RESUMO: Este artigo aborda, de forma breve, a justiça negocial no Brasil, em especial os institutos da transação penal e do acordo de não persecução penal. Busca trazer discussões sobre um tema não tão novo, mas ainda muito divergente, principalmente no que tange à possibilidade de flexibilização ou não dos direitos e garantias fundamentais e processuais daquele que pode vir a ser réu no processo penal. Para tanto, se baseia na doutrina que discute o tema.
Palavras chaves: justiça negocial. Transação penal. Acordo de não persecução penal. Direitos fundamentais.
1.Introdução
Está em voga no âmbito processual penal os chamados negócios jurídicos processuais. Muitos são os seus institutos, tais como a composição civil dos danos, a transação penal, suspensão condicional do processo, instituídos pela Lei nº 9.099/95, também há a colaboração premiada e, mais recentemente, foi criado no ordenamento jurídico brasileiro o acordo de não persecução penal. Nesse modelo, ao menos em tese, acusação e defesa entram em um acordo evitando o processo ou a condenação.
Pode-se falar que a introdução da justiça consensual no Brasil se deu pela Lei nº 9.099/95, pelos institutos da composição civil dos danos (art. 74 da Lei nº 9.099/95) e da transação penal (art. 75 da Lei nº 9.099/95). A transação penal, em especial, trouxe muitos debates no cenário jurídico do país. Mais recentemente, o acordo de não persecução penal (art. 28-A do Código de Processo Penal) também suscita diversas discussões sobre as disposições trazidas. Sobre esses dois institutos nos ateremos nesse artigo.
Assim, se por um lado tem-se a economia, a simplicidade, a informalidade e a consequente finalização mais célere do caso, com uma resposta mais rápida para o ato delituoso, por outro tem-se a flexibilização de direitos e garantias processuais fundamentais do autor do fato. Dessa forma, importante traçarmos as discussões doutrinarias que balizam esse debate.
2.Verdade real ou verdade negociada?
O processo penal tem como um de seus princípios norteadores a busca pela verdade. Grande parte da doutrina atual entende, inclusive, que não há que se falar em verdade real, pois ela seria inatingível, defendendo, desta forma, uma verdade a ser construída dentro do processo, através da instrução probatória[1].
No procedimento comum ordinário, essa “verdade” é construída ao longo do processo, por meio de audiência de instrução, com a oitiva do ofendido, inquirição de testemunhas de acusação e defesa, esclarecimentos de demais provas e, por fim, a oitiva do acusado, nos termos do art. 400 do Código de Processo Penal:
Art. 400. Na audiência de instrução e julgamento, a ser realizada no prazo máximo de 60 (sessenta) dias, proceder-se-á à tomada de declarações do ofendido, à inquirição das testemunhas arroladas pela acusação e pela defesa, nesta ordem, ressalvado o disposto no art. 222 deste Código, bem como aos esclarecimentos dos peritos, às acareações e ao reconhecimento de pessoas e coisas, interrogando-se, em seguida, o acusado. (Redação dada pela Lei nº 11.719, de 2008).
Ressalta-se, inclusive, que esse dispositivo do Código de Processo Penal foi alterado em 2008, trazendo que o interrogatório deve ser o último ato da instrução. Tal disposição efetiva os princípios do contraditório e ampla defesa (art. 5º, LV, Constituição Federal) e o direito ao confronto (art. 8, 2, f, do Pacto de São José da Costa Rica) o que, segundo parcela significativa da doutrina, consolida o interrogatório como meio de defesa[2]. Nesse sentido, os Tribunais Superiores veem entendendo pela aplicação do interrogatório como último ato da instrução em todos os procedimentos:
Ementa: PROCESSO PENAL. AGRAVO INTERNO NA AÇÃO PENAL. MOMENTO DO INTERROGATÓRIO DO RÉU EM AÇÃO PENAL ORIGINÁRIA. ÚLTIMO ATO INSTRUTÓRIO. INCIDÊNCIA DO ART. 400 DO CPP EM DETRIMENTO DO ART. 7º DA LEI 8.038/1990. O Plenário desta Suprema Corte, em homenagem aos princípios da ampla defesa e contraditório, firmou entendimento no sentido de que, mesmo nas ações penais originárias do Supremo Tribunal Federal, o interrogatório do réu deve ser o último ato da instrução processual (AP 528 AgR, Rel. Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Tribunal Pleno, DJe de 8/6/2011). Agravo interno provido.(AP 988 AgR, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão: Min. ALEXANDRE DE MORAES, Primeira Turma, julgado em 04/04/2017, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-101 DIVULG 15-05-2017 PUBLIC 16-05-2017)
(...) 1. O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do HC n. 127.900/AM, deu nova conformidade à norma contida no art. 400 do CPP (com redação dada pela Lei n. 11.719/08), à luz do sistema constitucional acusatório e dos princípios do contraditório e da ampla defesa. O interrogatório passa a ser sempre o último ato da instrução, mesmo nos procedimentos regidos por lei especial, caindo por terra a solução de antinomias com arrimo no princípio da especialidade.
