SAMUEL CALDAS CARVALHO DE LIMA[1]
(coautor)
RESUMO: Este artigo aborda a atuação e importância do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) em referência à positivação dos direitos fundamentais dos menores, em especial no que concerne ao combate do trabalho infantil. Tem como objetivo apresentar o crescimento e a evolução histórica, social e jurídica dos direitos considerados essenciais dos menores, bem como discutir e analisar o uso de sua força de trabalho como base do desenvolvimento do Brasil. O problema consiste na concepção histórica e social enraizada do trabalho infantil irregular como sendo algo ainda aceitável no Brasil, e se a tentativa de transformar este pensamento, sobretudo no aspecto jurídico, especialmente com a entrada em vigor do ECA, obteve sucesso em garantir a evolução protetiva aos jovens e adolescentes. A justificativa se dá através da necessidade de gerar discussões e posteriores desconstruções de convicções e juízos de valores acerca dos direitos das crianças e dos adolescentes. A metodologia adotada foi a dedutiva. A técnica de procedimento foi a monográfica. Conclui-se que a figura do ECA, como principal instituto de combate ao trabalho infantojuvenil no país, é resultado da evolução social e normativa a este público ao longo da história, bem como do reconhecimento da importância da real efetivação de seus direitos fundamentais.
Palavras-chave: ECA. Direitos fundamentais. Trabalho infantil.
ABSTRACT: This article discusses the role and importance of the Child and Adolescent Statute (ECA) in reference to the affirmation of the fundamental rights of minors, especially with regard to the fight against child labor. Its objective is to present the growth and historical, social and legal evolution of the rights considered essential for minors, as well as to discuss and analyze the use of its workforce as a basis for the development of Brazil. The problem lies in the rooted historical and social conception of irregular child labor as something still acceptable in Brazil, and if the attempt to transform this thinking, especially in the legal aspect, especially with the entry into force of the ECA, was successful in guaranteeing the evolution protection for young people and adolescents. The justification is given through the need to generate discussions and subsequent deconstructions of convictions and value judgments about the rights of children and adolescents. The methodology adopted was deductive. The procedure technique was monographic. It is concluded that the figure of the ECA, as the main institute to combat child and youth labor in the country, is the result of the social and normative evolution of this public throughout history, as well as the recognition of the importance of the real realization of their fundamental rights.
Keywords: ECA. Fundamental rights. Child labor.
1. INTRODUÇÃO
O presente artigo propõe uma discussão teórica com base em textos normativos (Constituição Federal, Estatuto da Criança e do Adolescente e legislações esparsas), além de referenciais teóricos e doutrinários para embasar a pesquisa e análise acerca do tema referido.
Trata-se de um recorte bibliográfico que destaca a figura da criança e do adolescente frente ao trabalho infantil e à proteção que lhe são oferecidas, bem como a evolução da temática nas últimas décadas. Apresenta um breve apanhado histórico, mostrando o crescimento e aperfeiçoamento social e normativo que regulamentam os direitos e garantias do público infantojuvenil no Brasil. Adicionalmente, busca relacionar tal avanço com a perspectiva do trabalho irregular e da necessidade de se enfrentar essa realidade que ainda persiste no país, com vista a garantir materialmente os direitos fundamentais dos jovens em nossa nação.
2. CONTEXTO HISTÓRICO DO TRABALHO INFANTIL
Considerada um dos maiores clássicos da música sertaneja das últimas décadas, a canção “O Menino da Porteira”, composta por Teddy Vieira e Luís Raimundo, já foi regravada por inúmeros artistas e por mais de 60 anos é interpretada e reproduzida para o público brasileiro, transformando-se até em filme. A música conta a história de um boiadeiro que, quando passava por Ouro Fino, costumava se deparar com um menino que abria as porteiras da estrada para a passagem do gado em troca de algumas moedas. Um dia, o menino é fatalmente atacado por um boi, fato que abala profundamente o boiadeiro. Por mais ingênua que pareça a sua letra, o contexto da obra demonstra um cenário rural em que se verifica uma das muitas manifestações de trabalho infantil existentes no Brasil, ou seja, a criança, em virtude de seu trabalho, tem sua vida retirada a partir da realidade na qual está situada. O quadro proposto pela clássica toada sertaneja faz abrir uma discussão histórico- social que, por muito tempo, parecia camuflada: a violação aos direitos da criança e do adolescente assentada na efígie do trabalho infantil.
