DRA. EMANUELLE ARAÚJO CORREIA[1]
(orientadora)
RESUMO: O presente trabalho busca realizar uma abordagem acerca da revitimização da criança e do adolescente como uma possível consequência da desqualificação do Poder Judiciário na realização de inquirições judiciais. Com a progressão no âmbito dos direitos e garantias fundamentais da criança e do adolescente, manifestou-se urgência em implementá-los como premissas basilares para criação de mecanismos de proteção e prevenção social destinados a zelar pela segurança da criança e do adolescente. Logo fica claro que há necessidade de melhor atender este público em locais de apuração de infrações penais, especialmente os de natureza violenta. Dessa maneira, será verificado como a Lei de Depoimento Especial traz mecanismos que objetivam a coibição da revitimização de crianças e adolescentes. Esta pesquisa tem o caráter exploratório utilizando como metodologia a pesquisa qualitativa e analítica envolvendo assim uma revisão bibliográfica integrativa.
Palavras-chave: Lei de Depoimento Especial. Revitimização. Direitos da Criança e do Adolescente.
ABSTRACT: The present work aims to hold an approach about the revictimization of the child and teenagers as a possible consequence of the disqualification of the judiciary on the judicial statements. With the improvement of the social and fundamental rights of the child and the teenager, there was an urgency to implement them as basic premises to create mechanisms of protection and social prevention aimed to look after the safety of the child and teenagers. So, it’s clear that there is a need of better assist this public in places of investigation of criminal offenses. Thus, it will verify how the Special Testimony Act brings mechanisms that aims to restrain the revictimization of the child and teenagers. Then, this is exploratory research using the qualitative and analytical research being a literature review.
Palavras-chave: The Special Testimony Act. Revictimizacion. Fundamental right soft he child and the teenager.
1.INTRODUÇÃO
A sociedade brasileira, no processo de submeter-se aos efeitos da globalização em suas transformações progressistas e humanitárias, ainda se encontra na missão de superar a coisificação da criança e do adolescente em diversos contextos sociais que possuem o dever de receberem o jovem com cautela e prioridade. Historicamente, culturas de opressão física à criança frente às necessidades não assumidas pelos adultos de escutá-la e dar-lhe o poder de se expressar e representar foram reduzidas, entretanto, ainda há de referenciar a objetificação da infância como abordagem de tratamento consolidada no Brasil.
Sob a óptica da tríplice responsabilidade compartilhada na efetivação de direitos fundamentais da criança e do adolescente, este trabalho se valerá do Poder Judiciário como agente responsável pela proteção absoluta e prioritária destes como pessoas de direito em inquirições durante o processo criminal.
Decerto, o Sistema de Justiça por vezes falha em propiciar o tratamento adequado ao público infanto-juvenil enquanto figuram como partes de processos criminais. Frente às falhas institucionais, as quais geram violência e constrangimento, serão analisadas as intervenções judiciais introduzidas a fim de instituir medidas de contenção de atos abusivos por parte dos agentes públicos.
Adentrando a natureza processual do feito, a ação penal tem como instrumento principiológico a garantia do contraditório e a ampla defesa, o que torna extremamente relevante o mérito das provas produzidas, especialmente a oitiva da vítima. Dessa forma, pretende-se ponderar acerca dos danos causados ao processo enquanto ineficaz e reprimenda a recepção da criança ou adolescente nas oitivas judicias.
A problemática é identificada na submissão do jovem a um Tribunal - composto por homens inaptos tecnicamente para compreenderem a psicologia infanto-juvenil - para ser por eles questionado, subjugado e ter suas vulnerabilidades postas à discussão. Quando esse processo é inserido em um ciclo de repetições em razão dos trâmites administrativos e judiciais, a vítima se torna um instrumento do Estado.
O produto da carência legislativa no tocante a concretização dos direitos e garantias das crianças e adolescentes vítimas e testemunhas de condutas criminosas resulta no processo de revitimização, visto que os interrogatórios são formas de o jovem revisitar os fatos, causando repetições dolorosas. O Poder Judiciário no exercício de aplicar punição ao suposto infrator, negligencia a vida da vítima, sua intimidade e seus limites.
