RESUMO: Este estudo busca analisar a possibilidade do uso do habeas corpus em sede de execução penal, refletindo, para tanto, posições da doutrina e da jurisprudência sobre o tema. Para sua execução, o trabalho teve como metodologia a pesquisa e consulta bibliográfica, bem como análise de jurisprudência e consulta aos artigos e notícias publicados na rede mundial de computadores.
PALAVRAS CHAVES: execução penal; recurso próprio, habeas corpus.
ABSTRACT: This study seeks to analyze the possibility of using habeas corpus in criminal enforcement, reflecting, for that purpose, positions of doctrine and jurisprudence on the subject. For its execution, the work had as methodology the research and bibliographic consultation, as well as jurisprudence analysis and consultation of articles and news published on the world wide web.
KEYWORDS: penal execution; especific judicial appeal, habeas corpus.
1. Introdução
De modo geral, a jurisprudência pátria vacila no que se refere ao entendimento das hipóteses de cabimento do habeas corpus: ora admite a impetração para determinada hipótese, ora subtrai tal possibilidade para hipóteses análogas. Neste contexto, surge o tema deste estudo: o manejo do habeas corpus em sede de execução penal para salvaguarda do direito à liberdade de locomoção.
A possibilidade de impetração do habeas corpus em face de decisões proferidas em sede de execução da pena ainda é um assunto de debate caloroso na doutrina e jurisprudência.
A tese contrária à utilização do habeas corpus em sede de execução penal aponta, de maneira simplista, que a Lei de Execução Penal prevê o recurso adequado para impugnação das decisões proferidas pelo juízo da execução, qual seja, o agravo em execução penal.
Contudo, os defensores do manejo do habeas corpus sustentam posição diametralmente oposta, ressaltando a importante missão que o remédio constitucional possui e sustentando que, com mais razão, deve ser cabível na fase executiva em razão da punição do apenado com a privação de sua liberdade.
A questão é relevante uma vez que, como dito, o habeas corpus visa combater o abuso de poder e a ilegalidade praticados contra a liberdade de locomoção do indivíduo.
É na fase executiva que o reeducando está privado de sua liberdade de locomoção e, ainda que preso, possui o direito à liberdade nos aspectos que não foram restringidos pela decisão judicial condenatória ou pela lei, razão pela qual se faz necessário o conhecimento do habeas corpus para exame da coação ou violência à liberdade de locomoção.
Em que pese a visão garantista que vêm se desenvolvendo no país, em especial a partir do advento da Constituição de 1988, ainda persiste debate na doutrina e principalmente na jurisprudência quanto a possibilidade do manejo do writ quando ainda é cabível a interposição do recurso apropriado, previsto em lei.
Na prática, por estratégia, a defesa, acaba impugnando a decisão que deveria ser combatida com recurso ordinário previsto para combater tal tipo de decisão, optando, outrossim, por manejar o habeas corpus, seja de maneira concomitante ao recurso, seja de por meio de substituição: é o que se convencionou chamar de habeas corpus substitutivo do recurso ordinariamente previsto em lei.
A seguir, passaremos a tratar das razões para tais estratégias de defesa, bem como suas implicações e resultados práticos.
2. A execução penal
Dentre as ramificações do Direito, para melhor estudo do tema, a execução da sentença condenatória ou absolutória imprópria, proferida pelo juízo criminal, ficou a cargo da Execução Penal.
Após grande debate na doutrina, firmou-se o entendimento de que a natureza do procedimento de execução da pena é jurisdicional, uma vez que realizado pelo Poder Judiciário, restando afastado qualquer entendimento de que seja puramente administrativa.
Contudo, é certo que envolve também atividade administrativa. Neste diapasão é o ensinamento de Ada Pelegrini Grinover:
[...] a execução penal é atividade complexa, que se desenvolve, entrosadamente, nos planos jurisdicional e administrativo. Nem se desconhece que dessa atividade participam dois Poderes estatais: o Judiciário e o Executivo, por intermédio, respectivamente, dos órgãos jurisdicionais e dos estabelecimentos penais.[1]
Destarte, trata-se de ramo autônomo, apesar de ser impossível dissociá-lo do Direito Penal e do Direito Processual Penal.
Considerando a natureza jurisdicional, o processo de execução penal deve observar os princípios gerais do direito e os princípios específicos, inerentes ao Direito Penal, Processual Penal e à própria Execução Penal.
Dentre os princípios gerais do Direito, podemos citar que o processo de execução da pena também deve observar os princípios e garantias insculpidos na Constituição da República, implícita ou explicitamente, tais como a legalidade, a publicidade, a oficialidade, a imparcialidade do juiz, o devido processo, a ampla defesa, o contraditório, o duplo grau de jurisdição, a celeridade, a duração razoável do processo, a igualdade, a isonomia, a motivação das decisões judicias e o direito à defesa técnica.
Em razão de sua natureza penal, decorrem os princípios da jurisdicionalidade, da intervenção mínima, da culpabilidade, da lesividade, da dignidade da pessoa humana, da presunção de inocência, da humanidade, da não marginalização da pessoa presa ou internada, da individualização da pena, da transcendência mínima, da razoabilidade, da proporcionalidade, da humanização da pena, da intranscendência da pena, do numerus clausus (número fechado) e da reeducação ou da ressocialização.
