RESUMO: No presente artigo, parte-se da culpabilidade como foi construída pela modernidade recente, na acepção da reprovabilidade do comportamento antijurídico, com sua crença no homem racional, na responsabilização pelo uso de sua liberdade para delinquir e na existência de sociedade que compartilha valores universais representados através da norma jurídica. Após isso, passa-se à desconstrução do caráter absoluto de tais axiomas modernos através do estudo das relações de fundo que informam o poder de criminalizar. Nesse sentido, houve a necessidade de enfrentar criticamente o saber que é instrumentalizado para a sujeição de certos indivíduos a uma posição social subalterna, sob pena de a dogmática continuar dissociada do pensar criminológico sobre os mecanismos de controle. Ao final, é apresentada uma posição teórica situada desde a margem latino-americana, a fim de que a culpabilidade possa assumir as contribuições da sociologia criminal com vistas à redução do poder punitivo.
Palavras-chave: vontade; culpa; controle; criminalização
ABSTRACT: In this article, we start from culpability as it was constructed by recent modernity, in the sense of the reprehensibility of unlawful behavior, with its belief in the rational man, in the responsibility for the use of his freedom to commit crimes and in the existence of a society that shares universal values represented through the legal norm. After that, we move on to the deconstruction of the absolute character of such modern axioms through the study of the background relationships that inform the power to criminalize. In this sense, there was a need to critically confront the knowledge that is instrumentalized for the subjection of certain individuals to a subaltern social position, under penalty of dogmatics continuing to be dissociated from criminological thinking about control mechanisms. At the end, a theoretical position from the Latin American margin is presented, so that culpability can assume the contributions of criminal sociology with a view to reducing punitive power.
Keywords: will; guilt; control; criminalization
1.INTRODUÇÃO
A culpabilidade no direito penal, enquanto categoria dogmática cujas bases teóricas remetem à Escola Clássica da Criminologia, parte da vontade livre como parâmetro para analisar o descumprimento de um padrão de conduta a ser seguido, o que autorizaria a censura do comportamento do agente e o poder de punir do Estado (responsabilidade pelo que se fez). Por sua vez, a exceção à punição em tese se apresenta quando inexistente outra alternativa para o sujeito nas circunstâncias senão a prática delitiva.
Surge então necessidade de refletir sobre a origem de algumas construções que colocam o homem como detentor de suas escolhas e como a dogmática se organiza em torno dessa ideia para pensar responsabilização no campo penal.
Para tanto, será utilizado como quadro de referência teórico a criminologia da reação social, uma vez que sua vertente crítica se propõe a colocar o direito penal como objeto de estudo (DE CASTRO, 2005, p. 119) e expor suas funções ocultas de manutenção das desigualdades sociais (BARATTA, 2011, p. 221).
A resposta das agências oficiais ao crime será vista como fator que mitiga o caráter absoluto da vontade como medida da responsabilização, pois se a princípio parece ser orientada por valores supostamente compartilhados pela sociedade, o saber criminológico cumprirá o papel de contestar esse lugar de consenso.
Disso resulta a investigação sobre que tipo de relação define o poder de criminalizar e que papel ela cumpre, o que repercutirá na culpabilidade como censura. Por fim, será trazido um conceito de culpabilidade que, dissociada do conceito de reprovabilidade, assume a desigualdade na persecução penal e se propõe a conter seus efeitos.
2.A CONTRIBUIÇÃO DO SABER CRIMINOLÓGICO À CULPABILIDADE
2.1 O paradigma da reação social como marco de referência teórico
Ao deslocar o olhar das razões pelas quais indivíduos socioeconomicamente vulneráveis cometem delitos para as instituições envolvidas na repressão do crime, é possível começar a entender como estas últimas condicionam a possibilidade de se ajustar ao Direito.
Em outras palavras, a própria exigibilidade de comportamento diverso como requisito da culpabilidade é abalada pela contribuição do sistema penal nos processos de definição do criminoso, aquele cuja liberdade de decisão importa mais em relação a outras situações socialmente problemáticas que passam longe dos filtros punitivos, nas quais igualmente se verifica um ato livre.
A importância da vontade seria então informada por ser objeto de um rótulo, um papel social negativo, um processo de atribuição de significado conhecido como criminalização. Esse referencial implica abandonar a ideia de que o crime é um dado ontológico da realidade ou que o criminoso é obtido pela natureza do ato que pratica.
Para situar a compreensão do tema, importa definir o giro epistemológico mencionado como base para as reflexões aqui apresentadas. Nas palavras de Vera Malaguti Batista:
“A principal ruptura é metodológica com o paradigma etiológico: o processo de interação dá um sentido radicalmente diferente ao método causal-explicativo. O que está em jogo passa a ser quem tem o poder de definir e quem sofre a definição. Passa-se assim a uma operação epistemológica básica, da fenomenologia aos processos de criminalização” (BATISTA, 2011, p. 74).
Com a formulação teórica conhecida como labelling approach, começa-se a analisar como a sociedade e as instituições reagem em face do cometimento do delito. De acordo com Alessandro Baratta, “[...] o labeling approach tem se ocupado principalmente com as reações das instâncias oficiais de controle social, consideradas na sua função constitutiva em face da criminalidade” (BARATTA, 2011, p. 86).
Essa escola de pensamento foi influenciada por correntes como a etnometodologia e o interacionismo simbólico. A primeira concebe a realidade como fruto de uma construção social, obtida pela forma com que as pessoas e grupos a definem (BARATTA, 2011, p. 87).
O interacionismo simbólico, por sua vez, surge na década de 1960, quando então “o sociólogo Dahrendorf produz um manifesto conclamando a sociologia a abandonar as ilusões do consenso, criando a sociologia do conflito que influenciou a importante obra de Turk e Vold” (BATISTA, 2011, p. 76).
