RESUMO: O objetivo do estudo é aferir se, diante da alteração legislativa sofrida no Código de Processo Penal, consistente na inserção do art. 3º-A pela Lei nº. 13.9674/2019, ainda há espaço para que o juiz criminal determine, de ofício, a produção de provas. Tal necessidade decorre do esclarecimento, no nível legal, de que nosso processo penal se rege pelo sistema acusatório, frente ao fato de que esta estrutura admite variações. A partir da revisão da literatura, sustentamos que houve redução – mas não eliminação – dos espaços de liberdade do juiz, os quais podem variar conforme os elementos de prova sejam dirigidos a corroborar a hipótese acusatória ou a hipótese defensiva.
Palavras-chave: Dicotomia. Sistemas. Acusatório. Inquisitório. Modelos Históricos. Gestão da Prova. Atuação. Supletiva. Incremento. Hipótese. Defensiva.
INTRODUÇÃO
Neste artigo questionamentos um dos impactos, a ser sentido no campo da atuação probatória de ofício do juiz criminal, decorrente da expressa admissão legal (Lei nº. 13.964/2019) da estrutura acusatória do processo penal brasileiro, consubstanciada na inserção do 3º-A (“Art. 3º-A. O processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação”) ao Código de Processo Penal (CPP). Indaga-se em qual medida a consagração legal do modelo acusatório modelará os amplos poderes instrutórios previstos na regra geral do art. 156 do CPP e pontuados ao longo de toda lei procedimental.
Muito embora o art. 129, I, da Constituição Federal, ao atribuir a titularidade privativa da ação penal ao Ministério Público, já tenha estabelecido o pilar do sistema acusatório, ainda existe discussão sobre o grau de pureza do modelo procedimental vigente e da correlata filtragem constitucional a ser imposta ao CPP.
Faremos recorte para abordar o desempenho probatório do juiz criminal que seja identificado como juiz da instrução e julgamento (art. 3º-C, §1º, do CPP), abstraindo-se das interferências judiciais para coleta de prova na fase investigativa, assunto afeto ao juiz das garantias (artigos 3º-B a 3º-F, do CPP). A par das discussões sobre a necessidade de inclusão de um segundo juiz para atuar desde a fase investigativa até o recebimento da denúncia, não grassam maiores dúvidas sobre a imprescindibilidade do distanciamento do juiz na coleta de elementos de informação, justificando-se a atuação jurisdicional exclusivamente para avaliação dos pedidos, formulados pelos órgãos de persecução penal, de adoção de medidas invasivas à liberdade, intimidade e privacidade dos investigados.
Embora o artigo 3º-A do CPP não guarde correlação específica com o juiz das garantias, mas sim faça uma anotação sistêmica, está com vigência suspensa indeterminadamente, por força da medida liminar proferida pelo Ministro Luiz Fux, relator de três ADIs (nºs. 6.298, 6.299 e 6.300) que questionaram a constitucionalidade desse instituto. Em razão do afastamento do conteúdo do art. 3º-A do corpo normativo formado pelos subsequentes artigos 3º-B a 3º-F do CPP são poucas as chances do primeiro vir a ser declarado inconstitucional, mantendo-se interesse em seu estudo.
A partir de revisão bibliográfica, pretende-se lançar algumas luzes, segundo a lógica do sistema acusatório, no modelo teórico aproximativo do ideal para comportamento probatório do juiz.
1. BREVES COTEJOS ENTRE ESTRUTURAS ACUSATÓRIA E INQUISITÓRIA DO PROCESSO PENAL
Embora não se pretenda aprofundar em estudo de Direito comparado, para se traçar o modelo teórico para o juiz brasileiro é necessário compreender como princípio acusatório é assimilado em países de origem de civil law em contraste com os países de tradição de commom law.
Importa sejam apresentados referenciais teóricos que auxiliem o juiz a ter clareza sobre seu espaço de atuação na instrução de ações criminais e em qual medida as várias disposições contidas na lei processual penal são compatíveis com a adoção do sistema acusatório. O art. 156 do CPP estabelece norma geral de poderes probatórios de amplo espectro e permite ao juiz deflagrar produção de provas para dirimir dúvida sobre ponto relevante ao julgamento. Quanto aos meios de prova em específico, há autorizações no CPP, por exemplo, para que o juiz, espontaneamente, verifique falsidade de documentos (art. 147), determine realização de exames de corpo de delito (art. 168), conduza e formule perguntas no interrogatório (art. 188), reinterrogue acusados (art. 196), ordene diligências complementares ao final da audiência de instrução (art. 404) ou na sessão do júri (art. 497, XI), indique testemunhas (art. 209), antecipe inquirição de testemunhas em caso de risco de perecimento (art. 225), requisite documentos (art. 234), e até realize pessoalmente buscas domiciliares (arts. 241 e 242).