Com isso, na pretensão de normatizar um mecanismo direcionado a melhor receptibilidade das vítimas de violência sexual nas inquirições judiciais, fora sancionada a Lei nº 13.431, de 4 de abril de 2017, que estabelece o procedimento do depoimento especial como um instituto próprio para garantir a fruição dos direitos fundamentais durante as audiências perante autoridade policial ou judiciária.
Diante o exposto, o presente projeto de pesquisa pretende estudar os contrastes da oitiva da criança e adolescentes antes da implementação do procedimento de depoimento especial e após sua efetivação, bem como estudar o fenômeno da revitimização e como a supramencionada lei pode reprimir a sistematização da violência.
2.TRAÇAR O DESENVOLVIMENTO NORMATIVO DA INQUIRIÇÃO DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES NO PODER JUDICIÁRIO
Tradicionalmente, o colhimento de prova testemunhal é primordial em um processo judicial, estando sujeita qualquer pessoa inserida na coletividade e dotada de relações sociais a ser instada a participar da deslinde processual, seja como testemunha ou indivíduo cujo algum bem juridicamente tutelado foi ofendido.
Essa submissão é considerada um dever cívico, como também propensa a causar efeitos negativos, especialmente, problemas físicos e psicológicos, a depender do quão exposta fica a integridade do indivíduo e da preparação técnica dos agentes em conduzir as oitivas com humanização para que os limites sejam delineados.
Segundo Pelisoli, Cátula e Débora Dalbosco “uma vez que se trata de crime caracterizado, geralmente, pela não materialidade do fato, a palavra da (suposta) vítima torna-se, na maior parte dos casos, a principal forma de acessar os fatos”.
Notada a dificuldade para adequar-se às pessoas aptas a exercerem seus direitos e vontades a responsabilidade na obrigação de prestar testemunhos em processos judiciais que exigem formalidade e rigidez, há de se considerar uma agravante: a inquirição de crianças e adolescentes no sistema de justiça criminal.
A Constituição da República Federativa do Brasil, sob a influência da redemocratização em 1988 preceitua na redação do artigo 227 que “é o dever da família, da sociedade e do Estado em assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à dignidade, ao respeito, à liberdade, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.
O sistema protetivo também é composto na Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, tratado ratificado pelo Brasil, consignado no decreto no 99.710, de 21 de novembro de 1990. A convenção disciplina em seu artigo 12 acerca da “garantia à criança do direito de formular seus próprios pontos de vista e expressar suas opiniões livremente sobre todos os assuntos relacionados a ela''.
Nessa perspectiva, o Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei nº 8.069, possui posicionamento semelhante e contribui para o valor normativo da questão em seu artigo 28 e artigo 100 “assegurando à criança e ao adolescente o direito de terem sua opinião devidamente considerada e de serem previamente ouvidos por equipe interprofissional, respeitado seu estágio de desenvolvimento e grau de compreensão sobre as implicações da medida”.
Apesar de o conjunto normativo dispor de forma limitada acerca da proteção jurídica à criança e ao adolescente, é notório que não demonstrou preponderância na adequação dos atos processuais que exigem oitivas testemunhais de um público infanto-juvenil, o qual não era reconhecido por um viés humanizado, mas sob uma ótica possessiva, vistos como meros objetos do processo.
Ao explanar acerca da oitiva de crianças e adolescentes no Poder Judiciário, tem-se como um relevante atuante na causa o atual desembargador do Rio Grande do Sul José Antônio Dalto e Cezar, tendo despertado para a demanda e observado o amadorismo no atendimento à criança e adolescente no procedimento padrão adotado nas inquirições durante as persecuções criminais.
O tratamento era evidentemente inadequado, não apresentando bons resultados na produção de provas e na reação das vítimas e testemunhas ao ambiente, às pessoas e pela maneira que eram vistas, como meros objetos do crime.
O Conselho Nacional de Justiça, em matéria intitulada “Mitos e verdades do depoimento especial de crianças”, publicada no seu site oficial, escrita por Luiza Fariello em 29 de setembro de 2017, destaca como comportamentos inadequados em audiência de criança e adolescente:
Chamar a criança ou adolescente de “senhor” senhora; Não permitir o “tempo” da criança: interrompendo-a ou apressando-a; Utilizar vocabulário que a criança não compreenda, como ‘‘lascívia”, “concupiscência”, “libidinosos”, “genitália”; Mentir para a criança, declarando que o seu depoimento não influenciará o resultado do processo; Creditar à criança algum comportamento que a culpabilize pelo abuso sofrido: Por que você não pediu ajuda? Por que você não contou para ninguém naquela época? Você costuma falar mentiras? Que roupas você estava vestindo naquele dia? (CNJ. 2017.)
