, sua impetração constitui uma nova relação jurídica.
Uma vez que não se trata de recurso, o habeas corpus pode ser impetrado até mesmo nos casos em que não há processo judicial em curso, nas hipóteses em que o processo já foi atingido pelos efeitos da coisa julgada ou até mesmo quando ainda pendente de julgamento recurso eventualmente interposto.
O mandamus, ainda, pode ser impetrado a qualquer tempo: independentemente da observância de prazo processual. Ademais, pode ser manejado por quem sequer é parte ou interessado nos autos de origem.
Por não ser recurso, ainda, pode ser utilizado para questionar atos administrativos ou de particulares, haja vista que não pressupõe a existência de processo judicial.
Conforme já apontado no subtítulo anterior, o habeas corpus possui previsão na Constituição da República, mais precisamente no artigo 5º, inciso LXVIII, o qual disciplina que o mandamus será concedido sempre que alguém sofrer, ou até mesmo se achar ameaçado de sofrer, violência ou coação em sua liberdade de locomoção, seja em razão da prática de ato ilegal ou revestido de abuso de poder.
Por expressa disposição constitucional, o habeas corpus é uma ação gratuita. É certo que, conforme consta no artigo 653 do Código de Processo Penal, a autoridade que, por má-fé ou evidente abuso de poder, tiver determinado a coação, será condenada ao pagamento das custas. Contudo, a Constituição da República disciplina que são gratuitas as ações de habeas corpus, conforme inciso LXXVI do artigo 5º, o que denota a não recepção da disposição constante do artigo 653 do Código de Processo Penal.
E a intenção do constituinte é clara: a importância do mandamus e o direito que ele protege afastam a necessidade de pagamento de custas processuais. Com efeito, deve ser o habeas corpus de manejo desembaraçado e oportunizado a qualquer pessoa, garantindo-se o pleno acesso ao Poder Judiciário.
Assim, o habeas corpus trata-se de ação de natureza constitucional, verdadeira garantia fundamental. Neste sentido, Guilherme Nucci (2014, p. 25) aponta que o habeas corpus
Cuida-se de garantia individual, e não direito. Em nosso posicionamento, há diferença entre direito e garantia fundamental. O primeiro é meramente declaratório – como o direito à liberdade –, enquanto o segundo é assecuratório – como o devido processo legal. O Estado reconhece a existência do direito, afirmando-o em norma jurídica. A garantia é instituída pelo Estado, não existindo naturalmente antes da norma que a criou. Num panorama amplo, o direito é uma garantia e esta também é um direito. É inconteste que a liberdade é um direito, mas também a garantia de uma sociedade livre; o habeas corpus é uma garantia de liberdade, porém um direito do cidadão, quando deseja utilizá-lo. Entretanto, a diferença estabelecida entre direito e garantia é didática e classificatória, permitindo a mais adequada visão dos direitos e garantias humanas fundamentais.
O habeas corpus visa coibir toda ilegalidade e abuso de poder voltado à constrição da liberdade de ir, vir e ficar. A doutrina e jurisprudência apontam que a ilegalidade ou o abuso de poder tanto podem ser provenientes de ato praticado na seara penal quando na cível.
O abuso de poder, contudo, somente pode ser praticado por uma autoridade, já que somente ela tem o poder e dele se utiliza de maneira abusiva.
Por sua vez, a ilegalidade pode ser praticada por qualquer um.
Dentre os provimentos possíveis no habeas corpus, a doutrina e jurisprudência apontam os provimentos declaratório, cautelar, constitutivo, executório, rescisório, condenatório e o mandamental, tudo a depender da necessidade do caso concreto
As espécies de habeas corpus, por sua vez, dividem-se em duas: o habeas corpus liberatório e o habeas corpus preventivo.
Diz-se liberatório quando o habeas corpus visa a cessação do constrangimento ilegal contra a liberdade individual que já restou efetivamente consumada. Pode ser utilizado para qualquer espécie de coação já realizada. O escopo, portanto, é fazer retornar o coagido à situação anterior, ou seja, de plena liberdade. Neste caso, considerando que o coagido está em estado de privação de liberdade, deverá ser concedia a ordem e expedido alvará de soltura. É o mais utilizado dentre as duas espécies.
Por sua vez, o habeas corpus preventivo caracteriza-se como uma contracautela, haja vista que visa assegurar que determinada ação potencialmente coatora não ocorra. Aqui, por sua vez, será expedido salvo conduto, consistente em uma ordem judicial para que o ameaçado não sofra o constrangimento ilegal em sua liberdade de locomoção, seja ela iminente ou mais distante.
Defendendo a ampla incidência do habeas corpus preventivo Gustavo Henrique Badaró (2018, p. 978) argumenta que
Quanto ao habeas corpus preventivo, seu campo de utilização é amplíssimo. Em face do art. 5º, LXVIII, da CR, que se refere apenas a “achar ameaçado de sofrer violência ou coação”, (destacamos) não foi recepcionado o art. 647 do CPP, que exigia a “iminência” da coação. Assim, é cabível o habeas corpus preventivo mesmo no caso em que a ameaça de prisão constitua apenas um evento possível, no longo prazo, ainda que longínquo ou remoto. Justamente por isso é possível a utilização do habeas corpus em caso de qualquer nulidade processual, mesmo que em fase inicial do feito, visto que poderá levar, futuramente, a uma condenação à pena privativa de liberdade ilegal. Trata-se de uma ameaça longínqua de prisão, mas ameaça há e o habeas corpus será cabível.
