Resumo: O presente artigo tem por objetivo abordar as influências e as consequências práticas que a escola criminológica do etiquetamento possui sobre a política de repressão às drogas, sobretudo após a vigência da Lei 11.343/2006, promovendo uma análise acerca das escolhas legislativas no tocante a esta questão, da aplicação destas normas e da prática da atuação policial, que têm levado ao encarceramento massivo de jovens nascidos na periferia. Para esta análise, também é proposta uma problematização de dogmas arraigados no seio do ordenamento jurídico, a exemplo da ideia de um legislador dotado de racionalidade e que cria normas visando sempre ao bem comum. Assim, pretende-se demonstrar a seletividade da política de combate às drogas, claramente direcionada às camadas mais baixas da sociedade, sendo um fruto destes dogmas jurídicos que, embora sejam academicamente contestados, são cegamente seguidos pelos aplicadores do direito, o que tem dado ensejo a situações de flagrante injustiça, ao aumento da marginalização dos mais pobres e ao desrespeito de direitos fundamentais destas pessoas.
Palavras-chave: Escolas Criminológicas. Etiquetamento. Lei n. 11.343/2006. Política de Combate às Drogas. Seletividade Penal. Dogmas Jurídicos.
1 INTRODUÇÃO
O labelling approach, etiquetamento ou rotulacionismo é uma escola criminológica que busca mostrar como as políticas criminais, seja a partir da participação do Legislativo, do Executivo ou do Judiciário, agem seletivamente quanto aos indivíduos que desejam atingir com as sanções penais.
Talvez a melhor frase a sintetizar o pensamento do labelling approach é a de Austin Turk, citado por Augusto Thompson, quando diz que “o status de delinquente é atribuído às pessoas não pelo que fizeram, mas pelo que são”, pois “afinal de contas, não são os comportamentos (delitivos) que contam, uma vez que o importante, de fato, para o agir efetivo da justiça criminal, reside na posição social do autor” (THOMPSON, 2007 p.55).
Esse rotualcionismo ganha demasiada importância numa sociedade como a nossa em que o postulado de ser o direito penal de ultima ratio, através da aplicação dos princípios penais da subsidiariedade e fragmentariedade, fica só na teoria dos livros estudados na academia. A prática forense e policial demonstra que na maioria das vezes a busca das soluções penais se dá logo em primeiro plano, pois o corpo social ainda não está acostumado a viver sem o punho forte do Estado, consubstanciado, principalmente, através das sanções penais.
É nesse contexto que inúmeras situações de desigualdade e injustiça são criadas todos os dias, em decorrência tanto do momento em que lei em abstrato foi elaborada, quanto da sua aplicação prática.
Com a Lei 11.343/2006, a chamada “Lei Anti-Drogas”, isto tudo acabou ficando ainda mais acentuado. Visto que, apesar de uma pretensa igualdade da lei considerada em abstrato, a seletividade fica por conta da sua aplicação prática, seja durantes as ações policias, seja no âmbito do Judiciário e do Ministério Público, ou até nos órgãos de execução de políticas públicas.
Ganha contornos esdrúxulos ainda mais evidentes pelo fato de ser uma lei que histórica e socialmente é naturalmente destinada aos mais pobres, sobretudo os habitantes de regiões periféricas dos grandes centros urbanos, tendo em vista a ideia inculcada de que o problema do tráfico está nas favelas, e para vencer a “guerra contra as drogas” é necessário subir o morro e matar os traficantes garantindo a sobrevivência harmônica dos cidadãos de “bem”.
Partindo dessas premissas, o presente artigo tem por escopo demonstrar como a política criminal de combate às drogas vem selecionando aqueles que deseja punir, rotulando os indivíduos a sofrer as consequências penais da Lei 11.343/2006, ensejando muitas vezes violações fatais aos primados constitucionais, a partir do combate às drogas, que passou a ser o inimigo ideologicamente criado a ser combatido a qualquer custo.