Desde a Idade Moderna, com o surgimento do capitalismo e as grandes alterações nos centros urbanos na Europa, a figura do trabalho passou a tomar o foco nas relações sociais que ali se estabeleciam, principalmente em virtude de um pensamento atrelado à questão do lucro, repúdio ao marasmo e a necessidade da salvação a partir do esforço próprio. Diante disso, a ascensão social conquistada com o próprio mérito, independentemente do sujeito e do contexto social em que este estivesse inserido, influenciou na ideologia do trabalho como fonte inesgotável e única de oferecer um sentido à vida humana, bem como sua libertação dos pecados mundanos e sua consequente salvação aos céus.
Frases populares como “o trabalho dignifica o homem” ou “todo esforço tem a sua recompensa” sustentam o viés ideológico trazido por Max Weber em sua obra “A ética protestante e o espírito do capitalismo”, o que explicava, àquela época, essencialmente para as classes mais vulneráveis, a necessidade compulsória de “vender” a sua força de trabalho em troca de condições minimamente dignas para sua sobrevivência.
Pois conformar e endireitar em relação a fins esse cosmos, que segundo a revelação da Bíblia e também segundo a razão natural está manifestamente talhado a servir à 'utilidade’ do gênero humano, permitem reconhecer como o trabalho a serviço dessa utilidade social [impessoal] promove a glória de Deus e, portanto, por Deus é querido. (Weber, 1905, p. 99)
Diante desse cenário, verifica-se que dentre elas encontravam-se crianças e adolescentes que trabalhavam muitas vezes em condições idênticas aos adultos e nas mesmas condições degradantes a que estes eram submetidos. Naquela época, como se verifica nas cidades inglesas durante a Revolução Industrial ou na França antes das revoluções liberais, o público infantojuvenil não possuía nenhuma garantia ou direito para sua proteção quanto às questões trabalhistas, fruto de um pensamento objetificante do qual se tornavam meras propriedades barateadas e de fácil exploração por parte dos empregadores. Até mesmo em tempos mais antigos, o problema já se destacava.
[...] na Idade Média, entre os portugueses e outros povos da Europa, a mortalidade infantil era assustadora, verificando-se que a expectativa de vida das crianças rondava os 14 anos, fazendo com que estas fossem consideradas na época como animais, cuja força de trabalho deveria ser aproveitada enquanto durassem suas vidas. (Ramos, 1999, p. 20)
No Brasil, por mais que ainda não existisse até a metade do século XX uma sociedade trabalhista voltada ao ambiente urbano e laboral, a figura da criança e do adolescente não era muito diferente no que se refere ao seu posicionamento social. O que mudava era o local de trabalho e o regime trabalhista: em vez da fábrica e do modo assalariado (isso quando eram remuneradas), o “menor” na nação verde e amarela vivia sob a égide escravista e agrária, em que, sejam indígenas (inicialmente) ou escravos negros, possuíam as mesmas duras responsabilidades, utilizando sua força de trabalho como único meio de sobrevivência frente à opressão lusitana.
Numa terra em que praticamente inexistia fundamento jurídico-legal para asseguração de direitos fundamentais à população brasileira, seria inviável que se pensasse numa proteção e garantia especial às faixas etárias menores. Em vista disso, observa-se como uma das preocupações iniciais a Lei do Ventre Livre (1871), considerada um marco no processo de abolição da escravidão no Brasil. Ali já se observava, além da clara necessidade de superação do modelo escravista, a busca por uma proteção e defesa dos direitos das crianças, libertando os filhos das mulheres escravas nascidos no Brasil a partir da data da aprovação da lei.
A partir da implantação da República, já no final do século XIX, observa-se uma evolução gradual da temática trabalhista em respeito ao público infantojuvenil: em 1891, foi promulgada no Brasil a primeira lei – Decreto nº 1.313 – que determinava a idade mínima de 12 anos para o trabalho. Em 1927, teve a promulgação do Código de Menores, o primeiro documento legal para população com menos de 18 anos, conhecido como Código Mello Mattos, proibindo o trabalho de crianças até 12 anos e o trabalho noturno aos menores de 18, além de vedar, para menores de 14 anos, o exercício de emprego em praças públicas.
Em 1943, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) representou um enorme avanço social na luta e defesa dos direitos trabalhistas, pois regulamentou o trabalho de aprendizes no mercado de trabalho, reconhecendo o menor aprendiz como o adolescente com mais de 14 e menos de 18 anos “sujeito à formação profissional e metodológica do ofício em que exerça seu trabalho”.