Em face do tratamento impróprio perpetuado pelo sistema, o Magistrado José Antônio Cezar compreendeu a necessidade de introduzir inovações legislativas no tocante a concretização dos direitos da criança e do adolescente nas inquirições judiciais, a fim de tornar o ato processual mais inclusivo, humanizado e efetivo em sua finalidade.
No ano de 2003 foi implementado o Depoimento sem Dano na 2ª Vara da Infância e Juventude de Porto Alegre. Ainda que não fosse uma previsão legal, o Depoimento sem Dano figurou um progresso no judiciário sendo o primeiro projeto nacional que visava a qualificação técnica da escuta judicial de crianças e adolescentes.
A inquirição deveria ser realizada em um espaço especializado, onde comporta a criança ou adolescente e um profissional do campo da assistência social ou psicologia mediador no ato processual, ao passo que as partes permanecem na sala de audiência comum. Equipados com escutas, o juiz, representante do Ministério Público, advogados e o mediador poderão se comunicar, elaborar questionamentos passíveis de correção tornando-os apropriados para a criança depoente.
O escopo da metodologia em garantir a inviolabilidade da dignidade e o respeito à integridade física e psicológica da criança e do adolescente, bem como a alteração pertinente no sistema de produção de provas criminais, foi o estímulo para que o Conselho Nacional de Justiça instituiu a Recomendação Nº 33 de 23/11/2010, que passou a denominar o serviço especializado de escuta em Depoimento Especial.
Assim sendo, o procedimento adquiriu visibilidade no sistema judiciário, sendo gradualmente estudado e implementado pelos demais Tribunais de Justiça. O Conselho Nacional de Justiça firmou da seguinte forma na recomendação supracitada de número 33:
CONSIDERANDO a necessidade de se viabilizar a produção de provas testemunhais de maior confiabilidade e qualidade nas ações penais, bem como de identificar os casos de síndrome da alienação parental e outras questões de complexa apuração nos processos inerentes à dinâmica familiar, especialmente no âmbito forense;
CONSIDERANDO que ao mesmo tempo em que se faz necessária a busca da verdade e a responsabilização do agressor – deve o sistema de justiça preservar a criança e o adolescente, quer tenha sido vítima ou testemunha da violência, dada a natural dificuldade para expressar de forma clara os fatos ocorridos;(CNJ 2017)
Em efeito ao posicionamento institucional, conforme constatado pelo próprio Conselho em julho de 2016, vinte e três dos Tribunais de Justiça estaduais providenciaram espaços adaptados para a execução do Depoimento Especial.
Como produto da iniciativa perpetuada pelo Doutor José Antônio Cezar, tal qual em razão das normas já editadas sobre a matéria, surge a Lei n° 13.431/2017 de 04 de abril de 2017 que regulamenta o Depoimento Especial.
Consoante ao apontamento realizado por Digiácomo em “Comentários à Lei nº 13.431/2017”, publicada pelo Centro de Apoio Operacional das Promotorias da Criança e do Adolescente e da Educação do Ministério Público do Paraná, o referido diploma inova ao promover pela primeira vez um órgão de referência responsabilizado pelo gerenciamento do depoimento especial que prioriza a proteção integral das crianças e adolescentes que figuram o processo como testemunhas ou vítimas.
A nova Lei tem como premissa aprimorar os mecanismos já existentes, ao passo que observa a necessidade de tornar célere a tomada de depoimento na medida que também impõe aos agentes o dever de conter a violência institucional no âmbito das políticas de atendimento, especialmente no judiciário.
A partir dessa normatização, são tidos como principais institutos o Depoimento Especial e a Escuta Especializada, o que preceitua a suma relevância em discriminá-los, posto que a matéria da presente pesquisa é o Depoimento Especial. Os procedimentos se opõem no sentido que a escuta especializada é adotada pelas redes de apoio no âmbito municipal, como nos espaços educacionais e da saúde, detendo uma finalidade social de cuidado. Por outro lado, o Depoimento Especial deve ser agregado numa conjuntura em que se investiga ou processa uma infração. Portanto, exige-se aos agentes do Judiciário e da Polícia que efetuem o Depoimento especial como uma produção antecipada de provas.
