RESUMO: O presente trabalho tem por escopo analisar a (in)suficiência do reconhecimento de pessoas por meio de fotografias, seja em razão da inobservância da legislação penal brasileira ou pela ausência da corroboração por meio de outras diligências, bem como pela possibilidade da influência do fenômeno das falsas memórias, dos fatores internos e externos, no que concerne a falibilidade da mente humana. O reconhecimento fotográfico é um tema bastante pertinente, visto que é um meio de prova dotado de fragilidade e adstrito ao equívoco judicial, em razão dos procedimentos adotados durante a persecução penal, como por exemplo, o álbum de fotografias apresentado às vítimas e testemunhas no âmbito da delegacia de polícia, tendo como finalidade a identificação da autoria delitiva, ao qual tem como resultado a prisão de inúmeros inocentes, por diversos fatores. Ademais, é imperioso destacar a vulnerabilidade dessa modalidade de reconhecimento quanto ao desacordo dos aspectos procedimentais previstos no artigo 226 do Código de Processo Penal. Por fim, para alcançar o objetivo pretendido, o método aplicado ao estudo deu-se por meio de pesquisas bibliográficas, mediante a análise da doutrina, legislação e jurisprudência brasileira pertinente ao tema.
PALAVRAS-CHAVE: Reconhecimento Fotográfico. Falsas Memórias. Inobservância dos Procedimentos. Provas no Processo Penal.
ABSTRACT: The purpose of this work is to analyze the (in)sufficiency of the recognition of people through photographs, either due to the non-observance of Brazilian criminal legislation or without the corroboration of other measures, as well as the possibility of the influence of the phenomenon of false memories, of internal and external factors concerning the fallibility of the human mind. Photographic recognition is a very relevant topic, since it is a means of evidence endowed with fragility and attached to judicial misunderstanding, due to the procedures adopted during criminal prosecution, such as the photo album presented to victims and witnesses in the context of criminal proceedings. of the police station, with the purpose of identifying the criminal authorship, which results in the arrest of countless innocent people, for various factors. Furthermore, it is imperative to highlight the vulnerability of this type of recognition in terms of disagreement with the procedural aspects provided for in article 226 of the Criminal Procedure Code. Finally, to achieve the intended objective, the method applied to the study was through bibliographic research, through the analysis of Brazilian doctrine, legislation and jurisprudence relevant to the subject.
KEYWORDS: Photographic Recognition. False Memories. Non-observance of Procedures. Evidence in Criminal Procedure.
1 INTRODUÇÃO
O reconhecimento de pessoas e objetos é um meio de prova previsto no ordenamento jurídico brasileiro, especificamente, na inteligência do artigo 226 a 228, do Código de Processo Penal, com a finalidade de verificar e confirmar a identidade do autor ou coisa que tomaram parte no delito, possibilitando a reconstrução dos fatos, através do processo de memorização.
Ademais, esse meio de prova é usado comumente no curso da instrução criminal. Não obstante, diante da impossibilidade do reconhecimento de forma presencial, utiliza-se o reconhecimento por meio de fotografias como elemento probatório durante a persecução penal. Todavia, mesmo sendo admitido pelos tribunais brasileiros, é atinente questionar sua aplicabilidade, vez que é um procedimento extremamente passível de erros e falhas.
Nesse contexto, o reconhecimento fotográfico é um tema que tem gerado discussões tanto doutrinárias quanto jurisprudenciais, bem como tem repercutido no âmbito midiático, como o programa Fantástico, da Rede Globo, em razão da inobservância dos aspectos procedimentais previstos no artigo 226, do CPP, ocasionando a fragilidade e até mesmo a invalidação da prova.
Considerando as circunstâncias apresentadas, a temática se faz pertinente e atual no cotidiano brasileiro, visto que implica diretamente na liberdade do suspeito, pois um elevado quantitativo de pessoas é encarcerado inocentemente, em virtude de terem sido reconhecidas por meio de fotografias, muitas vezes, retiradas das redes sociais, ocasionando danos insanáveis na vida desses indivíduos.
Outrossim, para a realização do reconhecimento é necessário fazer uso da mente humana para a identificação do sujeito, buscando recordações acerca do fato ocorrido, como as características do sujeito e os objetos utilizados. No mais, insta ressaltar que a memória é falha e apresenta defeitos, ocasionando o esquecimento de alguns detalhes do fato, em razão de vários fatores.
Dessa forma, o presente artigo tem como objetivo mencionar os motivos que ensejam a insuficiência desse meio de prova quando utilizado, isoladamente, para ratificar a autoria delitiva, e assim, embasar sentença criminal, por ser uma prova altamente viciosa.
Nesse cenário, far-se-á, preliminarmente, a análise das noções gerais do estudo das provas dentro do ordenamento jurídico brasileiro, buscando explanar alguns conceitos, tal como seu objeto e finalidade. Por conseguinte, serão abordados os princípios e garantias constitucionais norteadores do reconhecimento fotográfico.
Em seguida, será abordado o reconhecimento fotográfico, em espécie, descrevendo, inicialmente, os elementos conceituais, a aplicação à luz dos aspectos procedimentais do artigo 226, do CPP, tal como seu valor probatório com ênfase na doutrina e jurisprudência.
Em sequência, será estudado a influência das falsas memórias no ato do reconhecimento por fotografias, visando entender a complexidade da memória humana, principalmente, quando é realizado por meio de fotografias que compõem o álbum de suspeitos, ou são retiradas do Facebook/Instagram, ou até mesmo de grupos do WhatsApp.
Após tais ponderações, em última análise, como desfecho da pesquisa, serão apresentadas as conclusões do estudo realizado acerca da confiabilidade e possíveis consequências do reconhecimento fotográfico.
2 NOÇÕES GERAIS DE PROVA
2.1 Conceito de prova
Para discorrer acerca do reconhecimento fotográfico, primeiramente, é imprescindível analisar o conceito de prova, bem como seu objeto e finalidade à luz do ordenamento jurídico brasileiro, haja vista que, conforme Távora e Assumpção (2012, n.p.), é por meio das provas que há a realização da reconstrução de determinado fato, buscando a aproximação da realidade e, sendo assim, a “verdade dos fatos”, visando a instrução do julgador.
