Esta é a causa, minha alma. Oh! Esta é a causa!
Não vo-la nomearei, castas estrelas! Esta é a causa!
Não quero verter sangue, nem ferir-lhe a epiderme ainda mais branca
do que neve e mais lisa que o alabastro.
Mas é fatal que morra; do contrário, virá ainda a enganar mais outros homens.
(Sheakespeare, em: Otelo)
Resumo: As transformações sociais, culturais e de costumes, envolvendo questões de gênero, sobretudo as havidas nos séculos XX e XI, ensejaram reflexos no campo jurídico, mediante alterações no Código Penal que visam coibir a violência praticada contra mulheres. Neste âmbito, o conceito de feminicídio foi inserido na legislação, na condição de qualificadora do delito de homicídio, cominando, portanto, pena mais gravosa aos crimes cometidos contra mulheres por questões de gênero. Entretanto, apesar dos avanços alcançados, segue havendo aceitação, por parte da doutrina, de teses jurídicas que visem atenuar a culpabilidade dos agentes, em crimes contra mulheres, mediante o comportamento das mesmas e sob a alegação de “forte emoção”. No presente trabalho, foram percorridos conceitos jurídicos e psicanalíticos, estes últimos relacionados a aspectos da personalidade dos agentes de crimes fatais contra mulheres, bem como discutida a relevância de ponderação na aplicação dos fatores de redução de pena nestes casos. Fica, portanto, ressaltada a necessidade de se enxergar o Direito para além da via exclusivamente dogmática, e de se considerar o caráter relativo das normas penais diante do fenômeno criminal.
Palavras-chave: Direito penal; Feminicídio, Psicanálise; Narcisismo; Frustração.
Introdução
O presente trabalho busca analisar aspectos jurídicos e psicológicos envolvidos nos crimes popularmente chamados de “passionais”, contra mulheres, bem como oferecer reflexões que permitam contribuir para o aprofundamento do olhar destinado por operadores do Direito a estes fenômenos em nossa sociedade.
Trata-se de um breve estudo teórico, a partir de textos acadêmicos, científicos e jurídicos relacionados ao tema, com o objetivo de fundamentar a discussão. Foram mobilizados conceitos de crime, questões de gênero, aspectos históricos, além de conceitos como tolerância à frustração, impulsividade e narcisismo, para discutir comportamentos violentos de homens contra a vida de mulheres, e a forma como este tipo de crime pode ser compreendido e manejado pelos operadores do Direito, no Brasil.
Sobre o Direito Penal e conceito de crime
Direito Penal é um ramo do direito público que se destina a descrever condutas atentatórias a bens jurídicos tutelados, aplicando aos infratores uma sanção penal. O Direito Penal é, portanto, um meio de controle social formalizado, que representa a espécie mais concreta de intervenção estatal, sendo constituído por um conjunto de normas jurídicas que definem as infrações de natureza penal e suas conseqüências jurídicas correspondentes (penas ou medidas de segurança) (CAPEZ, 2019).
Assim sendo, seria um conjunto de normas que, para além de regular e punir determinados comportamentos humanos reprováveis perante a sociedade, também se presta a limitar este mesmo poder punitivo do Estado, uma vez que nem toda conduta humana reprovável é alvo de sanções penais (NUCCI, 2020).
O estudo do Direito Penal, assim como ocorre em todos os outros campos do Direito, envolve, necessariamente, interdisciplinaridade, contando com a colaboração, sobretudo, de outras áreas das ciências humanas tais como Antropologia, Sociologia e Psicologia. Assim sendo, o estudo dogmático das leis penais não encerra, em si, as reflexões e discussões fundamentais para sua adequada compreensão e aplicação pelos operadores do Direito.
Neste campo do conhecimento, o conceito material de delito, conforme prega a doutrina (NUCCI, 2020), se refere à concepção da sociedade sobre o que deve ser criminalizado, mediante a aplicação de uma sanção penal. Neste contexto, entende-se que o Direito Penal deve tutelar apenas aquilo que for relevante e essencial para o convívio social (bens jurídicos relevantes). Tal delimitação antecede, portanto, a tipificação da conduta pelo legislador.
Adentrando o conceito formal de delito, pode-se circunscrevê-lo como a conduta proibida por lei, sob ameaça de aplicação da pena, segundo o princípio da reserva legal (legalidade) (NUCCI, 2020). Cuida-se, aqui, do conceito material formalizado por meio de lei, para atender ao art.1.º do Código Penal: “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal.”
Em relação ao chamado conceito analítico de crime, sua conceituação trazida pela doutrina penalista dentro do modelo tripartido (o mais aceito atualmente na nossa realidade), o descreve como “fato típico, antijurídico e culpável” . Assim sendo, nesta vertente, para além da exigibilidade de que a conduta se enquadre num comportamento descrito previamente num tipo penal, considerado, portanto, como ilícito ou proibido, o crime, para ser considerado como tal, necessita do elemento culpabilidade, que, por sua vez, envolve aspectos subjetivos do agente, tais como intenção, vontade, dolo (Capez, 2019).
Neste sentido, Jair Leonardo Lopes (1999, p.139) se refere à culpabilidade como sendo “juízo de reprovação que incide sobre o agente da ação, tendo este, ou podendo ter, consciência da ilicitude de sua conduta, e que ainda assim age de modo contrário ao direito quando lhe era exigível.”