Ressalvou-se, contudo, a incidência da nova compreensão aos processos nos quais a instrução não tenha se encerrado até a publicação da ata daquele julgamento (10.03.2016). In casu, o paciente foi sentenciado em 3.8.2015, afastando-se, pois, qualquer pretensão anulatória. (...) STJ. 6ª Turma. HC 403.550/SP, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 15/08/2017.
Assim, em um processo penal garantista, a verdade é construída a partir de uma produção probatória, que pode ser amplamente rebatida pela defesa. Segundo Nestor Távora e Rosmar Rodrigues Alencar (2015, p. 58), a verdade processual é:
“Identificada como verossimilhança (verdade aproximada), extraída de um processo pautado no devido procedimento, respeitando-se o contraditório, a ampla defesa, a paridade de armas e conduzido por magistrado imparcial. O resultado almejado é a prolação de decisão que reflita o convencimento do julgador, construído com equilíbrio e que se reveste de justa medida, seja por sentença condenatória ou por sentença absolutória”.
Como pode-se extrair do conceito trazido pelos autores, o princípio da busca pela verdade defende um processo pautado na regular produção de prova, atendidos os demais princípios processuais do contraditório, ampla defesa e devido processo legal, para que, no final, o juiz formule a sua decisão baseada nesse processo justo e equânime.
Há quem defenda, inclusive, que tal princípio está implicitamente previsto na Constituição como decorrência do inciso LIV do art. 5º, que dispõe que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. (Brião, 2014, p. 2 apud in Estrela[3]).
É, portanto, um princípio que reflete um direito processual penal de garantias, considerando que, ao final do processo, o réu poderá vir a ser condenado, podendo ter o seu direito à liberdade restringido.
Todavia, com o advento da justiça negocial, pode-se dizer que o princípio da verdade real ou busca pela verdade, em determinados casos, foi substituído pelo princípio da verdade consensual.
Isso porque, tanto na transação penal quanto no acordo de não persecução penal, por exemplo, sequer há o processo propriamente dito, sendo estes realizados ainda em fase pré-processual, conforme o art. 76 da Lei nº 9.099/95 e do art. 28 do Código de Processo Penal:
Art. 76. Havendo representação ou tratando-se de crime de ação penal pública incondicionada, não sendo caso de arquivamento, o Ministério Público poderá propor a aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multas, a ser especificada na proposta.
§ 1º Nas hipóteses de ser a pena de multa a única aplicável, o Juiz poderá reduzi-la até a metade.
§ 2º Não se admitirá a proposta se ficar comprovado:
I - ter sido o autor da infração condenado, pela prática de crime, à pena privativa de liberdade, por sentença definitiva;
II - ter sido o agente beneficiado anteriormente, no prazo de cinco anos, pela aplicação de pena restritiva ou multa, nos termos deste artigo;
III - não indicarem os antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente, bem como os motivos e as circunstâncias, ser necessária e suficiente a adoção da medida.
§ 3º Aceita a proposta pelo autor da infração e seu defensor, será submetida à apreciação do Juiz.
§ 4º Acolhendo a proposta do Ministério Público aceita pelo autor da infração, o Juiz aplicará a pena restritiva de direitos ou multa, que não importará em reincidência, sendo registrada apenas para impedir novamente o mesmo benefício no prazo de cinco anos.