Norberto Avena (2017, p. 789), por sua vez, aponta a existência de uma terceira espécie de habeas corpus, qual seja, o habeas corpus profilático. Conforme ensinamento:
Todavia, além das hipóteses mencionadas, tem sido admitida uma terceira modalidade, denominada por parcela doutrinária de habeas corpus profilático, destinado a suspender atos processuais ou impugnar medidas que possam importar em prisão futura com aparência de legalidade, porém intrinsecamente contaminada por ilegalidade anterior. Neste caso, a impugnação não visa ao constrangimento ilegal à liberdade de locomoção já consumado ou à ameaça iminente de que ocorra esse constrangimento, mas sim a potencialidade de que este constrangimento venha a ocorrer.
Renato Brasileiro (2017, p. 1759), a seu turno, adverte a posição da doutrina que alega existir uma quarta modalidade: o habeas corpus trancativo. Contudo, critica referida posição e sustenta que as modalidades são apenas o preventivo e o liberatório:
Outros doutrinadores, por sua vez, referem-se ao denominado habeas corpus trancativo, ou seja, aquele cuja impetração visa ao trancamento de inquérito policial ou de processo penal. Sua existência poderia ser extraída a partir de uma interpretação a contrario sensu do art. 651 do CPP, que prevê que "a concessão do habeas corpus não obstará, nem porá termo ao processo, desde que este não esteja em conflito com os fundamentos daquela".
Porém, para o autor, as modalidades que verdadeiramente se justificam na atualidade são a preventiva e liberatória:
A nosso juízo, há apenas duas espécies de habeas corpus: liberatório e preventivo. Não há falar, pois, em habeas corpus profilático e trancativo, porquanto o que se tem, nesse caso, não é uma espécie autônoma de habeas corpus, mas sim um mero efeito do writ liberatório ou preventivo. Esse efeito -trancamento do inquérito ou do processo - funciona apenas como o objeto do remédio heroico.[17]
Quanto à funcionalidade do habeas corpus, a doutrina também aponta a função do ataque colateral, consistente na possibilidade de utilização do habeas corpus para sanar os vícios ou nulidades processuais que, indiretamente, podem resultar no cerceamento da liberdade individual. Nereu José Giacomolli (2016, n.p.)
Além de sua funcionalidade preventiva (ameaça de restrição à liberdade) e liberatória (sujeito já preso), é de ser admitida também uma funcionalidade impugnativa colateral do habeas corpus (collateral attack), evitando o constrangimento ilegal de forma ampla, tanto na fase investigatória, quanto judicial (crime já prescrito, insignificância, falta de requisitos essenciais na peça incoativa, v. g.). Essa funcionalidade se potencializa em nosso sistema jurídico, em razão do caótico sistema recursal, desde a sua tipificação. Nessa perspectiva, não há previsão de recurso previsto para impugnar a decisão que recebe a denúncia ou a queixa-crime e a regra das interlocutórias é a sua irrecorribilidade, situação que pode ser remediada, em favor do sujeito, como o habeas corpus. Em situações especiais, é de ser recebido e analisado o habeas corpus com funcionalidade revisional, inclusive em se tratando de nulidades ou outros vícios processuais (inépcia da inicial, v. g.).
Tratando-se de verdadeira ação autônoma de impugnação, também no habeas corpus cabe a verificação das condições da ação, quais sejam, a possibilidade jurídica do pedido, o interesse de agir e a legitimidade das partes.
No tocante à possibilidade jurídica do pedido, Guilherme de Souza Nucci (2014, p. 32) aduz que o que se busca é inquirir “se a liberdade individual está em jogo. Em tese, não se tratando de liberdade de locomoção, seria juridicamente inviável ajuizar o habeas corpus.”
Na estrita observância do Código de Processo Penal poderia supor-se a necessidade do pressuposto da iminência para o habeas corpus preventivo. Contudo, o texto é muito mais restritivo em relação ao texto da Constituição da República, a qual dispõe a hipótese de concessão para aquele que apenas achar-se ameaçado. Considerando que a Constituição é hierarquicamente superior e proporciona o campo de incidência do habeas corpus, devendo, portanto, prevalecer, por ensejar interpretação mais favorável ao paciente.
Guilherme de Souza Nucci (2014, p. 32) ainda aponta pontos divergentes nas disposições da Constituição e do Código de Processo Penal:
A lei ordinária refere-se à liberdade de ir e vir, enquanto o texto constitucional menciona a liberdade de locomoção; ambas as expressões possuem significado correlato, não sendo este um fator diferencial.
No Código de Processo Penal, cita-se apenas a coação ou violência ilegal (contra a lei em amplo sentido); na Constituição, além da ilegalidade, há referência a abuso de poder, que, no entanto, é desnecessário, visto que o abuso (excesso indevido) é sempre um ato ilegal.