Assim sendo, em outras palavras, pode-se dizer que culpabilidade passa pelo fato do agente, apesar de dotado de entendimento consciente e racional acerca de que não deveria praticar referido ato, não resiste ao seu ímpeto e o concretiza apesar disso. Assim sendo, sua atitude poderia ser considerada reprovável, do ponto de vista jurídico, e, portanto, punível.
Neste contexto, cabe aqui delimitar o que seria, portanto, uma definição doutrinária de conduta delitiva: a ação ou omissão, voluntária e consciente, relevante para o direito penal (NUCCI, 2020). Para a caracterização da conduta torna-se, portanto, indispensável a existência do binômio vontade e consciência, não sendo puníveis, portanto, apenas aqueles atos típicos e antijurídicos que tenham sido cometidos mediante estados de inconsciência ou movimentos reflexos.
Sobre os crimes contra a vida
Dentre os diferentes bens jurídicos tutelados pelo Direito Penal, a vida humana é um dos mais relevantes, sobretudo porque se refere a Direito Fundamental previsto na Constituição Federal/88 e está presente em diferentes tipos penais. Esta modalidade de crimes está disposta nos artigos 121 à 148 do Código Penal; importante destacar que praticamente todos os crimes contra a vida são dolosos, exceto os expressamente previstos em lei como culposos, segundo o ordenamento jurídico do nosso país.
Para o presente trabalho, importa sobremaneira o crime descrito no artigo 121, ou seja, homicídio. Aqui, trata-se de identificar e punir condutas que tenham como resultado finalístico a morte de uma ou mais pessoas, sendo este seu objetivo pretendido pelo agente (dolosos), ou cujo risco foi admitido pelo agente em sua conduta (culposos), ou, ainda, a forma tentada destes mesmos delitos.
Dentre os elementos qualificadores de referido crime (que ensejariam aumento da pena), encontram-se motivo fútil, meio cruel, mediante paga, emboscada, entre outros, e, a partir de 2015, também a situação de homicídio cometido contra a mulher, por sua própria condição de mulher (feminicídio). Assim sendo, há previsão legal de que este tipo de crime contra a vida das mulheres seja considerado mais grave e enseje, portanto, pena maior. Inclusive, cumpre destacar que o homicídio qualificado é crime hediondo, qualquer que seja a qualificadora (Lei 8.072/1990, art. 1º).
Questões de gênero e Feminicídio
A violência contra mulheres alcançou, ao longo do século XX, status de delito específico em diversas partes do mundo, sobretudo na América Latina (CAMPOS, 2015). Deste modo, conforme a autora, abriu-se caminho para que a violência de gênero abarcasse também a chamada violência feminicida, sendo tal categoria oriunda da teoria feminista.
Os termos femicídio/feminicídio, segundo Campos (2015), teriam a finalidade, inicialmente, de fazer uma contraposição à neutralidade do termo homicídio, mas também conteriam, em si, o significado do ponto máximo de “um padrão sistemático de violência, universal e estrutural, fundamentado no poder patriarcal das sociedades ocidentais” (CAMPOS, 2015, p. 105).
Deste modo, conforme a autora, a partir desta linha interpretativa, o fenômeno do feminicídio seria visto como uma forma extremada da desigualdade de gênero, revelando desejos masculinos de obter controle e dominação sobre a mulher.
Na realidade legislativa brasileira, a proposta de lei acerca do feminicídio surgiu como continuidade da proposta iniciada pela Lei Maria da Penha, no sentido de refletir a busca pela igualdade de gênero e, ainda, pela concretização de Direitos Humanos, respondendo também a compromissos internacionais (CAMPOS, 2015).
Nas palavras da autora:
“A definição de feminicídio como forma extrema de violência de gênero que resulta na morte da mulher reproduziu o conceito clássico feminista. Na sua justificação, a menção a diversas definições teóricas e legalmente utilizadas, tais como assassinato relacionado a gênero, morte de mulher por ser mulher, crime de ódio contra mulheres, manifestação extrema de formas existentes de violência contra mulheres (...) revela a diversidade da nomeação desse fenômeno.” (Campos, 2015, p. 107)
O termo misoginia surgiu a partir do grego misogynia, ou seja, a união das partículas miseó, que significa "ódio", e gyné, que se traduz para "mulher". Assim sendo, pode ser compreendido como um sentimento que envolve desprezo ou ódio contra mulheres. Tal forma de rejeição à pessoa do gênero feminino fundamenta-se num raciocínio sexista, mediante o qual a mulher é vista como subalterna, em relação ao homem.
Historicamente, observa-se que as práticas de dominação masculina sobre as mulheres fundamentam-se, não raro, em argumentos falaciosos que envolvem uma suposta supremacia biológica masculina. Conforme Cortez, Souza, Salvador e Oliveira (2019), teses eugenistas, durante séculos, atribuíram ao homem cis, heterossexual e branco a pecha de ideal biológico e social, enquanto, por outro lado, o feminino foi associado a uma idéia de incompletude, imperfeição e, além disso, como estando a serviço do homem (CORTEZ et al, 2019).