O conflito aqui significa pluralidade de valores que regem a atuação individual ou em grupo, de modo que produzem relações de poder a partir do enfrentamento necessário à prevalência de uns em detrimento dos outros, especialmente quando observado seu reconhecimento pela via jurídica como parâmetro de conduta.
Adotando a ideia de sociedade do conflito, o interacionismo simbólico reputa as significações atribuídas socialmente às trocas de experiência (interações) entre as pessoas (BARATTA, 2011, p. 87).
Das lições trazidas pelo labelling, é possível desconstruir a ideia de que o magistrado descreve a realidade dos comportamentos levados ao Judiciário, ou seja, o que ontologicamente eles representam. É importante que se volte as atenções para o processo de definição de uma conduta como criminosa tanto pela sociedade como pelos atores do sistema de justiça (quem define).
A consequência dessa definição, amplificada com o ingresso no cárcere, do ponto de vista do sujeito (desviação[1]), é a assunção do rótulo que lhe foi atribuído, passando a agir conforme esse papel social (ZAFFARONI, 1991, p.60). O fenômeno é conhecido na literatura especializada como ‘role engulfment’ (SHECAIRA, 2014, p. 261)
Outro ponto chave da teoria é o questionamento do princípio da igualdade, uma vez que a distribuição do status de criminoso ocorre de forma diferente no espaço social. Como observa Alessandro Baratta:
“Segundo a definição sociológica, a criminalidade, como em geral, o comportamento desviante, é um status social que caracteriza o indivíduo quando- e unicamente quando- lhe é adjudicado com êxito a etiqueta de desviado ou de criminoso pelas instâncias que detêm o poder de definição. As chances de vir a ser etiquetado, com as graves consequências que isso acarreta, encontram-se desigualmente distribuídas. Isso faz com que o princípio da igualdade, ou seja, a própria base da ideologia do Direito Penal, seja posto em profunda dúvida, uma vez que a minoria criminosa a que se refere a definição sociológica aparece, na perspectiva do labelling approach, como resultado de um processo altamente seletivo e desigual dentro da população total, enquanto que o comportamento efetivo dos indivíduos não é, por si só, condição suficiente para tal processo” (BARATTA, 1981, pp. 9/10)
Sob essa perspectiva, o processo valorativo que se dá no âmbito da culpabilidade normativa, ao se analisar o injusto penal para sobre ele atribuir censura, e cujo parâmetro é a possibilidade de agir de outro modo, encontra como referência principal uma atribuição resultante de um rótulo aplicado com sucesso.
Como alerta ANDRADE (1995, p. 32), “a clientela do sistema penal é constituída de pobres não porque tenham uma maior tendência para delinquir, mas precisamente porque tem maiores chances de ser criminalizados e etiquetados como criminosos”.
Poder agir de outro modo, em última instância, é juízo que exige um esforço argumentativo envolvendo definições sobre o que condiciona o comportamento. Sendo a vontade (entendida como controle do corpo e das decisões) e sua limitação por uma força externa os únicos parâmetros aceitos nesse juízo, não pode este obter a negatividade da ação em si mesma (aqui entendida como consenso pretendido pelo Direito), mas sobretudo credenciá-la perante um conjunto de signos/valores.
É preciso esclarecer que o labelling approach coloca os processos de definição segundo a lógica “quem” define “quem” e “quem” define “o que”, sem, no entanto, explicar que tipo de relação de fundo determina o poder de criminalizar. Sobre este ponto, BARATTA (2011, p. 140) traz a seguinte lição:
O defeito fundamental desta teoria está na incapacidade de descer da superfície empírica dos fenômenos à sua lógica objetiva, confundindo assim os atores dos processos econômicos (indivíduos e grupos) com os seus sujeitos reais (o capital, como processo sempre mais internacionalizado de exploração e acumulação, e o trabalho assalariado, que não são, somente, os operários sindicalizados, mas também as massas urbanas e rurais deserdadas e marginalizadas)
Para complementar sua abordagem é que surge a teoria conhecida como criminologia crítica, “crítica final de todas as outras correntes criminológicas, fundamentalmente por se recusar a assumir este papel tecnocrático de gerenciador do sistema, pois considera o problema criminal insolúvel nos marcos de uma sociedade capitalista” (SHECAIRA, 2014, p. 289).
A vertente crítica explica os processos que definem a atribuição da etiqueta de criminoso, relacionando-os com a contradição capital/trabalho das sociedades modernas. Isso significa que as “pessoas são rotuladas criminosas porque, assim as definindo, serve-se aos interesses da classe dominante” (SHECAIRA, 2014, p. 289).
Retoma-se então o pensamento de Karl Marx sobre luta de classes para fornecer uma explicação histórica da utilização do direito penal como instrumento de exclusão. É o que registra BATISTA (2011, p. 80), para quem o “ pensamento marxista foi o eixo fundamental para a emergência de um olhar desconstrutor das verdades jurídico-penais do iluminismo”.
Também é feita uma contundente análise sobre a seletividade inerente ao direito penal, primeiro quando se elege bens jurídicos com o fim declarado de universalmente protege-los, ao tempo em que se oculta uma orientação típica dirigida a certos grupos (criminalização primária); e, após, quando se estigmatiza os indivíduos que infringiram a proibição legal (criminalização secundária) (BARATTA, 2011, p. 165).
Por fim, a crítica ao princípio da igualdade no direito penal, anunciada pela teoria do etiquetamento, vai ser ressignificada pelo recorte de classe da criminologia crítica.
Ficarão então evidentes os interesses envolvidos na forma desigual com que se dão processos de atribuição de comportamento criminoso. Nas palavras de BATISTA (2011, p. 90), “o marxismo pôs por terra o mito da igualdade do direito, base de sustentação da defesa social. Foi Karl Marx quem desenvolveu a crítica do paradoxo entre essa igualdade formal e a desigualdade concreta e substancial”.