É consenso na doutrina e jurisprudência a impossibilidade jurídica, em sede habeas corpus, de discussão do mérito da ação penal quando necessária ampla produção de provas. Para alguns juristas, tal se explica porque a concessão do habeas corpus depende, assim como em relação ao mandado de segurança, da demonstração da existência do direito líquido e certo,
[...] consistente no direito tão claro quanto possa ser demonstrado por prova documental ou pela informação da autoridade coatora. É líquido, pois induvidoso o pedido, sabendo o impetrante exatamente o que pretende em favor do paciente; é certo, pois claramente demonstrado pela prova documental ofertada com a inicial.[18]
A exigência de demonstração do direito líquido e certo não decorre de exigência constitucional ou legal mas de imposição da doutrina e jurisprudência em razão da impossibilidade de dilação probatória. Neste sentido, explica Renato Marcão (2016, p. 1268) que
Ao contrário do que se verifica com o mandado de segurança, em relação ao qual a Constituição Federal e o Código de Processo Penal não exigem demonstração de direito líquido e certo para a concessão de habeas corpus, mas a doutrina e a jurisprudência já pacificaram o entendimento no sentido de que é imprescindível, constituindo, em nossa maneira de pensar, verdadeira condição específica da ação. De forma objetiva e perfeita, ensinou Hely Lopes Meireles que: “Direito líquido e certo é o que se apresenta manifesto na sua existência, delimitado na sua extensão e apto a ser exercitado no momento da impetração”. É necessário ter em mente que em razão dos limites estreitos de cognição a que se encontra submetido, e por não permitir dilação probatória, o habeas corpus não se presta a discutir toda e qualquer situação.
Na dúvida sobre a possibilidade de conhecimento do habeas corpus, Guilherme de Souza Nucci (2014, p. 32) conclui que
No contexto global da possibilidade jurídica do pedido, é complexa e dificultosa a sua avaliação, motivo pelo qual o mais indicado é permitir o processamento da demanda, que possui rito célere e abreviado, proferindo, se for o caso, decisão de mérito, indeferindo a ordem. Noutras palavras, a análise das condições da ação de habeas corpus deve ser feita de maneira mais flexível do que uma ação diversa. A dúvida deve favorecer o impetrante e o paciente, jamais o próprio Estado.
O remédio constitucional tutela a liberdade de locomoção consistente na liberdade de ir, vir e ficar.
A liberdade traduzida no ir e vir implica na liberdade de andar livremente por qualquer lugar almejado. Trata-se de postulado contra a privação da liberdade individual.
Por sua vez, a liberdade de ficar refere-se à liberdade do indivíduo de permanecer em local público ou privado ou, por exemplo, reunir-se pacificamente.
Em outras palavras, podemos afirmar que o direito de liberdade de locomoção tutelado pelo habeas corpus abarca o direito de acesso, ingresso, saída, permanência e deslocamento dentro no território nacional.
Neste sentido, Alexandre de Moraes (2019, n.p.) explica que
O direito à liberdade de locomoção resulta da própria natureza humana, como já salientado por Pimenta Bueno, em comentário à Constituição do Império, no qual ensinava que, “posto que o homem seja membro de uma nacionalidade, ele não renuncia por isso suas condições de liberdade, nem os meios racionais de satisfazer a suas necessidades ou gozos. Não se obriga ou reduz à vida vegetativa, não tem raízes, nem se prende à terra como escravo do solo. A faculdade de levar consigo seus bens é um respeito devido ao direito de propriedade”.
Esse raciocínio é complementado por Canotilho e Moreira, ao afirmarem que “a liberdade de deslocação interna e de residência e a liberdade de deslocação transfronteiras constituem, em certa medida, simples corolários do direito à liberdade”, e por Paolo Barile, que relaciona esse direito com a própria dignidade e personalidade humanas.
Considerando a possibilidade de manejo do writ nas hipóteses de ameaça de constrangimento ilegal, o alcance do habeas corpus acaba ampliado consideravelmente uma vez que o mandamus não é utilizado apenas para fazer cessar a prisão considerada ilegal mas, de maneira indireta, evita-la. Assim, pode ser utilizado, por exemplo, para trancar o inquérito ou a ação penal quando inexistente justa causa, para impedir o indiciamento injustificado, dentre outras tantas hipóteses.
Contudo, Guilherme de Souza Nucci (2014, p. 40) alerta sobre a possibilidade de excessos
Os excessos sempre são indevidos, pois conturbam qualquer sistema judiciário. Restringir o uso do habeas corpus para coibir os constrangimentos ilegais e diretamente quando voltados à liberdade de ir, vir e ficar é desmerecer a importância desse remédio heroico de longa tradição de defesa dos direitos individuais. Por outro lado, alargá-lo ilimitadamente, voltando-se a questionar toda e qualquer controvérsia surgida no âmbito criminal significa vulgariza-lo, a ponto de sobrecarregar o Judiciário, prejudicando os recursos próprios e conturbando o autêntico exame de mérito das mais sérias questões.
Eis o indispensável meio-termo. O habeas corpus destina-se, basicamente, a eliminar constrições ilegais à liberdade individual de ir, vir e ficar. Paralelamente, admite-se a sua propositura para questões correlatas a esse relevante direito, justamente pela enorme chance de nele resvalar. Neste último caso, o trancamento de uma investigação leviana, instaurada contra alguém, por meio do remédio heroico, é essencial, visto que, a qualquer momento, pode-se atingir a decretação infundada de prisão cautelar. Entretanto, pretender debater, na ação constitucional, aspectos de direito penal, nitidamente ligados ao mérito da causa, é contraproducente e dever coibido pelos juízos e tribunais.