Tais aspectos perpassaram, ao longo dos séculos, as formações das sociedades e culturas e, ainda hoje, encontram respaldo nos comportamentos e relações humanas, incluindo-se aí os crimes de gênero contra mulheres.
Considerando-se a legislação vigente, observa-se que a conceituação do feminicídio em torno de atos ou comportamentos baseados na misoginia tem o condão de proteger um bem jurídico relevante (vida de mulheres). Neste aspecto, conforme Campos (2015), a adequação típica do feminicídio poderia ser vista como diversa à do homicídio, no sentido de que busca destacar o fato de que a morte de mulheres, neste contexto de violência de gênero, é diferente do homicídio comum.
Desta maneira, fica destacada a relevância do movimento feminista na evolução das leis penais ao longo do século XX, no que tange à tipificação de crimes contra mulheres. Criou-se, assim, o alicerce para a compreensão das mortes de mulheres como resultado de violência baseada no gênero ou por razões de gênero.
Sobre a Lei do Feminicídio
A chamada “Lei do Feminicídio” foi sancionada em março de 2015, pela então presidenta Dilma Roussef. Com esta lei foi implementado o inciso VI, no parágrafo segundo do artigo 121, do código penal brasileiro, inserindo uma nova modalidade qualificadora do homicídio por razões de feminicídio, que seria praticar violência contra a mulher, resultando em sua morte, por sua condição de pessoa do sexo feminino. Referida alteração torna, portanto, estes crimes contra a vida das mulheres mais gravosos que homicídios simples.
Diversos autores na área do Direito apontam problemas na redação da referida lei, a iniciar pelo próprio termo “Feminicídio”. Como apontado por Rosa e Carvalho (2018), o termo não seria o mais adequado porque remeteria a uma subcategoria do genocídio (homicídio que busca a destruição do sexo feminino). Para referidas autoras, o termo mais adequado para alguns juristas seria “femicídio”, pois enquadraria melhor o conceito de assassinatos em menor escala que o genocídio, mas, ainda assim, configurando crime de ódio e discriminação.
Outrossim, as autoras apontam que a redação final da mencionada lei sofreu alterações que prejudicam a adequada interpretação do texto. Dentre elas, citam a supressão da expressão “gênero” e a substituição da mesma por “condição do sexo feminino”. Assim, conforme Rosa e Carvalho (2018), referida alteração não permite abarcar, na condição de vítima, toda e qualquer pessoa que manifeste a condição feminina, tais como as transexuais femininas, restringindo sua aplicabilidade. Deste modo, conforme Campos (2015), a tipificação do feminicídio ocorrida no Brasil apresenta um paradoxo: enquanto simbolicamente destaca e nomina a morte de mulheres, ela produz uma diminuição legal de conteúdo.
Além disso, as autoras mencionam que a qualificadora, tal como foi redigida, incide apenas sobre a culpabilidade, não permitindo que aos coautores seja comunicado o referido fato típico e ilícito. Tais aspectos o destacam o caráter subjetivo da qualificadora do feminicídio, na forma como foi redigida (Rosa e Carvalho, 2018).
As autoras mencionam ainda que diversos autores citam dificuldades interpretativas acerca do que venham as ser as “razões da condição do sexo feminino” bem como “menosprezo” ou “discriminação” à condição de mulher, citadas no texto. Nas palavras das autoras:
“É bem provável que, ante as dificuldades interpretativas suscitadas, se enfraqueça o objetivo inicial de evitar as desclassificações de homicídio qualificado para homicídio simples, de modo que a polícia e o Ministério Público prefiram enquadrar o fato de imediato nas demais hipóteses de homicídio qualificado por entenderem mais difícil demonstrar as “razões do sexo feminino” (Rosa e Carvalho, 2018)
Deste modo, há importantes críticas de juristas brasileiros quanto à redação da lei do Feminicídio, que envolvem dificuldades interpretativas que teriam o condão de impactar negativamente sua aplicabilidade. As estatísticas que retratam a violência contra mulheres no Brasil parecem corroborar este entendimento, conforme explanado a seguir.
O que os números mostram (ou escondem)?
Na prática, apesar de já transcorridos 7 anos desde que a alteração legal referente ao “Feminicídio” se tornou vigente, ainda hoje esta modalidade de crimes vem crescendo no país, sem que esta lei tenha mostrado resultados positivos e satisfatórios na evitação de crimes contra a vida das mulheres brasileiras.
Isto se torna evidente ao se analisar as estatísticas relativas à violência contra mulheres em nosso país. Conforme dados oferecidos pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública (https://forumseguranca.org.br/anuario-brasileiro-seguranca-publica/), num panorama nacional em termos estatísticos, apenas entre março de 2020, mês que marca o início da pandemia de covid-19 no país, e dezembro de 2021, último mês com dados disponíveis, foram 2.451 feminicídios e 100.398 casos de estupro e estupro de vulnerável de vítimas do gênero feminino.