Outros inúmeros instrumentos normativos foram conduzidos em torno do menor de 18 anos para a asseguração de seus direitos fundamentais, mas foi somente em 1988, com a promulgação da Constituição Federal do Brasil, que a figura da criança e do adolescente passa a mudar vertiginosamente, elevando, em seu art. 7°, XXXIII, para 16 anos a idade mínima para o trabalho, abrindo exceção para os aprendizes (14 anos). O trabalho noturno, perigoso ou insalubre foi proibido para menores de 18 anos. Portanto, fica claro que a questão trabalhista para menores no Brasil conquistou um enorme passo ao ser consagrada como sendo um direito e uma garantia fundamental, a fim de assegurar o princípio basilar da dignidade da pessoa humana como vetor principal no desenvolvimento da sua população.
3. A CONSTITUIÇÃO FEDERAL E O ECA COMO PROTAGONISTAS
Com a entrada em vigor da Constituição Federal de 1988, as crianças e os adolescentes no Brasil passaram a ser visualizados não mais como meras propriedades do Estado ou das famílias, quando estas, anteriormente, tinham grande liberdade para intervir irrestritamente em todas as áreas da vida do menor. Tal concepção era baseada sobretudo na chamada Doutrina da Situação Irregular, então vigente instituída pelo Código de Menores de 1979, quando se buscava restringir determinados direitos àqueles menores que representavam um determinado risco à ordem social, pouco se importando com medidas preventivas ou de inclusão social.
A partir da nova Carta Magna, fica expressa a Doutrina da Proteção Integral, definindo crianças e adolescentes como legítimos titulares de direitos e tendo prioridade absoluta na sua proteção, passando a ser dever da família, da sociedade e do Estado. Nessa perspectiva, tem- se:
“um novo modelo, universal, democrático e participativo, no qual família, sociedade e Estado são partícipes e cogestores do sistema de garantias que não se restringe à infância e juventude pobres, protagonistas da doutrina da situação irregular, mas sim a todas as crianças e adolescentes, pobres ou ricos, lesados em seus direitos fundamentais de pessoas em desenvolvimento”. (Maciel, 2018, p.42)
Diante do exposto, percebe-se que a referida proteção é abrangente e aplica-se aos demais ramos do direito. No que tange ao direito trabalhista, compreende o direito à profissionalização, ao desenvolvimento de programas de integração social do adolescente portador de deficiência, observância à idade mínima para o ingresso ao trabalho, garantia de direitos previdenciários e trabalhistas, bem como ao acesso à escola (OLIVA, 2006).
Compreende-se desta nova doutrina a perspectiva de que crianças e adolescentes estão em peculiar condição de pessoas humanas em desenvolvimento, ou seja, encontram-se em situação especial e de maior vulnerabilidade que as fazem necessitar de um regime especial de salvaguarda, o que lhes permite construir suas potencialidades humanas.
É nesse viés que adentra a figura do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), promulgado em 1990 e que regulamenta os direitos, deveres e medidas necessárias para a proteção integral destes jovens, agora em conformidade com o art. 227 da Constituição Federal e às realidades sociais que a ensejaram. Os arts. 3º e 4º do ECA estabelecem as diretrizes gerais através das quais as crianças e adolescentes são legitimadas a possuir direitos seus (subjetivos), estes considerados como fundamentais a partir da Constituição de 1988, na efetiva proposição de um Estado Democrático de Direito que faça sobressair o respeito à dignidade da pessoa humana.
A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando- se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade. (ECA, 1990, Art. 3)
Os direitos enunciados nesta Lei aplicam-se a todas as crianças e adolescentes, sem discriminação de nascimento, situação familiar, idade, sexo, raça, etnia ou cor, religião ou crença, deficiência, condição pessoal de desenvolvimento e aprendizagem, condição econômica, ambiente social, região e local de moradia ou outra condição que diferencie as pessoas, as famílias ou a comunidade em que vivem. (ECA, 1990, Art. 3, § Único)
É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. (ECA, 1990, Art. 4)
A condição peculiar de pessoa em desenvolvimento pode ser entendida como a admissão de que as crianças e adolescentes estão em situação de alta vulnerabilidade, são indivíduos que ainda não desenvolveram totalmente a sua personalidade, e por essa razão precisam de proteção integral. Sobre o tema, aborda Martha de Toledo Machado:
A meu ver, crianças e adolescentes merecem, e receberam, do ordenamento jurídico brasileiro esse tratamento mais abrangente e efetivo porque, à sua condição de seres diversos dos adultos, soma-se a maior vulnerabilidade deles em relação aos seres humanos adultos [...].