Hodiernamente, a execução da pena é disciplinada pela lei nº 7.210, de 11 de Julho de 1984, popularmente conhecida como LEP – Lei de Execução Penal.
Precipuamente, visa a lei de execução penal assegurar que todos os direitos e garantias da pessoa humana sejam observados em relação ao reeducando.
De fato, ainda que privado de sua liberdade de locomoção, aos condenados e internados devem ser assegurados todos os direitos inerentes à pessoa humana. Durante a execução da pena, somente podem ser restringidos os direitos expressamente previstos na sentença condenatória ou na lei.
É o que preceituam o artigo 38 do Código Penal, ao disciplinar que “o preso conserva todos os direitos não atingidos pela perda da liberdade, impondo-se a todas as autoridades o respeito à integridade física e moral”; e, ainda, o artigo 40 da Lei de Execução Penal, ao dispor que “ao condenado e ao internado serão assegurados todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela Lei”.
Neste sentido são as lições de Rodrigo Duque Estrada Roig (2018, n.p.):
A Lei de Execução Penal estabelece que ao condenado e ao internado serão assegurados todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei (art. 3º). Semelhante norma é encontrada no Código Penal, ao prever que o preso conserva todos os direitos não atingidos pela perda da liberdade (art. 38). Estes dois dispositivos se conectam diretamente com a previsão legal de que haverá excesso ou desvio de execução sempre que algum ato for praticado além dos limites fixados na sentença, em normas legais ou regulamentares (art. 185 da LEP).
As normas contidas nos arts. 3º da LEP e 38 do CP revelam que a penalização tem um limite bastante claro: os direitos das pessoas presas. Tais normas são derivações lógicas do princípio da legalidade (ou “princípio de reserva”) e demonstram que os efeitos da condenação penal devem se circunscrever apenas aos gravames legais ou judiciais afetos à liberdade ambulatorial, descabendo quaisquer outras sanções ou restrições ao condenado. São derivações também do princípio ne bis in idem, considerando que o condenado não pode, a um só tempo e pelo mesmo fato, perder sua liberdade e outros direitos a ela não diretamente relacionados.
Sob a égide destas regras, toda a legislação penal deve ser interpretada. Assim sendo, a despeito da condenação criminal, permanecem intocáveis os direitos da pessoa presa, em especial aqueles trazidos pelo art. 41 da LEP (“indicados com clareza e precisão a fim de evitar a fluidez e as incertezas resultantes de textos vagos ou omissos”, conforme preceitua o item 75 da Exposição de Motivos da LEP).
Assim, ainda que preso ou internado, ao condenado devem ser assegurados todos os direitos e garantias fundamentais previstos nos incisos do artigo 5º da Constituição da República. Dentre eles, importante destaque deve ser feito em relação ao direito à liberdade, o qual deve ser garantido ao preso naquilo que não foi limitado pela lei ou pela sentença.
Para a garantia de que todos esses direitos sejam observados, em especial o direito à liberdade de locomoção, cabe ao ordenamento jurídico proporcionar a todos – tanto ao apenado como à sociedade em geral – os meios inerentes à defesa dos direitos, seja por intermédio de recurso próprio ou pelas ações constitucionais. Em especial, é pertinente o manejo do habeas corpus para tal fim.
Rodrigo Duque Estrada Roig (2018, n.p.):
No processo de fragmentação das teorias da supremacia especial, a causa Coffin vs. Reichard (julgada em 1944, nos EUA, pelo Circuit Court of Appeals – Sixth Circuit) mostrou-se essencial por assegurar ao peticionante o direito de manejar habeas corpus para contestar a supressão de direitos durante o confinamento. A referida decisão foi paradigmática por trazer pela primeira vez a ideia de que o preso mantém todos os direitos não atingidos pela privação legal da liberdade. O trecho mais marcante da célebre decisão estabelece: “um prisioneiro mantém todos os direitos de um cidadão comum, exceto aqueles expressamente, ou por implicação necessária, tirados dele por lei. Embora a lei tire a sua liberdade e imponha um dever de submissão e observância da disciplina para a sua conduta e de outros prisioneiros, isto não afasta seu direito à segurança pessoal contra invasão ilegal. Quando um homem possui um direito substancial, os tribunais serão diligentes em encontrar uma maneira de protegê-lo. O fato de uma pessoa estar legalmente na prisão não afasta o uso de habeas corpus para proteger seus outros direitos inerentes.
Destarte, passaremos à análise de alguns aspectos básicos e fundamentais do processo de execução penal para, posteriormente, analisarmos a viabilidade do manejo do habeas corpus em sede de execução penal.
2.1 Execução penal: a Lei 7.210 de 1984 e alguns aspectos procedimentais
A execução da pena é regida pela lei 7.210, promulgada aos 11 de julho de 1984.
A instauração do procedimento de execução da pena inaugura nova relação jurídica, com a separação do processo de conhecimento e o processo executivo. Apesar disso, não se faz necessária nova citação do apenado para início de tal procedimento.
