RESUMO: Trata-se de discussão sobre a possibilidade de combinação de leis penais no direito brasileiro. Insurge afirmar que a doutrina é dividida, há quem sustente que a denominada “lex tertia” não é algo vedado pelo ordenamento jurídico pátrio, ao contrário é fomentado pelo mesmo, quando adota o principio da retroatividade da lei mais benéfica, e ainda quando a Constituição Federal permite ao Juiz atribuir efeito retroativo a integralidade de uma legislação, também o autoriza a fazer de forma fracionada, convencionou-se adotar para esta situação o brocardo “quem pode o mais, pode o menos”, como fundamento da Teoria dos Poderes Implícitos. Á contrário censo, existem os que sustentam que a mesclagem de leis mais favoráveis ao réu, é uma afronta a norma constitucional de segregação de poderes, uma vez que a “lex Mater” não outorgou aos Magistrados o poder de combinar legislações criando uma terceira não prevista pelo legislador. O que restará demonstrado é a necessidade de uma distinção sobre a matéria, quando se tratar de um figura nova de direito, inédita, sendo ela mais favorável, o seu efeito retroativo sobre uma antiga legislação é decorrente da Constituição Federal, ao contrário, quando se tratar de um mesmo instituto jurídico, a mesclagem de leis sobre o mesmo com o intuito de beneficiar o agente, afronta a separação de poderes porque cria uma terceira fonte legislativa, não prevista pelo Poder Legislativo.
Palavras-chave: Direito Penal. Combinação de leis penais no tempo. Possibilidade de aplicação da lex tertia no direito penal brasileiro.
INTRODUÇÃO
É de saber jurídico que a vigente Carta Magna, em seu art. 5º, inc. XL[1], consagrou no Direito Penal Brasileiro o princípio da retroatividade in mellius, nos seguintes termos: “A lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”.
Sendo alçado à dignidade constitucional o referido princípio, não resta qualquer dúvida quanto à possibilidade da incidência da extra-atividade da norma penal, compreendida como retroatividade e ultra-atividade da norma penal mais favorável ao acusado.
A problemática se verifica quanto ao modo de fazer a combinação de leis no tempo, pode o juiz, na análise do caso concreto, combinar as duas leis em tese incidentes ou aplicar apenas uma em sua totalidade?
Sintetizando o tema, Assis Toledo explica[2]:
“Questão polêmica é a de saber se, na determinação da lei mais benigna aplicável, pode o juiz tomar os preceitos ou os critérios mais favoráveis da lei anterior e, ao mesmo tempo, os da lei posterior, combiná-los e aplicá-los ao caso concreto, de modo a extrair o máximo benefício resultante da 5aplicação conjunta só dos aspectos mais favoráveis das duas leis”
A doutrina diverge. A primeira corrente entende ser plenamente possível, uma vez que o aplicador do Direito, combinando as leis e extraindo o máximo benefício dela para o réu, estaria apenas observando o mandamento constitucional já referido.
Assim, a opinião de Rogério Greco[3]:
3
“Entendemos que a combinação de leis levada a efeito pelo julgador, ao contrário de criar um terceiro gênero, atende aos princípios constitucionais da ultra-atividade e retroatividade benéficas. Se a lei anterior, já revogada, possui pontos que de qualquer modo beneficiam o agente, deverá ser ultra- ativa; se na lei posterior que revogou o diploma anterior também existem aspectos que o beneficiam, por respeito aos imperativos constitucionais, devem ser aplicados.”
No entanto, a segunda corrente sustenta que a inteligência do art. 5°, inc. XL, da CF/88, bem como a do art. 2º do CPB, permitem ao juiz apenas aplicar a lei mais favorável e não combinar o que há de melhor para o réu nas normas em sucessão no tempo. Uma vez fazendo isso, o magistrado estaria entrando em seara típica do Poder Legislativo, violando, portanto, o princípio da separação dos Poderes.
O presente capítulo visa analisar de forma geral a questão da aplicação da lei no tempo e, dialogando com o tema proposto, estudar as relações de Direito Intertemporal, especificamente em matéria penal.
1.1 Aspectos gerais da aplicação da lei no tempo
Um dos temas que mais gera polêmica, no âmbito do Direito, é a aplicação da lei no tempo. Atentamos que a problemática é tida como ensinamento introdutório a todos os ramos do Direito, valendo dizer que a aplicação da lei no tempo é matéria de propedêutica jurídica.