O habeas corpus é um remédio, não pode se tornar um veneno para as instituições, permitindo a morte de recursos expressamente previstos em lei, desigualando as partes (somente o réu dele pode valer-se) e deixando o Judiciário refém de uma demanda que se apresenta numa singela petição inicial, acompanhada de alguns documentos apenas.
A despeito dos excessos que podem ser cometidos, é certo que somente a Constituição da República pode limitar o uso do habeas corpus, não cabendo ao legislador impor restrições não previstas explicitamente ou implicitamente no texto constitucional.
Neste diapasão, a própria Constituição disciplina que não cabe habeas corpus para combater decisões proferidas em punições disciplinares militares, nos termos do artigo 142, §2º.
Também da Constituição emergem outras limitações durante o estado de sítio ou de defesa, conforme explica Renato Marcão (2020, p. 1282):
Já observamos que a possibilidade de utilização do writ não é plena, e há ainda outras limitações ou restrições impostas pela Carta Política. Durante estado de defesa (CF, art. 136) e também no estado de sítio (CF, arts. 137 a 139), poderão ser suspensas garantias individuais e, de consequência, a possibilidade de utilização de habeas corpus contra os efeitos de tais determinações. Note-se, por exemplo, que, dentre outras medidas excepcionais, o art. 139 da CF admite, durante o estado de sítio, que se imponha a obrigação de permanência em localidade determinada (inciso I) e a detenção em edifício não destinado a acusados ou condenados por crimes comuns (inciso II).
Com o avanço dos debates da doutrina e jurisprudência, restaram pacificadas teses relativas à impossibilidade de uso do habeas corpus nos casos em que não há ameaça à liberdade de locomoção, a despeito da matéria criminal em debate.
A título de exemplos, podemos citar a súmula 395 do Supremo Tribunal Federal que dispõe que não cabe habeas corpus que visa combater decisão relativa ao pagamento de custas processuais. Por sua vez a súmula 693 do mesmo Tribunal aduz que não cabe habeas corpus contra decisão condenatória a pena de multa.
A súmula 694 do mesmo sodalício dispõe que não cabe habeas corpus contra a imposição de pena de exclusão de militar, perda de patente ou de função pública e, por sua vez, a súmula 695 aduz que é impossível o manejo do habeas corpus quando já extinta a pena privativa de liberdade.
Pela ausência de atentado ao direito de liberdade, também já restou assentada a impossibilidade de impetração da ordem em inúmeros casos já postos à apreciação dos tribunais. Dentre eles, podemos citar a discussão da perda do cargo como efeito extrapenal específico de sentença condenatória transitada em julgado; a discutir acerca da apreensão de veículos; a reabilitação; a preservação da relação de confidencialidade que deve existir entre advogado e cliente; a extração gratuita de cópias de processo criminal; o requerimento de aditamento da denúncia para fins de inclusão de outro acusado; a visita a detento; e a anulação de processo criminal em face de nulidade absoluta que, beneficiando a defesa, resultou em absolvição do acusado.
Ao mesmo argumento, também não é possível a impetração para discutir a perda de direitos políticos; o impeachment; as custas processuais; a reparação civil fixada na sentença condenatória; a suspensão do direito de dirigir veículo automotor e perda superveniente do interesse de agir em face da cessação do constrangimento ilegal à liberdade de locomoção, dentre outros.
A condição da ação referente ao interesse de agir desdobra-se em interesse necessidade, interesse adequação e interesse utilidade.
Quanto à necessidade, o que se busca perquirir é a indispensabilidade do uso do habeas corpus para atingir o objetivo almejado, ou seja, uso do habeas corpus para fazer cessar qualquer constrangimento ilegal contra o direito de locomoção. Daí surge a ideia de necessidade.
Quanto à adequação, a doutrina aponta que é a demonstração do direito líquido e certo a ser protegido, de maneira pré-constituída.
Por fim, quanto à utilidade: demonstração de que o mandamus é útil ao fim pretendido.
Interessante questão é trazida à baila por Guilherme de Souza Nucci (2014, p. 48):
O habeas corpus pode ser ajuizado por qualquer pessoa em favor de outra, mesmo que ambas não se conheçam e independentemente de procuração. Por isso, por vezes, é questionável o real interesse de quem o impetra. Imagine-se um preso famoso, nacionalmente conhecido, que possa despertar a atenção da mídia. Propondo habeas corpus em seu favor, o motivo de agir pode ser somente ganhar notoriedade, desatendendo vantagem autêntica para quem está detido.
Diante disso, se o paciente tiver procurador constituído, antes de conhecer e julgar o habeas corpus impetrado por terceiro estranho, deve-se consultar a defesa constituída do preso. Afinal, o julgamento do writ pode causar prejuízo à linha defensiva oficial adotada em prol do paciente pelo seu advogado. Se não houver concordância, o juízo ou tribunal deve indeferir, liminarmente, o habeas corpus por falta de interesse de agir.
Pontes de Miranda, contudo, apontava que não se faz possível a recusa à impetração do habeas corpus nestes casos. Para ele, considerando que a Constituição da República proporciona legitimação processual a qualquer pessoa, conferindo ao impetrante um direito e garantia constitucional, o Estado e o paciente devem obedecer à lei. Ademais, ele ainda apontava que é inviável a renúncia, pelo paciente, do direito à liberdade.