Cabe inicialmente mencionar que no Código de Processo Penal há previsão legal para as provas, especificamente no Título VII, do artigo 155 ao 250, aos quais são apresentados vários meios de provas admitidos, como: exame de corpo de delito, prova documental, prova testemunhal, interrogatório, acareações, reconhecimento de pessoas e objetos, e confissão.
Partindo do conceito, segundo Lima (2020, p. 657), prova traduz-se: “Em sentido amplo, provar significa demonstrar a veracidade de um enunciado sobre um fato tido por ocorrido no mundo real”. Para tanto, tratando-se de prova como atividade probatória, o autor assevera que “consiste no conjunto de atividades de verificação e demonstração, mediante as quais se procura chegar à verdade dos fatos relevantes para o julgamento.”
Ainda, segundo Lima (2020, p. 657-658) há três acepções da palavra prova. A primeira se refere à prova como atividade probatória, ou seja, é o procedimento utilizado para verificar a exatidão e veracidade dos fatos no processo. Já a segunda, é a prova como resultado, levando em consideração a formação da convicção do julgador quanto a existência ou não de determinado fato. E a última, prova como meio, trata-se do instrumento empregado que corroborou a formação da convicção do juiz, como por exemplo, a prova documental.
Para Gomes Filho (2005, p. 307), além das três acepções mencionadas acima, a palavra prova pode também ser utilizada para “indicar cada um dos dados objetivos que confirmam ou negam uma asserção a respeito de um fato que interessa à decisão da causa. É o que se denomina elemento de prova.”
Em evidência ao que ficou dito, é importante compreender o relevante papel das provas, bem como a importância desses instrumentos para a formação da convicção do magistrado acerca do fato delituoso.
Desse modo, Goldschmidt (1936, p. 256, apud Almeida, 2019, p. 10) afirma que:
O processo penal está destinado a instruir o julgador, a proporcionar o conhecimento do juiz por meio da reconstrução histórica de um fato. Nesse contexto, as provas são os meios através dos quais se fará essa reconstrução do fato passado (crime).
Nesse sentido, Lopes Jr. (2019, p. 351) assevera que:
O processo penal é um instrumento de retrospecção, de reconstrução aproximativa de um determinado fato histórico. Como ritual, está destinado a instruir o julgador, a proporcionar o conhecimento do juiz por meio da reconstrução histórica de um fato.
Ademais, levando em consideração a dificuldade de alcançar com precisão absoluta a verdade real dos fatos investigados, Pacelli (2021, n.p.) afirma que mesmo não sendo uma tarefa fácil reconstruir os fatos e, algumas vezes, até impossível, é dever do Estado alcançá-la, bem como é um compromisso irrenunciável, não podendo abster-se dessa obrigação.
Para Távora e Assumpção (2012, n.p.), as provas não podem ser confundidas com os elementos de informação, pois estes são obtidos na fase investigativa, caracterizando-se como indícios ou hipóteses; enquanto as provas, como abordado, são produzidas no decorrer da ação penal, e mister se faz observar o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa.
Em corroboração, Lima (2020, p. 658) leciona que diante das alterações da Lei nº 11.690/2008, a distinção entre prova e elementos informativos está prevista no teor do artigo 155 do Código de Processo Penal, in verbis:
Art. 155. O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas.
A teor do artigo supramencionado, o magistrado ao formar a sua convicção e fundamentar a sentença não terá como base os elementos informativos coligidos durante o inquérito policial, com ressalva das provas cautelares, não repetíveis e antecipadas, pois são utilizados para ensejar a ação penal, mas não para justificar uma possível condenação, bem como não há observância ao contraditório e a ampla defesa, vez que não há valor probatório nessa fase.
2.2 Objeto e finalidade da prova
É sabido que a formação das provas está intrinsecamente ligada à reconstrução dos fatos de forma dinâmica para demonstrar como ocorreu o delito. Assim, nas palavras de Lima (2020, p. 666): “Costuma-se dizer que o objeto da prova são os fatos que interessam à solução de uma controvérsia submetida à apreciação judicial”. Contudo, acrescenta que, na verdade, é impossível a retrospecção integral dos fatos. Logo, os fatos não podem ser considerados objeto da prova, mas a verdade ou a falsidade de declarações feitas pelas partes acerca de determinado fato que convém à solução judicial.
Por outro lado, para Tourinho Filho (2012, p. 233 apud Pick, 2017, p. 15): “O conceito de fato é bastante amplo quanto à matéria processual, estendendo-se a coisas, pessoas, lugares e documentos, e somente os fatos duvidosos, que necessitam de comprovação, é que serão objeto da prova.”
Em corroboração, Rangel (2020, p. 744) leciona que a prova tem como objeto a coisa, o fato e o acontecimento, devendo ser de inteiro conhecimento do juiz, afim de que possa enunciar um juízo de valor. Ademais, afirma que o “thema probandum” serve de embasamento para o Ministério Público atribuir a prática da conduta.
Ademais, Nucci (2020, n.p.) assinala que o objeto da prova são os fatos, e sua exibição depende, principalmente, das partes envolvidas no litígio, devendo demonstrar a verdade mediante provas relacionadas à existência e conteúdo de uma norma jurídica.
No tocante à finalidade da prova, Nucci (2020, n.p.) ensina:
A finalidade da prova é convencer o juiz a respeito da verdade de um fato litigioso. Busca-se a verdade processual, ou seja, a verdade atingível ou possível (probable truth, do direito anglo-americano). A verdade processual emerge durante a lide, podendo corresponder à realidade ou não, embora seja com base nela que o magistrado deve proferir sua decisão.