A delimitação das fronteiras da atividade probatória do juiz no sistema acusatório depende da identificação das características essenciais dos dois sistemas processuais antípodas e da compreensão de como elas dialogam com a cultura jurídica brasileira.
O sistema acusatório moderno foi gestado na Idade Média, a partir do século XIII, insulado na Inglaterra, de onde mais tarde se espraiou para os Estados Unidos. Caracteriza-se pela demarcação institucional das funções de investigar, acusar e julgar. Regido pelo princípio dispositivo, segundo o qual compete exclusivamente às partes apresentarem alegações e respectivas provas, pressupõe um juiz alheio e passivo, que apenas controle a admissão processual de fontes de provas (evidences) e mantenha a paridade procedimental das partes litigantes. O juiz sequer valora as provas, pois os julgamentos competem aos jurados. O procedimento se desenvolve de modo dialético, implicando essencialmente numa disputa argumentativa entre as duas partes litigantes.
O sistema inquisitorial é correlacionado aos modelos de justiça criminal paulatinamente desenvolvidos a partir do século XIII na Europa Continental, inspirados no Direito Canônico de punição de heresias. Revela-se na aglutinação das funções de investigar, acusar e julgar, o que impossibilitava a imparcialidade do julgador. Ausência de contraditório e gestão das provas nas mãos do juiz também deram a tônica dos procedimentos criminais deste modelo. Regido pelo princípio inquisitivo, a principal missão do juiz era buscar conhecimento dos fatos. Por ter como premissa ideológica a ampla reconstrução da verdade, o acusado não era visto como sujeito de direitos, mas sim como objeto de extração da verdade, o que justificava a prática de torturas para obtenção de confissões. Desenvolvia-se mediante procedimentos escritos e sigilosos.
Damaska (1986) apresenta nuances a esta dicotomia entre o desenvolvimento dos sistemas acusatório e inquisitório, respectivamente, na Inglaterra e no Continente Europeu. Ao tratar do procedimento criminal vigente no Ancien Régime, o autor demonstra que a imantação entre os sistemas é mais antiga do que normalmente se aborda, já que no Continente o sistema inquisitório floresceu em detrimento de precedente compreensão adversarial de se fazer justiça criminal. Afirma que no início da Idade Média, também na Europa Continental, a solução de crimes era assimilada como questão privada entre acusado e vítima (ou sua família), acarretando em processos protagonizados pelos adversários. À medida em que as autoridades (hoje concebidas como estatais) e Igreja Católica expandiram seus poderes, passaram a encampar a titularidade dos procedimentos para que os crimes fossem punidos mesmo que não houvesse ação da vítima. Operou-se, assim, mudança da concepção de justiça criminal como essencialmente solucionadora de conflitos entre partes pela assunção de oficialidade controladora e propulsora do inquérito, o que acarretava na obrigação do magistrado buscar a verdade unilateral sobre a ocorrência de crime. Inspirados pelos procedimentos eclesiáticos, os legisladores do civil law desenharam modelos de promotorias com atribuições para construir os casos com base em suas próprias hipóteses, sem tomar em conta as alegações dos investigados; apesar da adoção de procedimento de matriz inquisitorial, o sistema acusatório continuava a ser considerado o referencial teórico, erigido a ideal de justiça criminal.
O marco legal da combinação dos dois sistemas é o Código Napoleônico de 1808, o qual instituiu um procedimento bifásico, composto da fase pré-judicial, investigativa e regida pelo princípio inquisitivo, e fase judicial obediente ao princípio dispositivo.