Interessa ao Direito tutelar o instituto do Depoimento Especial como um exercício da demanda constitucional em propiciar à criança e ao adolescente seus direitos e garantias, sobretudo, no processo penal. Ademais, deve o jurista compreender o método especializado de escuta como um instrumento habilitado para a apuração do ato ilícito, especialmente os de natureza sexual.
3.ELUCIDAR ACERCA DA FORMAÇÃO DO PROCESSO DE REVITIMIZAÇÃO E SEUS EFEITOS
Muito se explora acerca do crescimento da criminalidade e os fatores jurídico-sociais que o impulsiona, todavia, a urgência do sistema em entregar um resultado punitivo socialmente almejado pode negligenciar o titular do interesse penalmente protegido pela ausência de um tratamento adequado.
A carência de protocolos humanizados e estratégicos que visam uma qualificação na recepção, adequação e oitiva destinada ao ofendido do processo criminal é uma omissão estatal passível a gerar o processo de revitimização.
Nessa perspectiva, a criança e ao adolescente que se encontram em condição de vítima possui seus direitos duplamente violados, à princípio quando um crime ocorre em seu desfavor, lesionando um jurídico que lhe pertence e, posteriormente, pela inobservância de seus direitos e garantias quando presentes em uma delegacia ou Tribunal.
Também intitulada de vitimização secundária ou dupla revitimização, a revitimização é um fenômeno multidimensional que pode recair sobre aquele que tenha algum direito violado por uma conduta atípica sob a ótica do direito penal, sendo colocados seus interesses e necessidades em segundo plano nos trâmites processuais.
Esse fenômeno é notável na submissão do ofendido a depor acerca do fato ocorrido diversas vezes perante os órgãos de proteção. Dessa forma, a repetição de caracteres do ciclo de violência leva a criança a vivenciar novamente aspectos da violência que sofreu.
A quantidade de vezes que a criança repete o seu testemunho é, igualmente, determinante, pois, idealmente, ela só o deveria fazer uma vez, de modo evitar processos de revitimização.
Tais violências ocorrem no momento da inquirição, pelos mais diversos motivos, incluindo a troca da versão para o caso a partir de circunstâncias relacionadas a pressão familiar na tentativa de proteção do ofensor em razão dos laços familiares e da culpabilização da vítima pela prisão do agressor quando da violência sexual intrafamiliar.
A exposição massiva da criança e o adolescente às inquirições administrativas e judiciais possui fulcro na garantia de provas que constituem a acusação, visto que a palavra da vítima e o depoimento testemunhal em crimes violentos é uma prova estimada, especialmente quando não estão presentes outros elementos capazes de indicar a materialidade e autoria do delito.
O valor probatório da palavra da vítima, especialmente, intervém na convicção do julgador, assim como da mídia e da sociedade. Essa valoração é refletida nos vários julgados pelos Tribunais brasileiros no sentido de proferir condenação com fundamento principal na declaração do ofendido. Nesse diapasão entende a Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça que a jurisprudência da Corte Superior é no sentido de que, em crimes de natureza sexual, à palavra da vítima deve ser atribuído especial valor probatório, quando coerente e verossímil, pois, em sua maior parte, são cometidos de forma clandestina, sem testemunhas e sem deixar vestígios.
O que essas crianças/adolescentes necessitam certamente não é relatar de forma inquiridora e testemunhal o que lhes aconteceu, mas precisam de acolhimento e cuidado, sem a carga de responsabilização que lhes é colocada no sentido de provarem a culpa daqueles que os vitimaram.
Ao ponderar-se sobre o processo de vitimização secundária vivenciado por uma criança ou adolescente enquanto sujeito passivo, é evidente que a as características desenvolvimentais relativas à vulnerabilidade pela formação psicobiológica incompleta das funções e a natureza individual de cada um torna mais complexo o procedimento de acolhimento em um ambiente machista e adultocêntrico, como majoritariamente são os locais de tomada de depoimentos.
