RESUMO: O presente trabalho tem como objetivo o estudo e análise das nulidades processuais penais, dentro do Estado Democrático de Direito. No direto brasileiro, a nulidade do ato do procedimento está vinculada à comprovação do prejuízo. Na realidade, o entendimento daquilo que de fato configura “prejuízo” para efeitos do artigo 563 do Código de Processo Penal se perdeu em meio a decisões controversas e confusas acerca do tema. O que a presente pesquisa busca é demonstrar as imperfeições do tratamento dado às nulidades e encontrar um referencial seguro para aplicação das nulidades a partir da noção principiológica do processo constitucional.
Palavras-chave: Estado Democrático de Direito. Forma. Ato processual. Nulidades processuais penais. Regra do prejuízo.
SUMÁRIO: Introdução. 1 Estado Democrático de Direito. 2 O Processo como Garantia Constitucional. 3 dos Atos Processuais. 3.1 Da Existência, Eficácia e Validade dos Atos Processuais. 4 dos Sistemas Elaborados para Definição das Nulidades Processuais. 4.1 Sistema do Absolutismo da Lei. 4.2 Sistema da Equidade. 4.3 Sistema da Má Fé. 4.4 Sistema da Distinção das Formas. 4.5 Sistema da Finalidade da Lei e do Prejuízo. 5 Princípios Gerais da Teoria das Nulidades. 5.1 Princípio da Instrumentalidade das Formas. 5.2 Princípio do Interesse. 5.3 Princípio da Causalidade. 6 O Tratamento do Prejuízo No Código de Processo Penal. 7 do Interesse na Alegação da Nulidade. 8 Das Nulidades em Fase de Inquérito Policial. 9 A Releitura das Nulidades no Processo Penal Brasileiro. 10 Conclusão.
INTRODUÇÃO
A forma como o tema das nulidades é abordado no âmbito do processo penal brasileiro é vaga, imprecisa e deixa uma margem muito grande para interpretação do julgador. Logo, a necessidade de revisão do tema é medida urgente.
O corte a ser problematizado é o princípio do prejuízo ou critério do prejuízo para o reconhecimento das nulidades no processo penal, principalmente porque a legislação processual em vigor o adota expressamente. Por isto, foi necessário demonstrar a origem do sistema que adotou o critério do prejuízo para caracterização das nulidades processuais, bem como se a interpretação que se dá a ele é compatível com o Estado Democrático de Direito e com o modelo constitucional de processo traçado na Constituição.
Dentro dessa perspectiva, o papel da forma dos atos dos procedimento será analisado, além de se demonstrar a incompatibilidade das os autores definições tradicionalmente fazem sobre o tema, principalmente quanto à gradação dos vícios entre os atos inexistentes, irregulares e nulos.
O presente estudo, destarte, tem como objetivo central o estudo da regra do prejuízo e seus efeitos para a correta compreensão do tema das nulidades. Parte-se do pressuposto de que o princípio pas de nullité sans grief está sendo mal aplicado no processo penal, passando-se, então, a pesquisar as razões que poderiam explicar os motivos para essa equivocada utilização.
Exposta a maneira pela qual o tema é tratado pela doutrina, entende-se que, com essa pesquisa, além de se promover uma releitura do conceito de nulidades no processo penal, é necessário também avaliar se as definições tradicionais e legais se coadunam com o quadro normativo processual instaurado com a Constituição Federal de 1988.
1. ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
O Estado Democrático de Direito é a modalidade do Estado constitucional e internacional de direito que, com o objetivo de promover e assegurar a mais ampla proteção dos direitos fundamentais, tem na dignidade da pessoa humana o seu elemento nuclear e na soberania popular, na democracia e na justiça social os seus direitos [1]
Na visão de Canotilho (2003, p. 231), “o Estado constitucional é também um Estado democrático. A legitimidade do domínio político e a legitimação do exercício do poder radicam na soberania popular e na vontade popular”.
Quando lemos o artigo 1º da Constituição de 1988, é clara a afirmativa de que a República Federativa do Brasil se constitui em Estado democrático de Direito, não como mera promessa de organizar tal Estado, pois a Constituição aí já o está proclamando e fundando. A Constituição portuguesa instaura o Estado de Direito democrático, com o "democrático" qualificando o Direito, e não o Estado. Essa é uma diferença formal entre ambas as constituições. A nossa emprega a expressão mais adequada, cunhada pela doutrina, em que o "democrático" qualifica o Estado, o que irradia os valores da democracia sobre todos os seus elementos constitutivos e, pois, também, sobre a ordem jurídica. O Direito, imantado por esses valores, se enriquece do sentir popular e terá de se ajustar ao interesse coletivo.
Nesse sentido, quando se estuda a proposta constitucional brasileira, verifica-se claramente que os direitos fundamentais são assegurados pelo devido processo e consequentemente, ao analisar o Estado Democrático de Direito, fala-se em uma estrutura que se mantém sempre aberta à revisão.
2. O PROCESSO COMO GARANTIA CONSTITUCIONAL
Importante tratar, dentro do conceito de Estado Democrático, da concepção de processo como relação jurídica entre juiz e partes, de que decorre, inclusive, a Escola Instrumentalista do Processo.
A teoria do processo como relação jurídica entre juiz e partes não nos parece adequada ao Estado Democrático de Direito, em razão do enaltecimento da figura do juiz em detrimento dos outros sujeitos do processo.