A Lei de Execução Penal foi idealizada para, em paralelo à execução da pena, garantir assistência ao preso, ao internado e, ainda, ao egresso, tanto na seara material, quanto na área da saúde, educacional, social e religiosa.
A lei enumera os direitos, deveres e disciplina do preso, apontando as faltas e sanções disciplinares, em rol taxativo. Na referida lei ainda estão dispostos os órgãos da execução penal, os departamentos penitenciários e os estabelecimentos penais.
Considerando que a execução da pena é um procedimento executivo, é necessário que se inicie com um título executivo e, tendo em vista que o poder de punir é exclusivo do Estado – o qual possui legitimidade, portanto –, o título será sempre judicial.
São exemplos de títulos executivos judiciais a sentença, o acórdão e a homologação em juízo da transação penal em sede de juizado especial criminal.
O título, em regra, deve ser definitivo, contudo, admite-se a execução provisória da pena em benefício do réu que responde ao processo preso cautelarmente e, em tal período, já adquiriu o direito a obtenção de benefícios previstos na Lei de Execução Penal.
Quanto à execução provisória da pena, prevalece na doutrina que somente é admitida se pendente o trânsito em julgada para o Réu, ou seja, se pendente a apreciação do recurso interposto pelo próprio Réu, de sorte que a decisão condenatória já deve ter transitado em julgado para a acusação.
Neste sentido explica Guilherme de Souza Nucci (2014, p. 950) que
A viabilidade, segundo entendemos, somente está presente, quando a decisão, no tocante à pena, transitou em julgado para o Ministério Público, pois, dessa forma, há um teto máximo para a sanção penal.
Contudo, tal posição é criticada por uma parcela da doutrina que defende a possibilidade nos casos em que o Ministério Público também recorre.
Neste sentido, Rodrigo Duque Estrada Roig (2018, n.p.) aponta que
Em primeiro lugar, da mesma forma que a pena pode aumentar em caso de recurso do Ministério Público, a pessoa inicialmente condenada também pode ser posteriormente absolvida em caso de recurso exclusivo da defesa, sem que isso impeça a execução provisória.
Há que se considerar também que a Lei de Execução Penal se aplica igualmente ao preso provisório, devendo ser assegurada a este, a partir da condenação, o acesso à Justiça para a postulação dos direitos pertinentes à execução penal, sem prejuízo do direito de recorrer.
A vedação de execução provisória e a manutenção da pessoa já condenada em unidade prisional destinada a presos provisórios dificultam ou mesmo impedem o exercício dos direitos à detração penal, ao trabalho penitenciário, à remição de pena e visitação. E na hipótese das pessoas condenadas aos regimes aberto ou semiaberto de cumprimento de pena, fazem com que estas permaneçam submetidas a condições assemelhadas ao próprio regime fechado.
Toda pessoa presa tem direito de estar vinculada a uma autoridade judicial, razão pela qual a vedação da execução provisória implicaria negativa de jurisdição, ferindo o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional (art. 5º, XXXV, da CF) e retirando efetividade do próprio art. 66 da LEP (que elenca todas as matérias de competência do juiz da execução).
O impedimento da execução da pena, na pendência do trânsito em julgado para o Ministério Público, impede ao preso provisório (cautelar) o acesso aos mesmos direitos que um indivíduo teria, se preso definitivo fosse, em violação dos princípios da igualdade e proporcionalidade.
Há que se fazer alusão, ainda, ao Enunciado n. 716 da Súmula do STF, que admite a progressão de regime de cumprimento da pena ou a aplicação imediata de regime menos severo nela determinada, antes do trânsito em julgado da sentença condenatória, bem como ao Enunciado n. 717 da Súmula do STF, segundo o qual não impede a progressão de regime de execução da pena, fixada em sentença não transitada em julgado, o fato de o réu se encontrar em prisão especial.
Por fim, duas Resoluções são aplicáveis ao caso. De um lado, a Resolução n. 113/2010 do CNJ estabelece que, tratando-se de réu preso por sentença condenatória recorrível, será expedida guia de recolhimento provisória da pena privativa de liberdade, ainda que pendente recurso sem efeito suspensivo, devendo, nesse caso, o juízo da execução definir o agendamento dos benefícios cabíveis (art. 8º), além de dispor que a guia de recolhimento provisória será expedida ao Juízo da Execução Penal após o recebimento do recurso, independentemente de quem o interpôs (art. 9º). De outro lado, a Resolução n. 12/2009 do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) recomenda a expedição da guia de recolhimento provisória e o reconhecimento dos direitos previstos na Lei de Execução Penal, ainda que haja recurso da acusação que vise a majorar a quantidade da pena imposta ao condenado, salvo disposição legal em contrário (art. 3º).
O STJ já teve a oportunidade de se debruçar sobre a questão, assim decidindo: “o processo de execução criminal provisória pode ser formado ainda que haja recurso de apelação interposto pelo Ministério Público pendente de julgamento, não sendo este óbice à obtenção de benefícios provisórios na execução da pena” (STJ, Recurso Ordinário em Habeas Corpus n. 31222/RJ, 5ª T., j. 24-4-2012. No mesmo sentido: STJ, HC 160354/SP, 6ª T., j. 14-6-2011).”