Na mesma linha, Lima (2020, p. 660) assevera:
A finalidade da prova é a formação da convicção do órgão julgador. Na verdade, por meio da atividade probatória desenvolvida ao longo do processo, objetiva-se a reconstrução dos fatos investigados na fase extraprocessual, buscando a maior coincidência possível com a realidade histórica.
No mesmo sentido, Rangel (2020, p. 744) afirma que está relacionada à persuasão do magistrado, implicando no conhecimento e formulação do convencimento, bem como significa fazer com que os acontecimentos apresentados pelas partes convençam o órgão julgador acerca da sua veracidade.
Destarte, levando em consideração a importância dos princípios norteadores do processo penal, há que se tratar dos princípios concernentes às provas, abordados a seguir.
3 PRINCÍPIOS ATINENTES ÀS PROVAS
Para estudar a produção de provas no direito processual penal brasileiro é fundamental introduzir os princípios e garantias constitucionais norteadores desse instrumento, vez que são de grande importância para assegurar o exercício dos direitos aludidos.
3.1 Devido Processo Legal
O referido princípio tem previsão legal na Constituição Federal, no artigo 5º, LIV, in verbis: “Ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal.”
Conforme os ensinamentos de Capez (2016, p. 115), o princípio em análise busca garantir à pessoa todos os direitos previstos em lei, assegurando sua liberdade e seus bens, ao qual apenas serão privados mediante processo legal.
Dessa forma, Lopes (2011, p. 7) conceitua:
Consiste na garantia de que uma pessoa somente será privada de sua liberdade ou de seus bens, por meio de um processo desenvolvido de acordo com o estabelecido em lei. O devido processo legal assegura às partes a existência de um processo conforme as normas preexistentes razoáveis e justas.
Nesse sentido, com relação aos direitos inerentes ao acusado, Capez (2016, p. 115) sustenta que é garantida a plenitude de defesa, podendo o réu ser ouvido e informado acerca dos atos processuais, bem como é dado o direito de constituir defesa técnica e se manifestar após a acusação.
Dessarte, Rangel (2019, p. 57) ensina: “A tramitação regular e legal de um processo é a garantia dada ao cidadão de que seus direitos serão respeitados, não sendo admissível nenhuma restrição aos mesmos que não prevista em lei.”
Noutras palavras, conforme a ideia apresentada, todo processo deve estar em consonância com as normas previstas no ordenamento jurídico, sendo assegurada a sua observância, adotando todas as garantias constitucionais.
3.2 Presunção de Inocência
O princípio da presunção de inocência está expressamente consolidado na inteligência do artigo 5º, LVII, da Constituição Federal da República, in verbis: “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, bem como no artigo 8º, do Pacto de San José da Costa Rica (Convenção Americana sobre Direitos Humanos).
Ademais, esse direito também possui previsão legal na Declaração Universal de Direitos Humanos, artigo 11.1, dispõe: “Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não se prova sua culpabilidade, de acordo com a lei e em processo público no qual se assegurem todas as garantias necessárias para sua defesa.”
Assim, conforme as lições de Lima (2020, p. 47), esse princípio está atrelado ao trânsito em julgado da ação, sendo o indivíduo considerado inocente durante todo o curso do processo, utilizando-se dos meios de provas permitidos para apresentar sua defesa e contrapor as provas alegadas pela acusação, com fulcro nos princípios da ampla defesa e contraditório, respectivamente.
No mesmo sentido, Lopes Jr. (2019, p. 364) leciona:
Dentro do processo, a presunção de inocência implica um dever de tratamento por parte do juiz e do acusador, que deverão efetivamente tratar o réu como inocente, não (ab)usando das medidas cautelares e, principalmente, não olvidando que a partir dela se atribui a carga da prova integralmente ao acusador (em decorrência do dever de tratar o réu como inocente, logo, a presunção deve ser derrubada pelo acusador).
Ainda segundo Lopes Jr. (2019, p. 364), o princípio supramencionado considerado “dever de tratamento” garante, em regra, a absolvição do acusado, visto que mediante dúvida acerca da autoria do delito, o réu deverá ser considerado inocente e, assim, aplicado ao seu favor o in dubio pro reo, como “regra de julgamento.”
Na mesma linha está o posicionamento de Pacelli (2020, n.p.) no que se refere ao tratamento conferido ao acusado, em que a prisão deverá ser devidamente fundamentada na decisão do julgador, tracejando a necessidade e indispensável medida adotada.
Em corroboração, ao tratar do tema, Beccaria (1764, p. 62-63) afirma: “Um homem não pode ser considerado culpado antes da sentença do juiz (...). Com efeito, perante as leis, é inocente aquele cujo delito não se provou.”
Por conseguinte, acerca do ônus da prova, Almeida (2019, p. 25) sustenta que a responsabilidade por produzir provas recai sobre o órgão acusador, tendo este o dever de reuni-las e apresentá-las em juízo. Contudo, em respeito à presunção de inocência, cabe ao magistrado absolver o acusado diante da insuficiência probatória.
3.3 Contraditório e Ampla Defesa
Os princípios do Contraditório e da Ampla Defesa estão expressamente consolidados no artigo 5º, LV, da Constituição Federal: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.”
Nas palavras de Lopes Jr. (2019, p. 370):
O contraditório pode ser inicialmente tratado como um método de confrontação da prova e comprovação da verdade, fundando-se não mais sobre um juízo potestativo, mas sobre o conflito, disciplinado e ritualizado entre partes contrapostas: a acusação (expressão do interesse punitivo do Estado) e a defesa (expressão do interesse do acusado [e da sociedade] em ficar livre de acusações infundadas e imune a penas arbitrárias e desproporcionadas).
Em evidência ao que ficou dito, é possível concluir que o princípio do contraditório fundamenta-se na efetiva participação do acusado no ato de refutar as alegações apresentadas pela acusação, confrontando as provas constituídas em todas as partes do processo, com a finalidade de convencer o julgador.
No mais, Nucci (2020, n.p.) preleciona que o referido princípio do contraditório se refere à alegação dos fatos ou às provas apresentadas por uma das partes, devendo a outra parte contrarrazoar e expor sua manifestação, com a justa observação do direito à liberdade e a presunção de inocência do acusado.