A Escola Instrumentalista do processo, que foi divulgada no Brasil por Enrico Tulio Liebman, Ada Pelegrini e por Cândido Rangel Dinamarco, é fruto da influência de Bülow e de sua concepção relacionista de processo. A Escola Instrumentalista também nos parece inadequada ao cenário democrático, uma vez que na visão dos instrumentalistas, o juiz é um ser dotado de capacidade intelectiva para impor o direito às partes, já que ele , através da sua visão solipsista do direito, tem por esta razão, a possibilidade de fundamentar sua decisão com argumentos metajurídicos (econômicos, sociais e políticos), não ficando adstrito à argumentação trazida pela parte no processo por meio do contraditório que, neste contexto é entendido como o simples dizer ou contradizer, sem influência sobre a atuação do juiz.
Em razão de tais objetivos metajurídicos do processo, admite-se, portanto, uma atuação livre do magistrado.
Danilo Chimera Piotto[2], afirma que “Em verdade, o juiz é a figura central do processo, e deve participar ativamente da relação jurídica que nele se desenvolve, equilibrando as partes e permitindo a efetivação do devido processo legal. Ao Estado cabe a pacificação social com justiça, escopo que se não atingido implica na ruína de todo um sistema.
Contudo, foi com Elio Fazzalari, que o conceito de processo, como procedimento em contraditório foi renovado, o contraditório, como estrutura dialética do procedimento, onde as partes participam, em igualdade de condições, da elaboração do provimento final, não sendo, assim, o juiz o único responsável pelo provimento final.
Acerca da teoria de Fazzalari, é o ensinamento de Rosemiro Pereira Leal:
O ilustre processualista explicitou que o processo não se define pela mera sequência, direção ou finalidade dos atos praticados pelas partes ou pelo juiz, mas pela presença do atendimento do direito ao contraditório entre as partes, em simétrica paridade, no procedimento que, longe de ser uma sequência de atos exteriorizadores do processo, equivalia a uma estrutura técnica construída pelas partes, sob o comando do modelo normativo processual[3].
Como complementação da teoria de Fazzalari, tem-se a teoria constitucionalista do processo, que não afasta a alegação de ser o processo um procedimento em contraditório, apenas acrescentando que seria o processo também uma garantia ao exercício dos direitos fundamentais, o que concede ao processo uma perspectiva constitucional.
Segundo Brêtas,
a teoria estruturalista de Fazzalari carece de alguma complementação pelos elementos que compõe a teoria constitucionalista, porque a inserção do contraditório no rol das garantias constitucionais decorre da exigência lógica e democrática da coparticipação paritária das partes, no procedimento formativo da decisão jurisdicional que postulam no processo, razão pela qual conectada está à garantia também constitucional da fundamentação das decisões jurisdicionais centrada na reserva legal, condição de efetividade e legitimidade democrática da atividade jurisdicional constitucionalizada.[4]
Consoante José Alfredo de Oliveira Baracho, somente nas Constituições do século XX a concepção de processo como garantia constitucional está consolidada por meio da “consagração de princípios de direito processual, com o reconhecimento e a enumeração de direitos da pessoa humana, sendo que esses se consolidam pelas garantias que os torna efetivos e exequíveis”.
No entanto, parte da doutrina e dos aplicadores do direito continuam atrelados à visão instrumentalista do processo, reconhecendo-o como uma relação jurídica e conferindo um excesso de poderes ao julgador.
Assim, a Constituição desempenha papel relevante e imprescindível, ao estabelecer os princípios que constituem a base uníssona conexa e codependente – contraditório, ampla defesa, terceiro imparcial e fundamentação das decisões que integram a garantia do devido processo constitucional.
3. DOS ATOS PROCESSUAIS
O anteprojeto do Código de Processo Penal, originalmente definia, em seu artigo 179, o ato processual, como sendo “todo acontecimento natural que tem influência no processo”, mas o Código de Processo Penal, efetivamente, não cuidou de conceituar exatamente o ato processual.
O conceito do termo deve ser extraído implicitamente do diploma legal e da doutrina, até mesmo para definir aquilo que pode estar sujeito como ato propriamente do processo, à aferição do pas de nullité sans grief como pressuposto para aplicação da sanção de nulidade.
O ato processual é espécie da qual ato jurídico é gênero. Portanto, o ato processual, assim como qualquer ato jurídico, nasce da vontade do ser humano, ou, como afirma Calmon de Passos, “podemos distinguir no gênero fato, fato natural, em que o agente causador é algo que não o homem, do fato do homem, chamado de ato, justamente por ser agente causador da transformação ocorrida.”[5]
Grande parte dos problemas relacionados às nulidades está na equiparação dos atos jurídicos, frequentemente defendida. Com efeito, a aplicação de uma espécie de teoria geral dos atos faz com que conceitos do direito privado sejam transportados diretamente para o processo penal.
Antonio do Passo Cabral[6] afirma que é necessária a separação entre o estudo dos atos, mormente porque o processo, ramo do direito público, deve conviver com especificidades normativas não encontradas no direito privado, onde há uma autonomia individual muito maior.
Embora estreitamente ligado ao processo civil, o doutrinador italiano Salvatore Satta, defende que o ato processual constitui elemento indissolúvel do próprio processo, sendo certo que ao se examinar o diploma processual verifica-se que determinado ato se reveste de processualidade. Dessa forma, o ato seria processual justamente porque é “ato do processo”
Há também quem entenda que o critério de loco (sede) é inapto a distinguir o ato processual, sendo possível haver atos processuais praticados fora do processo. Para apoiar essa posição, normalmente são mencionados os exemplos da cláusula arbitral ou mesmo da transação, os quais seriam atos processuais cíveis praticados fora do processo.
É necessário afastar a ideia de que o ato processual, sobretudo na área penal, pode ser definido pela sede, ou seja, apenas pelo fato de ter sido ele praticado dentro do processo. E é necessário lembrar que os atos de investigação levados a efeito no decorrer do inquérito policial também se enquadram na categoria de atos processuais. Assim, ainda que praticados na fase pré- processual, estão englobados pela definição de ato processual.