Diferentemente da execução provisória da pena para beneficiar réus presos, não se admite a execução antecipada da pena nos casos dos réus soltos. Com efeito, se o réu não se encontra recolhido cautelarmente, deve-se aguardar o trânsito em julgado da condenação para início da execução da pena, ainda que pendentes de julgamento recurso especial, pelo Superior Tribunal de Justiça, ou recurso extraordinário, pelo Supremo Tribunal Federal.
A execução da pena inicia-se com a expedição de guia de recolhimento, pelo juízo do processo de conhecimento que, posteriormente, encaminha a guia ao juízo da execução criminal.
O cumprimento da pena ocorre de maneira progressiva, passando-se do regime mais severo para os mais brandos, desde que cumprido lapso temporal definido em lei (requisito objetivo) e o reeducando mereça (requisito subjetivo), tudo nos termos dos requisitos estabelecidos na lei.
O Juízo da Execução é o foro natural para conhecimento de todos os atos praticados por qualquer autoridade na execução das penas e das medidas de segurança.
Início do procedimento de execução pode se dar de ofício, a pedido do Ministério Público, do interessado ou de quem o representa, seu cônjuge, parente ou descendente, do Conselho Penitenciário ou de autoridade administrativa. Normalmente inicia-se de ofício com a expedição de guia de recolhimento.
A execução das penas em espécies encontra disposição legal a partir do artigo 147 e os incidentes de execução a partir do artigo 180.
O procedimento judicial, a seu turno, está regulado nos artigos 194 a 197.
A bem da verdade, tais artigos não especificam minucias do procedimento, de sorte que a doutrina aponta que o que se pratica comumente em termos de procedimento decorre das diretrizes dos princípios processuais. No procedimento da execução da pena, para a concessão de benefícios durante o desenvolvimento da execução, as partes podem pedir por meio de simples petição e, após o contraditório, o juiz decide. Se for necessária a produção de prova, o juiz deve deferi-la.
As decisões proferidas no âmbito da execução da pena são manifestações com conteúdo decisório e que afetam diretamente na liberdade do condenado ou importam em postergação de benefícios. Assim, são decisões interlocutórias passíveis de impugnação e, nos termos do artigo 197, desafiam o recurso denominado agravo em execução penal.
Segundo tal artigo, “das decisões proferidas pelo Juiz caberá recurso de agravo, sem efeito suspensivo”.
Considerando que é o único recurso previsto na lei, é tipo por alguns como o recurso por excelência, para todas as decisões proferidas em sede de execução da pena, com exceções delimitadas na lei, quais sejam, as hipóteses de desinternação ou liberação de pessoa sujeita à medida de segurança.
O agravo, contudo, não possui efeito suspensivo. As partes legitimadas para interposição são o Ministério Público, o interessado, representantes do reeducando, seu cônjuge ou descendente.
O procedimento do recurso, contudo, não está previsto em lei, de sorte que se convencionou a utilização do procedimento do recurso em sentido estrito, previsto no artigo 588 do Código de Processo Penal.
Quanto ao prazo para interposição, a súmula 700 do Supremo Tribunal Federal preceitua que é de cinco dias. Para apresentação das razões, o prazo é de 2 dias. O recorrido, a seu turno, responde no mesmo prazo. Após, os autos são encaminhados ao juiz prolator da decisão combatida, o qual, em dois dias, poderá reformar ou sustentar o decisum, aplicando o chamando efeito regressivo ou juízo de retratação. Se houver reforma, a parte contrária pode recorrer da nova decisão, contudo, o juiz não pode mais modificá-la.
Feitas tais considerações gerais, passamos ao próximo subtítulo para análise da possibilidade de impetração de habeas corpus contra decisão proferida em sede de execução da pena, em substituição ou concomitantemente ao agravo.
2.2 O manejo do habeas corpus no curso do processo de execução penal
Uma grande celeuma na doutrina e jurisprudência é a possibilidade do manejo do writ quando ainda é cabível a interposição do recurso apropriado, previsto em lei.
Na prática, verifica-se que a defesa, por vezes, podendo impugnar a decisão combatida por meio do recurso ordinário previsto para combater específica decisão, opta por manejar o habeas corpus, seja de maneira concomitante ao recurso, seja de por meio de substituição.
É o que se convencionou chamar de habeas corpus substitutivo do recurso ordinariamente previsto em lei.
Tal prática é, por alguns, rechaçada e criticada.
Para outros, contudo, a possibilidade é bem-vinda, haja vista que o habeas corpus é o remédio constitucionalmente previsto para fazer cessar a coação ilegal ou violência à liberdade de locomoção, independentemente da existência de recurso apropriado para a decisão combatida.
Em sua obra, Renato Marcão (2020, p. 1281) aponta que tal possibilidade deve ser utilizada somente nos casos excepcionais:
Vem de longa data o uso indiscriminado do habeas corpus entre nós, especialmente como substitutivo de recurso previsto em lei.