Ainda nesse sentido, Lima (2020, p. 56) menciona dois elementos do contraditório, sendo o direito à informação e o direito de participação. O primeiro, decorre do fato de que deve existir um processo penal dotado de eficácia e justiça, ao qual a parte contrária seja sabedora da demanda, bem como das alegações pleiteadas pela parte adversa. No que tange ao segundo elemento, é assimilado como a eventualidade de se manifestar, reagir ou contrariar as alegações apresentadas em juízo pela parte oposta.
No tocante ao princípio da ampla defesa, para Pick (2017, p. 28), insta ressaltar que está indissoluvelmente relacionada ao princípio do contraditório, visto que é do contraditório que surge o direito de proteger as partes do processo, sendo autor e réu, enquanto a ampla defesa é exclusivamente ligada ao acusado.
Desta feita, Silva (2021, p. 30) sustenta que é possível subdividir o princípio analisado, em dois aspectos, quais sejam:
A ampla defesa subdivide-se em defesa técnica (processual ou específica), exercida por advogado constituído, nomeado ou defensor público, e autodefesa (material ou genérica), exercida pelo próprio acusado em determinados momentos no processo, como o interrogatório policial e judicial.
Com efeito, para Pick (2017, p. 29), a defesa técnica é irrenunciável, pois conforme previsto no art. 564, III, “c” do CPP, deve ser garantida ao acusado, sob pena de nulidade absoluta. Por outro lado, a autodefesa é renunciável, visto que o acusado tem o direito de manter-se em silêncio, e dessa forma deixar de responder as perguntas feitas em sede policial e/ou em juízo.
Nas lições de Lima (2020, p. 59), a ampla defesa permite ao acusado ter um tratamento diferenciado com relação à parte contrária (acusação), pois há diversos privilégios ao seu favor, como por exemplo: recursos privativos da defesa, a proibição da reformatio in pejus, a regra do in dubio pro reo, a previsão de revisão criminal exclusivamente pro reo, dentre outros. No mais, insta ressaltar que esse tratamento recebido pelo acusado é vislumbrado mediante o princípio da igualdade.
3.4 Princípio do nemo tenetur se detegere
Em matéria probatória, o princípio em questão, também conhecido como princípio da não autoincriminação, assegura o direito de permanecer em silêncio, ou seja, ninguém será obrigado a produzir prova contra si próprio, bem como garante ao acusado proteção à integridade física e psíquica, uma vez que prevê a não participação na formação da culpa, tal como à dignidade da pessoa humana e à capacidade de autodeterminação do sujeito (PACELLI, 2021, n.p.).
Por outro lado, para Lima (2020, p. 74-75), há um equívoco comparar o direito de silêncio ao princípio do nemo tenetur se detegere, pois o direito de permanecer calado é apenas uma garantia insculpida no princípio da não autoincriminação dada ao acusado, ao qual este jamais poderá ser obrigado a falar, evitando que haja a produção de provas contra si.
Em corroboração, Lopes Jr. (2019, p. 375-376) leciona que o sujeito passivo não poderá ser compelido a participar de qualquer atividade incriminadora ou que seja prejudicial à sua defesa, salvo a extração de material genético, com fundamento na Lei 12.654/2012. Assim, o réu não será prejudicado juridicamente ao omitir sua colaboração em atividade probatória, tal como optar por ficar em silêncio no momento do interrogatório (art. 186 do CPP).
4 RECONHECIMENTO FOTOGRÁFICO
4.1 Conceito
Inicialmente, mister se faz abordar de forma breve o conceito de reconhecimento e, posteriormente, analisar sua aplicabilidade com fulcro no Código de Processo Penal.
No que concerne ao significado, segundo Aranha (2004, p. 222), o reconhecimento pode ser visto sob o ponto de vista procedimental, eivado de formalidades, ao qual um indivíduo envolvido nos fatos é chamado para confirmar e identificar se uma determinada pessoa ou objeto que lhe é apresentado esteve em algum momento passado.
Ademais, para Dezem (2008, p. 249), esse conceito vislumbra dois aspectos: a formalidade e a informação. O primeiro indica que o reconhecimento deve seguir o disposto no ordenamento jurídico. E, o segundo, faz alusão à memória humana, ao qual a vítima/testemunha deverá fazer uso da experiência cognitiva no momento da identificação.
Superado o conceito, a seguir serão abordadas as questões procedimentais do referido reconhecimento.
4.2 Reconhecimento fotográfico à luz do artigo 226 do CPP: aspectos procedimentais e valor probatório
O reconhecimento fotográfico – meio de prova inominada – não possui previsão legal no Código de Processo Penal, apesar de ser muito utilizado em sede policial para identificar possíveis autores através do álbum de fotografias de pessoas com antecedentes criminais. Porém, para que seja aplicado é necessário observar, como regra, as recomendações do artigo 226, do CPP, caracterizando-se como ato preparatório, antecedendo a prova denominada reconhecimento pessoal, sendo inadmissível sua aplicação como substitutivo desta (ALMEIDA, 2019, p. 49-50).
Com relação a aplicação desse método, Nucci (2020, n.p.) enfatiza que embora seja aceito como prova deve ser utilizado com prudência, vez que identificar uma pessoa mediante fotos não é tarefa fácil, pois o resultado pode ser diverso do esperado, fugindo da verdade real dos fatos e ficando sujeito a falhas, reduzindo, assim, a credibilidade do reconhecimento. Ademais, alerta que a aplicação ocorra em casos excepcionais, com a devida observância dos incisos I, II e IV, artigo 226 previsto no CPP.