Não é de hoje que os tribunais pátrio se inclinam pela tese de que, por ser supostamente um procedimento administrativo, o defeito cometido no inquérito policial não acarreta a nulidade do ato, ou, ainda, que eventuais nulidades cometidas no curso da investigação não contaminariam atos posteriores, na ação penal.
Esse entendimento não deve prosperar. Como veremos detalhadamente adiante, o modo de conduzir o inquérito policial não é absolutamente discricionário, pois isso poderia resultar em uma espécie de terra de ninguém. A investigação policial, além de ser um momento, em toda persecução penal, em que muitas vezes as garantias fundamentais do indivíduo estão mais vulneráveis, os elementos informativos colhidos nessa fase são de extrema importância para desenvolvimento da ação penal.
Paolo Tonini[7] define brilhantemente que ato processual penal, é aquele produzido por um sujeito processual e cuja finalidade é a imposição de uma medida penal. Muito embora aparentemente simples, essa definição torna possível enfrentar as consequências relativas aos vícios do ato processual.
3.1. DA EXISTÊNCIA, EFICÁCIA E VALIDADE DOS ATOS PROCESSUAIS
Araken de Assis[8] dispõe que “na verdade, sem a exata distinção dos planos de inexistência, da invalidade e da ineficácia, jamais se chegará a soluções convincentes nesta matéria”.
O ato existe juridicamente quando reúne os requisitos mínimos necessários para a sua composição. Assim, não será a ausência qualquer requisito que ensejará a sua inexistência jurídica, mas somente aqueles inerentes e essenciais à sua estrutura. A validade do ato diz respeito à eficiência com que os seus requisitos foram preenchidos.
Segundo Fredie Didier, “se houver o preenchimento da hipótese de incidência (previsão do fato em enunciado normativo) de maneira deficiente, surgira defeito que pode autorizar a nulificação do ato (invalidação, que se refere tanto à decretação do nulo quanto a anulação)”[9]. Além disso, ao concebermos o ato como viciado já pressupomos que ele existe. Prossegue o autor, afirmando que “o ato jurídico inválido existe. Ato inexistente não tem defeito”. Como o ato inválido existe, este pode produzir efeitos até a sua desconstituição e isso que ocorre com as invalidades no âmbito processual. Nem todo defeito acarretará a invalidação do ato.
No que tange à eficácia, a doutrina diverge se o referido termo diz respeito à efetiva produção de efeitos ou à aptidão para produzi-los. Com relação ao primeiro sentido do termo, Tereza Arruda Alvim Wambier anota que eficácia “terá o sentido de efetiva produção dos efeitos típicos”, ou seja, aqueles efeitos “queridos pelo agente”.
No entanto, é tecnicamente mais adequado o posicionamento de José Carlos Barbosa Moreira, segundo o qual o termo eficácia pode ser entendido como a “aptidão, in abstracto, para gerar efeitos próprios e pode dizer respeito aos efeitos que podem ser produzidos in concreto, numa perspectiva potencial e atual, respectivamente”.
Como se vê, validade e eficácia são fenômenos totalmente distintos. Pode ocorrer, por exemplo, que um ato nulo nunca venha a ser decretado como tal e que, em virtude disso, tenha sido eficaz por toda a sua vida. Nessa linha de raciocínio, Adolfo Gelsi Bidart comenta que: “dizer, seguindo o velho adágio, que nulo é o que não produz efeitos, implica tomar a consequência por antecedente, designando o fenômeno por forma indireta, com menção aos resultados que provoca”. Nesse mesmo sentido, José Joaquim Calmon de Passos: “o ato processual típico é o que se ajusta, com perfeição, ao modelo legal. A atipicidade é a imperfeição do ato. O ato imperfeito é eficaz (ato irregular) e somente perde a eficácia que lhe é própria quando judicialmente sancionado com a nulidade”.
Essas noções são conceitos lógico-jurídicos, ou seja, independem do direito positivo que se examina. São premissas construídas pela dogmática jurídica, aplicando-se, portanto, ao direito processual geral.
4. DOS SISTEMAS ELABORADOS PARA DEFINIÇÃO DAS NULIDADES PROCESSUAIS
Para entender o modelo vigente no Código de Processo Penal brasileiro e suas especificidades, é necessário analisar brevemente os principais sistemas teóricos sobre as nulidades processuais, que são elencados pela doutrina de Inocêncio Borges da Rosa em cinco sistemas.
4.1. SISTEMA DO ABSOLUTISMO DA LEI
Esse sistema é originário do Direito Francês com base na ideia de que não haveria possibilidade do reconhecimento judicial de uma nulidade processual se não houvesse a previsão na lei autorizando o juiz ou tribunal a aplicar tal consequência. Logo, prevalecia a regra de que não há nulidades sem previsão legal.
Muito embora as leis regulem formalmente os procedimentos, nos diversos microssistemas, seria impossível prever todas as formas de inobservância das regras procedimentais antes de sua violação. Esse sistema não chegou a ser contemplado no Brasil.
4.2. SISTEMA DA EQUIDADE
A doutrina cataloga a existência do sistema da equidade como forma de definição das nulidades processuais.
Inocêncio Borges da Rosa afirma que, “a nulidade deve ser apreciada pelo Juiz, caso a caso, segundo os preceitos da equidade”.
Esse sistema não encontra legitimidade no Estado de Direito, já que a definição da nulidade seria tarefa exclusiva do juiz no julgamento de sua equidade.
43. SISTEMA DA MÁ FÉ
Somente haverá nulidade quando houver má-fé da parte contrária ao praticar um ato processual irregular.