Não se desconhece a existência de situações em que o constrangimento ilegal se faz latente – manifesto –, e que a utilização do recurso tipificado não é capaz de fazer cessar com a celeridade necessária o mal evidenciado. Para esses casos, não há dúvida de que se deve admitir a via rápida e eficiente do writ. Para as demais situações, não excepcionais, o correto é a utilização da via de impugnação tipificada
O Ministro Alexandre de Moraes (2019, n.p.), a seu turno, defende a possibilidade de interposição concomitante de recurso e ajuizamento de habeas corpus:
A impetração de habeas corpus e a interposição do respectivo recurso ordinário, referentes ao mesmo ato, são conciliáveis, ainda que articulem os mesmos fatos e busquem a mesma situação jurídica, pois essa ação constitucional não encontra obstáculo na legislação ordinária, em homenagem à liberdade de locomoção, proclamada constitucionalmente. Dessa forma, tanto habeas corpus quanto o recurso devem ser apreciados, embora, eventualmente, um julgamento possa repercutir no outro.
Porém, os tribunais superiores, em razão da elevadíssima impetração de habeas corpus, modificam sua jurisprudência constantemente visando barrar ações, aos diversos fundamentos, o que se denomina jurisprudência defensiva.
Lênio Luiz Streck (2018, n.p.) explica o fenômeno:
Um dos writs constitucionais que mais tem recebido atenção por parte do Supremo Tribunal Federal – até em face da enorme demanda – é o habeas corpus. Efetivamente, o Tribunal tem examinado um número de habeas corpus acima de qualquer previsibilidade. Nesse contexto, o Supremo Tribunal Federal, em sua jurisprudência, admitia o habeas corpus como substitutivo do recurso ordinário, de modo a permitir uma apreciação mais célere e expedita de eventual abuso ou ilegalidade aos direitos, liberdades e garantias fundamentais. Todavia, houve uma reviravolta paradigmática na orientação jurisprudencial, tendo por case study o HC 109.956, de relatoria do Min. Marco Aurélio, que merece reflexões à luz do dever de integridade das decisões e do controle democrático do ato de julgar [...].
A solução, contudo, é criticada por parcela da doutrina. Neste sentido, Alberto Zacharias Toron (2020, n.p.) aponta que:
O habeas corpus nasce no medievo, atravessa os séculos e, paradoxalmente, ainda hoje, nas democracias do século XXI, passa por reveses. Se, como remédio heroico, deveria estar imune a formalismos, é exatamente nestes que ocorre a sua fragilização em países como o Brasil. O “traga-me o corpo e te darei o Direito” parece ter sido transformado em forma dat esse rei (a forma é a essência do ato). O mais inusitado é que, no Brasil, isso ocorre no Tribunal encarregado de dizer por último o sentido da Constituição, como demonstrado no presente texto.
Lênio Luiz Streck (2018, n.p.) aprofunda a crítica:
Nessa senda, o devido processo legal possui uma dimensão substancial, emprestando homenagem ao direito fundamental à adequada e tempestiva cognição judicial, máxime em matéria penal e processual penal, onde estão em jogo as liberdades fundamentais dos cidadãos. A reviravolta jurisprudencial, sem a leitura do ato de julgar como verdadeiro romance em cadeia, tendo como pauta deontológica a integridade da jurisdição, não se releva alvissareira e reclama profunda reflexão por parte da doutrina, no sentido de lançar as balizas para um accountability hermenêutico.
Dito de outro modo, a quantidade de habeas em tramitação nas Cortes Superiores não se erige como argumento forte de princípio a ensejar a inadmissibilidade da via excepcional, nomeadamente diante de uma construção jurisprudencial em consonância com a celeridade e o tempo do processo como vetores hermenêuticos. A organicidade do direito e a interpretação devem estar associadas ao controle democrático das decisões judiciais, à luz da democracia constitucional e dos direitos fundamentais. A reconstrução da história institucional da utilização do writ como sucedâneo do recurso ordinário constitucional deve ser levada em conta, diante da tradição, da fusão de horizontes e da consciência histórico-efeitual como balizas fundamentais da produção democrática da atividade jurisdicional.
A reviravolta paradigmática na orientação do Supremo merece críticas à luz da concepção do “direito como integridade”, de Dworkin, bem como da necessidade de objetividade na interpretação da Constituição. Logo, não é possível aos juízes e Tribunais, inclusive o STF, o desprestígio à jurisprudência constitucional e ao “romance em cadeia”, segundo o referido jusfilósofo estadunidense, que brota da importância da estabilização das decisões judiciais na sociedade contemporânea. Por conseguinte, merece críticas a nova postura jurisprudencial assumida pela Corte Suprema no trato do habeas corpus como substitutivo do recurso ordinário, em especial diante da tradição hermenêutica que fixa um limite objetivo à interpretação conferida ao texto constitucional.
De fato, a Constituição da República não cria limitações à impetração, nem mesmo o Código de Processo Penal o fez, de sorte que não cabe à doutrina e jurisprudência impor tais limites. Neste sentido são as lições de Pedro Henrique Demercian (2014, n.p.):
Como já se falou, a decisão monocrática, concebida que é por um homem, está sujeita a falhas. Destarte, para provocar no mesmo processo o reexame da matéria já decidida, exsurge o recurso como o remédio jurídico-processual adequado. Por meio deste, admite-se o reexame de uma controvérsia já dirimida de modo não definitivo, aumentando-se a probabilidade de uma melhor decisão.