Com essa advertência, não se pode deixar de notar a naturalizada tipificação dos delitos contra o patrimônio. Isso revela o acolhimento de valores representantes da classe dominante, ou seja, “o universo moral próprio de uma cultura burguesa- individualista [...] orientando-se, predominantemente, para atingir as formas de desvio típicas dos grupos socialmente mais débeis e marginalizados” (BARATTA, 2011, p. 176).
A conduta das populações mais vulneráveis social e/ou economicamente, portanto, será objeto de criminalização de forma mais intensa na visão da criminologia crítica. O livre arbítrio na conduta praticada perde importância em face da concentração da proibição legal em condutas de um determinado grupo.
É como se, do universo de condutas passíveis de criminalização, a vontade de alguns, necessária ao preenchimento dos estágios da dogmática, importasse mais, porque sobre estes recai, preferencialmente, quer a norma incriminadora quer a persecução penal dela decorrente.
Nesse sentido, Alessandro Baratta traz importante reflexão que se aplica ao material colhido na presente pesquisa:
Pense-se, por exemplo, na importância dos processos sociais de marginalização pertencentes ao mecanismo do mercado de trabalho e à seleção escolar. Estes fatores, juntamente com o sistema de Direito Penal e os controles sociais informais, conduzem à formação de setores sociais nos quais, para falar em termos de Foucault, se recruta a ‘população criminal’, isto é, a maior parte daqueles sobre os quais se concentra a ação do sistema penal” (BARATTA, 1981, p. 15).
Aqui é possível ver como um processo de socialização deficitário, decorrente da precarização do emprego formal, geralmente implica agenciamento de indivíduos que estão à margem do mercado de trabalho mediante sua seleção e criminalização secundária. Tais predicados seriam “conotações sobre a base das quais o status de criminoso é atribuído” (BARATTA, 2011, p. 165)
Michael Foucault também contribui para o acúmulo de reflexões sobre a prisão como dispositivo de controle. Ao tomar como referência a correlação entre penalidade e mercado de trabalho (RUSCHE; KIRCHHEIMER, 2004), se distanciando dela na medida em que inclui o conceito de disciplina (BARATTA, 2011, p. 192), aponta a necessidade de transpor a roupagem jurídica na leitura da punição, a ser entendida sobretudo como um acontecimento social (FOUCAULT, 2014, p. 28).
Para o autor, o “sistema penal deve ser concebido como instrumento para gerir diferencialmente as ilegalidades, não para suprimi-las todas”. (FOUCAULT, 2014, p. 88). O dado da seletividade é aqui denunciado como elemento constitutivo da passagem dos rituais de suplício para a sociedade disciplinar na genealogia que faz o pensador.
Em FOUCAULT, contudo, ganha mais importância as relações de poder e seus deslocamentos, que para ele não se concentram em um governo central, mas estão distribuídas, fragmentadas, em uma rede complexa que se estende por diversas instituições e espaços.
Tampouco se está a falar de um “’privilégio’ adquirido ou conservado da classe dominante, mas o efeito de conjunto de suas posições estratégicas- efeito manifestado e às vezes reconduzido pela posição dos que são dominados” (FOUCAULT, 2014, p. 30).
O poder, na microfísica a que alude o autor, “não é adquirido de uma vez por todas por um novo controle dos aparelhos nem por um novo funcionamento ou uma destruição das instituições [...]” (FOUCAULT, 2014, pp. 30/31). SILVA (2016, p. 6) considera tal conceito “estrutural na aquisição de uma ‘identidade’ própria as teses foucaultianas, visto que ‘fugiria’ das análises materialistas e estruturalistas”.
Completamente diferente é a posição do sujeito marxista de que fala autores como Alessandro Baratta, sujeito este que instituirá o fim da lógica de classes pela superação do capitalismo. Aqui não se encontra apoio em Michel Foucault. Sobre esse afastamento, ZAFFARONI oferece análise enriquecedora:
Ao afirmar-se que cada instituição gera deste modo seu saber e seu poder, Foucault desqualifica a distinção marxista entre estrutura e superestrutura ou, ao menos, leva-a a colocar-se em outros termos, pois o saber e o poder estão muito mais imbricados para Foucault do que para Marx, já que o poder gera também o sujeito, ou seja, a subjetividade cognoscível” (ZAFFARONI, 1991, p. 63).
A crítica à “abstração” do sujeito em FOUCAULT é trazida por BARATTA (2011, p. 193) quando este se posiciona no sentido de que a disciplina, “em vez de ser reconduzida ao desenvolvimento das relações de produção, é diretamente ligada à estratégia de um “Poder” que, mais que os indivíduos, parece ser, para Foucault, o próprio sujeito da história”.
Traçados os pontos de convergência, discordância e as principais nuances sobre a seletividade do direito penal em diversos autores, pode-se lançar uma luz sobre os efeitos de poder no seu funcionamento.
Na visão da professora Vera Regina Pereira de Andrade, existe uma “realidade social” que formata a dogmática, na qual:
[...]o poder político e o poder jurídico, particularmente o poder punitivo, são legitimados pela Legalidade e pelo cientificismo, e que trarão as marcas tanto de novas ideias e ideais- como o de liberdade, igualdade, fraternidade, quanto de novas formas de dominação, exploração, desigualdade e sujeição de classe, gênero e raça; novas assimetrias e hierarquias sociais (ANDRADE, 2008, p. 255).
Diante desse cenário, ANDRADE (2008, p. 257) adverte que “temos que olhar para os resultados da criminalização que co-constitui, olhar para as agências de controle, que criminalizam (controladores) e para seus destinatários (controlados). Esse papel acaba sendo exercido pelo Judiciário quando este justifica, mediante racionalizações oriundas de uma dogmática fundada em valores da modernidade iluminista (liberdade, igualdade, razão), uma relação de poder que se exerce sobre o indivíduo criminalizado, nesse caso explicada em boa medida por um recorte classista na realidade que é assegurado pela impessoalidade da norma proibitiva.