Desconsidera-se totalmente que a demonstração de má-fé em direito é ônus exclusivo de quem alega. Assim, acaso houvesse a prática de um ato processual contrário à forma, chegaríamos a risível situação de exigir o ônus probatório da parte processual contrária que praticou o ato viciado.
4.4. SISTEMA DA DISTINÇÃO DAS FORMAS
Esse sistema distingue os atos processuais entre intrínsecas ou essenciais, das extrínsecas ou acidentais.
Ao ver de Inocêncio Borges da Rosa, na falta das formas intrínsecas, não haveria que se falar em nulidade, eis que o ato é tido como inexistente, mas, no caso da falta das fórmulas extrínsecas, deve ser verificado se a lei prescreveu essa violação como passível de nulidade.
Aqui não se indaga a existência de prejuízo para o processo, ou para as partes, ou para o resultado e parece um resgate do absolutismo legal.
4.5. SISTEMA DA FINALIDADE DA LEI E DO PREJUÍZO
Esse sistema obedece a uma ideia advinda do direito francês, segundo a qual somente poderia haver o reconhecimento de uma nulidade de um ato jurídico se houver um prejuízo
Inocêncio Borges da Rosa assenta que:
Ora, sucedendo que se viole o texto legal processual, pode suceder que não se atinja o escopo ou a finalidade que o mesmo tinha em vista, e, não se atingindo dito escopo, pode suceder também que se verifique um prejuízo para a Justiça, para a acusação, ou para a defesa. Daí a íntima correlação existente entre o critério da finalidade da lei e o do prejuízo de maneira a se tornarem inseparáveis.
O critério da finalidade da lei vem expresso no art. 572, n. II, que considera sanadas as nulidades, quando, praticado por outra forma, o ato tiver atingido seu fim.
Essa definição é de suma grande importância para ver como o sistema foi deturpado quando da regulamentação da matéria pelo atual Código de Processo Penal Brasileiro.
Até então, a legislação brasileira nunca havia estabelecido um número de nulidades a servir como referência quando da discussão dos casos, nos moldes do que tem hoje.
5. PRINCÍPIOS GERAIS DA TEORIA DAS NULIDADES
5.1. PRINCÍPIO DA INSTRUMENTALIDADE DAS FORMAS
Para o autor Magalhães de Noronha[10], o princípio básico do Código é enunciado logo no início no título referente às nulidades. Segundo o autor, para explicar o aludido princípio, “não existe nulidade desde que da preterição legal não haja resultado prejuízo para uma das partes. Este existe quando não foi alcançado o fim a que a lei tem em vista. Tanto ele pode ocorrer em relação ao acusador, como ao acusado ou à Justiça.”
Hélio Tornaghi[11], ensina: “A forma é puramente instrumental; é meio, e não fim.”
Trata-se de diretriz que confere aspecto teleológico aos atos processuais, exigindo que o magistrado não se adstrinja somente à literalidade dos dispositivos legais, mas, acima de tudo, verifique se o vício, no caso concreto, prejudicou a finalidade pretendida pelo legislador.
Não é difícil encontrar doutrinadores que, como Magalhães Noronha, tratam o princípio da instrumentalidade das formas como sinônimo de princípio do prejuízo. Ocorre que o prejuízo exigido pela lei para configuração da nulidade não deve ser confundido com a ideia de instrumentalidade das formas. É clara a existência de uma estreita relação entre ambos, mas não há uma identidade absoluta entre os conceitos, já que distintos.
A instrumentalidade não se limita apenas às nulidades. Ela serve de base, de fundamentação para aplicação das formas processuais. Ao ser suscitado um vício no decorrer do processo, cabe ao Juiz proceder à análise da correlação meio-fim, isto é, verificar se o ato, ainda que defeituoso, cumpriu a função para o qual havia sido estabelecido.
É sob essa perspectiva, aliás, que o legislador de 1941, citando doutrina italiana, justifica a flexibilização de certas formas na Exposição de Motivos do Código de Processo Penal: “um bom processo penal deve limitar as sanções de nulidade àquele estrito mínimo que não pode ser abstraído sem lesar legítimos e graves interesses dos Estados e cidadãos”.
O grande problema envolvendo a instrumentalidade das formas não está, logicamente, em sua essência, mas, sim, na deturpação do seu sentido. A base instrumental do ato não significa uma concessão para condução do processo conforme a vontade do juiz. Se, de um lado, é verdade que não se deve defender um formalismo cego do processo penal, de outro, é preciso entender que a forma, notadamente no processo penal, tem função garantidora, sendo certo que ela somente será dispensável em casos estritamente delineados pela lei.
5.2. PRINCÍPIO DO INTERESSE
O brocardo jurídico “a ninguém é dado beneficiar-se da própria torpeza”, reflete em diversas áreas do direito e constitui uma base semântica por trás do princípio do interesse, segundo o qual é vedado à parte que deu causa ao vício processual, ou àquela que não tenha interesse no seu reconhecimento, pleitear a declaração de nulidade (artigo 565 do Código de Processo Penal).
Em matéria de vícios, parece ser indispensável que a parte supostamente prejudicada não tenha contribuído propositalmente para a ocorrência do efeito. A nulidade, à evidência, há de servir para reestruturar um processo desalinhando, e não como instrumento a serviço de manobras processuais.
Na tradicional separação entre nulidades absolutas e relativas, há doutrinadores que defendem ser o princípio do interesse apenas aplicável a essas últimas. Isso porque, as nulidades absolutas cuidariam de vícios de ordem pública, de interesse transcendente às partes, razão pela qual inexistiria óbice para seu reconhecimento. Seguindo essa lógica, se o julgador pode decretar a nulidade ex officio, tem ele o dever de reconhecê-la no caso concreto, independentemente de quem tenha dado causa à imperfeição.