Ressalta-se que, entre os crimes violentos comumente praticados contra a criança e o adolescente, os de natureza sexual são os que submetem a vítima a um lugar de vulnerabilidade extrema pela exposição de sua integridade moral e física pelas circunstâncias de uma violência que não é discutida por políticas públicas de prevenção, no contexto familiar bem como, sob a concepção de acolhimento do indivíduo vitimado, pouco explanada no Judiciário.
Quando meninas e meninos são vítimas no âmbito da violência sexual, os efeitos e consequências de tais delitos são considerados mais graves, uma vez que são pessoas em desenvolvimento psíquico, físico, emocional, e que sofrem sequelas devastadoras em seu crescimento após se tornarem vítimas.
É certo que a primordialidade dos mecanismos de proteção frente ao processo de revitimização é identificada no atendimento psicológico e socialmente adequado às circunstâncias, evitando a incidência de danos na saúde e a transgressão às garantias legais da criança e adolescente como pessoa possuidora de direitos. Todavia, a vitimização secundária também é a causa de obstáculos firmados no Poder Judiciário e na veracidade dos fatos dispostos em depoimentos eivados de vícios na técnica empregada.
Isso pode acarretar prejuízo para a justiça, pois a vítima, por cansaço, pode omitir fatos ou, por considerar que está chamando atenção, pode aumentar os acontecimentos. Outra situação é o atendimento sem privacidade, expondo sua dor diante de terceiros.
Torna-se evidente que a qualidade e credibilidade dos atos processuais em sua forma de condução e, consequentemente, a matéria produzida ficam comprometidas caso não seja adotado um controle social que contenha as irregularidades institucionais que impulsionam o processo de revitimização.
A dupla vitimização é fomentada, sobretudo, pelos agentes públicos que exercem diretamente atividades que geram o constrangimento indevido ou que pela omissão corroboram para a continuidade da violência institucional.
O preparo técnico não é regra no serviço público, sendo identificados casos onde a revitimização e a violência ocorreram com a anuência dos representantes do Poder Judiciário e da Promotoria de Justiça, por meio de ações ou omissões, em decorrência de que não havia razões para a realização da inquirição em vista de que já haviam provas técnicas suficientes para comprovar o fato, necessitando- se somente de conclusão da realização da perícia.
À vista da precisão do preparo técnico e da intervenção de agentes especializados,os Conselhos Federais de Serviço Social e Psicologia assumiram o papel do mediador de depoimentos judiciais de crianças e adolescentes aos profissionais da psicologia e da assistência social através da Resolução 10/2010:
CONSIDERANDO o disposto na Lei nº 8.069/90, que dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente, bem como o Código de Ética da Profissão de Psicólogo;
CONSIDERANDO a necessidade de referências para subsidiar o psicólogo na Escuta Psicológica de Crianças e Adolescentes na Rede de Proteção; CONSIDERANDO os princípios éticos fundamentais que norteiam a atividade profissional do psicólogo e os dispositivos sobre o atendimento à criança ou ao adolescente contidos no Código de Ética Profissional do Psicólogo;
RESOLVE:
Art. 1o - Instituir a regulamentação da Escuta Psicológica de Crianças e Adolescentes na Rede de Proteção.
Art. 2º - A regulamentação de Escuta Psicológica de Crianças e Adolescente.
Resta demonstrado que os danos causados pela revitimização precisam ser reconhecidos pelo judiciário como um falha de sua atuação despreparada, para que, instado da responsabilizado que possui acerca das providências urgentes pendentes a serem examinadas e sanadas, o Poder judiciário qualifique seus instrumentos de proteção à criança e adolescente, assim como, passe a ter uma visão menos objetificada e observar quais são as formas corretas comunicação com eles, dessa forma, contendo a violência institucional.
O que essas crianças/adolescentes necessitam certamente não é relatar de forma inquiridora e testemunhal o que lhes aconteceu, mas precisam de acolhimento e cuidado, sem a carga de responsabilização que lhes é colocada no sentido de provarem a culpa daqueles que os vitimaram. É só com a garantia desses pressupostos que se tem, de fato, a constituição de uma prova judicial conforme previsto em Lei.