A importância do estudo da aplicação da lei no tempo é saber quando uma legislação, ou um dispositivo legal, será aplicado ao caso concreto, ou seja, não há discussão quanto à vigência das leis, e sim quando uma ou outra norma será aplicada a uma determinada situação jurídica, onde aparentemente há uma disputa entre as regras do ordenamento jurídico quanto à sua aplicação ou incidência.
A problemática é antiga no Direito. Há estudos que registram que a discussão já existia no Direito Romano, uma vez que o Código Justinianeu previa o princípio da irretroatividade da lei, conforme nos informa em trabalho bastante interessante a autora Maria Clara Calheiros.[4]
O problema da aplicação da lei no tempo é antigo. Já o Direito Romano contemplava este problema, consagrando‐se no Código Justinianeu o princípio da irretroactividade. O que está em causa, quando se fala de aplicação da lei no tempo, não é saber qual é a lei em vigor, mas sim saber qual a lei que se aplica a certa situação jurídica, quando esta esteve em contacto com diferentes leis, no decurso do tempo. Assim, o problema da aplicação da lei no tempo convoca-nos para o difícil exercício de compatibilizar as regras de aplicação das leis com os direitos e expectativas das pessoas, de acordo com um princípio de justiça.
No direito pátrio, a LINDB (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro), que tem um alcance normativo amplo, trazendo diretrizes fundamentais para os diversos ramos do Direito[5], sendo considerada mesmo normas de sobredireito, traz alguns princípios que norteiam a aplicação da lei no tempo.
Entre tais destacam-se, dentre outros, o princípio da obrigatoriedade, onde informa que ninguém poderá alegar o desconhecimento da lei; o princípio da irretroatividade, segundo o qual a lei não irá retroagir para alcançar situações jurídicas já consolidadas pela lei anterior; o princípio da continuidade, cuja inteligência é a de que a norma permanente só perde a eficácia se outra vier a alterá-la ou modificá-la.
A aplicação coercitiva do Direito é de competência exclusiva do Estado, onde para a aplicabilidade da norma jurídica a um fato concreto é preciosa a atuação do Magistrado.
Explica isso com maestria Maria Helena Diniz[6]: “A atuação do magistrado é o intermédio entre a norma e a vida ou o instrumento pelo qual a norma abstrata se transforma numa disposição concreta”.
Desse modo, a aplicação do Direito ao caso concreto, subsunção que se realiza através da atividade judicante, é o que em verdade concretiza a atividade legislativa, constitucional e ordinária a um caso concreto.
Feita esta elucidação geral sobre a aplicação do Direito, passamos a analisar a relação de Direito Intertemporal com a norma penal.
1.2 Aplicação da lei penal no tempo
Analisaremos neste tópico a aplicação da lei penal, sobretudo em relação aos princípios da legalidade, da retroatividade da lei mais benéfica e da ultra-atividade da lei penal.
1.2.1 Princípio da Legalidade
A Carta Política[7] em vigor consagra o princípio da legalidade em seu art. 5º, inc. XXXIX, quando diz que “não haverá crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”. Como conseqüência, não poderia agir diferente o legislador ordinário, quando entabula no vigente Código Penal[8] a regra de que “não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal”.
Desse modo, resta assentado que ninguém poderá se submeter a uma persecução penal, se uma lei anterior à sua conduta não a defina como criminosa. De modo contrário, estaríamos diante de uma situação em que se puniria um agente que, no momento de seu comportamento, seja comissivo ou omissivo, realizou conduta em conformidade com o Direito, mas posteriormente fora considerada ilícita, o que sem dúvida ocasionaria um casuísmo legislativo.
Contudo, é possível que nessa situação não haverá a punição do autor por esta lei posterior. Exemplificando, poderíamos citar a seguinte situação hipotética. Imaginemos que “um agente ‘A’ pratica conduta lícita, mas que é desvalorizada socialmente. Em face da pressão social, o legislador federal criminaliza a conduta praticada por ‘A’, tipificando-a”. Ora, ‘A’ jamais poderá ser punido por esta nova lei, por ser posterior à sua conduta. Assim, o autor não se sujeitará à dinamicidade do Direito Penal.
A ausência de lei tipificando determinada conduta levará à sua atipicidade, tendo como consequência um indiferente para o Direito Penal, sem qualquer relevância jurídica.