Ainda segundo Damaska (1986), após a Revolução Francesa os reformadores tentaram resgatar as diretrizes do sistema acusatório, mas estavam cientes de que a estrutura das promotorias, àquela altura burocratizada e hierarquizada, não propiciaria um ambiente verdadeiramente adversarial, mas sim persecução penal orientada à aplicação de políticas públicas relativas ao combate ao crime, apartadas de relações pessoais com o acusado. Ainda assim, os reformadores esforçaram-se para inserir medidas adversariais nos procedimentos criminais de base inquisitorial, a mais importante delas o rebaixamento da investigação unilateral a mero veículo de orientação ao promotor. Avalia que a estrutura rigorosamente adversarial nunca foi atingida, o que demandaria que dois “casos” (narrativas fáticas e respectivas evidências, a serem obtidas, selecionadas e apresentadas pelas próprias partes), construídos separadamente pela acusação e pela defesa, fossem submetidos ao crivo do julgador. Ao contrário, na Europa Continental é submetido a julgamento um caso integrado, erigido a partir da versão exclusiva da acusação, o que significa que, no final das contas, ao julgador compete uma espécie de revisão do trabalho do inquérito.
As características destes dois sistemas paradigmas configuram modelos históricos, os quais não mais persistem de modo puro, tendo as diversas legislações absorvido e sintetizado, em maior ou menor grau, características de ambos os sistemas.
Taruffo (2014) alerta que as distinções (adversarial X inquisitorial; princípio dispositivo X princípio inquisitivo) baseiam-se em definições vagas e multifacetadas e representam tendências globais, frequentemente usadas como argumentos retóricos para apoiar ou rejeitar ideologias específicas do processo, criando-se artificiais sinonímias entre, de um lado, autoritarismo e sistema inquisitorial e, de outro, entre sistema acusatório e valores de liberdade, imparcialidade e democracia.
A demonstrar que o sistema adversarial também apresenta aspectos destoantes da ampla defesa, contraditório, e paridade de armas, podemos citar o “efeito riqueza” (wealth effect), apontado por Langbein (2003) como produto de profundo defeito sistêmico: o procedimento adversarial privatiza a investigação e apresentação das evidências, o que acarreta em desvantagem aos acusados pobres, já que a coleta de informações demanda expertise e recursos financeiros. Pior situação se encontrarão os réus presos na espera de julgamento.
Do ponto de vista da civil law, outra faceta compressora da ampla defesa existente no modelo Anglo-Americano decorre de sua estrutura horizontalizada e organizada em teia. Assim, as decisões de baixo escalão (primeiro grau) são assimiladas pelas partes como definitivas, não havendo expectativa de que a decisão seja submetida, de modo processualmente facilitado, a graduais níveis de revisão.
Para etiquetar uma das variantes do sistema acusatório, usam-se as expressões “adversarial” ou “acusatório puro” em referência ao sistema Anglo-Americano de justiça criminal, cuja fase pré-processual (desenvolvimento de investigações paralelas pela polícia e réu, culminando com duas narrativas que concorrerão no julgamento; várias formas de negociação entre as partes) e arcabouço da promotoria (promotores “leigos”, localmente eleitos, mais pessoalmente engajados) acarretam em predominância das atividades argumentativa e probatória das partes. Quanto aos procedimentos criminais Continentais, notadamente em decorrência da inserção de um ator oficial (promotor de justiça), distinto do julgador, como o responsável pela coordenação da investigação e formulação da acusação, compreende-se que conseguiram se livrar da natureza inquisitória e alcançar o modelo acusatório abrandado de procedimento criminal.
Especificamente com relação à gestão da prova, calha distinguir que na cultura da common law deposita-se confiança de que justiça será alcançada mediante estrita correção do procedimento (procedural justice), daí porque os momentos mais sensíveis são pré-processuais, de coleta e admissão da prova, sujeitos ao escrutínio judicial na fase da discovery.
Diferentemente, nos procedimentos criminais ambientados na civil law não há, via de regra (isto é, a não ser nos casos de evidências cuja obtenção sejam afetas à reserva de jurisdição), controle judicial da legitimidade das informações que compõe o inquérito. Isto porque, como anota Prado (2019), em países de tradição de civil law o apogeu da prova é sua valoração pelo juiz. A confiança no sistema de justiça depende da avaliação racional, metódica e concatenada dos fatos pelo juiz, não bastando o monitoramento judicial para que as partes tenham tratamento igualitário no processo.
Portanto, a passividade e alheamento do juiz criminal na gestão da prova condizem com os procedimentos anglo-americanos e, segundo Damaska (1986), esta postura está mais atrelada ao pragmatismo do que à fidelidade teórica ao modelo adversarial. Como não é disponibilizado no processo um arquivo contendo a documentação da investigação preliminar oficial, o juiz se apresenta ao julgamento sem estar familiarizado com o conteúdo da disputa. De modo geral (há concessões para casos complexos) o julgamento se desenvolve numa audiência contínua (day in court), com colheita de prova exclusivamente oral, e a informação é transmitida mediante intensa e dinâmica disputa entre argumentos e contra-argumentos das partes. Neste ambiente altamente competitivo e performático, a decisão final é menos produto de raciocínio lógico do que de uma espécie de raciocínio atônito e de ponderações de equidade.