Analisando-se mais atentamente as estatísticas envolvendo crimes contra mulheres entre janeiro e agosto de 2022, no estado de São Paulo (conforme site da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo - http://www.ssp.sp.gov.br/Estatistica/ViolenciaMulher.aspx), observa-se números alarmantes. Conforme os registros oficiais, foram registrados 34.559 episódios de lesão corporal dolosa cometida contra mulheres, ou seja, em média, 164 mulheres foram fisicamente agredidas intencionalmente, por dia, ao longo de 2022, só no estado de São Paulo. Focalizando-se crimes de violência ainda mais graves, cujas vítimas foram mulheres, apenas nestes oito primeiros meses do ano, no estado de São Paulo, foram registrados 224 tentativas de homicídio, bem como 156 concretizações de homicídios dolosos contra mulheres, os quais não incluem outros 100 episódios homicídios de mulheres classificados como feminicídios.
Assim sendo, as estatísticas apontam para um quadro dramático, na realidade brasileira e também na especificidade paulista, em termos de violência praticada contra mulheres. No entanto, apesar disso, há indícios de que a situação seja ainda pior, ou seja, de que haja uma relevante subnotificação destes fenômenos, conforme apontou a agência Lupa (Duarte e Afonso, 2021). As autoras apontam que os problemas envolvem falta de sensibilização e de treinamentos para o correto preenchimento do boletim de ocorrência, por parte de policiais que lidam diretamente com esta demanda. Ainda conforme as autoras, o referido problema ocorreria também nos veículos de comunicação, o que dificulta a visibilidade acerca da real dimensão do problema na realidade brasileira.
Esta subnotificação impacta diretamente a implementação de políticas públicas envolvendo a prevenção da violência contra mulheres. Conforme as autoras da Agência Lupa, tais dados são de fundamental importância para corrigir estratégias de enfrentamento, agindo também como mecanismo de transparência e controle social (Duarte e Afonso, 2021).
Alguns juristas, dentre eles a juíza Theresa Karina de Figueiredo Gaudêncio Barbosa, entendem que há equívocos interpretação e aplicação dos referidos dispositivos legais. Referida magistrada, em um artigo de 2016 do jornal Correio Braziliense, publicado também no site do TJDFT, pondera tratar-se de uma abordagem viciada das causas do crime, que contribui para perpetuar a impunidade.
Ao abordar o tema, ela levanta uma importante questão:
“Ao analisar os chamados homicídios passionais (feminicídios), percebe-se que esses não foram motivados por paixão. Ninguém mata por paixão, mata-se por ódio. Contudo, sendo o ódio algo abjeto, capaz de desqualificar aqueles que o exprimem, veste-se o detestável com as nobres roupas do amor, e o crime de ódio vira homicídio de paixão, a merecer tratamento especial por parte da lei, do juiz, da sociedade. Penas mais brandas são requeridas, datas de julgamento adiadas, e as vítimas seguem sendo elas próprias culpadas pelo infortúnio, condenadas por escolher mal o companheiro, por provocar-lhe ciúmes, por pedirem separação.”
Sobre a (ultrapassada) tese de “legítima defesa da honra”
O problema ora mencionado denuncia a presença, ainda nos dias atuais, de resquícios da tese jurídica baseada no conceito de “legítima defesa da honra”, cujas raízes encontram-se no Brasil Colônia. Na época, por questões culturais e tradicionais, a honra masculina era um bem protegido pelo ordenamento jurídico, de modo que era lícito, ao marido, matar sua esposa caso flagrada em adultério. Conforme (ARREGUY, 2012), foi somente no Código Criminal de 1830 que tal previsão foi retirada da legislação brasileira.
No entanto, em 1890, um novo instituto veio modificar novamente a regulamentação legal deste tipo de crime, de modo a inserir a exclusão de punibilidade quando o homicídio fosse cometido sob um estado de total perturbação dos sentidos e da inteligência (ARREGUY, 2012). Com base em tal dispositivo, os autores destes crimes eram comumente absolvidos, pois entendia-se que o flagrante do cônjuge em adultério era motivo de “privação da inteligência e dos sentidos”.
Esta categoria de delito abarca o tipo de crime conhecido pelo senso comum como “crime passional”, e costuma gerar grande repercussão e mobilização social em torno de sua divulgação. A notícia de que alguém matou “por amor”, ou “tomado pela paixão”, em geral reflete situações de ciúme exacerbado, sentimentos de posse e de perda de controle sobre o objeto “amado” (TOIGO, 2010). Ou seja, de certa maneira, culpabilizavam a própria mulher, vítima de homicídio.
Eluf (2007) traz uma série de casos brasileiros envolvendo crimes passionais, bastante ilustrativos do tema em questão. Casos em que, em sua maioria, homens assassinaram mulheres motivados por ciúme, rejeição, alegando amor e paixão e, ainda, defesa da honra para concretizar crimes envolvendo violência de gênero. A desembargadora, autora da obra, analisa os casos e as teses de defesa utilizadas nestes casos, para buscar a absolvição ou diminuição da pena dos algozes.
Importante destacar que a tese de legítima defesa da honra foi, em verdade, sepultada pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, no ano de 2021, mediante julgamento emitido em sede da ADPF 779, na qual foi declarada a sua inconstitucionalidade, por contrariar os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da proteção à vida e da igualdade de gênero (BRASIL, 2021). Mediante tal julgamento, torna-se vedada a utilização, tanto pelas partes como pelo juízo, de forma direta ou indireta, de quaisquer argumentos que levem à tese de legítima defesa da honra, em qualquer fase processual, sob pena de nulidade do ato e do julgamento.