4.A COIBIÇÃO DA REVITIMIZAÇÃO COM OS PROCEDIMENTOS DE PREVENÇÃO ELENCADOS NA REFERIDA LEI
As demandas psicopedagógicas e judiciais que obstruem a condução correta das inquirições do público infanto-juvenil demonstraram grande necessidade de uma ampliação legislativa no âmbito do direito da criança e adolescente que intervenha na matéria processual penal a fim de sanar os vícios encontrados no padrão do procedimento de oitiva prevista no referido código ou, a falta da especialização desse ato processual.
Frente ao carecimento de proteção multidisciplinar e controle social, foi criada a Lei de Depoimento Especial, que compõe o corpo de sua redação com uma diversidade de recomendações direcionadas à prevenção e interrupção do processo de revitimização no âmbito administrativo, predominante em delegacias de polícia e judiciais, podendo ser aplicado em diferentes campos do direito como o direito civil nas ações de família, entretanto, possui protagonismo na persecução penal pela numerosa quantidade de crimes cometidos contra crianças e adolescentes.
Tem-se, portanto, um meio de obtenção de prova, um instrumento que oferece ao Poder Judiciário mais chances de extrair da criança e do adolescente a prova testemunhal necessária para o julgamento do acusado.
Como um sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência, a Lei nº 13.431/2017 é determinante na contenção da revitimização disciplinando de forma pragmática:
Artigo 1, § 1º Para os efeitos desta Lei, a criança e o adolescente serão ouvidos sobre a situação de violência por meio de escuta especializada e depoimento especial.
Artigo 2, § 2º Os órgãos de saúde, assistência social, educação, segurança pública e justiça adotarão os procedimentos necessários por ocasião da revelação espontânea da violência.
É previsto que o encargo de desempenhar as disposições da referida Lei e, especialmente, executar a escuta especializada é de diversos órgãos de atendimento público e acolhimento que exerçam a função de proteção. Entretanto, no tocante ao Depoimento Especial, como reforçado anteriormente, é um procedimento que deve ser executado pelas autoridades judiciárias e policiais, ambiente em que a revitimização costuma ser mais reforçada.
A primeira orientação quanto à condução do Depoimento Especial é o resguardo da testemunha ou da vítima de ter contato com a pessoa que a violentou ou atentou contra outro em sua presença, provocando-lhe efeitos psicológicos negativos. O propósito é privar a criança e adolescente de qualquer constrangimento ou, até mesmo, de se sentir ameaçada, causas que podem influenciar no seu depoimento.
Deve o magistrado incumbido a presidir a inquirição ou a autoridade policial repelir quaisquer condutas aptas a violar a intimidade de privacidade, devendo sempre zelar pela efetivação dos direitos e garantias da pessoa ouvida.
Nesse aspecto, frente a imprescindibilidade da preservação da intimidade, deverá o depoimento, ao ser inserido nos autos pelo qual foi determinado ou requerido, tramitar em segredo de justiça.
Nesse prisma, ressalta-se que o Depoimento Especial será tomado em sede de produção antecipada de prova judicial. Acerca das provas cautelares antecipadas, conforme dispõe Renato Brasileiro em seu Manual de Processo Penal, são aquelas produzidas com a observância do contraditório real em momento processual distinto daquele legalmente previsto, ou até mesmo antes do início do processo, em virtude de situação de urgência e relevância. (BRASILEIRO, 2020)
O local da tomada de oitiva deve ser preparado para o acolhimento devido e com privacidade. Nesse ambiente o entrevistador irá receber a criança ou adolescente para a realização do procedimento que, preferencialmente, ocorrerá apenas uma vez. Por se tratar de um momento que propicia instabilidade emocional além de não ser compatível com a capacidade de compreensão e consentimento da criança, apenas se justificada e autorizada pelo responsável legal, a inquirição poderá se repetir.
A Lei de Depoimento Especial, ainda que tenha enfoque na observância dos direitos e garantias da criança e do adolescente que figuram como testemunha ou vítima na persecução penal, também prevê a necessidade da ampla defesa do investigado.
Renato Brasileiro aduz que a ampla defesa pode ser entendida como uma defesa necessária, indeclinável e intermediada por um Defensor. (BRASILEIRO, 2020)
A ampla defesa garante que o réu possa se fazer presente em todas as inquirições, essa previsão está expressa na Legislação Processual Penal:
Art. 217. Se o juiz verificar que a presença do réu poderá causar humilhação, temor, ou sério constrangimento à testemunha ou ao ofendido, de modo que prejudique a verdade do depoimento, fará a inquirição por videoconferência e, somente na impossibilidade dessa forma, determinará a retirada do réu, prosseguindo na inquirição, com a presença do seu defensor.