É nisso que consiste, pois, os valores sociais fundantes da dogmática jurídico-penal como discurso orientado politicamente.
Ao se perder de vista essa natureza política, uma leitura pela ótica do sistema levará em conta a possibilidade de ter agido conforme o direito, à qual será oposta, de forma majoritariamente infrutífera na praxe forense, condicionantes socioeconômicas já imanentes à conduta objeto da norma incriminadora, porque são ações de um grupo de pessoas que se deseja manter sob controle.
Isso quer dizer que se o sistema penal é desigual, e o status de criminoso é atribuído, também não é menos verdade que as representações sobre comportamentos aceitáveis ou não perante o sistema (considerando a lógica da censura pelo poder agir de outro modo) também vão levar em conta os critérios pelos quais se chega a essa atribuição, valores já mencionados como de uma sociedade de classes em que se naturaliza a pobreza porque a criminaliza.
Outra intenção com o presente artigo foi a de mapear formas de redução do poder punitivo em uma teoria do crime tal como a que se tem hoje, influenciada pela colonização histórica do aparato administrativo-judiciário do Estado mediante a legitimação da ordem burguesa.
A dominação legal a que se referia Weber, sem dúvida, fez da Escola Clássica a primeira criminologia, comprometida a exercer controle social (DE CASTRO, 2005, p. 69).
Nesse sentido, expor como se dá a operacionalização das categorias dogmáticas é essencial para desnudar os interesses envolvidos, lugar de onde algumas contribuições que procuram trazer o dado da seletividade para o interior do sistema e expô-lo podem florescer.
A dinâmica de uma família de baixa renda na periferia do capitalismo, na qual pelo público envolvido há maiores chances de ocorrência dos processos de criminalização, é valiosa para análise e desenvolvimento de estratégias de combate e limitação da pena como resposta à desigualdade estrutural.
Essa indução fez coro com a observação de ANDRADE:
[...] entre a evidência empírica de que o código tecnológico da dogmática tem sido utilizado para fundamentar juridicamente e justificar a legalidade das decisões judiciais e a evidência empírica de sua incapacidade racionalizadora (pautada no conteúdo decisório) para a gestação de decisões igualitárias (soluções iguais para casos iguais) seguras e justas, somente resta a hipótese de que tem concorrido para instrumentalizar as decisões seletivas, acabando por fornecer a elas uma justificação técnica de base científica, legitimando-as e, na sua esteira, a totalidade do exercício de poder do sistema penal, pois é em virtude mesmo da pré-programação legislativa e dogmática da ação jurisdicional que o sistema penal se legitima pela legalidade (ANDRADE, 2009, p. 178).
O dado da seletividade, quando admitido, poderá abrir outras possibilidades de responsabilização na dogmática, tendo como objetivo não reformar o direito penal, mas conter a recorrente expressão do poder punitivo por ele instrumentalizado, especialmente na realidade de países periféricos como é o caso da margem latino-americana.
Antes de proceder à formulação trazida por ZAFFARONI no setor da culpabilidade, que explorará uma tentativa de redução do máximo poder punitivo autorizado com a utilização do direito penal, será feita uma correlação entre a crise da culpabilidade e a noção de censura (reprovabilidade) do comportamento.
2.2. Da crítica à culpabilidade como censura
A sociologia do crime, com destaque para a teoria das subculturas criminais, do etiquetamento e crítica, dirigiu duros golpes ao saber penal moderno, particularmente por trazer à tona as relações de poder imbricadas na base de sua construção. FOUCAULT (2014, p. 31) já assinalava que “não é a atividade do sujeito de conhecimento que produziria um saber, útil ou arredio ao poder, mas o poder-saber, os processos e as lutas que o atravessam e que o constituem, que determinam as formas e os campos possíveis do conhecimento”.
NASCIMENTO (2011, p. 59) a seu turno, coloca a questão do saber/poder aplicada ao sistema de justiça criminal. Ele explica que “[...] os tipos de relações sociais e as crenças morais conjunturalmente prevalecentes, que se refletirão nas criminalizações e imunidades conferidas pela lei penal, representam o resultado de um processo de luta e de negociação”.
Nesse contexto é que se insere a chamada crise, diagnosticada abaixo:
ZAFFARONI dirá que a teoria normativa da culpabilidade entrou em crise com a deslegitimação do exercício de poder do sistema penal, na exata proporção em que sua intervenção seletiva neutraliza o juízo de reprovação, ou cria um juízo substancialmente viciado, porque desprovido de qualquer conteúdo ético” (NASCIMENTO, 2011, p. 63).
A contradição acima descrita leva autores como DOTTI (2011, p. 194) a se questionarem se “a reprovabilidade não teria se convertido em uma porteira aberta para que um senso comum, um falso moralismo de classe composto de preconceitos invada a experiência forense e participe da expansão do poder punitivo em curso”.
Como resposta, é possível dizer que a pesquisa empírica serve à elucidação de tais acontecimentos, quando se testemunha as maneiras pelas quais o controle penal se reinventa na tutela das situações sociais.
Conforme os termos acima, a ICD pode ser lida segundo o direito privilegiado de quem fala (FOUCAULT, 1999, p. 9), pois o monopólio da produção de verdades sobre o agir de outro modo[2] subsidia a confirmação, mediante criminalização secundária, de opção política não-declarada pelo direito penal. A posição institucional do magistrado, na medida em que ele assume a Ideologia da Defesa Social, poderia ser enquadrada como determinante na efetivação de um procedimento de exclusão.