Neste sentido, Falconi[9] afirma que:
[...] não há que se falar em crime e pena para fatos – ocorrências – que não estejam adrede “tipificados”. Não importa ao Direito Penal, se tal ou qual procedimento (conduta) se apresente como contrário à Moral, ou mesmo, seja anti-social. Importa, isto sim, é saber que ele, o procedimento, sendo atípico, não será punido criminalmente. Por via de conseqüência, a acusação e o conteúdo punitivo ficam obrigados à existência de norma jurídica anterior. Trata-se de questão dogmática para os penalistas: fora a lei, não há falar em crime.
Como decorrência lógica do princípio da legalidade em matéria penal, temos os seguintes brocardos latinos: “Nullum crimen, nulla poena sine lege scripta”, significando a proibição de agravamento da punibilidade pelo direito consuetudinário.
Ainda como corolário do princípio da legalidade, é correto afirmar-se que “Nullum crimen, nulla poena sine lege stricta”, sendo proibido pelo ordenamento jurídico penal a analogia em desfavor do réu.
Nesse ponto, devemos fazer uma ponderação, para diferenciar a analogia da interpretação analógica, pois na primeira não há legislação para o caso concreto, no âmbito do Direito Penal, valendo dizer que não há dispositivo legal incriminando determinada conduta, enquanto que o intérprete, suprindo a lacuna da lei, aplica outro dispositivo que tipifica um caso análogo. Já na interpretação analógica, existe a legislação, enquanto que o intérprete busca o alcance da norma para alcançar situações específicas, previstas apenas genericamente,
Nesse sentido, o colendo Superior Tribunal de Justiça (STJ)[10], já
decidiu que:
PENAL. RECURSO ESPECIAL. FURTO DE SINAL DE TV A CABO. TIPICIDADE DA CONDUTA. FORMA DE ENERGIA ENQUADRÁVEL NO TIPO PENAL. RECURSO PROVIDO.I. O sinal de televisão propaga-se através de ondas, o que na definição técnica se enquadra como energia radiante, que é uma forma de energia associada à radiação eletromagnética.II. Ampliação do rol do item 56 da Exposição de Motivos do Código Penal, para abranger formas de energia ali não dispostas, considerando a revolução tecnológica a que o mundo vem sendo submetido nas últimas décadas. III. Tipicidade da conduta do furto de sinal de TV a cabo. IV. Recurso provido, nos termos do voto do Relator.
Analisando ainda o princípio da legalidade, é correto afirmar-se que “Nullum crimen, nulla poena sine lege certa”, não sendo possível a criação de normas penais indeterminadas, com expressões gerais, contento tipos penais incriminadores gerais, sendo preciosa a determinação de qual conduta é ilícita e, por consequência, a sua cominação penal.
Há uma grande divergência doutrinária, no que tange à existência de diferença entre o princípio da legalidade e o da reserva legal. Para alguns doutrinadores, os referidos princípios se confundem; outros enxergam uma distinção, enquanto alguns dissertam ser irrelevante a discussão, já que a reserva legal é decorrência do princípio da legalidade.
Flávio Augusto Monteiro de Barros[11] ensina que tecnicamente há uma distinção entre princípio da legalidade e princípio da reserva legal. Falando tão somente em legalidade, estaríamos permitindo a adoção de quaisquer dos diplomas legais previstos no rol do art. 59, da CF/88, a saber, emenda constitucional, lei complementar, lei ordinária, leis delegadas, medidas provisórias, decretos legislativos e resoluções. Ao contrário, de acordo com a inteligência da reserva legal, apenas por meio de lei ordinária, como regra geral, é que possível tipificar condutas criminosas e para elas se cominar penas.
Posição interessante é a de Rogério Greco[12], que aduz:
“Acreditamos que o melhor seria restringir ainda mais a possibilidade de edição de diplomas penais, ficando limitada tal possibilidade às leis complementares, tal como ocorre na Espanha, que adota as chamadas Leis Orgânicas, que lhe são equivalentes. Assim, com a exigência de um quorum qualificado para a sua aprovação (maioria absoluta, de acordo com o art. 69 da CF), tentaríamos, de alguma forma, conter a “fúria do legislador”, evitando a tão repugnada inflação legislativa”.
Data vênia, acreditamos que a melhor doutrina é a que faz distinção entre o princípio da legalidade e o da reserva legal, já que não é possível que por qualquer criação legislativa, a exemplo de uma mera resolução, se crie um tipo penal, já que é necessária uma ampla discussão acerca de uma conduta que se queira criminalizar, comportamento social este que deverá ser objeto de discussão por todo o Parlamento.