Guilherme de Souza Nucci (2014, p. 49) ainda complementa que
Segundo nos parece, a resposta a essa questão não pode dar-se em pontos extremos. Por certo, há razão a quem sustenta ser juridicamente inviável renunciar à liberdade; se a oposição do paciente a ser solto, por conta da impetração do habeas corpus, for imotivada, cremos deva ser ignorada pelo juízo ou Tribunal. Entretanto, se a oposição do paciente, especialmente quando formulada por seu defensor, tiver fundamento razoável, por exemplo, não atrapalhar a sua estratégia defensiva, deve o juízo ou tribunal indeferir a ordem liminarmente.
Quanto à legitimidade, o habeas corpus possui diversas peculiaridades.
No polo ativo da relação jurídica temos o impetrante e o paciente.
Paciente é a pessoa física que sofre a coação ou abuso de poder. Importante destacar, contudo, que o paciente não pode ser pessoa jurídica, haja vista a impossibilidade de que tal pessoa, fruto da criação da lei, não é privada de direito de locomoção, já que não se locomove, obviamente.
Exige-se que seja pessoa determinada, embora desnecessária a perfeita indicação dos seus dados e ainda que foragida. Contudo, conforme já noticiamos na introdução deste estudo, têm-se admitido na jurisprudência a impetração da ordem em favor de pessoas determinadas, mas não individualizadas, por meio de ação coletiva.
Impetrante, por sua vez, é a pessoa que vai à juízo requerer a concessão da ordem de habeas corpus. Ele pode ser o próprio paciente ou um terceiro em seu favor.
O impetrante tanto pode ser pessoa física como jurídica, nacional ou estrangeiro. Pode estar, ou não, patrocinado por advogado. Por ser uma pessoa capaz ou incapaz, portador de deficiência. Não se exige escolaridade, ou seja, admite-se a impetração por analfabeto. Exige-se apenas, portanto, que o impetrante possa manifestar sua vontade.
A legitimação ativa é tão ampla que podemos até mesmo afirmar que o impetrante, ainda, pode ser o membro do Ministério Público. Pode ser também o magistrado, na qualidade de cidadão, ao fazê-lo nos procedimentos alheios à sua jurisdição, uma vez que, os casos em que atua, pode conceder a ordem de ofício. Pela mesma lógica, também o pode ser o delegado de polícia.
Tudo isso se explica porque o direito fundamental que se busca tutelar é o direito à liberdade de locomoção, cuja salvaguarda é a todos imposta. Nesse contexto, Nereu José Giacomolli (2016, n.p.) assevera que:
O grau de proteção do direito fundamental da liberdade ocupa patamar tão relevante que o próprio legislador permite aos juízes e Tribunais, independentemente de provocação específica, conceder, no curso de qualquer processo, a ordem de habeas corpus, ex officio (art. 654, § 2o, do CPP), sem afetação da imparcialidade, em face da supremacia da exigência de garantia dos direitos fundamentais (v. BRANCO; COELHO; MENDES, 2009, p. 576). Ademais, a potencialidade assecuratória desse remédio jurídico autoriza o exame do constrangimento ou de sua ameaça, de forma imediata, em cognição inicial liminar, embora haja previsão no CPP.
Borges da Rosa resume tais informações apontando a grande relevância da legitimidade ativa do habeas corpus:
[...] o mais obscuro cidadão, o mais humilde habitante do país, ainda das mais longínquas paragens, pode, por si só ou por outrem, fazer subir até aí a sua reclamação contra a prepotência, contra o atentado à liberdade praticado por quaisquer autoridades. É dado a nacionais e estrangeiros confiar na ação, que por qualquer pode ser invocada, de um tribunal colocado acima de todas as jurisdições, como guarda e baluarte da liberdade, e que aos perseguidores, aos que abusam da do poder, aos que reduzem a vítima, os fracos, os desprotegidos, desconhecendo-lhes seus direitos, está na altura de dizer aquelas palavras da Bíblia: si laeseris eos, vociferabuntur ad me eg ego audium clamorem eorum.[19]
A seu turno, são valiosos os esclarecimentos de Rui Barbosa (apud Badaró, 2018, p. 988) ao explicar a importância da legitimação ativa em paralelo com o direito do próprio impetrante de fazer valor o direito e garantia à liberdade de toda a sociedade, dever de todos:
Eis, Srs. Juízes, de onde resulta a suprema importância do habeas corpus entre as nações livres. As outras garantias individuais contra a prepotência são faculdades do ofendido. Esta é o dever de todos, pela defesa comum. Ninguém pode advogar essa exceção singular às leis do processo. Ninguém pode advogar sem procuração a causa de outrem. Para valer, porém, à liberdade sequestrada, não há instrumento de poderes que exigir: o mandato é universal; todos os recebem da lei; para exercer validamente basta estar no país. Os próprios juízes estão obrigados a manda-la restituir ex officio, se no curso de qualquer processo lhe constar, por testemunho fidedigno, caso de constrangimento ilegal. O paciente pode, até, não requerer a liberdade; pode, resignado, ou indignado desprezá-la; pode, até por um desvario, rejeitá-la. É indiferente, a liberdade não entra no patrimônio particular, como as cousas que estão no comércio, que se dão, trocam, vendem ou compram; é um verdadeiro condomínio social; todos desfrutam, sem que ninguém possa alienar, e se o indivíduo, degenerado, a repudia, a comunhão, vigilante, a reivindica. Solicitando, pois, este habeas corpus, eu repugno, na liberdade dos ofendidos, a minha própria liberdade; não patrocino um interesse privado, a sorte dos cliente: advogo minha própria causa, a causa da sociedade, lesada no seu tesouro coletivo, a causa, a causa impessoal do tesouro supremo, representada na impessoalidade deste remédio judicial.