Dito de outro modo, o juiz está autorizado a dizer os cenários possíveis e alternativos ao ilícito que o réu poderia adotar, traduzindo uma vontade de verdade com a aparência de consenso no Direito. Cabe aqui a ressalva de que os valores acionados pelo magistrado para a leitura da situação que lhe é apresentada são localizados socialmente, e não universais.
Apesar do caráter relativo dessa conclusão, algumas diretrizes devem guiar a redução do poder punitivo, como a ideia de que “o processo de criminalização não pode ser informado senão pela danosidade social da conduta” (NASCIMENTO, 2011, p. 16) e “o conceito material de culpabilidade é extraído da dignidade da pessoa humana, que é um dos fundamentos da República” (DOTTI, 2011, p. 192).
O livre arbítrio, a seu turno, segue como problema do qual se ocupa a dogmática penal, na medida em que é utilizado como base das decisões. Juarez Tavares oferece a seguinte lição sobre o tema:
“A vontade não é integralmente livre; está sempre condicionada por algum fator, o qual poderá até excluí-la, reforçá-la ou simplesmente mantê-la [...] Partindo desse contexto, deve-se admitir que fatores concretos da vida, como os decorrentes de relacionamentos pessoais e familiares, de emprego ou de desemprego, de riqueza ou de miséria, de formação educacional ou despreparo, de poder e de submissão, influem diretamente na autonomia do sujeito e, por isso, devem ser levados em conta em sua avaliação [...] O juízo sobre a autonomia deve ser efetuado tendo como ponto de referência o contexto individual e social do autor e sua capacidade de realizar o fato, apesar dos apelos normativos da ordem jurídica” (TAVARES, 2011, p. 143).
Não obstante a lúcida análise, é preciso deslocar, como se acredita ter sido feito neste trabalho, a crítica jurídica de não ser possível comprovar se uma escolha foi livre para o horizonte criminológico do conflito. É o que faz BATISTA (2011, p. 177), quando diz que “[...]evitamos, nessa breve aproximação da culpabilidade, os caminhos de um estéril dedutivismo dogmático, que converte a opinião comum em um coro de carpideiras a lastimar a indemonstrabilidade do livre arbítrio [...]”.
Salo de Carvalho enumera alguns caminhos como pontos de partida:
Desde a perspectiva jus (jurídica) do discurso criminológico, a teoria crítica derivou modelos político-criminais alternativos centrados na ideia de minimização do sistema penal e gradual abolição das agências de punitividade, sobretudo o cárcere (v.g garantismo penal, direito penal mínimo, realismo de esquerda, realismo marginal e abolicionismo) (DE CARVALHO, 2011, pp. 222/223).
Há necessidade de se socorrer, no caso deste artigo, de contribuições teóricas que considerem o dado da seletividade na dogmática penal, “preservando-se uma função limitadora que o sentido moralista da reprovação pode romper a todo instante, como visto” (BATISTA, 2011, p. 177)
A formulação que será apresentada é objeto de referência por DOTTI (2011, p. 194), quando novamente se questiona: “Algumas construções- como a culpabilidade por vulnerabilidade de ZAFFARONI- não estariam indicando a insatisfação com o impasse ao qual conduz a culpabilidade- reprovação?”.
Passa-se então ao estudo da chamada culpabilidade pela vulnerabilidade, conceito inserido no realismo marginal de ZAFFARONI, considerando a distribuição geopolítica centro-periferia produzida pelo capitalismo.
2.3 Contribuições da criminologia realista marginal na abertura da culpabilidade a novos influxos: a culpabilidade pela vulnerabilidade
O realismo marginal de ZAFFARONI (1991, pp. 64/65) leva em consideração a posição periférica e dependente da América Latina na distribuição de poder do capitalismo mundial, e visa “nos aproximar dos fenômenos do sistema penal, evitando a reificação das categorias generalizantes como instrumentos de pensamento[...]” (ZAFFARONI, 1991, pp. 162/163).
É preciso, todavia, contextualizá-lo junto a outras abordagens críticas trazidas até aqui, a fim de entender sob que nuance o pensador argentino pretende tratar a questão criminal. Juarez Cirino dos Santos o faz com maestria no seguinte trecho:
O discurso crítico da teoria criminológica da pena é produzido por duas teorias principais, com propósitos comuns, mas métodos diferentes: a) a teoria negativa/agnóstica da pena, fundada na dicotomia estado de direito/estado de polícia, elaborada pelo trabalho coletivo de RAÚL ZAFFARONI e NILO BATISTA (com a contribuição atual de A.ALAGIA e A.SLOKAR); b) a teoria materialista/dialética da pena, fundada na distinção entre funções reais e funções ilusórias da ideologia penal nas sociedades capitalistas, desenvolvida pela tradição marxista em criminologia, formada por PASUKANIS, RUSCHE/KIRCHHEIMER, MELOSSI/PAVARINI e BARATTA- para citar os mais conhecidos-, com a contribuição relevante do estruturalista FOUCAULT.” (CIRINO DOS SANTOS, 2017, pp. 432/433).
Juarez defende que a teoria agnóstica da pena, quando se preocupa em afirmar a deslegitimação do direito penal sem investigar as questões de fundo na dinâmica das instituições[3], “parece romper com a tradição histórica da Criminologia Crítica- [...] em contraste com [...] autores que explicam a repressão penal pela seletividade fundada em estereótipos desencadeados por indicadores sociais negativos de pobreza, marginalização, etc.” (CIRINO DOS SANTOS, 2017, pp. 434/ 437).
ZAFFARONI (1991, pp. 50/51), por sua vez, descreve a existência de obstáculos para situar MARX como essencial para a deslegitimação do direito penal e que sua utilidade apenas é verificada quando relacionada com o poder, tal como faz BARATTA, “desde que considerada [a obra] como um edifício teórico ‘aberto’, excluindo-se toda forma de dogmatismo marxista” (ZAFFARONI, 1991, pp. 58/59).