§ 5º Da sentença prevista no parágrafo anterior caberá a apelação referida no art. 82 desta Lei.
§ 6º A imposição da sanção de que trata o § 4º deste artigo não constará de certidão de antecedentes criminais, salvo para os fins previstos no mesmo dispositivo, e não terá efeitos civis, cabendo aos interessados propor ação cabível no juízo cível. (grifos nossos)
Art. 28-A. Não sendo caso de arquivamento e tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime, mediante as seguintes condições ajustadas cumulativa e alternativamente: (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência)
I - reparar o dano ou restituir a coisa à vítima, exceto na impossibilidade de fazê-lo; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência)
II - renunciar voluntariamente a bens e direitos indicados pelo Ministério Público como instrumentos, produto ou proveito do crime; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência)
III - prestar serviço à comunidade ou a entidades públicas por período correspondente à pena mínima cominada ao delito diminuída de um a dois terços, em local a ser indicado pelo juízo da execução, na forma do art. 46 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal); (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência)
IV - pagar prestação pecuniária, a ser estipulada nos termos do art. 45 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), a entidade pública ou de interesse social, a ser indicada pelo juízo da execução, que tenha, preferencialmente, como função proteger bens jurídicos iguais ou semelhantes aos aparentemente lesados pelo delito; ou (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência)
V - cumprir, por prazo determinado, outra condição indicada pelo Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a infração penal imputada. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência)
(...)
Assim, tratam-se de negócios jurídicos pré-processuais, de modo que, sendo aceita pelo autor do fato/réu não há a denúncia pelo Ministério Público. Dessa forma, também não haverá instrução probatória, nem observância aos princípios do devido processo legal, contraditório e ampla defesa, tal qual um processo comum.
Nesse sentido, para ter esse “benefício”, conforme é entendido por alguns operadores do direito, o autor do fato/réu abre mão de prosseguir com o processo, com todas as garantias processuais e instrutórias que resultariam na busca pela verdade, por uma verdade consensual.
No que tange à transação penal, para Grinover et tal (1999, p. 30) deve-se repensar a função do juiz, o qual deve deixar “de ser um solucionador da controvérsia, em seu papel de ditar o direito, para assumir as vestes de um verdadeiro mediador de conflitos”.
Bitencourt (2003, p. 125) por sua vez, considera que a transação penal possui inegáveis vantagens. Nas palavras do jurista “esse novo modelo de verdade, segundo Luhmann, evita-se que o autor do fato sofra as frustrações naturais decorrentes de uma decisão que contrarie suas expectativas, necessitando adaptar-se à nova situação, que, às vezes, exige demasiado esforço pessoal”. Complementa ainda dispondo que “com a verdade consensual essa predisposição de acerto parte de dentro do autor da infração penal, como valor pessoal, com disposição anímica diferente, espontânea, com grande probabilidade de êxito”.
Aury Lopes Júnior (2021, p. 285), por sua vez, ao tratar do acordo de não persecução penal, o tem como
(...) um poderoso instrumento de negociação processual penal que requer uma postura diferenciada por parte dos atores judiciários, antes forjados no confronto, que agora precisam abrir-se para uma lógica negocial, estratégica, que demanda uma análise do que se pode oferecer e do preço a ser pago (prêmio), do timing da negociação, da arte negocial.
Defende-se, no entanto, que todos os atores devem estar abertos à lógica do negócio, do acordo, não podendo os institutos negociais se revestirem apenas de privação dos direitos constitucionais e processuais do pretenso réu para uma aplicação imediata da pena, ainda que mais branda, em benefício da celeridade processual e desafogamento do judiciário.
No que tange à transação penal, muito foi-se discutido sobre a (in)constitucionalidade do instituto, em razão dos princípios do devido processo, da ampla defesa e do contraditório, da não culpabilidade e da igualdade processual.