Certamente, neste contexto teatral, a acuidade das decisões é prejudicada mas, na lógica do sistema adversarial, a justiça do procedimento – estruturada sobre a estrita imparcialidade do juiz – é considerada mais importante do que a correção dos resultados e espelhamento da verdade. A propósito, não se espera na justiça criminal Anglo-Americana que fatos inconvenientes às partes sejam por elas revelados, sendo encarado com naturalidade, por exemplo, que a acusação não revele uma evidência, por si descoberta, potencialmente benéfica à defesa.
O jurista formado na cultura da civil law opera a partir de premissas completamente diferentes. Os oficiais do Estado de justiça criminal (promotores e juízes) integram aparato burocrático piramidal e, dos membros da base, é esperado mergulho aprofundado na prova e esquadrinhamento metódico dos fatos. Gradual distanciamento e ajuste para um foco macro ocorrem à medida em que se percorre a trilha recursal até o topo da pirâmide. Da perspectiva da civil law, é insuficiente que haja coerência nas narrativas factuais apresentadas pelas partes e, portanto, a prova assume feição heurística. Assimilada a impossibilidade de perfeita reconstrução dos fatos ocorridos no passado, busca-se, não obstante, atingir o máximo grau de probabilidade de que os elementos de prova trazidos ao processo guardem correspondência com o mundo dos fatos.
Embora existam várias correntes de pensamento cético - que negam o próprio conceito de verdade ou de que ela possa ser alcançada no processo - a busca pela verdade não é considerada quixotesca nos países de tradição romano-germânica, mas sim o referencial a ser alcançado para legitimar a justiça da decisão. Taruffo (2014) critica o ceticismo ao ponderar que, se não for orientado a determinar a verdade dos fatos, o processo assumirá função meramente simbólica, para fazer parecer aceitável qualquer tipo de decisão.
Em sentido convergente, Prado (2019) defende a adoção da verdade como indicador epistêmico, direcionado à distinção, um lado, de um tipo de processo baseado na pesquisa e demonstração – sujeitas a controles éticos- de fatos penalmente relevantes e, de outro, processos fundados na determinação da responsabilidade penal a partir do consenso ou de critérios subjetivos inaferíveis.
2.A GESTÃO DE PROVAS DE MODO SUPLETIVO E/OU EM FAVOR DO ACUSADO
A ressonância do modelo Continental de justiça criminal deve ser levada em conta para tratar o procedimento brasileiro como uma das variantes do sistema acusatório. Não parece factível que a consagração em lei da estrutura acusatória seja apta a transportar o processo penal brasileiro para dentro do complexo de significados da common law, em detrimento de todo o arcabouço jurídico estruturado na civil law. E, em assim sendo, seria possível calibrar certo nível de ativismo do juiz dentro do modelo acusatório.
A busca da verdade aproximativa pelo juiz, dotando-o limitadamente de poderes instrutórios, não implica em concessões ao sistema inquisitório. Após substancial pesquisa na doutrina nacional e estrangeira, Badaró (2019) afirma prevalecer entendimento de que a característica essencial e insuprimível do sistema acusatório é a clara separação das funções de acusar, julgar e defender, ao passo que a gestão da prova pelo juiz tem relevância secundária.
Os modelos acusatório e inquisitório não enxergam a verdade sob as mesmas lentes. Badaró (2019) afirma que a busca da verdade do sistema inquisitório continha vício de origem, já que o juiz inquisidor buscava provas para confirmar hipóteses por si formuladas, defeito corrigido no modelo acusatório mediante afastamento do juiz da investigação e da elaboração dos termos acusação. Além disto, a verdade inquisitória é ambiciosa, pretende ser absoluta; ao passo que a verdade no processo acusatório, mero referencial epistêmico, é aproximativa, sempre condicionada pela falibilidade da reconstrução de fatos ocorridos no passado.
O próprio artigo 3º-A do CPP deixa espaço para atuação de ofício na fase judicial do procedimento, tendo proibido o juiz de substituir a acusação em seu protagonismo e, a contrário senso, permitiu atuação subsidiária.