A natureza jurídica dos recursos emana diretamente da Constituição Federal e está intimamente ligada ao princípio do duplo grau de jurisdição. O habeas corpus, por outro lado, é remédio constitucional que visa sanar coação ilegal. Indaga-se, contudo, se pode ser utilizado na pendência de recurso ou como substitutivo deste.
Temia-se que o habeas corpus fosse restringido, como o foi o mandado de segurança pela súmula n. 267 do STF (“Não cabe mandado de segurança contra ato judicial passível de recurso ou correição”), para evitar que se transformasse em um “super-recurso”, impedindo o writ nas situações em que coubessem recursos ou correições. Todavia, o CPP não impôs nenhuma vedação ao seu uso e nem poderia. [...]
Em suma, a garantia constitucional prevalece enquanto o direito existir e, restringindo-se a utilização do habeas corpus à pendência do recurso, estar-se-ia delimitando uma norma constitucional, pela imposição de um prazo para a utilização do writ, não desejado pelo legislador e, por isso mesmo, não previsto em lei.
Esse entendimento tem sofrido algumas restrições absolutamente razoáveis, quando o deslinde da matéria depender do exame de fatos ou do conjunto probatório, cuja apreciação tem sido remetida à via do recursal, de alcance mais amplo.
No mesmo sentido, os ensinamentos de Uadi Lâmego Bulos (2018, n.p.):
Ainda que articulem os mesmos fatos e busquem a mesma situação jurídica, são plenamente conciliáveis a impetração de habeas corpus e a interposição do respectivo recurso ordinário, referentes ao mesmo ato. É que essa providência não é vedada pelo legislador ordinário e, tampouco, pelas normas constitucionais. Ao invés, a liberdade de locomoção é uma garantia fundamental. Por isso, ambos podem ser apreciados. Eventualmente, um julgamento pode repercutir no outro.
Trazendo tal discussão para a execução da pena, temos que a lei de execução penal aponta que, para impugnação da decisão proferida pelo juízo singular, cabe interposição do recurso de agravo em execução, de sorte que há entendimento jurisprudencial e doutrinário que, por tal razão, rechaça a possibilidade de manejo do habeas corpus em sede de execução da pena.
Contudo, há grandes defensores da possibilidade, os quais apontam uma série de fundamentos aptos a justificar a possibilidade em questão.
A começar, é importante destaca-se a própria natureza jurídica do habeas corpus, que é de ação autônoma de impugnação. Logo, por não se tratar de um recurso, não foi criado para combater decisões específicas, em procedimentos específicos. Em verdade, o habeas corpus inaugura nova relação jurídica onde basta que se demonstra a existência de coação ilegal ou ilegalidade.
Neste sentido, nem mesmo porque regulado no Código de Processo Penal, o habeas corpus sequer foi previsto para ser utilizado em momento oportuno e adequado, dentro de determinado procedimento. De fato, até no Código de Processo Penal, não há óbice à utilização do habeas corpus quando há recurso específico previsto para impugnação da decisão.
Logo, se para possibilitar o manejo do habeas corpus não se exige, no processo de conhecimento, o esgotamento dos recursos previstos, não há qualquer razão para se fazer tal exigência no processo de execução.
Outro fundamento para se que possibilite o uso do writ decorre da própria Constituição da República que elencou as hipóteses em que é cabível a concessão da ordem e não fez qualquer ressalva ou restrição.
Veja-se que o constituinte apontou que o habeas corpus deverá ser concedido sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder, contudo, não apontou se é necessário que tal coação ocorra no curso de investigação criminal ou no curso do processo de conhecimento ou execução, de sorte a abarcar todas as situações em que ela efetivamente ocorra, sem distinção.
Ademais, é da própria natureza do processo de execução da pena, em razão do cerceamento da liberdade do reeducando, que eventualmente ocorram coações por ilegalidade ou abuso de poder.
A bem da verdade, ainda que se analise sobre o prisma do Código de Processo Penal, ainda teremos a possibilidade de manejo do habeas corpus na execução da pena.
Veja-se que as hipóteses previstas no artigo 648 do Código de Processo Penal podem ser analisadas à luz dos acontecimentos que podem ocorrer no curso do procedimento da execução penal.
De fato, não é difícil imaginar que, eventualmente, alguém que esteja cumprindo pena possa estar preso há mais tempo do que determina a lei ou que possa estar preso a despeito de já extinta sua punibilidade, a título de exemplos.
É importante destacar ainda que o uso do habeas corpus também deve ser franqueado ao indivíduo uma vez que se mostra a via mais célere para conhecimento da coação, quando comparado com o agravo em execução.
Tal se explica porque o habeas corpus é impetrado diretamente no Tribunal e pode ter análise de pedido liminar. O agravo, contudo, por observar o rito do recurso em sentido estrito, não possui efeito suspensivo, o que pode procrastinar a correção da ilegalidade ou do abuso de poder. Ademais, a interposição perante o juízo a quo e a possibilidade de que se exerça o juízo de retratação são mais dois fatores que retardam a apreciação do pedido.