Para Ada Pellegrini Grinover[12], o princípio em questão é de aplicabilidade limitada no processo penal, já que o Ministério Público tem o dever de buscar um título executivo válido. Dessa forma, portanto, a acusação, nas ações estritamente públicas, não pode negar seu interesse na observância das normas legais.
5.3. PRINCÍPIO DA CAUSALIDADE
O princípio da causalidade trata dos efeitos da decretação da nulidade, considerando que os diversos atos formadores do procedimento são interrelacionados e configuram uma cadeia de atos.
Este princípio prescreve que a nulidade de um ato processual contamina todos os posteriores que sejam dele diretamente dependentes, ou mesmo aqueles que surjam como consequência do ato viciado. Assim, os atos não prejudicados pelo ato nulo, por serem independentes, serão conservados.
Ao Magistrado cabe, portanto, no momento da decretação da nulidade, verificar a extensão do dano processual gerado pela atipicidade, de modo a definir quais atos devem ser necessariamente refeitos.
6. O TRATAMENTO DO PREJUÍZO NO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
“Nenhum ato será declarado nulo, se dá nulidade não resultar prejuízo para acusação ou para a defesa.” No primeiro artigo do Título I Das Nulidades, o prejuízo é estampado como a viga mestra para se reconhecer a nulidade.
Na nossa legislação, a interpretação do conteúdo do prejuízo ficou basicamente a cargo do intérprete da norma. Não obstante a sua importância, a lei não indica em que consistiria, precisamente, o conteúdo do prejuízo, mencionando apenas que ele poderia ocorrer em relação à acusação ou à defesa.
O Código de Processo Penal Uruguaio (1980), faz uma abordagem similar ao tratar as nulidades em seu artigo 98: “No hay nulidade sin perjuicio”.
O Código de Processo Penal para a Ibero América, também traz no artigo 225:
225. Principio. No podrán ser valorados para fundar una decisión judicial, ni utilizados como presupuestos de ella, los actos cumplidos con inobservancia de las formas y condiciones previstas en este Código, salvo que el defecto haya sido subsanado (art. 228) o no se hubiera protestado oportunamente por él (art. 226).
El ministerio público y los intervinientes sólo podrán impugnar las decisiones judiciales que les causen gravamen, con fundamento en el defecto, en los casos y formas previstos por este Código, siempre que el interesado no ha contribuido a provocar el defecto. Se procederá del mismo modo cuando el defecto consista en la omisión de un acto que la ley prevé.
El imputado podrá impugnar, aunque hubiere contribuido a provocar el defecto, en los casos previstos por el art. 227.
Mais à frente, no artigo 566, o Código do Processo Penal brasileiro estatui que “não será declarada a nulidade processual que não tiver influído na apuração da verdade substancial ou na decisão da causa.”
E novamente aborda a questão do prejuízo, em complementação ao artigo 563, só que aqui em prol da apuração da verdade no processo, que seja relevante à decisão da causa.
A abordagem é muito imprecisa, vaga, e isso pode levar a decisões questionáveis na averiguação da ocorrência da nulidade, como bem afirma Ergas Dirceu Moniz de Aragão[13]:
é fácil para o juiz dizer que a parte não teve prejuízo; mais difícil é, para esta, demonstrá-lo, pois o juiz, ou tribunal, chega à conclusão de não ter havido prejuízo argumentando com o que sucedeu após o ato viciado, ao passo que a parte, quando impugna, fá-lo no momento em que ocorreu, sem condições de imaginar o que ainda virá a acontecer. Ademais, não se sabe que rumo poderia ter tomado o processo se tivesse sido acolhida incontinenti a alegação de existência do vício. Por isso, convém olhar com muita cautela e reserva os precedentes judiciários a respeito do assunto.
Não são incomuns situações em que se leva adiante o processo viciado e, uma vez proferida sentença condenatória, considera-se não ter havido prejuízo.
Outra questão a ser sopesada é quando o vício não irá influir a busca pela verdade. Na prática, o que tem ocorrido é que, sob o argumento de que o ato não foi valorado na sentença, a nulidade não teve influência no deslinde da causa, de modo que não houve mácula ao processo. Mas isso é um grave equívoco, pois a sentença deve vir motivada, abarcando todo os elementos produzidos no processo; de duas, uma: ou haverá nulidade pelo vício originário ou haverá nulidade da sentença por falta de valoração daquele ato imperfeito.
Ricardo Jacobsen Gloeckner[14], afirma que “basta ao juiz deixar de analisar a prova em sua sentença para que a nulidade daquele ato não possa ser suscitada (...) A não fundamentação da decisão nestes atos permite assim seguir acreditando que tal ato não contribui para a tomada de decisão. O que por si só denuncia a corrupção da forma e a perversão do sistema”.
Apesar de a doutrina conceituar de forma semelhante o princípio do prejuízo, ela diverge substancialmente na aplicação dele, principalmente quanto à necessidade de demonstrá-lo nas nulidades. Assim, há duas correntes dentro da doutrina tradicional, uma majoritária e outra minoritária, que estabelecem como se aplica o artigo 563 do Código de Processo Penal.
A divisão entre a doutrina ocorre basicamente na aplicação ou não do princípio do prejuízo nas nulidades absolutas. Por aplicação, refere-se à necessidade de a parte comprovar o prejuízo ou este ser presumido. Diversos doutrinadores[15] trazem, que o artigo 563 não tem aplicação às nulidades absolutas, visto que elas não dependem de demonstração do prejuízo para serem declaradas, porquanto o dano processual é presumido. Assim, o prejuízo seria juris et de jure, inadmitindo prova em contrário. A corrente majoritária, então, entende que não se demonstra o prejuízo nas nulidades absolutas, tendo autores que defendem, inclusive, a inaplicabilidade do artigo 563 à referida espécie de nulidade e sendo este, portanto, presumido pela simples ocorrência de determinadas atipicidades formais.