De outro lado, a maior vulnerabilidade de crianças e adolescentes, quando comparados aos adultos, é outro truísmo: se a personalidade daqueles ainda está incompleta, se as potencialidades do ser humano nas crianças ainda não amadureceram até seu patamar mínimo de desenvolvimento, são elas mais fracas; tanto porque não podem exercitar completamente suas potencialidades e direitos, como porque estão em condição menos favorável para defender esses direitos. (MACHADO, 2003, p. 119, grifos do autor)
4. DO DIREITO À PROFISSIONALIZAÇÃO E À PROTEÇÃO NO TRABALHO
A temática do trabalho infantil é abordada diretamente pelo ECA em seus arts. 60 até o 69, quando trata do direito à profissionalização e à proteção do trabalho. Assim como dispõe a Constituição Federal, reproduz a proibição de qualquer tipo de trabalho a menores de 14 anos, salvo na condição de aprendiz (art. 60). Aqui se verifica a exata compreensão de evitar à criança e ao adolescente condições indesejadas e desgastantes à sua formação e desenvolvimento, visto que a perspectiva da maior vulnerabilidade do menor e de seu status ainda em construção oferece uma proteção que o ampara ao desenvolvimento de suas habilidades ainda na infância, o que não condiz com a prática trabalhista.
A obrigatoriedade de uma educação pública gratuita, bem como seu desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência, traz subsídios para que o trabalho desses jovens não se legitime de forma erga omnes. Importante destacar a figura do art. 16 do ECA, em seu inciso IV, reverberando como um dos direitos da liberdade da criança e adolescente o “brincar, praticar esportes e divertir-se”. Katia Regina Ferreira destaca bem a importância deste inciso:
a liberdade de brincar, praticar esportes e se divertir, com respeito à sua peculiar condição de pessoa em desenvolvimento, é liberdade de ser criança e adolescente. Os esportes são importantes para o desenvolvimento motor, físico e integração social de crianças e jovens. Atividades lúdicas, como brincar e se divertir, integram e permitem experiências que se refletem no amadurecimento paulatino da criança e do adolescente. (Maciel, 2018, p.81)
Desse modo, fica evidente a incoerente prática trabalhista para os menores de 16 anos, acertadamente definida pela própria Constituição e reproduzida pelo ECA, uma vez que uma criança que se sujeite ao trabalho como condição de sustento nega a si mesma direitos fundamentais consagrados historicamente, pondo em risco sua educação e liberdade, alicerces do seu desenvolvimento infantojuvenil. Com efeito, relata a procuradora Giselle Alves de Oliveira, do Ministério Público do Trabalho de São Paulo que “o respeito aos direitos humanos fundamentais das crianças e adolescentes e o combate ao trabalho infantil é um desafio de todos, principalmente do Estado Brasileiro”.
É nessa esteira dúplice de garantir aos mais jovens a plena efetivação de seus direitos fundamentais durante a sua infância e adolescência, resguardando a sua dignidade enquanto pessoa humana, e promover uma qualificação adequada e condizente com as exigências do mercado de trabalho, que tais direitos são imprescindíveis na legitimação do combate ao trabalho infantil, de modo a salientar que:
[…] o direito à profissionalização objetiva proteger o interesse de crianças e adolescentes de se preparem adequadamente para o exercício do trabalho adulto, do trabalho no momento próprio; não visa o próprio sustento durante a juventude, que é necessidade individual concreta resultante das desigualdades sociais, que a Constituição visa reduzir. (Machado, 2003, p.188)
Nessa perspectiva fica explícita a importância de uma preparação adequada aos jovens antes de adentrarem no mundo do trabalho, sendo de responsabilidade conjunta do Estado, família e sociedade a primazia de desenvolvê-los e aperfeiçoá-los de acordo com suas potencialidades, de modo que não restrinjam suas garantias individuais a que tem direito durante a infância e adolescência. Considera-se, nesse sentido, o trabalho infantil, nos moldes de única opção de vida e como sustento e sobrevivência aos menores uma forma de violação aos direitos humanos e umas das claras manifestações das desigualdades sociais que isto reflete, caracterizando a negligência do Poder Público, do poder familiar e do corpo social, que não puderam colocar em prática o que propõe a Constituição Federal e o ECA.