Ele entende que “a função deslegitimante mais importante e irreversível do discurso jurídico-penal tem sido realizada pelo interacionismo simbólico”, destacando a contribuição do sistema na atribuição dos papeis sociais (ZAFFARONI, 1991, p. 60).
O autor resgata ainda o conceito de poder em FOUCAULT como distanciamento do marxismo[4] e destaca que “sua epistemologia institucional é quase indiscutível à deslegitimação em nossa região latino-americana, como também a algumas contradições positivas entre um saber gerado por agências centrais e disfuncional para as agências da região periférica” (ZAFFARONI, 1991, p. 63).
De qualquer modo, a contribuição marginal para a criminologia tem a ver com a “aproximação dos mecanismos e dos efeitos da realidade operacional de nossos sistemas penais com uma clara e confessa intencionalidade de procurar o saber necessário para diminuir seus níveis de violência[...]” (ZAFFARONI, 1991, p. 171).
A partir desse referencial, é possível pensar estratégias que deem espaço às condicionantes socioeconômicas aludidas nesse artigo, a fim de construir uma teoria do crime consciente do problema da seletividade.
Como observa SILVA:
[...] a emergência da assunção do projeto realista marginal implica a incorporação de dados sociais à construção teórica, notadamente advindos do paradigma da reação social e criminologias críticas, bem como, adoção de horizonte de proteção de discurso jurídico-penal a partir de onde o poder punitivo se manifesta, assumindo de vez a tarefa de latinizá-lo” (SILVA, 2014, p. 524)
BARATTA (1981, p. 13) se mostrou desesperançoso quanto a possibilidade de conciliar a dogmática e a sociologia do crime, apresentando as dificuldades de se pensar em um novo modelo de ciências criminais fundado no paradigma da reação social. ZAFFARONI, por sua vez, acredita ser “possível produzir um novo modelo integrado de ‘saber penal’ partindo de uma deslegitimação- inclusive admitindo a alternativa abolicionista- do sistema penal” (ZAFFARONI, 1991, p. 94).
Nesse sentido, ao se posicionar junto aos autores que visualizam a crise da culpabilidade, reforça que a“ seletividade do sistema penal neutraliza a reprovação: ‘Por que a mim? Por que não a outros que fizeram o mesmo?, são perguntas que a reprovação normativa não pode responder” (ZAFFARONI, 1991, p. 259). Em outro texto dedicado ao tema, pontua que “a reprovação perde legitimidade ética quando é dirigida somente a uns poucos selecionados entre os mais vulneráveis e grosseiros” (ZAFFARONI, 2004, p. 35).
É então que propõe um refinamento daquela categoria dogmática, “com adequada abertura a dados sociais e individuais que indicam as falhas estatais e do próprio sistema penal que redundam na redução da autodeterminação por privação de cidadania” (ZAFFARONI, 2011, p. 43).
Através dessa passagem, fica claro que a privação e cidadania de que fala o autor tem origem na repercussão das condicionantes que traduzem uma posição de vulnerabilidade. Para o autor, esta “consiste no grau de risco ou de perigo que a pessoa corre só por pertencer a uma classe, grupo, estrato social, minoria [...] como também por se encaixar em um estereótipo, devido às características que a pessoa recebeu (ZAFFARONI, 1991, p. 270).
Um conceito de culpabilidade que traga ao centro da discussão esses dados, a partir de uma análise das peculiaridades de uma determinada sociedade acerca do exercício de direitos pelos indivíduos, será objeto das preocupações do realismo marginal.
Para isso, ao invés de a definir como censura/reprovabilidade do comportamento, depura as considerações de ordem moral (porque seletivas) e propõe entender a culpabilidade como “juízo de valor que permite vincular pessoalmente o injusto a seu autor, operando pois como principal indicador oferecido pela teoria do delito para autorizar o exercício de poder punitivo sobre ele e limitar a magnitude de tal exercício ” (ZAFFARONI; BATISTA; ALAGIA; SLOKAR, 2017, p. 160).
ZAFFARONI, no histórico que faz da categoria, reconhece que o “ princípio segundo o qual a ninguém pode atribuir-se um injusto que não tenha resultado de sua livre determinação é pouco menos axiomático e ostenta respeitáveis raízes humanistas”. (ZAFFARONI; BATISTA; ALAGIA; SLOKAR, 2017, p. 163)
Ele não rejeita a autodeterminação como parâmetro da culpabilidade, haja vista que considerada como limitação do poder de punir. Isso leva à conclusão de que as raízes humanistas a que se refere são justamente aquelas iluministas, quando traçadas as bases do Estado Moderno. A sua importância histórica é, portanto, indiscutível, pelo que a responsabilidade segundo um ato de vontade, em contraposição a simples verificação causal do resultado, é uma conquista civilizatória.
Contudo, a ressalva vem logo em seguida:
Contudo, seu enunciado não é reversível: dele não se segue que a determinação seja o infalível indicador da magnitude do poder punitivo por ela filtrado, que ofereça limpidamente o “se” e o “quanto” da pena. Tal impossibilidade provém da seletividade com a qual operam concretamente os sistemas penais, escandalosamente visível nas sociedades de classes porém também presente de forma geral nas experiências socialistas históricas. A inevitável seletividade do sistema penal desnuda a pena de seus falsos fundamentos éticos. A tendência eticizante do poder punitivo (e da pena) e, pois, da culpabilidade como vínculo personalizado entre o injusto e o agente só pode ser sustentada no marco de um raciocínio dedutivo e partindo de um Estado racional inexistente (O Estado de direito realizado) [...]”(ZAFFARONI; BATISTA; ALAGIA; SLOKAR, 2017, p. 163).