Para a corrente minoritária, há uma flexibilização quanto à presunção do prejuízo nas nulidades absolutas e, assim, a simples possibilidade de prejuízo não causaria a sanção de nulidade. Os argumentos para fundamentar tal posição são variados na doutrina. Para Grinover, uma concepção contrária implicaria a demora da prestação jurisdicional almejada pelo processo e na perda dos atos processuais já realizados. O dano ensejador de nulidade, então, deve ser concreto e efetivamente demonstrado em cada situação.
Grinover, Gomes Filho e Scarance[16] afirmam que:
as nulidades absolutas não exigem demonstração do prejuízo porque nelas o mesmo costuma ser evidente. Alguns preferem afirmar que nesses casos haveria uma presunção de prejuízo estabelecida pelo legislador, mas isso não nos parece correto em todos os casos, pois as presunções levam normalmente a inversão do ônus da prova, o que não pode ocorrer quando a existência de dano estiver fora de dúvida. No entanto, deve-se salientar que, seja o prejuízo evidente ou não, ele deve existir para que a nulidade seja decretada. E nos casos em que ficar evidenciada a inexistência do prejuízo não se cogita de nulidade, mesmo em se tratando de nulidade absoluta.
O Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça entendem praticamente de maneira uníssona que o artigo 563 do Código de Processo Penal exige a demonstração do prejuízo para a declaração das nulidades processuais penais. Entendem pela aplicação de “o princípio do pas de nullité sans grief, segundo o qual somente se declara nulidade de um ato se dele resultar prejuízo para acusação ou para a defesa.”[17]
O Supremo Tribunal Federal possui ampla jurisprudência fixando o entendimento da corte da seguinte maneira, nas palavras do Ministro Ricardo Lewandowski: “O entendimento desta Corte também é no sentido de que, para o reconhecimento de eventual nulidade, ainda que absoluta, faz-se necessária a demonstração do efetivo prejuízo, o que não ocorre na espécie.”[18]
Desse modo, exige-se a efetiva demonstração do prejuízo às partes ou ao julgamento para o reconhecimento de vício que enseje a anulação de ato processual. Em outras palavras, não é aplicada, na jurisprudência, a presunção de prejuízo no caso das nulidades absolutas.
Ilustrativo é o caso dos Estados Unidos, cabendo recordar, adicionalmente, que boa parte da doutrina brasileira das nulidades está baseada na doutrina norte-americana. A exclusionary rule, ou regra de exclusão da prova ilícita, e a teoria dos fruits of the poisonous tree, ou dos frutos da árvore envenenada, de origem anglo-saxã, vêm guiando nossa doutrina e jurisprudência há décadas. Contudo, a doutrina e a jurisprudência brasileiras negligenciaram a evolução do direito anglo-saxão nessa matéria.
No caso New York v. Harris (1990), a Suprema Corte norte-americana reconheceu que a regra de exclusão da prova ilícita não pode conduzir automaticamente à exclusão de toda evidência cuja existência decorre da ilegalidade.
Nos casos US v. Leon (1984) e MA v. Sheppard (1984), a Corte Suprema norte-americana afirmou expressamente que a regra de exclusão é um remédio criado, e não um direito subjetivo constitucional, e por isso deve haver uma análise de proporcionalidade na exclusão da prova ilícita. Afirmou ainda que a regra de exclusão objetiva prevenir conduta abusiva policial, e não judicial.
No caso Herring v. US (2009), a Suprema Corte reafirmou que a regra de exclusão da prova ilícita não pode ser aplicada automaticamente. Deve ser o “último recurso, não nosso primeiro impulso”. Aqui a Corte foi além para dizer que o efeito dissuasório é necessário, mas não suficiente para a exclusão da prova. Para a prova ser excluída, a ilegalidade na sua produção deve ser deliberada (justificando a busca do efeito dissuasório) e culpável (pois os efeitos dissuasórios devem superar os custos de exclusão da prova). Deve ser aplicado, portanto, um teste de proporcionalidade (“balancing test”) para se determinar ou não a exclusão da prova.
Essa perspectiva das nulidades, em que se sopesam custos e benefícios da exclusão da prova ilícita, tomando em consideração um balanceamento das circunstâncias, é também adotada em outros países, como por exemplo Inglaterra, Canadá, Japão, Taiwan, Israel, Alemanha, Grécia, Holanda e Bélgica (neste último caso, desde 2003). Na percepção internacional, aliás, se reconhece que os Estados Unidos são, em regra, muito mais rígidos na exclusão de provas, tendo uma doutrina de exclusão muito mais sedimentada do que a maioria dos demais países. A Corte Europeia de Direitos Humanos – uma corte libertária – tem, no mesmo sentido, entendido que a eventual exclusão da prova ilícita só se justifica quando houve um julgamento injusto, aplicando uma ponderação de custos e benefícios bastante flexível, sob a égide do art. 6º da Convenção Europeia de Direitos Humanos, conforme se observou no célebre caso Gäfgen v. Germany. [19]A chave, aqui, para analisar a exclusão da prova, é o direito do réu a um julgamento justo.
7. DO INTERESSE NA ALEGAÇÃO DA NULIDADE
O Código de Processo Penal, não especifica como deve ocorrer o prejuízo para o pronunciamento das nulidades processuais. Alguns interpretam que o prejuízo deve ser efetivo.
Na jurisprudência tem vigorado o entendimento de que o prejuízo tem que ser efetivo e deve ser comprovado pela parte que alegou a nulidade, não podendo ser reconhecido caso o sujeito tenha contribuído para a imperfeição do ato. Aqui entra em discussão o interesse, que tem umbilical relação com o prejuízo das nulidades processuais.