No polo passivo, a seu turno, está a autoridade coatora, a qual pode ser pessoa física ou jurídica, autoridade pública ou não. Como exemplos podemos citar órgãos estatais e até mesmo o diretor de hospital.
E para reforçar o dever de salvaguarda do direito à liberdade, o Código de Processo Penal, no artigo 654, §2º, dispõe compete aos juízes e os tribunais “expedir de ofício ordem de habeas corpus, quando no curso de processo verificarem que alguém sofre ou está na iminência de sofrer coação ilegal.”
Quanto aos fundamentos jurídicos do habeas corpus, apontamos, primeiramente, a própria disposição constitucional que indica as hipóteses em que alguém se achar coagido em seu direito de locomoção em razão da ilegalidade ou abuso de poder.
Contudo, ainda temos em vigor o artigo 648 do Código de Processo Penal, o qual apresenta um rol meramente exemplificativo.
Segundo referido rol, a primeira hipótese constante do inciso I do referido artigo é a ausência de justa causa. Justa causa é o justo motivo para a existência de processo ou investigação contra alguém, com lastro probatório suficientemente fundamentado na lei. A ausência, portanto, é a falta do justo motivo. Exemplo: prisão realizada sem ordem judicial ou sem flagrância, decretação de prisão cautelar sem observância dos pressupostos estabelecidos na lei.
Tal requisito desdobra-se em duas facetas. A primeira é relativa ao justo motivo para que a ordem tenha sido proferida. A segunda, para que a ordem seja mantida.
Por sua vez, o inciso II estabelece que constitui coação ilegal quando alguém estiver preso por mais tempo do que determina a lei, configurando o excesso de prazo. Todos têm o direito à razoável duração do processo, conforme disposição constitucional.
No Brasil, impera a doutrina do não prazo: não há definição legal de qual o prazo total do processo, apenas prazos dos atos processuais, isoladamente. Mesmo assim, o simples excesso de prazo de cada ato não é suficiente a indicar o excesso, até porque diversas questões que gravitam no processo penal podem influenciar no prazo do ato processual. Assim, o excesso de prazo deve ser analisado caso a caso para a verificação de sua razoabilidade, observando-se a complexidade do caso, a atividade processual do interessado e a conduta das autoridades judiciárias.
Quanto às cautelares, a doutrina e a jurisprudência têm caminhado no sentido do entendimento de que o excesso de prazo deve ser cotejado com a duração da pena que provavelmente pode ser fixada em caso de condenação.
O inciso III dispõe que é ilegal a coação quando quem ordená-la não tiver competência para fazê-lo. Como exemplo podemos apontar o juiz estadual que determina a prisão em razão de fato cuja competência para julgamento é da justiça federal. Porém, o que se disciplina aqui é a competência da autoridade judiciária, e não da autoridade policial, já que a polícia não possui competência, mas atribuições.
O inciso IV disciplina a hipótese na qual houver cessado o motivo que autorizou a coação. Como exemplo, é o caso daquele que é preso cautelarmente para que se assegure a instrução processual, uma vez colhida a prova, cessa o motivo que autorizou a prisão.
No inciso V, é disciplinada a hipótese relativa, quando não for alguém admitido a prestar fiança, nos casos em que a lei a autoriza. A doutrina aponta que tal hipótese deve ser alargada para os casos em que o valor arbitrado é excessivo.
Por sua vez, o inciso VI dispõe sobre quando o processo for manifestamente nulo. É a nulidade evidente, clara, inequívoca.
Por fim, o inciso VII aponta que a coação é ilegal quando extinta a punibilidade. De fato, fulminada a pretensão punitiva, incabível a continuidade das investigações ou do desenvolvimento do processo.
Quanto ao procedimento, em que pese não seja o objeto deste estudo, contudo, uma importante questão deve ser trazida à baila, para o estudo dos próximos capítulos.
Muito se discute na doutrina e jurisprudência sobre a limitação da cognição no procedimento do habeas corpus, e, por vezes, uma certa confusão é feita sobre tal assunto.
É consenso que o procedimento do habeas corpus não comporta a ampla dilação probatória.
Contudo, é necessário distinguir a dilação probatória da análise da prova pré-constituída. Neste sentido, Aury Lopes Junior (2018, p. 1121) explica que
Esse argumento tem sido, inclusive, distorcido de modo a ser um dos principais filtros obstaculizadores do conhecimento do HC nos tribunais brasileiros. Até certo ponto, o argumento está correto, pois se trata de uma ação de cognição sumária, que não permite dilação ou ampla discussão probatória.
Mas, por outro lado, não se pode confundir dilação probatória com análise de prova (pré-constituída). A sumarização da cognição impede que se pretenda produzir prova em sede de habeas corpus ou mesmo obter uma decisão que exija a mesma profundidade da cognição do processo de conhecimento (ou seja, aquela necessária para se alcançar a sentença de mérito). O que não se pode é pretender o exaurimento da análise probatório nos estritos limites do HC.