2 DESENVOLVIMENTO
A Lei 11.343 entrou em vigor no ano de 2006, prometendo contribuir decisivamente para a tão propalada “guerra às drogas”. Porém, o que aconteceu foi uma maior criminalização de condutas ligadas ao uso e ao comércio de entorpecentes e o endurecimento das sansões penais previstas.
Dessa forma, a “Lei Anti-Drogas” colaborou ainda mais para o encarceramento e marginalização das camadas populares, notadamente daquelas que habitam as favelas dos grandes centros urbanos.
Numa sociedade complexa e hierarquizada, dita as leis a classe que dispõe de poder. E, obviamente, armará a ordem legal de sorte a garantir a permanência das desigualdades existentes, das quais decorrem as vantagens que lhes bafejam os membros, tanto quanto so ônus suportados pelas massas oprimidas Ou seja: a ordem jurídica, elaboram-na os grupos predominantes em termos de poder, com o propósito político de assegurara conservação do status quo sócio econômico. (THOMPSON, 2007 p. 47)
A associação entre as drogas e grupos de pessoas consideradas perigosas” serviu e continua servindo para aprofundar o controle penal sobre os pobres, os marginalizados, não brancos, num processo crescente de criminalização da pobreza, de “limpeza urbana”. (LATTAVO, p. 3)
A exemplo do que ocorre em outros países, a maior parte da população carcerária brasileira está presa por ter cometido algum crime relacionado ao uso ou venda de entorpecentes ou ser apenas suspeito de tê-lo feito.
As condenações por prática das criminalizadas condutas relacionadas à produção, ao comércio e ao consumo das selecionadas substâncias psicoativas e matérias-primas para sua produção etiquetadas de drogas ilícitas, além de ensejar a sistemática aplicação da pena de morte em países como a China, o Vietnam, Singapura, Irã, Indonésia, Malásia Arábia Saudita, são a principal causa do crescimento do número de presos em todo o mundo. (KARAN p. 11)
O Brasil tem hoje, em números absolutos, a quarta maior população carcerária do mundo. Em dezembro de 2012, já eram mais de 500 mil presos (548.003). Acusados e condenados por “tráfico” que, em dezembro de 2005, eram 9,1% do total dos presos brasileiros, em dezembro de 2012, chegavam a 26,9%. Entre as mulheres, essa proporção alcança praticamente metade das presas (47,35%). (LATTAVO p. 3)
Sabemos que nosso sistema jurídico é permeado de dogmas seculares que nunca condisseram com a realidade da época em que surgiram, quanto mais com o atual estágio social, tendo em vista a ação de anos a fio passados da criação destes postulados, que datam do surgimento do positivismo jurídico cientificizado por Hans Kelsen.
Porém, os referidos dogmas continuam sendo cegamente seguidos pelos aplicadores do direito e por vezes acabam criando situações de esdrúxulo tratamento desigual, conduzindo a gritantes injustiças.
Augusto Thompson elenca quais são esses postulados:
A maioria das pessoas acredita piamente, sem vacilação, dúvidas ou questionamentos, em certas ”crenças jurídicas”, inculcadas de maneira enfática pela ideologia, tais como: “1. Que existe um legislador racional produzindo um sistema jurídico coerente, econômico, preciso etc. 2. Que o ordenamento jurídico não possui contradições e redundâncias e, especificamente, o direito penal não exibe lacunas. 3. Que a ordem jurídica é finalista, justa e protege indistintamente todos os cidadãos. 4. Que o julgador é, axiologicamente, neutro enquanto decide, portanto não há arbítrio na aplicação da Justiça. 5. Que o julgador, no direito penal, busca a verdade real e não o preferível do ponto de vista valorativo. ( )
Em relação à Lei 11.343/2006 tais premissas não poderiam deixar de ser aplicadas. Se existe uma pretensa igualdade no tratamento aos usuários, comerciantes, financiadores etc. de quaisquer entorpecentes, sua aplicação prática cotidiana nos mostra que há um etiquetamento de quem as medidas punitivas irão atingir.