A esse respeito; dispõe o artigo 565, do Código de Processo Penal, que “nenhuma das partes poderá arguir nulidade a que haja dado causa, ou para que tenha concorrido, ou referente a formalidade cuja observância só a parte contrária interesse.”
Aqui tem-se que a nulidade não pode ser reconhecida em favor daquele que lhe deu causa. Seria, até certo ponto, a consagração do brocardo jurídico de que ninguém pode alegar em seu favor a própria torpeza.
Afirmam Ada Pellegrini Grinover, Antonio Magalhães Gomes Filho e Antonio Scarance Fernandes que “dar causa, nessa hipótese, não exige dolo ou culpa da parte, mas apenas fato objetivo.”
A esse respeito, o ordenamento jurídico italiano, de acordo com o Código Processo Penal, de 1988, prevê no artigo 185, §2º: “II giudice che dichiara la nullità di um atto ne dispone la rinnovazione, qualora sia necessária e possible, ponendo le spese a carico di chi há dato causa ala nullità per dolo o colpa grave”. A parte que deu causa à nulidade, se houve dolo ou culpa grave, deverá pagar as despesas da renovação do ato.
A maioria dos casos que envolvem a nulidade, o vício para o qual parte possa ter concorrido deve ser fiscalizado pelo juiz, ou seja, aliado à “torpeza da parte, que com seu comportamento, teria causado a nulidade, haveria a própria torpeza da justiça, que não desempenhou bem o seu papel de prover a regularidade do feito.
O Juiz assume uma função de “garantidor”, em certo sentido corresponsável pela ocorrência da nulidade sendo que, por isso, o artigo 565 deveria ter aplicabilidade reduzida no processo penal, isto é, somente em casos excepcionais.
Acerca desse tema, uma das últimas e de maior notoriedade atuação do Supremo Tribunal foi em 25 de agosto de 2020, quando a 2ª Turma anulou a sentença condenatória proferida pelo então juiz Sergio Moro no caso Banestado, com entendimento de que o magistrado que homologa acordo de delação não deve participar das negociações feitas entre as partes, muito menos tomar depoimento de um dos envolvidos[20].
8. DAS NULIDADES EM FASE DE INQUÉRITO POLICIAL
No inquérito policial seria possível vislumbrar hipóteses de nulidades nos moldes das nulidades de cunho processual?
A questão é muito controvertida, tanto na doutrina quanto na jurisprudência. Apesar de admitir a possibilidade de nulidades no inquérito policial, o Superior Tribunal de Justiça já se manifestou no sentido de que eventuais nulidades ocorridas no curso desse procedimento não contaminam a ação penal, devendo o magistrado, se for o caso, desconsiderar, quando receber a denúncia, as provas ilegalmente obtidas.
Excepcionalmente no julgado do RHC 23.945/RJ, o Superior Tribunal de Justiça reconheceu a nulidade dos atos praticados no curso do inquérito, os ministros entenderam que o magistrado não poderia agir como um juiz inquisidor, fazendo o papel de Polícia Judiciária, seja aos ordenar diligências, seja ao interrogar o acusado, tendo a Corte Superior anulado todos esses atos.
No Supremo Tribunal Federal é incomum encontrar decisões a respeito das nulidades no inquérito policial. Em geral, falam em irregularidades ou vícios incidentes, que não maculariam a ação penal, mas há alguns poucos julgados, como o HC 103660 / SP[21], onde se reconhece a nulidade no inquérito policial.
Isso é preocupante, porque em nosso ordenamento jurídico, os autos do inquérito policial acompanham o processo penal, caso haja a dedução da ação e que, não raro, são valorados pelo magistrado no momento da sentença. Se não houver um sistema sancionatório eficaz para coibir abusos nessa fase preliminar da persecução, podemos permitir que diversos atos ilegais sejam valorados e considerados no processo, inclusive na sentença.
Parte da doutrina também observa que não seria possível reconhecer nulidades nessa fase, já que a própria lei processual não prevê nulidades no inquérito, o que hoje não é uma afirmativa muito correta, se considerarmos o conceito amplo de prova ilícita, do Código de Processo Penal, disposto no artigo 157, muito próximo ao da nulidade processual, que pode ser aplicável à persecução penal preliminar.
Embora os elementos informativos do inquérito não possam ser qualificados como provas no sentido técnico jurídico porque não há contraditório, nada obsta que eles sejam enquadrados na categoria de prova ilícita, cuja conceituação é ampla, abarcando tanto aquelas obtidas em violação a normas constitucionais quanto infraconstitucionais.
Diferente é o tratamento do Código de Processo Penal Italiano, no artigo 181, §2º e no Código de Processo Penal Português, no artigo 120, §3º, que prevê a possibilidade de haver nulidade em inquérito.
9. A RELEITURA DAS NULIDADES NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO
No atual momento metodológico do direito se faz necessária uma mudança na atuação dos juízes e demais agentes constitucionais na interpretação e aplicação das leis. A interpretação e aplicação do direito pressupõem uma tarefa valorativa, de modo a permitir a concretização dos princípios constitucionais no caso, diante do complexo jurídico das normas.
Não encontra ressonância a adoção do sistema do absolutismo da lei no aforismo pás de nullite sans text. A análise do ato do procedimento a ensejar a nulidade não se dá simplesmente a partir de uma visão binária: forma prescrita em lei e violação. Esse sistema, por qualificar a nulidade como próprio vício do ato, possibilita a sua declaração por um juízo de direito apenas se houver sua previsão abstrata em lei. Por consequência desse raciocínio, a tutela jurídica não é a de dar alcance à norma que emana daquela regra referente ao procedimento, mas a proteção da própria lei, que teve seu conteúdo violado.