Nesse passo, segue o texto do referido artigo:
Art. 226. Quando houver necessidade de fazer-se o reconhecimento de pessoa, proceder-se-á pela seguinte forma:
I - a pessoa que tiver de fazer o reconhecimento será convidada a descrever a pessoa que deva ser reconhecida;
Il - a pessoa, cujo reconhecimento se pretender, será colocada, se possível, ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança, convidando-se quem tiver de fazer o reconhecimento a apontá-la;
III - se houver razão para recear que a pessoa chamada para o reconhecimento, por efeito de intimidação ou outra influência, não diga a verdade em face da pessoa que deve ser reconhecida, a autoridade providenciará para que esta não veja aquela;
IV - do ato de reconhecimento lavrar-se-á auto pormenorizado, subscrito pela autoridade, pela pessoa chamada para proceder ao reconhecimento e por duas testemunhas presenciais.
Preliminarmente, antes de realizar o reconhecimento de pessoa ou objeto, para Dezem (2008, p. 250), o identificador deverá descrever detalhadamente as principais características do autor, podendo abster-se dessa tarefa caso mencione uma característica “única” e “isolada” da pessoa reconhecida.
No tocante ao procedimento, Mousinho (2017, n.p.) propõe que a vítima seja encaminhada, primeiramente, para fornecer informações referentes às características do autor, o chamado retrato-falado (perícia iconográfica), antes da identificação por meio das fotografias, visto que as características armazenadas na memória podem causar equívoco com as das fotografias.
Segundo Lopes (2011, p. 51), a fase de descrição das características é de suma importância para averiguar se a pessoa responsável pelo reconhecimento tem recordações acerca de alguma coisa ou dado do autor para que seja apresentado no momento da identificação.
Posteriormente, com fulcro no inciso II do artigo supracitado, para Nucci (2020, n.p.), a autoridade policial deverá apresentar várias fotografias ao reconhecedor para que aponte a pessoa descrita anteriormente.
Por fim, tendo como fundamento o inciso IV, Lopes (2011, p. 56-57) leciona que essa fase é de elaboração dos autos, ao qual serão transcritos e documentados todos os atos realizados durante o reconhecimento. Ademais, destaca que sem a referida documentação, toda a fase de reconhecimento será inválida.
No que concerne ao valor probatório, essa espécie de reconhecimento, conforme Pick (2017, p. 49), é comumente aplicada com o objetivo de identificar o autor do delito no decorrer da persecução penal, quando este se recusa ao reconhecimento pessoal, ou quando por alguma razão alheia à investigação, bem como quando não houver indicação mínima de autoria do delito.
Partindo dessa premissa, Pacelli (2021, n.p.) ensina que o reconhecimento por fotografias não poderá, em hipótese alguma, possuir o mesmo lastro probatório do reconhecimento de pessoas, em virtude da complexidade da comparação entre uma fotografia e uma pessoa. Por outro lado, o autor afirma que esse meio de prova deverá ser aplicado com ressalva em alguns casos, quando for preciso corroborar as demais provas.
Com efeito, esse meio de prova poderá ser aplicado de forma excepcional, subsidiariamente, uma vez que conforme destaca Lopes (2011, p. 131), “o reconhecimento fotográfico é aquele realizado diretamente sobre a imagem do acusado. Não há uma observação direta sobre o imputado, mas sobre a sua fotografia.”
Na mesma linha, Lopes Jr. (2019, p. 498) frisa que o reconhecimento por fotografias é um exemplo de prova inaceitável que apenas pode ser empregado como ato de preparação do reconhecimento de pessoas, com fundamento no artigo 226, I, do CPP, aplicado quando o réu exerce seu direito de permanecer em silêncio e se escusa de participar no todo ou em parte do ato do reconhecimento de pessoas. Destaca, ainda, que o meio de prova estudado jamais poderá substituir o reconhecimento pessoal.
Noutro giro, para Souza (2014, p. 245-246), o reconhecimento fotográfico é considerado meio de prova irrepetível, e mesmo diante da observância do procedimento legal referente ao reconhecimento pessoal, não há igualdade entre ambos, visto que o reconhecimento por fotografia é uma modalidade, meio atípico ou meio de prova inominada, podendo ser admissível pelo julgador.
Távora e Alencar (2014, p. 594) ratificam a posição classificando o reconhecimento fotográfico como meio de prova inominada, em razão da ausência de previsão no ordenamento jurídico brasileiro e aspectos procedimentais exclusivos. No mais, destacam o posicionamento dos tribunais superiores, ao qual admitem a aplicação do meio de prova inominada, desde que devidamente confirmada por outros meios de provas.
De forma contrária, Aranha (2004, p. 228) ressalva que o processo penal prevê apenas o reconhecimento pessoal, e não o reconhecimento fotográfico, sendo este inadmissível como meio de prova, posto que não há previsão na lei processual. No mais, destaca que no reconhecimento de pessoas é possível observar “elementos profundamente valiosos” através da exibição da pessoa no “ao vivo”, o que denomina de “fisionomia motriz”, ou seja, as características de cada indivíduo, objetivo que não é possível alcançar mediante fotografias.
Esgotados os procedimentos essenciais para a realização do reconhecimento fotográfico à luz do artigo 226, do Código de Processo Penal e seu lastro probatório, importante se faz estudar este meio de provas com base na jurisprudência brasileira, como se passa analisar a seguir.
4.3 Jurisprudência aplicável ao reconhecimento fotográfico
A aplicação do reconhecimento fotográfico já foi por diversas vezes matéria discutida nos tribunais superiores. Ademais, conforme o HC 669.987/SP, a jurisprudência brasileira admitia a utilização do reconhecimento fotográfico em sede policial, bem como considerava o artigo 226, do Código de Processo Penal como “mera recomendação” e sua inobservância não acarretaria a anulação da prova. Com isso, vale destacar o seguinte trecho:
As disposições contidas no art. 226 do Código de Processo Penal configuram uma recomendação legal, e não uma exigência absoluta, não se cuidando, portanto, de nulidade quando praticado o ato processual (reconhecimento pessoal) de forma diversa da prevista em lei" (AgRg no AREsp n. 1.054.280/PE, relator Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, Sexta Turma, DJe de 13/6/2017).