5. O TRABALHO INFANTIL NO BRASIL: DADOS E MODALIDADES
Segundo dados do PNAD - Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios -, entre 1992 e 2015, 5,7 milhões crianças e adolescentes de cinco a 17 anos deixaram de trabalhar no Brasil, o que significou uma redução de 68%. Entretanto, ainda existem cerca 2,4 milhões de pessoas nessa condição, sendo as regiões Nordeste (33%) e Sudeste (28,8%) com a maior concentração de jovens trabalhando nessa faixa etária.
Além disso, existe um rol de trabalhos que se enquadram como piores formas de exploração da mão de obra infantojuvenil; e, segundo Perez (2008), algumas modalidades são mais incidentes e frequentemente usadas no território brasileiro, podendo ser averiguadas, por exemplo, o trabalho doméstico, rural e urbano.
Quando se fala do trabalho doméstico, entre 2012 e 2013, de acordo com a avaliação dos dados da Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílio realizada pelo IBGE, houve uma redução de 17,6% no número de trabalhadores infantojuvenis ocupados nos serviços domésticos no Brasil. De 42,2 milhões de crianças e adolescentes brasileiros, entre 5 a 17 anos de idade em 2013, 3,2 milhões trabalhavam, e destas, 213.613 (6,7%) desempenhavam serviços domésticos (FNPETI, 2015).
Já quanto ao trabalho rural, segundo notícia publicada pela Empresa Brasil de Comunicação S/A - EBC, em 2014, mais de 3 milhões de crianças e adolescentes de 5 a 17 anos estavam trabalhando; e, dessas, mais de 62% estavam concentradas no setor agrícola (MARTINS, 2016).
Ademais, pode ser constatada a figura do trabalho urbano, essa com condições degradantes ao trabalho nas grandes cidades. Nesse contexto:
São muitos e graves os riscos para as crianças que desempenham atividades contidas na Lista TIP. No trabalho como vendedoras ambulantes nas ruas e outros logradouros públicos, por exemplo, elas estão sujeitas a violência, drogas, assédio sexual e tráfico de pessoas; e a exposição à radiação solar, chuva, frio, acidentes de trânsito e atropelamento. Nas borracharias, são submetidas a esforços físicos intensos e expostas a produtos químicos, antioxidantes, plastificantes e calor. Na lida dos lava-jatos, crianças e adolescentes estão em constante contato com solventes, neurotóxicos, névoas ácidas e alcalinas. Já os que trabalham como carregadores em feiras livres estão sujeitos a padecer de bursites, tendinites, sinovites, escolioses, lordoses e outras doenças músculo-esqueléticas decorrentes do intenso esforço físico. “Esses pais [que estimulam os filhos a trabalhar] desconhecem os graves prejuízos que o trabalho precoce ocasiona aos seus filhos, como a dificuldade de aprender, a defasagem e a evasão escolar, os danos físicos ao corpo ainda em desenvolvimento e os danos psicológicos”, alerta Paula. (DURAN, 2013)
6. O PROJETO DE LEI 237/2016: MAIOR RIGOR NO COMBATE AO TRABALHO INFANTIL
Em 2016, entrou em discussão o Projeto de Lei do Senado (PLS) nº 237/2016, de autoria do senador Paulo Rocha (PT-PA), que criminaliza a exploração do trabalho infantil, modificando o Código Penal para tipificá-lo como crime. Pela proposta, será considerado crime “explorar, de qualquer forma, ou contratar, ainda que indiretamente, o trabalho de menor de 14 anos”. A pena pode variar de dois a oito anos de reclusão, mais multa. Esse projeto apresenta duas exceções: trabalho infantil doméstico dentro do seio familiar e também no campo (visa proteger famílias de baixa renda, desde que se verifique a adequada utilização do menor nas suas práticas laborais) e participação infantojuvenil em atividades artísticas, desportivas, estudos e outras semelhantes, devendo ser autorizadas por uma autoridade judiciária competente e respeitando os direitos previstos pelo ECA.
Tal medida visa a coibir a exploração do trabalho infantojuvenil independente da espécie praticada, uma vez que a penalidade se dá, hoje em dia, apenas com multas e os responsáveis não são presos, a menos que as atividades configurem crime pela sua própria natureza, a exemplo de trabalho escravo, exploração sexual e tráfico de drogas.