Miguel Reale Júnior (1997, 28-29 apud in Pereira, 2008, p. 29) partindo em defesa da inconstitucionalidade do instituto trouxe que:
“não aceitar a transação significa, portanto, preferir que a condenação à mesma pena decorra do exame da acusação e das provas no exercício amplo do direito de defesa, com respeito ao contraditório, e não de apressada imposição sem processo. É optar pela eventual condenação em processo regular, no qual pode ser absolvido”.
Na visão do autor, o réu, ao aceitar a antecipação da pena, perde a possibilidade de discutir no processo a imputação que lhe é feita, com a desvantagem de que, caso optasse pela continuidade do processo com todas as garantias processuais, poderia vir a ser absolvido no final.
No que tange à ofensa ao princípio da ampla defesa, Afrânio Silva Jardim e Pierre Souto Amorim (2013, p. 313) defendem que a transação penal, tal como ele é oferecida, resulta em uma verdadeira imposição de pena ao autor do fato, que passa a ter medo de enfrentar o processo penal. Dessa forma, interessante é o quadro pensado pelos autores, que em suas palavras assim dispõem:
“(...) ao chegar à audiência preliminar, diante de um Juiz e de um membro do Ministério Público, o autor do fato é perguntado se deseja aceitar a transação penal, com todos os seus fogos de artifício (não aceitação de culpa, não gera reincidência, não traz os efeitos normais de uma sentença condenatória, etc.), percebendo uma pena restritiva de direito, ou se vai “enfrentar” o processo, neste último caso, quase como se fosse enfrentar o Juiz e o Ministério Público, tal é o inconveniente indisfarçável gerado por quem não aceita a ‘benéfica’ proposta’”.
No que toca à mitigação do princípio da presunção da inocência, Chagas e Dias (2015, p. 1658) explicam que “na transação penal o autor do fato recebe uma pena, ainda que restritiva de direito, sem uma análise profunda dos fatos, sem direito de defesa, ou, ao menos, a instauração de processo na sua devida forma e por consequência, sem sentença condenatória”, o que feriria frontalmente o disposto no art. 5º, inciso LVII da Constituição Federal.
Continuando a sua explanação, os autores afirmam que:
“em termo práticos, troca-se o devido processo legal pelo princípio da oportunidade regrada do Ministério Público, este que nem sempre acompanha cabalmente a tramitação da demanda, visto que a grande maioria dos procedimentos dos juizados é orquestrada pela figura do conciliador”.
Na mesma linha de discussão, quanto à constitucionalidade ou inconstitucionalidade, a doutrina vem divergindo em relação ao acordo de não persecução penal - ANPP.
Problematiza-se a necessidade de confissão formal e circunstanciada para o oferecimento do ANPP, diante dos princípios constitucionais da presunção de inocência (art. 5º, LVII, da CF) e do devido processo legal (art. 5º, LIV, da CF). Isso porque, se é previsto que o indivíduo só pode ser considerado culpado após o trânsito em julgado de sentença penal condenatória, tendo sido observado o devido processo legal, a exigência da confissão mostra-se em dissonância com os ditames da Constituição Federal.
Aury Lopes Júnior (2021, p. 286-287) chama a atenção para a problemática do valor da confissão em caso de descumprimento ou rescisão do acordo:
“O primeiro problema que surge é o valor dessa confissão em caso de rescisão do acordo. Nos parece evidente que não poderá ser utilizada contra o réu, devendo ser desentranhada e proibida de ser valorada. Contudo, não se desconhece ou desconsidera o imenso problema que isso gera na formação do convencimento do julgador, na medida em que uma vez conhecida a confissão, será muito difícil que o juiz efetivamente a desconsidere (não existe “delete” mental) e venha a absolver o imputado, mesmo que o contexto probatório seja fraco”.