Ao mesmo tempo, o autor também registra que a autodeterminação é perigosa para unicamente estabelecer a dosagem no exercício de poder punitivo. Tal consideração, que leva em conta o caráter eticizante da sanção penal (bastante questionável), esbarra na seletividade do sistema, o que direciona a responsabilização por um ato livre a certos grupos de indivíduos.
No caso de sociedades que historicamente passaram por processos de acumulação de capital, como é o caso de praticamente todas que se tem notícia, especialmente as da periferia do capitalismo financeiro, a autodeterminação como justificativa e medida do apenamento, se de um lado é garantia histórica, constitui um obstáculo epistemológico à desconstrução do ideal moderno de igualdade perante a lei e na proteção de bens jurídicos.
Além disso, é preciso considerar também a raça como recorte que informa a seletividade, uma vez que a sociedade brasileira, por exemplo, é estruturada a partir de um processo histórico de escravidão de povos afrodescendentes, fato que repercute na configuração dos papeis sociais segundo uma lógica de exclusão desse grupo étnico até os dias hodiernos. O destaque para a raça como categoria autônoma permite analisar a sujeição de classe com um olhar diferente do saber produzido na Europa, de onde se importou a teoria crítica da criminologia.
Em todo caso, a modernidade põe em destaque a figura do homem livre e racional, dono de suas ações, fato que irá resultar na responsabilização a partir de um ato volitivo. Na dogmática, o evento que marca a consolidação de tais ideias é o finalismo de Welzel.
Todavia, confiar o exercício do poder de punir aos casos em que por vontade própria alguém cometa um crime pressupõe, como pontua ZAFFARONI, um Estado que opere racionalmente, aplicando a formulação teórica supra à generalidade dos casos, ou ainda que criminalize igualmente os eventos socialmente danosos, situação que não se verifica na prática.
Em outras palavras, o “[...] requisito da auto-determinação decisória sobre o injusto para reprovar seu autor não consegue, de maneira alguma, esconder o fato de que tal reprovação só recai sobre uns poucos selecionados por sua maior vulnerabilidade”. (ZAFFARONI; BATISTA; ALAGIA; SLOKAR, 2017, p. 166).
Dada a insuficiência da tradicional de culpabilidade normativa, o autor defende que a ela deve se somar uma outra construção que assuma a desigualdade do sistema (ZAFFARONI, 2004, p. 37)
Na contramão do poder punitivo, a iniciativa proposta é “incorporar o dado da seletividade estrutural e buscar compensá-lo, reduzindo assim o vício político nele enraizado” (ZAFFARONI; BATISTA; ALAGIA; SLOKAR, 2017, p. 166). Sobre o papel das instituições, destaca que “devemos exigir às agências jurídicas que esgotem seu poder jurídico de contenção” (ZAFFARONI, 2004, p. 37).
ZAFFARONI formula os conceitos de estado de vulnerabilidade e esforço por vulnerabilidade, a fim de atender o objetivo acima anunciado e estabelecer o máximo de poder punitivo a ser autorizado segundo liberdade do agente para o delito, considerada a ação do sistema penal sobre ele.
O estado de vulnerabilidade já foi enfrentado neste tópico, sendo informado pelas variáveis que determinam sua posição na sociedade em relação aos demais indivíduos, a exemplo do grau de instrução, existência de ocupação remunerada, renda e outros que permitam identificar um papel social estigmatizante (ZAFFARONI; BATISTA; ALAGIA; SLOKAR, 2017, p. 167)
A seu turno, o esforço por vulnerabilidade “representa a contribuição pessoal do criminalizado às pretensões legitimantes do poder punitivo, em oposição às metas redutoras do direito penal” (ZAFFARONI; BATISTA; ALAGIA; SLOKAR, 2017, p. 168/169).
Neste fragmento, o autor retoma a significação do ato praticado por quem é vulnerável, o qual deve ser graduado para compensar a seletividade inerente ao direito penal, na medida em que considera o estado de vulnerabilidade como aquele em que se está mais sujeito ao processo de criminalização. Essas variáveis serão importantes para o conceito de culpabilidade pela vulnerabilidade.
As atenções referentes às condicionantes socioeconômicas no marco da culpabilidade pela vulnerabilidade serão deslocadas da ICD e distribuídas em lugar próprio, na intersecção do estado de vulnerabilidade com o esforço por vulnerabilidade (componentes positivos da culpabilidade), a fim de eventualmente gerarem situações de exculpação:
Sobre a possibilidade de exclusão da culpabilidade em tais casos:
Por um lado, nos casos em que estejam presentes, as carências socioeconomicamente condicionadas do sujeito reduzem (em situações extremas, cancelam) sua culpabilidade, tanto quanto qualquer outra carência que, segundo os cânones da culpabilidade normativa, afete ou suprima a autodeterminação. A consideração do estado de vulnerabilidade como ponto de partida para auferir o esforço por vulnerabilidade oferece um critério mais preciso e realista que a co-culpabildiade” (ZAFFARONI; BATISTA; ALAGIA; SLOKAR, 2017, p. 172).
A mesma ideia vem retomada na sua digressão sobre a teoria do delito fundada na culpabilidade pela vulnerabilidade, quando então registra que “o esforço por vulnerabilidade, pode também, em certos casos, enfraquecer ou mesmo impedir tal vinculação” (ZAFFARONI; BATISTA;ALAGIA;SLOKAR, 2017, p. 221).
Apesar dessa indicação favorável, sua posição é logo restringida, uma vez que em artigo específico sobre a culpabilidade pela vulnerabilidade, ZAFFARONI manifesta entendimento pela excepcionalidade da medida, cabível “onde exista provocação oficial (agente provocador), se o ilícito não deixa de sê-lo, por não se tratar de um delito experimental de impossível consumação” (ZAFFARONI, 2004, p. 39).