Noutra dimensão, é perfeitamente possível a análise da prova pré-constituída, independente da complexidade da questão. O fato de ser o processo complexo, constituído por vários volumes e milhares de páginas, não é obstáculo ao conhecimento do HC. Se para se demonstrar a ilegalidade de uma interpretação telefônica, por exemplo, e por conseguinte a nulidade da prova for necessário analisar e valorar centenas de conversas, milhares de páginas, deve o HC ser conhecido e provido (ou desprovido) conforme o caso. A complexidade das teses jurídicas discutidas e consequente análise de documentos ou provas já constituídas não são obstáculos para o HC.
Da mesma forma, quando se pretende o trancamento do processo (e não da ação, como já explicado) por falta de justa causa (a outra condição da ação), está permitida a ampla análise e valoração da prova já constituída nos autos. Não há que se confundir sumariedade na cognição com superficialidade da discussão. O HC não permite que produza prova ou se faça uma cognição plenária, exauriente, com juízo de fundo, da questão. Mas, de modo algum, significa que somente questões epidérmicas ou de superficialidade formal possa ser objeto do writ.
Destarte, não se pode deixar de conhecer da impetração ao argumento de que a questão posta em debate é de cognição exauriente ou depende de ampla análise de provas já produzidas, apontando-se a complexidade da discussão. Destarte, se apontada e demonstrada a coação à liberdade de locomoção, é o caso de conhecimento da ação e concessão da ordem, com a análise das provas que instruem o mandamus.
Ainda neste debate, Ingo Wolfgang Sarlet et al (2019, n.p.) esclarece que:
É comum encontrar a caracterização do processo da ação de habeas corpus como processo “sumaríssimo, que, por isso, exige prova pré-constituída”;
como “ação de procedimento sumário, pois a cognição é limitada”; ou como “ação que constitui um processo de cognição sumária, limitada portanto, em que não se permite uma ampla e plena discussão sobre a ilegalidade, devendo ela ser evidente, comprovada por prova pré-constituída”.
Diante de afirmações dessa ordem, impende distinguir as coisas. O processo de habeas corpus é sumário do ponto de vista formal, porque possui procedimento abreviado. Do ponto de vista da cognição, porém, constitui processo de cognição parcial e exauriente secundum eventum probationis. No plano horizontal da cognição, o habeas corpus tem cognição parcial por uma razão: apenas as matérias que configurem coação ilegal são passíveis de discussão no seu processo. A causa de pedir e a defesa são vinculadas ao corte vertical procedido pelo legislador (arts. 5.o, LXVIII, da CF e 648 do CPP). No plano vertical, contudo, a cognição é plena secundum eventum probationis. O juiz conhece da causa visando à formação de juízo de certeza no limite permitido pela prova documental pré-constituída. A especialidade do processo no plano da cognição reside justamente no fato de o juiz não poder conhecer nada senão mediante prova pré-constituída. Qualquer alegação que dependa de prova diversa da documental não pode ser conhecida em habeas corpus.
Isso não quer dizer, contudo, que o habeas corpus não tenha uma fase de cognição sumária no plano vertical. Afirmar a cognição parcial e exauriente secundum eventum probationis do processo como um todo não implica negar a possibilidade de tutela jurisdicional mediante cognição sumária em habeas corpus. Embora o Código de Processo Penal silencie a respeito, é inquestionável a possibilidade de liminar em habeas corpus para proteção imediata da liberdade individual do paciente. A decisão liminar é oriunda da utilização da técnica antecipatória e, como visa à satisfação do direito à liberdade de forma provisória sob cognição sumária, mediante invocação de perigo na demora, pode ser classificada como antecipação da tutela satisfativa fundada na urgência – não se trata, portanto, de tutela cautelar.
Conclusão
Finalizado o estudo, podemos ponderar algumas conclusões.
A liberdade e, dentro de seu contexto amplo, a liberdade de locomoção, é direito e garantia fundamental previsto na Constituição da República e originado das revoluções nos tempos, caracterizando-se como direito humano de primeira geração.
Para garantia de tal direito, dentre outras ações, o habeas corpus é previsto constitucionalmente e em documentos internacionais. O habeas corpus representa uma importante ação no direito pátrio para conhecimento da coação e violência à liberdade de locomoção em razão por meio de ilegalidade ou abuso de poder. Em razão do direito que tutela, muitas vezes é palco de relevantes debates que repercutem não só no caso concreto como também na sociedade.
De tal importância, na atualidade, o uso do habeas corpus, além de direito do paciente, é verdadeiro dever de toda a sociedade para proteção do direito à liberdade, o que se verifica até mesmo em razão da facilitação de seu manejo a qualquer pessoa do povo.
Tal remédio constitucional evoluiu através dos tempos, tendo surgido, para alguns, no direito romano e, para outros, no direito inglês, com a Magna Charta Libertatum, do Rei João Sem Terra, de 1215. No Brasil, surgiu com o Código de Processo Criminal de 1832 e, na Constituição de 1891, foi elevado à garantia constitucional.