Sabemos que a abordagem policial e a caneta do Judiciário são, via de regra, mais pesadas para os indivíduos das camadas populares da sociedade. Mormente, quando estamos falando de combate às drogas, visto que se tem a idéia de que o problema está nas favelas e é necessário invadir, expulsando os “donos do morro” ou eliminando-os. E isto irá garantir a drástica redução da criminalidade nas cidades urbanas.
Tudo isto se torna fácil quando há um temor generalizado às consequências dessas substâncias, inculcado por uma ideologia política de intolerância aos entorpecentes, e que justifica quaisquer medidas ao seu combate, mesmo que deixemos de observar direitos fundamentais.
Não custa muito perceber que qualquer lei ou ação destinada ao combate às substâncias entorpecentes irá atingir as classes mais baixas, sobretudo os cidadãos marginalizados, moradores dos subúrbios dos grandes centros urbanos.
Qualquer aparente impessoalidade de tratamento do texto legal é fatalmente afastada durante as ações policiais e na lida do Judiciário com a questão. Esta lei repressiva tem que continuar cumprindo o seu papel de encarcerar pobres, através do rotulacionismo dado aos envolvidos com os entorpecentes, de que estes são os que tem que ser detidos, pois representam uma perigo para a paz social.
Quando algum rico é atingido, é só para camuflar este propósito, validando o sistema. Como se dissesse que também se prende os moradores das áreas nobres, basta que sua conduta se amolde nos tipos penais da Lei Anti-Drogas e sejam descobertos pelos órgãos de investigação.
O que está sendo dito é constatado facilmente pelos números de apreensões de entorpecentes.
O Batalhão de Choque da Polícia Militar do Estado de Sergipe, divisão policial que realiza grande parte das apreensões de drogas no Estado, deteve no ano de 2012, segundo estatísticas fornecidas pelo próprio Batalhão, as seguintes quantidades de drogas ilícitas:
1) Maconha: 32,785 kg
2) Crack: 950 pedras
3) Cocaína: 586g + 2 trouxas + 176 cápsulas
4) Trouxas de maconha: 108 trouxas + 200 papelotes
Sabemos que estas drogas são encontradas com as pessoas mais pobres, pois têm um custo mais baixo. Inclusive a cocaína, que antigamente era uma droga cara, mas que devido a misturas na sua composição passou a ser mais acessível, quando então passou a figurar nas estatísticas de apreensão de entorpecentes.
Percebe-se que não há nenhuma daquelas drogas consideradas como sendo “de rico”, cujo custo de obtenção é bem mais alto, a exemplo do ecstasy, LSD ou heroína. Todas elas são substâncias cujo consumo e venda são proibidos pela Lei 11.343/2006, porém não figuram nas estatísticas de detenções de entorpecentes. Dificilmente estas drogas são apreendidas.
Se os órgãos de repressão às drogas estivessem dispostos a aumentar a quantidade de droga apreendida, incluindo estes entorpecentes de maior custo, haveria batidas policiais em cada festa de música eletrônica, principalmente aquelas que são conhecidas como “raves”.
Não existe lugar mais propício para se apreender essas substâncias. Um grande número de jovens faz uso destes entorpecentes em festas desse tipo. Porém não há revistas em busca de drogas, e se houver será de forma bem menos truculenta se comparada à abordagem policial feita nos subúrbios e favelas, pois nestes lugares o princípio da presunção de inocência não tem a aplicação devida.
Nestas festas, a polícia tem receio de, ao abordar alguém, esta pessoa dizer a célebre frase: “sabe com quem está falando” ou “sou filho de Dr. Fulano de tal”. E se alguém for levado à delegacia, os agentes do Estado correm o risco de serem acusados de violação de direitos e vir uma ordem hierarquicamente superior determinando que os detidos sejam logo soltos.