Acerca da demora nos procedimentos judiciais, Rodrigo Duque Estrada Roig (2018, n.p.) explica que:
Nada obstante a descrição legal de um procedimento formal a ser seguido, sabe-se que o mesmo é sistematicamente desprezado na prática, ocorrendo infindáveis diligências e notória demora na apreciação judicial dos requerimentos defensivos, em clara ofensa ao princípio da celeridade (razoável duração do processo).
Não se pode afastar a celeridade que o habeas corpus proporciona ao conhecimento da coação, o que deve ser tomado em consideração para o conhecimento da impetração principalmente no curso de procedimento de execução da pena, onde de fato o apenado encontra-se recolhido e tem cerceada sua liberdade.
Não podemos esquecer, por fim, de todas as características do habeas corpus, já estudadas no capítulo anterior e que devem aqui serem reforçadas para corroborar a necessidade de conhecimento da ação.
O habeas corpus pode impetrado por qualquer pessoa, ainda que não seja a parte interessada no recurso de agravo em execução. Ademais, por não ser recurso, não precisa observar o prazo do agravo, nem mesmo é necessário que seja observado o prazo legal. Ademais, considerando a capacidade postulatória conferida aos impetrantes, não é necessário que se contrate um patrono para impetração da ordem.
Todas as características aqui estudadas demonstram a possibilidade e verdadeira necessidade de que seja franqueada a oportunidade de impetração do habeas corpus para atacar a decisão proferida em sede de execução da pena.
Nunca é demais lembrar que, por mais que seja direito e garantia conferido ao paciente, defender a liberdade é dever de todos, o que proporciona mediante a garantia do habeas corpus, o que a torna conhecida como verdadeira ação penal popular.
Por todo o quanto já exposto, Rodrigo Duque Estrada Roig (2018, n.p.) defende o franqueamento do habeas corpus para questões relativas à execução da pena:
Outro exemplo claro de danificação do princípio da celeridade é a restrição ao manejo do habeas corpus como eficaz substituto ou complemento do agravo em execução, diante de urgente e manifesta lesão ao direito de locomoção da pessoa presa. É incompreensível tal limitação, quando a urgência da lesão – a ponto de ameaçar a própria higidez física e moral de um ser humano – está a demandar rápida intervenção judicial.
Em última análise, o princípio da celeridade faz surgir diferentes soluções diante de cada um dos principais direitos em sede de execução penal, todas sanáveis pela via do habeas corpus. O habeas corpus tem por finalidade corrigir toda e qualquer ilegalidade ou abuso de poder relacionados com a liberdade do direito de locomoção, daí que, se o processo tem o seu andamento postergado indevidamente, o writ transforma-se no meio apto para afastar o estado de ilegalidade criado.
Pedro Henrique Demercian (2014, n.p.) corrobora do entendimento:
A despeito disso, por ter a execução penal caráter jurisdicional, como foi focalizado no início deste tópico, submetendo-se aos mesmos princípios do processo de conhecimento (TACRIM-SP, HC 132.753/5, 5ª C. Cr., Rel. Juiz Adauto Suannes), sempre que a coação ilegal resultar evidente, líquida e certa, cerceando o direito de defesa, o due process of law e qualquer outra garantia do preso, legitimada estará a utilização do writ (HC 237.338/5, 7ª C., Juiz Rel. Augusto Cesar). Como preleciona Teresa Cristina Mota Ramos Marques (1987, p. 64):
“Direito líquido e certo é aquele que não precisa ser aclarado com o exame de provas em dilação, ou seja, que é evidente e induvidoso no momento em que é exposto ao juiz. Aliás, o exame profundo de provas também não tem sede no habeas corpus.”
À guisa de exemplo, se um condenado, no curso da execução, praticar fato definido como crime doloso ou falta grave, estará sujeito a regressão, desde que ouvido previamente (art. 118, inciso I e § 2º, LEP). Não observada tal regra – que foi instituída justamente para assegurar o contraditório e a ampla defesa –, nula de pleno direito será a decisão que determinar a regressão e, nessas condições, ressurtindo evidente o prejuízo (decorrente da restrição ilegal ao direito de locomoção), a invalidade do ato poderá ser reconhecida pela via do habeas corpus (RJDTACRIM 16/181).
Por todas estas razões, não há justificativas para que não se admita a impetração do habeas corpus em sede de execução da pena.
Ainda na obra de Rodrigo Duque Estrada Roig (2018, n.p.), conseguimos analisar alguns exemplos de situações específicas que podem ser apreciadas em sede de habeas corpus, a começar pelo trabalho externo do preso:
Sobre o trabalho externo, há ainda discussão acerca da possibilidade ou não de apreciação de seus requisitos em sede de habeas corpus. Predomina o entendimento de que a matéria atinente à autorização para trabalho externo não comporta análise em sede de habeas corpus, por ensejar o exame de requisitos de índole subjetiva (aptidão, disciplina e responsabilidade – art. 37 da LEP), o que demandaria inevitável dilação probatória (STF, HC 70.329/RS, 1ª T., j. 8-6-1993; STJ, HC 180780/RJ, 5ª T., j. 28-6-2011).