Isto posto, essa garantia pode ser considerada mitigada no processo penal, como visto, e, de forma semelhante, considera o Depoimento Especial, visto que a Lei expressa que “o profissional especializado comunicará ao juiz se verificar que a presença, na sala de audiência, do autor da violência pode prejudicar o depoimento especial ou colocar o depoente em situação de risco, caso em que, fazendo constar em termo, será autorizado o afastamento do imputado”.
Portanto, o réu não poderá exercer o direito de presença na proeminência de circunstâncias desfavoráveis à criança e o adolescente. Havendo possibilidade da sua presença ser danosa para a qualidade do testemunho e para a saúde da vítima ou testemunha, será dispensada a sua presença.
O profissional especializado fica encarregado de, ao primeiro contato com a criança ou adolescente, realizar uma importante etapa do protocolo: o rapport, também chamado de relato livre. Esse método é utilizado para personalizar a entrevista, criar um ambiente mais acolhedor, abordar assuntos neutros, treinar a memória episódica e explicar os objetivos da entrevista, estando o equipamento de gravação audiovisual e de transmissão para a sala de audiências ativado.
Nessa oportunidade, utilizando-se da linguagem adequada e acessível e uma escuta ativa, deverá o entrevistador esclarecer sobre a configuração do procedimento, e informar a vítima ou testemunha dos direitos que ela possui.
O decorrer da inquirição irá se proceder cumprindo as premissas estabelecidas em Lei, em conjunto com a colaboração do entrevistador para elucidar os fatos para a criança ou adolescente e intermediando os questionamentos encaminhados pelas partes, logo, o Juiz, o promotor e o advogado poderão produzir questionamentos, cuja conveniência será analisada e após transmitido pelo profissional da psicologia ou assistência social.
O agente público pertencente aos orgãos públicos incumbidos de aplicar os mecanismos previstos nas determinações legais traçadas pela Lei 13.431/2017, caso descumpra as medidas, estará sujeito a imputação do crime de violência institucional incluído na Lei de Abuso de Autoridade:
Art. 15-A. Submeter a vítima de infração penal ou a testemunha de crimes violentos a procedimentos desnecessários, repetitivos ou invasivos, que a leve a reviver, sem estrita necessidade:
I - a situação de violência; ou
II - outras situações potencialmente geradoras de sofrimento ou estigmatização:
Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa.
§ 1º Se o agente público permitir que terceiro intimide a vítima de crimes violentos, gerando indevida revitimização, aplica-se a pena aumentada de 2/3 (dois terços).
§ 2º Se o agente público intimidar a vítima de crimes violentos, gerando indevida revitimização, aplica-se a pena em dobro. Brasil ([2019])
Desse modo, é evidente que o Poder Judiciário cessou a inércia quanto à vitimização nas inquirições judiciais de crianças e adolescentes. Além do sancionamento da Lei 13.431/2017 que inaugura os institutos do Depoimento Especial e a Escuta Especializada, também criminaliza a conduta de exercer e fomentar o processo de revitimização.
5.CONSIDERAÇÕES FINAIS
O desenvolvimento dessa pesquisa possibilitou uma compreensão acerca da proteção jurídica sobre crianças e adolescentes no âmbito de inquirições administrativas, como ocorre pelas autoridades policiais, e nas instruções criminais em juízo, o que evidencia uma falha legislativa. Essa proteção é precisa em face dos danos causados pela revitimização.
É sabido que a revitimização é um fenômeno passível de ocorrer sobre sujeito comum, todavia, quando figurado por uma criança ou adolescente, se torna um fator gerador de abuso de poder sobre quem não possui capacidade integral de compreensão, ao passo que a probabilidade de todas as formas de violência psicológica contra jovens se tornarem públicas é reduzida em razão do desmerecimento de uma denunciação feita por uma criança, por exemplo.
Se faz imprescindíveis a concretização dos dispositivos de proteção integrados pelo Depoimento Especial, de maneira a comprimir ao máximo espaços cabíveis para qualquer tipo de comportamento que venha a atingir a integridade física e psicológica do depoente, bem como prejudicar a credibilidade da produção de provas.