De igual forma, faz outra ressalva em sua obra “Direito Penal Brasileiro”, quando ao se referir ao esforço por vulnerabilidade pontua que “usualmente a eficácia do esforço por vulnerabilidade é relevante apenas nas ocasiões em que a culpabilidade é chamada a participar da individualização da pena” (ZAFFARONI; BATISTA; ALAGIA;SLOKAR, 2017, p. 221).
A interpretação para tal proceder talvez seja a seguinte: uma tentativa de se furtar à criminalização pela via da exclusão de culpabilidade encontra óbice no funcionamento do próprio direito penal, dirigido mais incisivamente às populações que em tese alegariam ter realizado um ínfimo esforço por vulnerabilidade[5].
Portanto, reforça-se que a intenção de expor o dado da seletividade sem compromisso com uma solução jurídica da controvérsia, ainda que se possa buscar a deslegitimação, como visto no pensamento realista marginal.
Nada obstante, o contrabalanceamento aludido com o conceito estado de vulnerabilidade, ainda que na fase de aplicação da pena, cumpriria um papel redutor. Em todo caso, não se deve olvidar o fato de que a culpabilidade pela vulnerabilidade comporia o terceiro estágio da teoria do crime. Nas palavras do autor:
A culpabilidade pela vulnerabilidade é a própria culpabilidade do delito e não um mero corretivo à tradicional culpabilidade normativa, corretivo que só operaria no âmbito da teoria da pena, particularmente na individualização judicial [...] A culpabilidade pela vulnerabilidade consegue proporcionar o marco máximo do poder punitivo exercitável, dentro do qual os corretivos próprios da teoria da pena são chamados a intervir”. (ZAFFARONI; BATISTA; ALAGIA; SLOKAR, 2017, p. 169/170).
Finalmente, a síntese da proposição é integrar a culpabilidade pelos chamados componentes positivos: a) o espaço de autodeterminação b) a compreensão da ilicitude c) o esforço por vulnerabilidade (ZAFFARONI; BATISTA; ALAGIA; SLOKAR, 2016, p. 221). Assim, trata-se de importante contribuição teórica que provavelmente exigirá incorporação jurídico-positiva, ao tempo em que serve como confirmação do fracasso do direito penal em atender suas promessas.
3.CONCLUSÃO
A assimilação pelo Judiciário da chamada Ideologia da Defesa Social repercute no juízo de valor que fazem acerca da atuação do réu, quando se acredita que todos têm a condição de se comportar perante a norma e esta representa os interesses legítimos a todos os indivíduos da sociedade. As condicionantes socioeconômicas, por sua vez, dificilmente atingem o nível virtual exigido pela jurisprudência porque no limite representam os indicadores que orientaram a própria intervenção penal.
Portanto, ao deslocar o olhar para as agências, é possível dizer que elas mesmas condicionam a possibilidade de agir conforme a norma, na medida em que elegem como proibidas condutas típicas das populações vulneráveis e aplicam o Direito para confirmar a seleção anteriormente realizada, administrando a punição para gerir a massa de excluídos em um nível tolerável ao status quo.
Em razão da disfuncionalidade inerente ao funcionamento do direito criminal, restou evidente a necessidade de deslegitima-lo, o que pode ser feito através do exercício teórico realista-marginal. A ideia seria construir um saber que possa adequar a ciência jurídico-penal à realidade dos países periféricos e conter a utilização da pena como resposta à desigualdade enquanto não se confere cidadania plena à população marginalizada.
Foi possível extrair do presente artigo que a sociedade é informada não pelo consenso de valores, mas pelo conflito, o que repercute diretamente na avaliação dos interesses envolvidos na edição de uma norma incriminadora. As relações de produção explicam de uma maneira mais ou menos satisfatória a seletividade do sistema, apesar de deixar de lado questões como raça e gênero, por exemplo.
A culpabilidade, nesse cenário, não deixa de ser produto de um saber importado dos países centrais, o que faz com que autores como Zaffaroni procurem refiná-la, adequá-la à realidade concreta dos sistemas penais latino-americanos. A posição trazida no último tópico é, portanto, uma tentativa de deslegitimar o exercício do poder punitivo mediante o esforço consciente pela sua contenção.
Em outras palavras, ao invés de a culpabilidade ser mobilizada enquanto censura, reprovabilidade do comportamento, o que não se sustenta ante a deconstrução do ideal moderno de vontade livre, passa a ser lida enquanto vínculo que liga o agente ao injusto cometido em uma sociedade conflituosa com múltiplos valores que orientam o comportamento, os quais serão objeto de disputa no processo de criminalização.
4.REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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[1] O termo implica considerar os efeitos da etiqueta no comportamento do indivíduo, sendo a desviação secundária, especificamente, aquela responsável por dimensionar a incidência da reação social a partir de como o intitulado criminoso passa a se enxergar, eventualmente voltando a delinquir (SHECAIRA, 2014, p. 261)
[2] A inexigibilidade de conduta diversa leva em conta esse fator. A censura que decorre da possibilidade de adotar outro comportamento deve ser assumida como um juízo de valor do conflito, e não do consenso.
[3] Nesse caso, elas seriam informadas precisamente por um recorte de classe na realidade.
[4] Vide tópico referente à mudança de paradigma da criminologia
[5] Seria replicado então o mesmo raciocínio da Inexigibilidade de Conduta Diversa, ao se opor os mesmos indicadores que informam o processo de criminalização (Ser pobre, não ter emprego fixo, possuir baixa instrução)
Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Sergipe; Pós-graduado em Direito Processual Civil pela Escola Judicial de Sergipe. Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental (EPPGG) em Sergipe. Advogado.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BRAZ, GABRIEL PARAIZO DANTAS. Da crítica à culpabilidade como censura a partir da criminologia da reação social Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 07 jul 2022, 04:29. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/58839/da-crtica-culpabilidade-como-censura-a-partir-da-criminologia-da-reao-social. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: LEONARDO DE SOUZA MARTINS
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