Poderia argumentar-se que pessoas mais abastadas também fazem uso dessas drogas de menor custo e que são apreendidas pela polícia. Porém, verificamos mais uma vez a seletividade de quem se quer punir e desta vez de forma mais esdrúxula.
Pelo texto legal, teria de ser detido também aquele que faz uso de entorpecentes. Entretanto, na maioria das vezes, quando o usuário é de classe média alta, apenas o traficante, normalmente aquele que desce do morro para levar a droga, é preso, enquanto os usuários irão arranjar um outro fornecedor para continuar fazendo uso das mesmas substâncias.
Marina Lattavo, inspetora da Polícia Civil do Rio de Janeiro, narra uma situação da qual ela participou e que retrata bem este etiquetamento na política de combate às drogas:
Logo no meu primeiro trabalho na polícia me deparei com um caso em que fui designada a investigar sobre um possível esquema de venda de drogas para alunos de uma determinada universidade. A primeira coisa que fiz foi me fingir de aluna e ficar na porta da universidade para entender o tal “esquema”. Foi uma investigação rápida e fácil, porém com um fim nada louvável. A venda da droga era feita por um jovem que sem nenhuma violência ou ameaça descia a sua comunidade de bicicleta e levava o “produto” que os universitários queriam consumir. O resultado? Os universitários continuaram consumindo seu produto com outro fornecedor… o garoto da bicicleta, que cabe lembrar, também era estudante mas de uma escola pública, foi preso e condenado por tráfico de drogas. (LATTAVO, 2014)
Ademais, quando se fala em combate às drogas, tudo se justifica. Há toda uma ideologia política que faz com que direitos constitucionalmente assegurados sejam violados em nome do combate ao maior inimigo civil da sociedade. É como se fosse criado um Estado de Exceção para a “guerra contra as drogas”.
A legitimação e a alimentação do agigantado poder punitivo vão produzindo uma crescente e sistemática edição de leis penais e processuais penais que abandonam princípios garantidores dos direitos fundamentais e criam vácuos, que progressivamente se ampliam, nos quais é indevidamente desprezado o imperativo primado das normas fundamentais inscritas nas declarações internacionais de direitos e nas constituições democráticas.
As imposições criminalizadoras vindas nas proibicionistas convenções das Nações Unidas em matéria de drogas e adotadas nas legislações internas dos mais diversos Estados nacionais são um pioneiro e eloquente exemplo dessa desautorizada prática legislativa, a sistemática violação a princípios garantidores positivados em normas inscritas nas declarações internacionais de direitos e nas constituições democráticas, a sistemática negação de direitos fundamentais e de suas garantias, destacando-se como sua totalitária marca. (KARAN, p. 12)
Porém, em que pese tais violações serem destinadas a qualquer usuário ou comerciante, o que vemos na prática é que elas acabam sendo dirigidas apenas àqueles marginalizados.
A truculência e a violência policial são bem mais sensíveis e fazem mais vítimas nas regiões suburbanas. A polícia não entra em bairros nobres atirando antes de perguntar, invadindo casas em busca de drogas, torturando para que digam onde o traficante se encontra. As Unidades de Polícia Pacificadora – UPP - estão nas favelas.
Basta lembrar o recente caso do ajudante de pedreiro Amarildo, que fora detido na porta de sua casa para averiguação por suspeita de envolvimento com o tráfico de drogas e levado a UPP da Favela da Rocinha, onde residia, no Rio de Janeiro. Depois disso, ninguém mais soube do seu paradeiro, nem foi mais visto.
Mas o pior dessa história é que não são poucos os Amalridos. Várias pessoas simplesmente desaparecem da mesma forma e pelo mesmo motivo, sempre em nome do combate ao maior vilão da sociedade. Constitui, assim, verdadeira afronta ao Estado de Direito, mas que parece existir só para aqueles mais abastados. Aliás, infelizmente, estranhamos o fato de a mídia dar tanta atenção a esse caso, pois sabemos que como esse, já ocorreram tantos outros semelhantes, e que, apesar de absurdo, por não pertencer às classes média e alta, são negligenciados pelos noticiários.