Entretanto, a Sexta Turma da Corte do Superior Tribunal de Justiça (STJ), aos 27 de outubro de 2020, por ocasião do HC 598.886/SC, após uma análise minuciosa acerca do procedimento aplicado ao reconhecimento de pessoas tanto presencial quanto fotográfico, adotou novo entendimento para o artigo 226 do CPP, e tem se firmado no seguinte sentido:
O reconhecimento de pessoa, presencialmente ou por fotografia, realizado na fase do inquérito policial, apenas é apto, para identificar o réu e fixar a autoria delitiva, quando observadas as formalidades previstas no art. 226 do Código de Processo Penal e quando corroborado por outras provas colhidas na fase judicial, sob o crivo do contraditório e da ampla defesa. (HC 598.886/SC, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 27/10/2020, DJe 18/12/2020)
Diante da nova interpretação, com base no HC 598.886/SC, tem-se que o entendimento jurisprudencial acerca do reconhecimento por meio de fotografias é admitido em sede policial, desde que conduzido conforme a lei processual penal e, como tal, devidamente confirmada em juízo sob à luz do contraditório e da ampla defesa, nas seguintes condições:
1.1) O reconhecimento de pessoas deve observar o procedimento previsto no art. 226 do Código de Processo Penal, cujas formalidades constituem garantia mínima para quem se encontra na condição de suspeito da prática de um crime; 1.2) À vista dos efeitos e dos riscos de um reconhecimento falho, a inobservância do procedimento descrito na referida norma processual torna inválido o reconhecimento da pessoa suspeita e não poderá servir de lastro a eventual condenação, mesmo se confirmado o reconhecimento em juízo; 1.3) Pode o magistrado realizar, em juízo, o ato de reconhecimento formal, desde que observado o devido procedimento probatório, bem como pode ele se convencer da autoria delitiva com base no exame de outras provas que não guardem relação de causa e efeito com o ato viciado de reconhecimento; 1.4) O reconhecimento do suspeito por simples exibição de fotografia(s) ao reconhecedor, a par de dever seguir o mesmo procedimento do reconhecimento pessoal, há de ser visto como etapa antecedente a eventual reconhecimento pessoal e, portanto, não pode servir como prova em ação penal, ainda que confirmado em juízo. (HC 598.886/SC, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 27/10/2020, DJe 18/12/2020)
Para o Ministro Rogério Schietti Cruz, relator do Habeas Corpus supramencionado, mesmo que o reconhecimento seja realizado em conformidade com o artigo 226, do CPP, não deve ser considerado uma etapa que antecede o reconhecimento pessoal, mas como uma das diversas possibilidades de apurar a autoria delitiva, levando em consideração outras diligências admitidas na fase investigatória. Assim, conclui que não é possível condenar o acusado com base em provas que apresentam desacordo com as formalidades legais.
Nesse diapasão, para Fraga (2020, p. 9) é perceptível que, atualmente, os tribunais apresentam posicionamento pacificado com relação ao reconhecimento fotográfico, no sentido de que não é permitido prolatar sentença condenatória com base unicamente no reconhecimento por fotografias, sem a devida corroboração com outros meios de provas admitidas no Processo Penal, principalmente no que concerne ao reconhecimento em juízo.
Por todo exposto, além da inobservância dos aspectos procedimentais previstos em lei, outro fator é a influência do estado psicológico na memória humana, o que passa a analisar a seguir.
5 AS FALSAS MEMÓRIAS E O RECONHECIMENTO FOTOGRÁFICO
5.1 Álbum de suspeitos em sede policial
No Brasil, mais precisamente nos Distritos Integrados de Polícia (DIP’s), é comum a identificação de suspeitos através do álbum de fotografias, também chamado “catálogo de suspeitos” composto por fotos de indivíduos com algum antecedente criminal, ou seja, que foram presos anteriormente, e ocorrem em razão de não haver dados suficientes para identificar o autor do delito.
Conforme Lopes (2011, p. 88), quando ocorre algum delito e não há informações e/ou dados acerca da autoria delitiva, a polícia apresenta à vítima o álbum de fotografias, a fim de realizar a identificação do sujeito, ou seja, que o reconhecedor aponte algum dos suspeitos, com o objetivo de iniciar a fase investigativa.
Na mesma linha, assevera Gentil (2021, p. 61): “Ter sua foto em um álbum desse tipo significa poder ser reconhecido a qualquer momento como o autor de um delito.”
Ademais, Lopes Jr. (2019, p. 502) salienta que essa forma de reconhecimento é um meio de prova prejudicial, e no que se refere aos “álbuns de fotografias” presentes nas dependências policiais, alega que estes podem comprometer provas futuras, como o reconhecimento pessoal, visto que a vítima/testemunha, pessoa responsável pelo reconhecimento, quando chamada para analisar as fotos formula uma percepção prévia que culmina no comprometimento, de tal forma, da memória.
Dessa forma, conforme Almeida (2019, p. 50), o reconhecimento não deveria ser feito diretamente através da análise de fotografias, pois dá a entender que há suspeitas acerca da autoria do delito, em razão da composição do “álbum de fotografias” existentes nas delegacias, mas o ideal seria a pessoa relatar como é o suspeito antes de analisar as fotos, conforme o previsto no artigo 226, I, do CPP, procedimento realizado para reconhecimento pessoal.
No mesmo caminho, Lopes Jr. (2019, p. 502) assinala: “Portanto, é censurável e deve ser evitado o reconhecimento por fotografia (ainda que seja mero ato preparatório do reconhecimento pessoal), dado a contaminação que pode gerar, poluindo e deturpando a memória.”
Em outros dizeres, elucida Gentil (2021, p. 60) que mediante incerteza da vítima/testemunha no momento do reconhecimento, o julgador não deverá hesitar em aplicar o princípio do “in dubio pro reo”, ao qual implica dizer: na dúvida seja a favor do réu, assim, evitando que um inocente perca sua liberdade e seja condenado por um crime que não cometeu.