Em busca de tentar compatibilizar o requisito da confissão com os direitos daquele que ainda sequer pode ser chamado de acusado, parcela da doutrina, vem sustentando a limitação do valor e alcance dessa confissão, para que sirva exclusivamente para cumprimento do requisito formal do acordo de não persecução penal, sem geração de outros efeitos materiais. Nesse sentido, Aury Lopes Júnior (2021, p. 288) chama a atenção a posição de SOARES, BORRI e BATTINI: “se verifica é que a confissão representa mera formalidade para fins de concretização do acordo, não podendo ser empregada nas demais esferas”. Segue aquele, citando os supracitados autores que:
"a confissão efetuada pelo investigado atende meramente à exigência formal para concretização do acordo de não persecução penal, até mesmo por ocorrer em sede de investigação preliminar, vedando-se sua utilização em eventual processo criminal, em caso de descumprimento das condições, bem como na hipótese de instauração de processos cíveis ou administrativos”
De forma semelhante, defende a Defensoria Pública do Rio de Janeiro, no Enunciado nº 3[4], ressaltando, todavia, a defesa da inconstitucionalidade do requisito:
Enunciado nº 3 da DPRJ, “constará expressamente do acordo de não persecução penal cláusula indicando que a confissão, apesar da duvidosa constitucionalidade de sua exigência, dá-se exclusivamente para os efeitos de celebração do acordo de não persecução penal. (grifos nossos)
Recentemente a sexta turma do Superior Tribunal de Justiça – STJ, julgou o Habeas Corpus Nº 657165 - RJ (2021/0097651-5) tendo decidido que a falta de confissão no inquérito policial não obsta o acordo de não persecução penal e que essa exigência pode levar a não autoincriminação:
EMENTA: HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS. ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL. PODER-DEVER DO MINISTÉRIO PÚBLICO. AUSÊNCIA DE CONFISSÃO NO INQUÉRITO POLICIAL. NÃO IMPEDIMENTO. REMESSA DOS AUTOS À PROCURADORIA-GERAL DE JUSTIÇA. INTELIGÊNCIA DO ART. 28-A, § 14, DO CPP. NECESSIDADE. ORDEM CONCEDIDA. 1. O acordo de não persecução penal, de modo semelhante ao que ocorre com a transação penal ou com a suspensão condicional do processo, introduziu, no sistema processual, mais uma forma de justiça penal negociada. Se, por um lado, não se trata de direito subjetivo do réu, por outro, também não é mera faculdade a ser exercida ao alvedrio do Parquet. O ANPP é um poder-dever do Ministério Público, negócio jurídico pré-processual entre o órgão (consoante sua discricionariedade regrada) e o averiguado, com o fim de evitar a judicialização criminal, e que culmina na assunção de obrigações por ajuste voluntário entre os envolvidos. Como poder-dever, portanto, observa o princípio da supremacia do interesse-público – consistente na criação de mais um instituto despenalizador em prol da otimização do sistema de justiça criminal – e não pode ser renunciado, tampouco deixar de ser exercido sem fundamentação idônea, pautada pelas balizas legais estabelecidas no art. 28-A do CPP. 2. A ausência de confissão, como requisito objetivo, ao menos em tese, pode ser aferida pelo Juiz de direito para negar a remessa dos autos à PGJ nos termos do art. 28, § 14, do CPP. Todavia, ao exigir a existência de confissão formal e circunstanciada do crime, o novel art. 28-A do CPP não impõe que tal ato ocorra necessariamente no inquérito, sobretudo quando não consta que o acusado – o qual estava desacompanhado de defesa técnica e ficou em silêncio ao ser interrogado perante a autoridade policial – haja sido informado sobre a possibilidade de celebrar a avença com o Parquet caso admitisse a prática da conduta apurada. 3. Não há como simplesmente considerar ausente o requisito objetivo da confissão sem que, no mínimo, o investigado tenha ciência sobre a existência do novo instituto legal (ANPP) e possa, uma vez equilibrada a assimetria técnico-informacional, refletir sobre o custo-benefício da proposta, razão pela qual “o fato de o investigado não ter confessado na fase investigatória, obviamente, não quer significar o descabimento do acordo de não persecução” (CABRAL, Rodrigo Leite Ferreira. Manual do Acordo de Não Persecução Penal à luz da Lei 13.963/2019 (Pacote Anticrime). Salvador: JusPodivm, 2020, p. 112). 