Dessa forma, pondera-se sobre o Depoimento Especial como um instituto multidisciplinar razoável do ponto de visto de psicopedagógico e processual. Se origina uma compatibilização entre a humanização do tratamento das pessoas envolvidas em trâmites processuais, a fim de que os agentes públicos recebam com responsabilidade quaisquer pessoas com suas nuances próprias, inclusive crianças e adolescentes, tal qual, que sejam as persecuções penais amparadas por procedimentos que objetivem a legalidade, verdade real e resguardo da dignidade humana, cumprindo suas devidas funções sociais.
Estima-se que há uma forte tendência de que os Tribunais de Justiça do território nacional compreendam ao aderir o Depoimento Especial que o dever público de zelar pelo bem-estar segurança das crianças e adolescentes é constante, e que o referido procedimento visa sanar uma lacuna de natureza jurídica-processual composta por uma série de violações aos direitos e garantias desse público que ainda são perpetuadas na contemporaneidade.
6.REFERÊNCIAS
ALVES-SILVA, J. O processo de revitimização de crianças que vivenciam a violência sexual. Boletim Científico, v. 15, n. 47, p. 11-52, 2016
ARAUJO, Juliana Moyzés Nepomuceno; DEMERCIAN, Pedro Henrique. O DEPOIMENTO ESPECIAL E A PREVENÇÃO DA REVITIMIZAÇÃO. Revista Jurídica da Escola Superior do Ministério Público de São Paulo, v. 19, 2021.
BRASIL (2012). Código Penal Brasileiro, Brasília, Brasil
BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, [2016]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ Constituiçao.htm. Acesso em: 20 set. 2022
BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente: promulgado em 13 de julho de 1990. 9.ed. São Paulo: Saraiva, 1999. (Coleção Saraiva de Legislação).
BRASIL. Lei nº 13.431, de 4 de abril de 2017. Estabelece o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência e altera a Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente). Brasília, [2017]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13431.htm. Acesso em: 22 set. 2022.
BRASIL. Lei nº 13.869, de 5 de setembro de 2019. Dispõe sobre os crimes de abuso de autoridade; altera a Lei nº 7.960, de 21 de dezembro de 1989, a Lei nº 9.296, de 24 de julho de 1996, a Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, e a Lei nº 8.906, de 4 de julho de 1994; e revoga a Lei nº 4.898, de 9 de dezembro de 1965, e dispositivos do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal). Brasília, [2019]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13869.htm. Acesso em: 19 set. 2022.
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DIGIÁCOMO, Murillo José; DIGIÁCOMO, Eduardo. Comentários à Lei nº 13.431/2017. Ministério Público do Estado do Paraná. Publicado em, 2018.
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PANZA, Juliana Christofoli. Depoimento Especial e a subordinação de direitos ao sistema penal: uma tríplice violação. Serviço Social & Sociedade, p. 162-176, 2022.
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RECOMENDAÇÃO Nº 33 - CNJ." https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/878. Acessado em 14 set..2022.RESOLUÇÃOCFP Nº 010/2010 http://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2010/07/resolucao2010_010.pdf.
VILELA, L. F. Enfrentando a violência na rede de saúde pública do Distrito Federal. Brasília, Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal, 2005.
[1]Orientadora, possui graduação em Direito pela Faculdade UNIRG-TO; Especialização “lato-sensu” em Direito Processual Civil e Penal (2006) e em Direito Público (2007), pela Faculdade FESURV-GO; Mestrado em Direito pela Universidade de Marilia-SP (2010), Doutorado em Direito Privado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2017). Atua como advogada no Estado do Tocantins. Tem experiência na área do Direito, com ênfase em Direito Civil e Direito Processual Civil.
Graduanda do curso de Direito do Centro Universitário Católica do Tocantins.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PEREIRA, BARBARA MARQUES. A revitimização de crianças e adolescentes e suas consequências na persecução penal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 18 nov 2022, 04:18. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/60097/a-revitimizao-de-crianas-e-adolescentes-e-suas-consequncias-na-persecuo-penal. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Gabrielle Malaquias Rocha
Por: BRUNA RAFAELI ARMANDO
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