O feminicídio-privilegiado
Apesar deste importantíssimo avanço, subsiste no Código Penal, em especial no parágrafo 1º do artigo 121, espaço para a utilização da “forte emoção” em face do comportamento da vítima de homicídio, podendo ser utilizado de forma a buscar relativizar a culpabilidade e, com isso, abrandar a pena imposta ao agressor/homicida. Trata-se do homicídio privilegiado e, conforme previsão legal, trata-se de hipótese de diminuição de pena:
“§ 1º Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, ou juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço.”
No caso específico do feminicídio, subsistem divergências doutrinárias e jurisprudenciais acerca da viabilidade ou não da figura do “feminicídio privilegiado”, posto que a caracterização do mesmo se dá através não de um tipo penal autônomo, mas sim de uma qualificadora do crime de homicídio (BIANCHINI, 2016).
Parte da doutrina compreende o feminicídio como uma qualificadora exclusivamente subjetiva, pois trata da esfera interna do agente e não com o modo ou meio de execução do crime (ALVES, 2022). Neste entendimento, não haveria feminicídio privilegiado, pois só seria possível um homicídio do tipo qualificado-privilegiado caso a qualificadora fosse de natureza objetiva.
Por outro lado, há doutrinadores que compreendem a questão de modo diverso, postulando que o feminicídio é, em verdade, uma qualificadora objetiva, pois seu cerne envolve matar a mulher por razões da condição de sexo feminino, tratando-se, portanto, de elemento de natureza objetiva. (ALVES, 2022). Os demais elementos que podem estar relacionados ao feminicídio (ódio, ciúme, disputa familiar, sadismo, etc), é que seriam, de fato, subjetivos, e não a condição do sexo feminino em si. Tal vertente doutrinária entende, portanto, que a qualificadora do feminicídio, sendo objetiva, pode conviver com outras circunstâncias de cunho puramente subjetivo, o que abre caminho para a aceitação do feminicídio-privilegiado.
Nestes casos, os elementos que configuram o caráter de “privilegiado” para o crime de homicídio (ou, ainda, feminicídio) e, portanto, sugerem a compreensão de que sejam menos reprováveis ou, extrapolando a interpretação, mais compreensíveis ou toleráveis, envolvem aspectos subjetivos do agente, sobretudo aspectos relativos à sua vontade e valores morais. (BIANCHINI, 2016). Outrossim, embutem, de certa maneira, a tese de que, mediante determinada “provocação”, seria mais aceitável ou compreensível que o homem agisse de forma a exterminar a vida da mulher, culminando numa pena menor, associada ao mesmo crime. Com isso, tornar-se-ia menos reprovável, na prática, a perda do auto-controle por parte do agente ao provocar a morte de outra pessoa, nestas condições.
Assim sendo, ainda que, na atualidade a tese da “legítima defesa da honra” tenha perdido sua legitimidade, a tese de homicídio privilegiado por violenta emoção seguida à injusta provocação da vítima permanece sendo entendida, por parte da doutrina, como estratégia de defesa viável em casos de feminicídio. Com isso, pode-se buscar a diminuição da pena nos tribunais, nos casos de violência que resultem na morte da mulher (TOIGO, 2010).
Observa-se que que tem havido, portanto, no Brasil ao longo do século XX e XI, incremento das penas cominadas a crimes contra mulheres, bem como avanços na doutrina e jurisprudência que visam dificultar a impunidade dos agentes. Neste âmbito, explorar e refletir sobre as condições psicológicas (patológicas ou não), que fundamentam essas condutas pode ajudar a melhor compreender esses comportamentos à luz da legislação (ARREGUY, 2012).
Neste ínterim, para além das questões sociológicas e culturais envolvendo gênero, que, indubitavelmente atravessam esta temática e os julgamentos, cumpre adentrar em temática que extrapola o campo do Direito Penal, contando, portanto, com colaboração de outras áreas do saber, nomeadamente a Psicanálise.
Assim sendo, trata-se de temática atual, com expressiva relevância diante da realidade brasileira no cenário de violência contra a mulher, cuja discussão perpassa elementos jurídicos, mas também sociológicos e psicológicos, merecendo atenção de estudiosos e pesquisadores do campo do Direito, a fim de que se evitem equívocos na interpretação dos fatos e na aplicação da Lei, de forma a diminuir a impunidade associada a esses crimes.
Narcisismo e ciúme
Na origem dos comportamentos violentos passionais, conforme ALCÂNTARA (2015), algumas características de funcionamento da personalidade se mostram frequentes, e dentre elas se destacam o Narcisismo e o ciúme, ambos em suas modalidades patológicas.
Sob uma vertente psicanalítica da compreensão do desenvolvimento psíquico dos indivíduos, entende-se que, num processo considerado típico e/ou adaptativo, no final da adolescência e início da vida adulta ocorreria a separação dos pais e a formação de um “eu” individualizado (LANGARO & BENETTI, 2014). Neste contexto, o jovem desenvolveria uma espécie de narcisismo “normal”, mediante a observação e reconhecimento de suas próprias realizações bem-sucedidas na realidade. Com isto, estariam presentes aspectos da personalidade voltados para autoestima e conhecimento, tais como preservação de interesses pessoais, busca por crescimento e amadurecimento, refletindo, portanto, aspectos positivos do narcisismo (LANGARO & BENETTI, 2014).