Na atualidade, está previsto no artigo 5º, inciso LXVII da Constituição da República e no Código de Processo Criminal. Em razão do direito que tutela, o regramento atual possibilita que qualquer pessoa impetre o writ para quem se achar coagido ou violentado, ainda que não tenha o impetrante interesse na ordem, ou que não possua condições de pagar custas, ou que não possua conhecimento técnico para fazê-lo. E tal se explica porque, como já referenciado neste trabalho, é dever de toda a sociedade lutar pela liberdade de todos os indivíduos dessa nação!
Referências
AVENA, Norberto Cláudio Pâncaro. Processo penal. 9.ª ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense. São Paulo: MÉTODO, 2017.
BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo Penal. 6ª ed. ver., atual. e ampl. São Paulo Thomson Reuters Brasil, 2018.
BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de direito constitucional. 11. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018.
CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. 27ª. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020.
CERVANTES SAAVEDRA, Miguel de. Dom Quixote. São Paulo: FTD, 2013.
DEMERCIAN, Pedro Henrique. Curso de processo penal. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014.
GIACOMOLLI, Nereu José. O devido processo penal: abordagem conforme a Constituição Federal e o Pacto de São José da Costa Rica. 3. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2016.
ISHIDA, Válter Kenji. Prática jurídica de habeas corpus. São Paulo: Atlas, 2015.
KOENER, Andrei. Habeas corpus, prática judicial e controle social no Brasil (1841-1920). São Paulo: IBCCrim, 1999.
LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal: volume único. 5. ed. rev . ampl. e atual.- Salvador: Ed. JusPodivm, 2017.
LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. 15 ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018.
LOPES JR, Aury. A moda agora é dar Habeas Corpus “de ofício, mas só quando eu quiser”. 2014. Disponível em < https://www.conjur.com.br/2014-ago-22/moda-dar-habeas-corpus-oficio-quando-eu-quiser >. Acesso em 09/10/2020.
MACHADO, Antônio. Alberto. Curso de processo penal. 6. ed. – São Paulo: Atlas, 2014.
MARCÃO, Renato. Curso de Processo Penal. 6. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020.
MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 35. ed. São Paulo: Atlas, 2019.
MOSSIN, Heráclito Antônio. Habeas corpus: antecedentes históricos, hipóteses de impetração, processo, competência e recursos, modelos de petição, jurisprudência atualizada. 9ª edição. Barueri, SP: Manole, 2013.
MOUGENOT, Edilson. Curso de processo penal. 13ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019.
NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de direito processual penal. 17ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020.
NUCCI, Guilherme de Souza. Habeas corpus. Rio de Janeiro: Forense, 2014.
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. 11ª ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2014.
PACELLI, Eugênio; FISCHER, Douglas. Comentários ao Código de Processo Penal e sua Jurisprudência. 11. ed. São Paulo: Atlas, 2019.
PACELLI, Eugênio. Curso de Processo Penal. 24. ed. São Paulo: Atlas, 2020.
PINHA, Miguel; et al. Finalidade da pena: Bandido bom é bandido morto? Disponível em < https://jus.com.br/artigos/66709/finalidade-da-pena-bandido-bom-e-bandido-morto/4 >. 2016. Acesso em 09/10/2020.
ROIG, Rodrigo Duque Estrada. Execução penal: teoria crítica. 4. ed. – São Paulo : Saraiva Educação, 2018
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.
SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de direito constitucional. 8. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019.
SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada: ensaio de fenomenologia ontológica. Tradução de Paulo Perdigão. 5º ed, RJ: Vozes, 1997.
STF. HC 82959. Relator(a): MARCO AURÉLIO. Órgão julgador: Tribunal Pleno. Julgamento: 23/02/2006. Publicação: 01/09/2006. . Disponível em < https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search?classeNumeroIncidente=%22HC%2082959%22&base=acordaos&sinonimo=true&plural=true&page=1&pageSize=10&sort=_score&sortBy=desc&isAdvanced=true >. Acesso em 09/10/2020.
STF. HC 143641. Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI. Órgão julgador: Segunda Turma. Julgamento: 20/02/2018. Publicação: 09/10/2018. . Disponível em < https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search?classeNumeroIncidente=%22HC%20143641%22&base=acordaos&sinonimo=true&plural=true&page=1&pageSize=10&sort=_score&sortBy=desc&isAdvanced=true >. Acesso em 09/10/2020.
STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018.
TORON, Alberto Zacharias et al. Decisões controversas do STF: Direito constitucional em casos. Rio de Janeiro: Forense, 2020.
TORON, Alberto Zacharias. Habeas Corpus: controle do devido processo legal: questões controvertidas e de processamento do writ. 2ª edição. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018.
[5] http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Documentos-anteriores-%C3%A0-cria%C3%A7%C3%A3o-da-Sociedade-das-Na%C3%A7%C3%B5es-at%C3%A9-1919/magna-carta-1215-magna-charta-libertatum.html
[11] https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei_sn/1824-1899/lei-36004-29-novembro-1832-541637-publicacaooriginal-47265-pl.html
Procurador Federal, membro da Advocacia-Geral da União, graduado na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PEDRESCHI, Guilherme Barbosa Franco. O direito constitucional à liberdade de locomoção e sua defesa: um estudo do habeas corpus Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 29 jun 2022, 04:33. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/58774/o-direito-constitucional-liberdade-de-locomoo-e-sua-defesa-um-estudo-do-habeas-corpus. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Gabrielle Malaquias Rocha
Por: BRUNA RAFAELI ARMANDO
Precisa estar logado para fazer comentários.