Outra violação de direitos em nome da “guerra às drogas” que devemos lembrar diz respeito à internação compulsória dos usuários de crack em São Paulo, notadamente aqueles que se encontrarem na região conhecida como “crackolândia”. Submeter alguém forçadamente a qualquer tipo de tratamento constitui verdadeiro vilipêndio aos direitos fundamentais e direitos civis da personalidade.
A internação compulsória é mais uma atitude autoritária e arbitrária do Estado escudada na luta contra o maior adversário da sociedade brasileira. A Organização Mundial da Saúde – OMS, através da Organização Pan-Americana de Saúde – OPAS, divulgou nota no site oficial da ONU na qual considerou que a “priorização de medida extrema como a internação compulsória” está na “contramão do conhecimento científico sobre o tema” e pode “exacerbar as condições de vulnerabilidade e exclusão social dos usuários de drogas”, taxando-a como inadequada e ineficaz.
A seletividade que não poderia faltar em qualquer das políticas de combate às drogas fica a cargo de que quem se envolve com crack e mora na crackolândia é, quase sempre, pessoas das classes mais pobres, moradores de rua, marginalizados da sociedade. Não se fala em internação compulsória de usuários de quaisquer outros tipos de drogas, pois poderia abarcar membros das classes média e alta no meio, o que tornaria inadmissível tal medida.
Essa política de internação compulsória se assemelha à política de limpeza dos espaços públicos desenvolvida em Nova York conhecida por “tolerância zero” e que vem inspirando o surgimento da expressão “cidade da qualidade de vida” no Brasil hodiernamente.
De Nova York, a doutrina da "tolerância zero", instrumento de legitimação da gestão policial e judiciária da pobreza que incomoda - a que se vê, a que causa incidentes e desordens no espaço público, alimentando, por conseguinte, uma difusa sensação de insegurança, ou simplesmente de incômodo tenaz e de inconveniência -, propagou-se através do globo a uma velocidade alucinante. E com ela a retórica militar da "guerra" ao crime e da "reconquista" do espaço público, que assimila os delinqüentes (reais ou imaginários), sem-teto, mendigos e outros marginais a invasores estrangeiros - o que facilita o amálgama com a imigração, sempre rendoso eleitoralmente. (WACQUANT, 1999 p. 19)
Para os membros das classes populares reprimidas à margem do mercado de trabalho e abandonadas pelo Estado assistencial, que são o principal alvo da "tolerância zero", o desequilíbrio grosseiro entre o ativismo policial e a profusão de meios que lhe é consagrada, por um lado, e a sobrecarga dos tribunais e a progressiva escassez de recursos que os paralisa, por outro, tem todas as aparências de uma recusa de justiça organizada. (Ibid. p. 26)
Porém, no contexto da internação compulsória devemos lembrar de outro fator a motivar tal medida: a Copa do Mundo que está prestes a chegar no país. É como se a mãe FIFA estivesse dizendo ao filho Brasil que precisa arrumar o quarto (jogar a poeira para debaixo do tapete mesmo, ou melhor, jogar tudo na gaveta e trancá-la) pois as visitas estão chegando. Afinal, não seria bom que os turistas, ao visitar a mais rica cidade brasileira, fossem incomodados com dependentes perambulando pelas ruas. É mais uma ingerência, mesmo que indireta, oculta ou transversa da FIFA a criar absurdos no nosso sistema jurídico.
Estes são apenas alguns exemplos empíricos e constatações de como a política criminal de combate às drogas age seletivamente, rotulando aqueles que serão atingidos, vilipendiando direitos e garantias fundamentais em nome de uma ideologia política justificadora alcunhada como “guerra contra as drogas”.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pelo que foi exposto, temos de abandonar de imediato a ideia de que o legislador é um ser universal, dotado de toda a racionalidade e que cria normas visando sempre o bem comum. Bem como, o dogma jurídico de que o Juiz é sempre imparcial e aplica as leis indistintamente a todos os cidadãos, há de ser afastado do pensamento jurídico imediatamente.