Por outro lado, mediante falhas na individualização e autonomia, poderia ocorrer o chamado narcisismo patológico, que seria como uma espécie de mecanismo de defesa, em resposta às experiências de desilusão e decepção, mediante as falhas no alcance de metas não realistas. Este fenômeno prejudica a saúde mental, e se relaciona “a sentimentos de grandiosidade e autossuficiência, à falta de empatia, agressividade, impulsividade e oscilações depressivas intensas quando frente à frustração” (LANGARO e BENETTI, 2014, p. 201).
Deste modo, do ponto de vista psicanalítico, o narcisismo saudável envolve a capacidade de manutenção de uma autoimagem e autoestima positivas, mediante reais possibilidades de autonomia, crescimento e alcance de objetivos. Por outro lado, num funcionamento narcisista com características patológicas, estariam presentes dificuldades de descentrar-se de si mesmo, bem como de reconhecer os próprios limites e aceitar frustrações (CRAMER & JONES, 2008).
Sobre a influência de tendências narcisistas em comportamentos criminosos, nos diz CECCARELLI (2013):
“São voltados unicamente para si e orientados para a autoconservação. Desprezam os outros e utilizam uma grande quantidade de agressividade para o ato criminoso. É como se existisse uma evanescência do superego; como se a instância da lei tivesse sido mal introjetada nesses indivíduos. Neles, a posição libidinal seria não erótica, ou seja, não orientada para o outro para o que o outro possa sentir: não há identificação com o outro. De certa forma, é quase uma posição perversa na qual o que o outro sente não é levado em consideração.” (p. 413).
Assim, focalizando a questão dos “crimes passionais”, sob o ponto de vista psicanalítico, o sujeito que vivencia um narcisismo patológico tenderia a se desestabilizar mais facilmente diante da ruptura de uma relação amorosa (ou da ameaça de ruptura), apresentando tendência à culpabilização e ódio sobre a outra pessoa.
Neste contexto de perda (ou temor de perda) do objeto amado, cabe destacar o ciúme como vivência psíquica potencialmente geradora de intenso sofrimento mental.
O ciúme costuma ser entendido como elemento intrínseco aos relacionamentos amorosos, e, em certa medida, reflete o medo de que aquela pessoa deixe de fazer parte da vida do outro. Há, no entanto, nuances e graus em relação a referida vivência emocional, sendo que, em uma modalidade patológica, configuraria um quadro exagerado de posse, sem que haja evidências de realidade que fundamentem a desconfiança e o medo da perda do parceiro(a).
Sophia, Tavares e Zilberman (2007) mencionam que o ciúme patológico tem correlação com a baixa autoestima e sensação de insegurança, surgindo como preocupação infundada e irracional, ampliando riscos de condutas violentas e egoístas. Assim, o ciúme patológico também é um relevante predisponente do comportamento violento.
Para além disso, em situações de ciúme patológico exacerbado, que culminam em homicídios “passionais”, o agente vê, no seu objeto de amor, em verdade, um objeto de posse (ALCÂNTARA, 2015). Tal visão deturpada retira do outro direitos que lhe são essenciais e fundamentais, tais como: direito à liberdade e ao exercício da livre escolha nas relações íntimas. Referido processo abre espaço para a despersonalização do outro, que, tendo sua humanidade reduzida aos olhos do ciumento, torna-se facilmente alvo de atos de violência diversos, incluindo o homicídio.
Conforme alguns autores, aspectos narcísicos da personalidade se mostram bastante presentes na dinâmica de relacionamentos amorosos na contemporaneidade. Assim, a preferência pelo efêmero e descartável, no âmbito dos relacionamentos amorosos, passaram a ser regra. Deste modo, nossa sociedade hoje vive uma tendência à constituição de egos frágeis e dependentes do investimento do outro (UBINHA & CASSORLA, 2003).
Neste ínterim, para CECCARELLI (2013), como fundamento latente para a justificativa comumente atribuída aos crimes passionais de “paixão pelo outro” se revela, na verdade, uma paixão narcisista patológica por si próprio, amor à sua autoimagem (bastante fragilizada) e à honra que deve manter a qualquer preço perante si mesmo e perante a sociedade. Assim sendo, a ameaça ao relacionamento amoroso é vivenciada, pelo narcisista, como ameaça à própria identidade do sujeito, dado o elevado grau de dependência em relação ao olhar alheio, característico deste modo primitivo de funcionamento da personalidade.
Crimes passionais e a (in)capacidade de tolerar a frustração
Freud, em sua obra “Mal-estar na civilização” (1930/1986), elenca o convívio em sociedade e a inserção do Homem na cultura como elementos que dão identidade própria à humanidade e a diferenciam dos demais animais. Assim sendo, ao integrar uma civilização, o Homem deixa de ser um animal à mercê das próprias pulsões e necessidades individuais e precisa abrir mão de seus desejos instintivos imediatos em prol de segurança e sobrevivência em sociedade.