É o caso de Flávio Silva Santos, jovem negro de 30 anos, que teve sua liberdade retirada por 2 anos e meio após ser acusado de participar de assalto em sítio na Região Metropolitana de São Paulo no ano de 2019, e ser integrante do grupo envolvido. Após identificação na delegacia por meio de uma foto do Facebook, foi condenado a 13 anos de prisão. Decorrido alguns anos cumprindo pena, a defesa do réu mediante provas apontou as irregularidades na identificação fotográfica conduzida na delegacia. E, como resultado, obteve êxito na atuação, implicando na absolvição do acusado por habeas corpus do Superior Tribunal de Justiça (STJ), conforme matéria disponível no site JuriNews.
No caso em questão, conforme relatório do HC 669.987/SP, o reconhecimento do acusado ocorreu em sede policial sem a devida observância das formalidades previstas no artigo 226 do Código de Processo Penal, bem como sem amparo em outras provas, tendo sido o suspeito reconhecido por apenas uma das vítimas, mediante ausência de certeza, baseando-se em apenas uma foto, configurando, assim, o induzimento de falsas memórias. É importante mencionar que também foi realizado o reconhecimento pessoal após um ano contado da ocorrência do fato, tendo somente a apresentação do réu com duração de poucos minutos, sem que a vítima tivesse em mente características fisionômicas e/ou físicas do indivíduo, em razão da influência do decorrer dos anos e dos traumas sofridos.
Com efeito, o exemplo supracitado é um caso recente, com absolvição pelo STJ no mês de maio deste ano. Dessa forma, com embasamento no acórdão supracitado, é nítida a importância de observar minuciosamente o art. 226 do CPP, uma vez que o meio de prova utilizado no caso em questão pode conduzir o julgador a equívocos, quando não corroborado em juízo através do reconhecimento pessoal realizado de maneira cautelosa, sendo também um grande perigo, pois as fotografias apresentadas poderão implicar na formação de falsas memórias, resultando no apontamento de pessoa diversa da causadora do delito.
Após análise do caso, e com fulcro no HC 669.987/SP, é imperioso destacar que o reconhecimento fotográfico aplicado como substituto do reconhecimento pessoal é insuficiente para ensejar uma condenação criminal, vez que é um procedimento frágil para justificar o encarceramento de um indivíduo. E, quando for aplicado ambos os tipos de reconhecimento, ou seja, tanto o fotográfico quanto o pessoal, é de suma importância seguir as recomendações previstas no Código de Processo Penal.
Em outras palavras, Pick (2017, p. 53) enfoca que a vulnerabilidade do reconhecimento por diversos fatores pode acarretar desacerto, iniciando pela capacidade de memorização humana variável, a similitude entre os rostos apresentados, as condições no momento da observação, como o tempo de reconhecimento e a visibilidade, o estado emocional do reconhecedor e seu desejo de apontar a pessoa certa para alcançar um resultado positivo, bem como a autossugestão.
Desse modo, a Defensoria Pública do Rio de Janeiro realizou uma pesquisa entre janeiro e junho de 2021, no qual identificou que 80% dos réus presos mediante reconhecimento fotográfico cumpriram mais de um ano da pena em regime fechado. Os dados são: “Dos 242 processos analisados pela Defensoria, os réus foram absolvidos em 30% dos casos. Entre eles, mais de 80% (54 pessoas) estavam com a prisão preventiva decretada - há quem tenha passado quase seis anos encarcerado preventivamente até a absolvição”. (G1 RJ, 2022)
Por todo o exposto, em conformidade com o acórdão mencionado, necessário se faz a reformulação do ordenamento jurídico brasileiro no que concerne aos meios de provas, devendo o reconhecimento fotográfico em hipótese alguma ser aplicado sem a devida corroboração de outros elementos probatórios, observando o inteiro teor do artigo 226, do CPP, com toda cautela necessária, havendo nulidade dos processos que não obedecerem ao rito legal.
5.2 A influência das falsas memórias
Inicialmente, antes de analisar a influência das falsas memórias no reconhecimento fotográfico, é imprescindível definir e estudar brevemente a memória em si.
Assim, segundo Izquierdo (2018, n.p): “Memória significa aquisição, formação, conservação e evocação de informações”. O referido autor esclarece que aquisição se dá por meio da aprendizagem, ao qual é permitido memorizar aquilo que foi devidamente assimilado. Já a evocação, permite recordar a experiência vivida.
Em relação ao conteúdo, Gleitmann, Fridlund e Reisberg (2003, p. 343-344 apud Santos e Alves, 2019, p. 65) asseveram que a palavra memória faz referência aos processos mentais entre passado e presente, armazenando, assim, as informações adquiridas dos fatos ocorridos.
Para Flech (2012, p. 46), “A memória refere-se ao conjunto de mecanismos psíquicos responsáveis pelo armazenamento de informações e experiências vividas, possibilitando sua fixação, retenção e posterior evocação.”
Em relação ao ponto apresentado, para Izquierdo (2018, n.p), tem-se que a memória se divide em dois grupos: memória declaratória e memória procedural. A declaratória se refere aos fatos, eventos ou conhecimento. Já a procedural, faz alusão às capacidades ou habilidades motoras e/ou sensoriais, como por exemplo, nadar, andar de bicicleta, soletrar, dentre outros.
Ademais, no que concerne à memória e às falsas memórias, Gentil (2021, p. 40) assinala:
A memória humana é seletiva por natureza, com tendência a guardar informações parciais, geralmente iniciais e finais, com pouca ênfase ao conteúdo mediano, suscetível aos preenchimentos dados por esses mecanismos. Isso abre espaço às falsas memórias, que podem ser plenamente fabricadas a partir de dados inverídicos ou a partir de criações que partem da seletividade própria dos processos mnemônicos.
Acerca dos pontos levantados pelo autor, nota-se a relevante influência das falsas memórias no momento da identificação do possível autor do delito no ato do reconhecimento.