O que resta, a respeito dos sistemas referentes às nulidades no direito processual, é o sistema do binômio finalidade da lei prejuízo. Em verdade, as duas premissas que fundamentam esse sistema caminham juntas, já que, segundo a sua caracterização inicial, onde o objetivo da lei não foi cumprido, em razão da prática de um ato irregular, haverá, consequentemente, prejuízo.
Esse sistema, portanto, cria a necessidade de se analisar o caso para se concluir pela existência ou não do prejuízo e, em havendo, autorizar o reconhecimento da nulidade processual. Não se faz, portanto, qualquer juízo valorativo apriorístico a respeito do ato irregular.
Essa dificuldade de compreender o sistema da finalidade da lei e do prejuízo tem gerado algumas discussões e conceituações desnecessárias, tornando o tema ainda mais complicado de se compreender.
O objetivo do processo penal é o acertamento do caso penal apresentado no espaço do contraditório para que os sujeitos processuais debatam acerca da imputação e demonstrem ao terceiro imparcial, mediante argumentação jurídica e por meio da prova, se o fato ocorreu e se o acusado tem responsabilidade penal por ele.
10. CONCLUSÃO
A adoção do Estado Democrático de Direito como paradigma jurídico eleva o processo à garantia constitutiva dos direitos fundamentais.
O processo, no atual marco, é regido por um conjunto principiológico, como forma de implementar a procedimentalidade da participação dos legitimados ao poder e, por conseguinte, nas decisões estatais.
O sistema das nulidades que serve ao Estado Democrático de Direito é o sistema do prejuízo. Mas a ótica deve ser completamente distinta da que se utilizou o atual Código de Processo Penal, pois num modelo principiológico, o que se interessa indagar é se houve ou não violação aos princípios do modelo constitucional, esses, verdadeiros fatores de legitimação do processo e, consequentemente, da decisão.
A ratificação das nulidades pela preclusão não vai de encontro aos preceitos do processo penal que segue o modelo constitucional. A violação dos princípios não pode se restringir ao interesse e oportunidade das partes, ainda mais em relação ao acusado, justamente em razão da previsão constitucional do princípio do favor rei.
Por derradeiro, não podemos permitir que o processo penal, como garantia fundamental da liberdade, não pode ser visto como forma de tutela de interesses individuais.
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[2] PIOTTO, Danilo Chimera. O que se Esperar de um Juiz na Era do Estado Democrático de Direito. Jus Societas, nº 3, jul./dez. 2009, p. 6.
[4] BRÊTAS, Ronaldo de Carvalho Dias. Processo Constitucional e Estado Democrático de Direito. Belo Horizonte: Del Rey, 2010.
[5] CALMON DE PASSOS, Joaquim. Esboço de uma teoria das nulidades aplicadas às nulidades processuais. Rio de Janeiro: Forense, 2009. p. 20.
[6] CABRAL, Antonio do Passo. Nulidades no processo moderno: contraditório, proteção da confiança e validade prima facie dos atos processuais. Rio de Janeiro: Forense, 2010. p. 20.
[9] DIDIER JÚNIOR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil: teoria geral do processo e processo de conhecimento. 11. ed. Salvador: JusPodivm, 2009, p. 256.
[10] NORONHA, Edgard Magalhães. Curso de direito processual penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1972. p. 325.
[12] GRINOVER, Ada Pellegrini. O processo: III Série: estudos e pareceres do processo penal. Brasília: Gazeta Jurídica, 2013. p. 115.
[13] ARAGÃO, Ergas Dircey Moniz de. Comentários ao Código de Processo Civil, Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973. V. II. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 272.
[15] NASSIF, Aramis; NASSIF, Samir Hofmeister. Considerações sobre nulidades no processo penal. 2. ed. revisada e atualizada. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012. In: CAPEZ, 2014, p. 558.
[16][16] FERNANDES, Antonio Scarance; FILHO, Antonio Magalhães Gomes; GRINOVER, Ada Pellegrini. As nulidades no Processo Penal. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1992. p. 28.
[19] O caso ganhou destaque porque a polícia ameaçou torturar Gäfgen para que ele revelasse o esconderijo do garoto.
Ao condenar Gäfgen à prisão perpétua o Tribunal Estadual de Frankfurt classificou o crime como hediondo, eliminando a possibilidade de que o estudante fosse solto após cumprir 15 anos de pena. Os métodos policiais para arrancar a verdade foram muito criticados e o juiz invalidou a primeira confissão do estudante, na delegacia. Magnus Gäfgen tornou a admitir o crime no julgamento, mas tratou de negar que houvesse planejado desde o início a morte do menino.
Com as ameaças de tortura, os policiais envolvidos ''causaram graves danos ao Estado de direito'', disse o juiz, acrescentando que esse comportamento, porém, nada tem a ver com a culpabilidade do réu.
[20] Os ministros Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski entenderam que Moro pulou o balcão para se tornar acusador por ter colhido depoimento da delação premiada de Alberto Youssef e por ter juntado documentos aos autos depois das alegações finais da defesa.
Já o relator, ministro Luiz Edson Fachin, e a ministra Cármen Lúcia, entenderam que o então juiz não estava impedido. De acordo com Fachin, ainda que fosse o caso de questionar os limites dos poderes instrutórios do juiz, não seria o caso de declarar a imparcialidade judicial e afastá-lo do processo.
Advogada. Mestranda em Processo Penal. PUC/SP.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: TEIXEIRA, Mônica Regina. Nulidades: previsão legal e arguição como instrumento de regulação constitucional do processo penal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 nov 2022, 04:36. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/59814/nulidades-previso-legal-e-arguio-como-instrumento-de-regulao-constitucional-do-processo-penal. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Gabrielle Malaquias Rocha
Por: BRUNA RAFAELI ARMANDO
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