Mas como isso se expressaria na prática forense? Pacelli (2019), um dos juristas que integrou a Comissão responsável pela elaboração do PL nº. 8.045/2010, informa ser sua a concepção da redação desse artigo e esclarece que não se pretendeu um juiz inerte, tal qual o modelo norte-americano. Orienta que o juiz somente determine produção de provas para fins de esclarecimento de dúvidas sobre pontos ou questões já trazidos pelas partes e, ainda assim, em se tratando de argumento da acusação, desde que respectivos meios de prova não estivessem à disposição ou acessíveis.
Em síntese, a lei permite ao juiz determinar, por conta própria, a internalização de fontes de prova já mencionadas no processo por qualquer das partes; adicionalmente, para determinar o ingresso processual de fontes de prova relativas aos fatos que dão suporte à tese acusatória, exige-se que a omissão probatória esteja justificada por impossibilidade do acusador em obtê-las.
Mas Pacelli (2019) vai além, para incentivar ativismo em favor da defesa, ao preconizar que o juiz determine de ofício produção de provas sempre que enxergar possibilidade de demonstração da inocência do réu.
Esta abertura de espaço para atuação judicial de índole humanitária é vista com sérias reservas por Lopes Júnior (2020), partidário da tese da gestão da prova como fator de distinção entre os sistemas. O autor desconfia das boas intenções e sustenta que o juiz pode fingir pretender obter provas favoráveis à defesa quando, em seu íntimo, estiver interessado na condenação. Em artigo escrito a quatro mãos por Lopes Júnior e Rosa (2020), é prevista iminente sabotagem inquisitória na interpretação do art. 3º-A do CPP, decorrente de reducionista compreensão do sistema acusatório. Argumentam que a atribuição da carga probatória é exclusiva da acusação, não havendo qualquer compartihamento com a defesa; se houver dúvida, o acusado deverá ser absolvido com base na presunção de inocência, portanto, este princípio constitucional dispensa o papel ativo do juiz.
Afora as especulações quanto às verdadeiras intenções do juiz ao determinar a produção da prova, para contrapor este argumento de inegociável impossibilidade do juiz determinar produção de prova, há de se ter em conta, com base em Lima (2014), que existem duas correntes sobre a distribuição do ônus da prova: a majoritária, compreende que o princípio do in dubio pro reo não exime a defesa da carga probatória, mas sim lhe atribui carga mais leve, incumbindo à defesa conseguir pelo menos criar estado de dúvida. De outro lado, há corrente minoritária que defende que o ônus da prova seja exclusivo da acusação.
Os ensinamentos de Malatesta (2005) estão alinhados com a corrente majoritária ao afirmar que basta ao acusado que sua asserção seja crível, mesmo que a prova da defesa seja inferior à da acusação. Já Badaró (2019), partidário da corrente minoritária, defende que dizer que a defesa deva se limitar a apresentar provas de probabilidade equivale a admitir que o ônus da prova pertence ao acusador: se basta ao acusado gerar dúvidas sobre a existência do fato, para não que não prevaleça a posição mais favorável, o Ministério Público terá que convencer o julgador sobre esta existência.
Neste contexto, mesmo a corrente de pensamento mais garantista não consegue se desprender totalmente da necessidade de a defesa do acusado, pelo menos, ser capaz de gerar dúvidas plausíveis sobre os fatos alegados e mostrados pela acusação. Quer dizer, diante do quadro probatório apresentado pela acusação, os argumentos de exclusão precisam estar ancorados num mínimo de verossimilhança e, portanto, eventualmente o juiz poderá deixar a inércia e promover a entrada nos autos de evidências desta exclusão.
O princípio da presunção de inocência não impõe que o sistema de justiça privilegie a manutenção da dúvida, nem que se contente com meras alegações defensivas em detrimento de elementos de prova apresentados pela acusação. Desta feita, o fato de o ônus da prova ser atribuído à acusação não chega ao ponto de estimular a inércia da defesa, convidando-a assumir posição passiva, mas sim garantir que ao final, caso remanesçam dúvidas, a defesa não seja punida pela sua eventual inação.
É possível que a defesa apresente, sem provar, versão dos fatos apta a desconstruir a hipótese acusatória, esta por sua vez suportada por elementos de prova. Nem sempre a hipótese da defesa será contraditória à hipótese acusatória, de modo que uma necessariamente exclua a outra. No caso de hipóteses contraditórias, mutuamente incompatíveis, é mais simples admitir o argumento de que caberia somente à acusação provar sua hipótese e, não o fazendo, o caso seria de absolvição, sem necessidade de o juiz buscar por evidências da hipótese defensiva. Ocorre que há um outro tipo de dissonância entre hipóteses, mais branda, a conflituosidade (SCHUM, 1994). No caso de hipóteses conflituosas, em estando a hipótese acusatória suficientemente respaldada por evidências, cabe então ao juiz avaliar se a hipótese defensiva seria capaz de “neutralizar” a hipótese acusatória. Daí se abre espaço para atuação de ofício do juiz, o qual, por considerar a versão da defesa verossímil, poderá buscar elementos para sua confirmação.