Para Lima e Venturin (p. 857), é errôneo confundir falsas memórias com mentiras, uma vez que o agente ao prestar esclarecimentos acerca de um fato, acredita realmente que as informações prestadas são verídicas, sendo impossível distinguir a fantasia da realidade.
Nesse sentido, Stein (2010, p. 36 apud Almeida, 2019, p. 63) ensina:
As Falsas Memórias não são mentiras ou fantasias das pessoas; elas são semelhantes às memórias verdadeiras, tanto no que tange a sua base cognitiva quanto neurofisiológica. No entanto, diferenciam-se das verdadeiras pelo fato de as Falsas Memórias serem compostas, no todo ou em parte, por lembranças de informações ou de eventos que não ocorreram na realidade. É fenômeno fruto do funcionamento normal, não patológico, de nossa memória.
De acordo com essa noção, Matida (2020, n.p.), afirma que "vítimas e testemunhas podem não ter motivos para mentir, o que não afasta o perigo de erros honestos sejam por elas cometidos em razão de falsas memórias."
Dessa forma, para Lima e Venturin (2020, p. 858), a memória possui um grau de vulnerabilidade elevado, visto que é capaz de confundir o indivíduo por meio de elementos fantasiosos que podem mudar o curso das ações, causando um grande risco para a aplicação das leis penais, em razão de serem distorcidos da realidade.
6 CONCLUSÃO
O presente Trabalho de Conclusão de Curso buscou analisar se o reconhecimento fotográfico como meio de prova é suficiente para ensejar condenação criminal no Processo Penal Brasileiro. Logo, tem-se como resultado do estudo que é um meio de prova vulnerável e eivado de falhas, suscetível a inúmeros erros judiciais.
Ademais, durante a persecução penal, a vítima/testemunha é chamada a reconhecer o autor do delito em sede policial. O referido reconhecimento deverá proceder-se com base no artigo 226, do CPP, ao qual, no primeiro momento, a pessoa lesada é convidada a descrever as características do suspeito; posteriormente, o suspeito será colocado ao lado de outras pessoas com características semelhantes para que o reconhecedor aponte-o; e, por último, após a realização do reconhecimento, a autoridade policial lavrará o termo juntamente com a pessoa reconhecedora e duas testemunhas, finalizando o procedimento. Contudo, na prática é totalmente diferente, uma vez que essa forma de reconhecimento se dá por apresentação do “álbum de fotografias” ou de fotografias retiradas das redes sociais conduzidas até a delegacia pelas vítimas ou testemunhas.
Diante do exposto, constatou-se que essa prova inominada, por si só, é insuficiente para fundamentar sentença criminal, por diversos fatores, quais sejam: não seguir os ditames do artigo 226 do Código de Processo Penal, referentes aos procedimentos adotados durante o ato do reconhecimento de pessoas, bem como não ser corroborado por outros elementos probatórios. Assim, é indispensável a observância do artigo supracitado, vez não se trata mais de mera recomendação, conforme nova interpretação do Superior Tribunal de Justiça, pois é imprescindível para evitar erros judiciais e a nulidade de tal prova.
Por conseguinte, outro fator é a falibilidade da memória humana, que pode ser influenciada tanto pelo esquecimento quanto pelas emoções e ânimo do reconhecedor, tal como pelas evocações da consciência. Sabidamente, é de olvidar que a vítima/testemunha lembre-se de absolutamente todos os fatos, visto que é importante levar em consideração o estado em que encontrava no momento do delito, tomada de nervosismo, ansiedade, e um turbilhão de emoções que podem afetar a credibilidade desse meio de prova.
No mais, insta ressaltar o tempo em que a vítima esteve na presença do autor, se foi suficiente para que memorizasse seu rosto e suas características; o tempo decorrido entre o delito e o reconhecimento; o ambiente, se havia visibilidade ou não; a gravidade do delito; e, as mudanças por quais o agressor passou durante o delito e o ato do reconhecimento. Além desses, há que se falar na natureza do crime, se houve emprego de arma de fogo ou violência, impedindo a pessoa lesada de visualizar o rosto do autor.
Notadamente, há diversos fatores externos que influenciam a capacidade de memorização.
No que concerne ao “catálogo de suspeitos”, este é composto por fotografias existentes nas delegacias há algum tempo. Com efeito, é questionável se o reconhecimento realizado por meio desse álbum será dotado de credibilidade, vez que as imagens são de má qualidade, impressas em preto e branco, impedindo que o reconhecedor visualize as características corporais e expressões do sujeito, bem como é apresentado ao reconhecedor antes da descrição de suas características (art. 226, I, CPP).
Levando em consideração os variados elementos que podem acarretar a fragilidade e vulnerabilidade do reconhecimento quando realizado por meio de fotografias, é possível afirmar que o valor probatório desse meio de prova é altamente suscetível de falhas, e deve ser aplicado de forma excepcional, quando realmente não for possível fazê-lo de forma pessoal, evidentemente, que com a confirmação de outras provas.
No tocante à concepção doutrinária, alguns autores concordam que o reconhecimento por fotografias anteceda o reconhecimento de pessoas, sendo ato preparatório deste, enquanto outros desconsideram absolutamente. Por outro lado, a jurisprudência brasileira admite o reconhecimento fotográfico, desde que seja realizado conforme o artigo 226, do CPP, e a inobservância deste dispositivo tornará a prova inválida, mesmo diante da corroboração em juízo.
Isto posto, conforme a pesquisa bibliográfica, conclui-se que não é possível condenar alguém cuja autoria delitiva esteja sustentada com base, exclusivamente, no reconhecimento fotográfico.
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Graduanda do Curso de Direito do Centro Universitário Fametro - Manaus/AM
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FREIRE, Erica Souza Braga. Análise da (in)suficiência do reconhecimento fotográfico como meio de prova para fins de condenação criminal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 11 nov 2022, 04:57. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/59958/anlise-da-in-suficincia-do-reconhecimento-fotogrfico-como-meio-de-prova-para-fins-de-condenao-criminal. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Gabrielle Malaquias Rocha
Por: BRUNA RAFAELI ARMANDO
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