A autorização para trabalho externo, uma vez denegada, deveria ser impugnável pela via do habeas corpus. Aqui também se encontra envolvido o direito de locomoção individual, cujo constrangimento enseja a impetração deste remédio constitucional. Além disso, alguns dos requisitos subjetivos exigidos pela LEP (aptidão, responsabilidade) são absolutamente vagos, dando azo ao pleno arbítrio do julgador, em clara ofensa à legalidade penal e à necessária segurança jurídica. Em razão da inconstitucionalidade dos requisitos subjetivos exigidos, estes deveriam ser desconsiderados, mantendo-se apenas a exigência de bom comportamento carcerário, atestado exclusivamente pela inexistência de punição (devidamente imposta pelo Poder Judiciário) por faltas graves em um prazo razoável, o que traria maior objetividade à apreciação do direito. Note que esta discussão diz respeito apenas à análise de requisitos subjetivos em sede de habeas corpus. Em se tratando de discussão unicamente quanto ao preenchimento ou não do requisito objetivo para o trabalho externo (1/6 da pena), não há dúvidas de que é cabível a impugnação da decisão denegatória pela via do habeas corpus (cf. STJ, HC 192056/MG, 5ª T., j. 7-4-2011).
Conforme apontado, o único óbice eventual à discussão é a necessidade de análise dos requisitos subjetivos. Contudo, se tal análise for possível por meio de prova pré-constituída, ou seja, se não for necessária a produção da prova, nada mais impedirá o conhecimento e julgamento da impetração.
O mesmo raciocínio pode ser aplicado às hipóteses de discussão de livramento condicional e progressão do regime de cumprimento da pena. Quanto à progressão, Rodrigo Duque Estrada Roig (2018, n.p.) também explica que:
Predomina que o habeas corpus pode ser manejado para contestar o preenchimento de requisito objetivo, ou debater questões estritamente de direito, não sendo, todavia o meio adequado, em face da estreiteza da via, que não admite dilação probatória, para desconstituir o entendimento do Juízo das Execuções Penais acerca do não preenchimento do requisito subjetivo por parte do apenado (STJ, HC 87666/SP, 5ª T., j. 21-2-2008).
Todavia, se entendermos que o atestado de bom comportamento carcerário, firmado pelo diretor do estabelecimento, constitui requisito subjetivo suficiente para a concessão dos direitos da execução, a discussão sobre a presença de tal requisito poderá perfeitamente ser travada em sede de habeas corpus (inclusive sem receio de supressão de instância), na medida em que o índice comportamental é transcrito (objetivado) no próprio atestado, prescindindo-se assim do exame aprofundado de provas.
Ainda que não se entenda dessa forma, o não conhecimento do habeas corpus para análise do requisito subjetivo para progressão não exclui, contudo, a possibilidade de concessão da ordem, de ofício, para determinar que o Juízo das Execuções Penais analise novamente o pedido de progressão de regime, sempre que sua decisão se fundar em elementos não concretos da execução da pena, tais como a gravidade abstrata do crime cometido e a longa pena a cumprir (STJ, HC 242056/SP, 6 ª T., j. 5-2-2013).
De qualquer modo, é perfeitamente admissível a impetração de habeas corpus pela demora na apreciação de progressão de regime, considerando que a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação (princípio da razoável duração do processo – art. 5º, LXXVIII, da CF). Ademais, se a regra é a liberdade e a prisão a exceção, é ilegal a manutenção da prisão em regime gravoso além do tempo devido. Acrescente-se ainda a elementar constatação de que o indivíduo não pode ser punido pela falha ou demora na prestação jurisdicional.
Destarte, o que se conclui é que a simples menção à existência de recurso previsto em lei para atacar decisão proferida em sede de execução da pena não é suficiente para fundamentar o não conhecimento da impetração do habeas corpus.
Com efeito, se há alguém sofrendo ou se achando ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, seja por abuso de poder ou legalidade, seja em procedimento de investigação, judicial ou executório, o manejo do habeas corpus deve ser franqueado ao impetrante para defesa do paciente.
3. Conclusão
Este trabalho apontou que há entendimento doutrinário e jurisprudencial no sentido de que a existência de recurso específico, em especial em sede de execução de sentença, não é óbice ao conhecimento do pedido de concessão da ordem de habeas corpus, posicionamento esse que prima pela observância do direito e garantia previstos constitucionalmente para proteção do paciente. Assim, entende-se que tais decisões são proferidas em perfeita sintonia com os primados da Constituição da República e em observância da natureza jurídica e características da ação de habeas corpus.
Por outro lado, há também o entendimento de que o writ não pode substituir o recurso específico previsto em lei, o que se trata de um argumento fraco, a desprestigiar sobremaneira o direito de livre locomoção. Isso porque, repita-se, a Constituição é clara ao dispor que o habeas corpus deve ser concedido sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder, não fazendo distinções.
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Procurador Federal, membro da Advocacia-Geral da União, graduado na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PEDRESCHI, Guilherme Barbosa Franco. Da possibilidade de uso do habeas corpus em sede de execução penal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 01 jul 2022, 04:13. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/58793/da-possibilidade-de-uso-do-habeas-corpus-em-sede-de-execuo-penal. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Gabrielle Malaquias Rocha
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