Na mesma obra, portanto, o referido autor explicita sua ótica de que existe uma contraposição entre as exigências da civilização e as necessidades pulsionais dos indivíduos, e que o sacrifício destas últimas geraria sofrimento e mal estar.
De fato, é um conceito amplamente conhecido em Psicanálise, de que a necessária repressão dos impulsos, fundamental para a adaptação à vida social, gera uma importante carga de ansiedade nos indivíduos, sendo, portanto, relacionada à frustração, podendo, inclusive, gerar sintomas diversos. Deste modo, entende-se que, para conviver em sociedade, o Homem precisa conseguir reprimir seus impulsos (principalmente os de cunho agressivo e sexuais), o que ocorre, muitas vezes, às custas de uma importante carga de sofrimento e dor mental (CECCARELLI, 2013).
A tolerância à frustração, mediante a não satisfação imediata dos impulsos, depende do desenvolvimento da capacidade de pensar e no adiamento da gratificação. Trata-se de habilidades a serem aprendidas, desenvolvidas, ao longo da vida, e referido processo não é linear, havendo avanços e retrocessos.
Este processo reflete a transição do chamado “princípio do prazer” para o “princípio de realidade”, conceitos psicanalíticos trazidos por Freud e, posteriormente, implementados e submetidos à releitura de outros teóricos da Psicanálise. Trata-se de modos de funcionamento mental que, embora aparentemente antagônicos, coexistem e se complementam, mesmo na vida adulta.
Nas palavras de Freud (1920):
“Sabemos que o princípio de prazer é próprio de um método primário de funcionamento por parte do aparelho mental, mas que, do ponto de vista da autopreservação do organismo entre as dificuldades do mundo externo, ele é, desde o início, ineficaz e até mesmo altamente perigoso. Sob a influência dos instintos de autopreservação do ego, o princípio de prazer é substituído pelo princípio de realidade. Este último princípio não abandona a intenção de fundamentalmente obter prazer; não obstante, exige e efetua o adiamento da satisfação, o abandono de uma série de possibilidades de obtê-la, e a tolerância temporária do desprazer como uma etapa no longo e indireto caminho para o prazer” ( p. 20).
Zimermann (1999) menciona que o conceito de princípio do prazer descrito por Freud envolve o direcionamento de toda ação e energia psíquicas e orgânicas ao objetivo de atingir um prazer idealizado, ignorando ou evitando as frustrações. Por sua vez, o chamado princípio da realidade se manifesta mediante a adaptação sociocultural, sendo acompanhado pela formação de valores éticos e morais. Com ele, o indivíduo passa a entender o funcionamento da chamada descarga impulsiva e, com isso, a respeitar os limites impostos pela realidade, regulando, assim, seu próprio comportamento.
Este processo é o que se espera de um perfil de desenvolvimento psíquico saudável e adaptado, no entanto, há diversas nuances e graus em que ele acontece, nos diferentes indivíduos. Outrossim, não se trata de uma habilidade que, ao ser atingida, não mais retrocede. Há riscos de descontrole, em maior ou menor grau, mesmo em pessoas cujo funcionamento da personalidade não se enquadra em categorias nosológicas em psicopatologia. Assim sendo, não é necessariamente verdade que todo assassino passional seja psicopata ou psicótico, por exemplo.
Nas palavras do psicanalista Carlos de Almeida Vieira, em sua coluna publicada no “Blog do Moreno” de O Globo, em abril de 2016:
“Pois bem, se há desejo, se existe uma força que busca sua realização, também há uma não realização, uma frustração do desejo, e aí começa a tragédia humana de prazer e dor mentais. Como transitar em área de tolerância e intolerância sem enlouquecer, sem reagir à frustração através de um ódio avassalador e mortífero?”
Os crimes passionais ocorrem, portanto, dentro de um espectro de vivências afetivas, no qual o conceito de frustração tem importante papel. Não raro, a motivação que fundamenta um crime passional traz em seu bojo a perda (ou a idéia ou temor desta perda) do objeto de amor, causando intensa frustração e, com ela, vivências intensas de raiva (ALCÂNTARA, 2015). Aniquilar aquele (ou aquela) que se acredita ser responsável por essa intensa carga de sofrimento mental que lhe é infringido, pode soar, para estes agentes, como o caminho mais simples, direto e imediato para o alívio (princípio do prazer).
Importante destacar que, mesmo nestes casos de descarga e descontrole impulsivo, motivado por intenso sofrimento decorrente de frustração, como elemento deflagrador do comportamento homicida, existe espaço para o pensar (princípio de realidade). O agente, ao ponderar, em seu íntimo, que o seu próprio comportamento homicida se trata de ação justa e motivada, está mobilizando mecanismos internos de defesa (racionalização). Referido mecanismo se presta a proteger o agente da dor da culpa consciente, seja no momento do crime ou após este (CECCARELLI, 2013).
Desta forma, a idéia de uma possível aceitação social ou moral (“ela provocou, ela causou”) do comportamento homicida, naquelas condições, também pode ser um elemento motivacional presente nos crimes passionais. E, inclusive, estes pensamentos, não raro, encontram, de fato, respaldo na opinião geral, bem como em brechas interpretativas do próprio texto legal.