4. É também nessa linha o Enunciado n. 13, aprovado durante a I Jornada de Direito Penal e Processo Penal do CJF/STJ: “A inexistência de confissão do investigado antes da formação da opinio delicti do Ministério Público não pode ser interpretada como desinteresse em entabular eventual acordo de não persecução penal”. 5. A exigência de que a confissão ocorra no inquérito para que o Ministério Público ofereça o acordo de não persecução penal traz, ainda, alguns inconvenientes que evidenciam a impossibilidade de se obrigar que ela aconteça necessariamente naquele momento. Deveras, além de, na enorme maioria dos casos, o investigado ser ouvido pela autoridade policial sem a presença de defesa técnica e sem que tenha conhecimento sobre a existência do benefício legal, não há como ele saber, já naquela oportunidade, se o representante do Ministério Público efetivamente oferecerá a proposta de ANPP ao receber o inquérito relatado. Isso poderia levar a uma autoincriminação antecipada realizada apenas com base na esperança de ser agraciado com o acordo, o qual poderá não ser oferecido pela ausência, por exemplo, de requisitos subjetivos a serem avaliados pelo membro do Parquet. 6. No caso, porque foi negada a remessa dos autos à Procuradoria-Geral de Justiça (art. 28-A, § 14, do CPP) pela mera ausência de confissão o réu no inquérito, oportunidade em que ele estava desacompanhado de defesa técnica, ficou em silêncio e não tinha conhecimento sobre a possibilidade de eventualmente vir a receber a proposta de acordo, a concessão da ordem é medida que se impõe. 7. Ordem concedida, para anular a decisão que recusou a remessa dos autos à Procuradoria Geral de Justiça – bem como todos os atos processuais a ela posteriores – e determinar que os autos sejam remetidos à instância revisora do Ministério Público nos termos do art. 28-A, § 14, do CPP e a tramitação do processo fique suspensa até a apreciação da matéria pela referida instituição.
Ressalta-se, inclusive, que o tema é objeto de Ação Direta de Inconstitucionalidade em curso perante o Supremo Tribunal Federal, sob o nº 6304[5], ainda sem julgamento.
Nesse sentido, ainda que o modelo consensual seja uma realidade crescente no nosso ordenamento jurídico, entendemos que esse deve ser compatibilizado com os direitos do pretenso réu. Assim, o negócio jurídico pré-processual deve ser efetivamente fruto de um acordo e não pode de uma imposição trajada de opção, como bem apontaram Jardim e Amorim em relação à transação penal, assim como não deve estabelecer requisitos que venham a prejudicar de sobremaneira o pretenso réu em caso de descumprimento, como no caso da exigência de confissão para o ANPP.
3.Considerações Finais
O tema negociação penal no Brasil já é uma realidade antiga. Diversos institutos negociais foram criados numa proposta de dar maior economia e celeridade processual para determinados crimes.
Dessa forma, a doutrina busca compatibilizar ou rechaçar os institutos à luz dos princípios constitucionais, em especial devido processo legal, contraditório, ampla defesa e presunção da inocência (art. 5º, LIV, LV, LVII, da CF).
Assim, entendemos que é preciso estar atento às novas formas de lidar com o processo, no entanto, deve-se ter cuidado para que esses institutos não mitiguem por completo os direitos fundamentais e processuais conquistados, literalmente, “à duras penas”.
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[1] Nesse sentido: LOPES JR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. V.1, p. 540-550.
[2] GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antônio Scarance; GOMES FILHO, Antônio Magalhães. As nulidades no processo penal. 7 ed. São Paulo: RT, 2001. P.81.
[3] Disponível em: https://wallacestrela.jusbrasil.com.br/artigos/456090513/o-principio-da-verdade-real-no-ambito-do-processo-penal. Acesso em 29 de setembro de 2022.
[4] Disponível em: <https://defensoria.rj.def.br/uploads/arquivos/Doe/2021.05.18.pdf> acesso em 21 de junho de 2022.
[5] Disponível em: <https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5843708> acesso em 21 de junho de 2022.
Especialista em Direito Penal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: TELES, ALANA DOS SANTOS. Da verdade real à verdade negociada: breves apontamentos sobre a justiça negocial no Brasil Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 05 out 2022, 04:38. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/59399/da-verdade-real-verdade-negociada-breves-apontamentos-sobre-a-justia-negocial-no-brasil. Acesso em: 22 nov 2024.
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