Portanto, partindo-se das premissas de que a aplicação dessa regra de julgamento pressupõe estado de dúvida; de ser possível que a defesa do réu (notadamente mediante autodefesa, no interrogatório), mediante meras alegações, apresente hipótese plausível que se contraponha às provas apresentadas pela acusação; de que a verdade almejada no processo é a verdade correspondente, no maior grau possível, com os fatos ocorridos, e não de mera coerência de discursos; admite-se que o juiz possa dar um passo além para, em favor da defesa, ser proativo e determinar produção de provas em substituição a uma defesa tecnicamente deficiente ou incompleta.
Calha ponderar que nem sempre o réu conta com advocacia de excelência. Não raro os acusados são atendidos por defensores dativos, sem que haja sequer prévio contato entre advogado e réu e/ou sem estabelecimento de confiança mútua. Portanto, não é de se estranhar que, por exemplo, no momento do interrogatório surjam questões não abordadas pela defesa técnica.
CONCLUSÃO
A adoção do modelo acusatório de justiça criminal, há muito sinalizada no art. 129, I, da Constituição Federal, foi expressamente admitida na mais recente reforma do Código de Processo Penal, promovida pela Lei 13.964/2019, acarretando na inserção do art. 3º-A ao seu corpo normativo.
No que tange às determinações espontâneas de produção de prova pelo juiz na fase da instrução das ações criminais, menos do que uma novidade destinada a alterar a cultura jurídica de produção de decisões judiciais acuradas e norteadas pela busca da verdade, a alteração legislativa propõe refinamento hermenêutico para se alcançar harmonia com a norma geral do art. 156 do Código de Processo Penal.
O juiz despe-se do papel de protagonista da produção da prova e passa atuar de forma subsidiária e complementar, sendo-lhe possível determinar produção de provas de ofício sempre que considerar que os dados trazidos pelas partes não são suficientes para explicar, com suficiente grau de correspondência, como teriam ocorrido os fatos no passado, nos termos de suas respectivas narrativas.
Quando o tema a ser confirmado estiver relacionado à hipótese acusatória, o juiz deverá ser mais constrito, e somente atuar de ofício se a acusação, por motivo justificado, não tiver logrado êxito em obter acesso à informação.
Quanto aos aspectos fáticos que favoreçam a defesa e que surjam de modo incipiente na instrução, a atuação de ofício poderá ser mais expansiva, autorizando-se ao juiz substituir falhas ou omissões da defesa técnica.
REFERÊNCIAS
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LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. 2. ed. rev. e ampl. Salvador: Jus Podium, 2014.
LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 17. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020.
LOPES JR., Aury; ROSA, Alexandre Morais da. A “estrutura acusatória” atacada pelo MSI-Movimento Sabotagem Inquisitória. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-jan-03/limite-penal-estrutura-acusatoria-atacada-msi-movimento-sabotagem-inquisitoria. Acesso em: 24.07.2020
MALATESTA, Nicola Flamerino dei. A Lógica das Provas em Matéria Criminal. 6. ed. Campinas: Bookseller, 2005.
PACELLI, Eugênio. Curso de Processo Penal. 24 ed. rev. e atual., São Paulo: Atlas, 2020.
PRADO, Geraldo. A Cadeia de Custódia da Prova no Processo Penal. São Paulo Paulo: Marcial Pons, 2019.
SCHUM, David A. The Evidential Foundations of Probabilistic Reasoning. Evanston: Northwestern University Press, 2010.
TARUFFO, Michele. A prova. São Paulo, Marcial Pons, 2019.
Mestranda em Direito. Juíza Federal Substituta (16 Vara Federal/SJPB)
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LAGE, cristiane mendonça. Sistema Acusatório e Atuação Probatória de Ofício no Processo Penal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 23 nov 2022, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/60168/sistema-acusatrio-e-atuao-probatria-de-ofcio-no-processo-penal. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Gabrielle Malaquias Rocha
Por: BRUNA RAFAELI ARMANDO
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