Caso contrário corremos o risco de continuar produzindo situações de completa injustiça e tratamento desigual, quando selecionamos quem o bastão do direito penal irá atingir. E não precisa de grandes esforços para perceber que os que serão mais afligidos serão os mais pobres, pois as leis são criadas e aplicadas por representantes quase que totalmente das classes média e alta e que precisam manter o seu domínio sócio econômico sobre as camadas mais baixas.
Isto ganha contornos ainda mais evidentes quando tratamos de uma política repressiva que é naturalmente destinada aos moradores das áreas periféricas, notadamente nas favelas. A luta contra os entorpecentes virou um inimigo ideologicamente criado, e que acaba justificando medidas desrespeitosas aos direitos fundamentais. Como era de se esperar, estas medidas atingem com um vigor muito maior os integrantes das camadas marginalizadas.
No presente trabalho, em linhas gerais, foram delineadas três demonstrações práticas de como a política de combate às drogas age seletivamente: 1- as estatísticas oficiais de apreensão de drogas pela polícia, deixando claro que as drogas mais apreendidas são aquelas de menor custo e por isso mesmo as mais usadas pelos pobres; 2- a violenta abordagem policial nos subúrbios, justificada pelo combate às drogas, desrespeitando direitos e culminando em tantos “Amarildos”; 3- a internação compulsória dos usuários de crack, praticamente todos pobres, como uma situação de flagrante desrespeito a direitos fundamentais.
Precisamos pensar a partir de novos paradigmas, esquecendo todos esses dogmas que seguimos cegamente. Algo necessita ser feito para barrar situações de desarrazoada discriminação social. Refletir sobre mudanças tanto no âmbito do Legislativo, do Judiciário e do Executivo, pois cada um deles possui, indiscutivelmente, sua parcela de culpa.
Mas o apelo maior deste autor é que essa reflexão passe pela superação da insustentável política de combate às drogas. Nos moldes em que se encontra, continuarão a ser vilipendiados cada vez mais e mais direitos de pessoas desassistidas e pelas quais não nos importamos mais. Afinal, até quantos Amarildos ainda terão que morrer sob pretexto de derrotar o grande inimigo? Aliás, quem é o verdadeiro inimigo?
BIBLIOGRAFIA
BRASIL, Priorizar internação compulsória para tratamento de drogas é ‘inadequado’ e ‘ineficaz’, diz OMS. Disponível em: <http://www.onu.org.br/priorizar-internacao-compulsoria-para-tratamento-de-drogas-e-inadequado-e-ineficaz-diz-oms/> Acessado em 27.02.2014.
KARAN, Maria Lúcia. Drogas: Legislação Brasileira e Violações a Direitos Fundamentais. Disponível em: < http://www.leapbrasil.com.br/textos>. Acessado em 27/02/2014.
LATTAVO, Marina. A “Guerra às Drogas” e os Amarildos. Disponível em: <http://www.leapbrasil.com.br/textos>. Acessado em 27/02/2014.
THOMPSON, Augusto. Quem são os criminosos: O Crime e o Criminoso: Entes Políticos. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
WACQUANT, Loic. Prisões da Miséria. Trad.: André Teles. Digitalizado por Sabotagem, 1999.
Graduado em Direito pela Universidade Federal de Sergipe, foi advogado e atualmente trabalha como assessor jurídico de Procurador da República no MPF.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: JESUS, Vinícius Gabriel Viana de. O etiquetamento na política criminal de combate às drogas Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 30 jun 2022, 04:03. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/58790/o-etiquetamento-na-poltica-criminal-de-combate-s-drogas. Acesso em: 22 nov 2024.
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