Percebe-se que o projeto de lei é fruto de uma visão mais rigorosa e atenta às questões trabalhistas na seara infantil, justamente integrada à ótica da proteção integral e prioridade oferecida ao menor, em razão de sua vulnerabilidade social e a necessidade de evitar práticas ilícitas que afetem os direitos da criança e do adolescente. Atualmente, o projeto de lei ainda está em trâmite no Congresso Nacional.
7.CONCLUSÃO
Os objetivos foram atingidos, na medida em que se apresentou um retrospecto histórico, social e jurídico do trabalho infantil no Brasil, que foi uma das bases para o desenvolvimento do país. Havia a prevalência de relações de trabalho precarizadas para os adultos, mas sem poupar as crianças. O ECA, portanto, vem garantindo de fato uma evolução protetiva material aos jovens e adolescentes, porém avanços desta ordem não ocorrem abruptamente, demandam tempo para transformar uma concepção social enraizada, negativa, em valores sociais positivos.
Dessa modo, resta evidenciado que o trabalho é um direito social enaltecido pela Constituição Federal, mas que não pode ser praticado antes da idade mínima estabelecida por lei. Se realizado desde cedo interfere na saúde, educação, desenvolvimento natural e diversas outras formas na vida da criança e do adolescente, o que reforça o caráter público de sua análise e investigação.
No entanto, mesmo com todos os limites legais abordados pela proteção à criança e ao adolescente, o trabalho infantil ainda é um conflito de muitos países, dentre eles o Brasil. A problemática inclui a exploração da mão de obra infantojuvenil e seu liame frente a questões econômicas, culturais e sociais que precisam ser superadas.
Tal realidade, enraizada num país munido de desigualdades sociais estruturantes e massivas, não poderia ser, em tão pouco tempo (mais de 30 anos de vigência do ECA), eliminada de uma realidade social e histórica que se perpetua no Estado brasileiro desde a sua formação. Nesse contexto, a força normativa da Constituição Federal e sua consequente regulamentação através do ECA no que tange à proteção dos direitos de crianças e adolescentes, mais precisamente no combate ao trabalho infantil, mostra-se fundamental na composição desse cenário de evolução, principalmente na proposição de ações jurídicas que visem à sua materialização.
Colocar uma criança ou adolescente em situação de trabalho, além de reforçar as diferenças sociais existentes no tecido social, retira delas sua condição de titulares de direitos fundamentais, além de ferir o ordenamento jurídico e os princípios basilares que o compõem, como a dignidade da pessoa humana.
É nessa perspectiva que ganha importância o ECA e a própria Constituição Federal nas últimas décadas, vindo a legitimarem juridicamente o resguardo dos direitos fundamentais dos menores, além de definirem como o próprio direito deve entender e agir em situações de inconformidades. Contudo, não basta só a atuação do legislador, é necessário, como o próprio art. 227 da Constituição Federal consagra, uma ação conjunta do Estado (em suas três esferas: legislativo, executivo e judiciário), da família e da sociedade, por meio de políticas públicas, assistencialismo, medidas protetivas, medidas socioeducativas e outras que visem a efetivar a condição do menor como real detentora de direitos.
Fica claro, portanto, que as políticas públicas voltadas a essa temática, ainda que sejam discretas e bem reduzidas, são essenciais para garantir uma maior eficácia aos atos normativos referentes ao assunto, leis estas que, aparentemente, após uma lenta evolução histórica, compreendem e assimilam a real importância do público infantojuvenil como detentores de direitos fundamentais. É sob esse jaez que a sociedade e as leis devem continuar evoluindo, para que mais “meninos da porteira”, aqueles da música de Teddy Vieira e Luís Raimundo, não sejam mais vítimas de uma triste realidade social que macula as garantias constitucionais e fundamentais de muitos jovens ao redor do país.
REFERÊNCIAS
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[1] Bacharel em Administração – UEMA, Mestrado em Energia e Ambiente – PPGEA/UFMA, Graduando em Direito pela UEMA e Coordenador de Prospecção e Aceleração da Inovação (CPIN) da Agência de Inovação e Empreendedorismo da UFMA (AGEUFMA
Graduando em Direito pela Universidade Estadual do Maranhão - UEMA.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LOPES, Adriano França. O Menino da Porteira: a figura do Estatuto da Criança e do Adolescente no combate ao trabalho infantil Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 01 nov 2022, 04:40. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/59745/o-menino-da-porteira-a-figura-do-estatuto-da-criana-e-do-adolescente-no-combate-ao-trabalho-infantil. Acesso em: 22 nov 2024.
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