Importante ressaltar que tal observação se aplica a indivíduos imputáveis, ou seja, sem uma condição psicopatológica que comprometa de maneira significativa seu juízo crítico da realidade no momento da conduta delitiva. Assim sendo, o agente de um homicídio contra mulher, que se pretende, como tese de defesa, enquadrar como autor de crime privilegiado, no momento da conduta delitiva não estava desprovido da capacidade de pensar e ponderar: ele o fez apesar disso (culpabilidade/dolo) (ALCÂNTARA, 2015).
Considerações finais
A partir deste percurso argumentativo, foi possível revisitar conceitos de Direito Penal e também de Psicanálise, que podem lançar luz e auxiliar na compreensão dos elementos motivacionais subjacentes a condutas delitivas contra a vida de mulheres, bem como da interpretação e aplicação da lei nestes contextos.
Os dados estatísticos apontam que a violência contra mulheres, no Brasil, atinge níveis alarmantes, situação que enseja uma atenção especial por parte dos legisladores e também dos operadores do Direito.
Muito embora haja, na realidade brasileira, dispositivos legais modernos e avançados que visam a proteção e reconhecimento da vulnerabilidade feminina diante da violência masculina (sobretudo no âmbito doméstico), observa-se que, não raro, prevaleçam entendimentos que suportam teses de defesa que busquem atenuar a culpabilidade de homens que cometem crimes desta natureza.
Assim sendo, o instituto do Feminicídio parece encontrar obstáculos à sua plena aplicação e na garantia da necessária proteção e repressão de comportamentos violentos e homicidas contra mulheres, em nosso país. Tal fenômeno tem diferentes explicações possíveis. Envolvem, por um lado, problemas importantes na redação da lei do feminicídio, conforme apontado por juristas, que impactam na sua interpretação e aplicação. Por outro lado, não se pode olvidar que a legislação ainda permite fundamentar argumentos de defesa que desloquem da figura do agente a responsabilidade pela violência cometida, atenuando a mesma mediante uma suposta “provocação” feminina, que seria entendida como responsável pelo descontrole masculino e que resulta em morte da mulher (feminicídio privilegiado).
A partir de um olhar psicanalítico acerca destes comportamentos violentos masculinos, resultantes de “forte emoção motivada por provocação”, observa-se a existência de aspectos da personalidade destes agentes que favorecem a ocorrência destes fenômenos, a saber: narcisismo e ciúme patológicos e intolerância à frustração.
Neste contexto, conforme apontam diversos autores, dentre os homens que cometem assassinato contra suas companheiras, esposas, namoradas, ou mesmo contra suas exs, é comum observar características de personalidade como autoestima exagerada (porém frágil), sentimentos de posse e objetificação da mulher, bem como dificuldades para aceitar revezes, rejeições e perdas,
Apesar destes aspectos que podem assumir características patológicas, é possível ponderar que não se trata de um funcionamento psicótico ou que impede a efetivação de um juízo crítico da realidade por parte desses agentes. Isso significa que, via de regra, eles fazem uma opção consciente pela aniquilação da vida dessas mulheres, que ousaram lhes dizer não ou que lhes feriram a autoestima e o orgulho manifestando interesse por outros homens, ou mesmo lhes dando menos atenção do que achavam que mereciam.
Outrossim, importante destacar que, partir da introdução da noção de inconsciente, a Psicanálise vem ampliar as possibilidades de compreensão e manejo dos agentes criminosos, a partir da mais alargada compreensão de sua realidade subjetiva. (Lacan, 1950/2003). Nas palavras de Ceccarelli (2013):
“(...) por buscar a verdade do sujeito, a psicanálise deve insistir na noção de responsabilidade, fundamental para o progresso da experiência humana. É por isso que a psicanálise do criminoso vai até onde a ação da polícia começa.” (p. 415)
O homicídio do tipo privilegiado, de um homem contra uma mulher com quem ele tem ou teve envolvimento amoroso envolve, portanto, via de regra, um agente imputável e, portanto punível. Por essa razão, torna-se necessário comedimento ao aplicar fatores de redução ou atenuação de pena nestes casos, relativos a estado emocional no momento da efetivação da conduta. Cabe aqui, portanto, a ponderação sobre os riscos de se enxergar o Direito meramente como ciência dogmática, desconsiderando-se o caráter relativo das normas penais diante do fenômeno criminal, e lidando com este apenas sob o vértice da legalidade.
Diversos autores apontam nesta direção, bem como destacam que o Feminicídio deve ser devidamente identificado e punido, não permitindo sua confusão com o homicídio privilegiado. Com isso, restam fortalecidas teses de que o homicídio “passional” deve ser visto como um crime hediondo e que se trata de crime muito mais frequentemente praticado por homens contra mulheres, não podendo ser visto como uma violência comum, mas como uma manifestação de violência de gênero.
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Bacharel em Direito pela UNAERP; psicóloga, mestre e doutora em Psicologia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da USP; atua como psicóloga judiciária no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GUIMARAES, NICOLE MEDEIROS. Feminicídio-privilegiado: reflexões sobre narcisismo e (in)tolerância à frustração Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 11 out 2022, 04:48. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/59506/feminicdio-privilegiado-reflexes-sobre-narcisismo-e-in-tolerncia-frustrao. Acesso em: 22 nov 2024.
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