Finalizamos, com os ensinamentos de Luiz Flávio Gomes[13]:
“Não se pode confundir o princípio da legalidade com o princípio da reserva legal ou mesmo com o princípio da anterioridade. Princípio da legalidade é um gênero (“ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” – CF, art. 5.º, inc. II). Princípio da legalidade criminal significa que não há crime sem lei (CF, art. 5.º, inc. XXXIX; CP, art. 1.º). O princípio da legalidade criminal conta hoje com várias dimensões de garantia. Dentre elas acham-se o princípio da reserva legal e o da anterioridade”.
1.2.2 Princípio da Extra-atividade da Lei Penal
Neste tópico abordaremos como a lei penal se comporta nas relações jurídicas, levando em consideração aspectos temporais, pois em uma determinada situação a lei poderá retroagir para incidir sobre um fato anterior à sua
vigência, enquanto em outras, como a regra geral do “tempus regit actum”, mesmo sendo revogada, continuará a norma a ser contemplada pelo fato ocorrido durante a sua vigência.
É importante frisar que a atividade temporal da lei penal encontra-se limitada pela Constituição Federal, em seu art. 5º, inc. XL: “A lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”[14]. Desse modo, fica proibida a retroatividade da lei que desfavoreça o réu.
Como justificativa a este direito fundamental, Roxin[15] elucida que:
“Todo legislador pode cair na tentação de introduzir ou agravar a posteriori as previsões de pena sob a pressão de fatos especialmente escandalosos, para aplacar estados de alarme e excitação politicamente indesejáveis. Pois bem, impedir que se produzam tais leis ad hoc, feitas na medida do caso concreto e que, em sua maioria são também inadequadas em seu conteúdo, como consequência das emoções do momento, é uma exigência irrenunciável do Estado de Direito”.
1.2.2.1 Tempo do Crime
São três as teorias que disputam o tratamento do tempo do crime, a saber: a teoria da atividade, em que se considera praticado o crime no momento da realização da conduta pelo agente; a teoria do resultado, em que se leva em consideração o momento em que é produzido o resultado e a teoria da ubiquidade, ou mista, em que se conclui que o tempo do crime é tanto o momento da conduta como o do resultado.
O Código Penal Brasileiro (CPB) adotou expressamente em seu art. 4° a teoria da atividade, rezando que “Considera-se praticado o crime no momento da ação ou omissão, ainda que outro seja o momento do resultado”.[16]
Dessa forma, o momento em que o agente delitivo realiza a conduta, seja omissiva ou comissiva, será o marco inicial para qualquer raciocínio em relação à extra-atividade da norma penal.
Podemos citar como exemplo clássico na nossa doutrina a seguinte situação: “O agente ‘B’, com 17 anos e 11 meses de idade, pratica homicídio contra ‘C’, que morre após ‘B’ atingir a maioridade”. Nesta situação, ficará afastada a aplicação da lei penal, uma vez que no momento da conduta o agente era considerado penalmente inimputável.
1.2.2.2 Nova lei que favorece o réu e nova lei que piora a sua situação (novatio legis in mellius e novatio legis in pejus)
O parágrafo único, do art. 2°, do CPB, trata sobre o tema, ao preconizar que “A lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decidido por sentença condenatória transitada em julgado”.
Desse modo, em matéria penal, é correto afirmar que há uma relativização da imutabilidade da coisa julgada criminal, já que se determinada lei editada posteriormente ao próprio julgamento do réu vem a favorecê-lo, essa legislação terá efeitos retroativos, de modo que o Juiz deverá beneficiar o condenado com a nova legislação.
Fundamenta-se a aplicação da “Novatio Legis in Mellius”, sobretudo, pelo caráter fragmentário e subsidiário do Direito Penal, em que a imposição de uma sanção de caráter criminal só é legítima em nosso ordenamento se outros ramos do Direito não forem aptos a satisfazer os direitos de outrem, em razão da conduta do agente delitivo, da mesma forma que se a legislação incriminadora passa a enxergar uma maior brandura de determinada conduta, deverá a norma ter efeitos retroativos, para que o agente possa beneficiar-se dela.
No entanto, se acontecer situação contrária, ou seja, uma nova lei prejudica a situação do réu, esta não retroagirá para lhe prejudicar, sob pena de violação do princípio da anterioridade da lei, corolário do princípio da legalidade, como já exposto em tópico precedente.
Luiz Regis Prado[17] ensina que:
“A vedação da retroatividade in pejus tem duas origens independentes: pela primeira, de cunho publicista, o decisivo para a entrada em vigor da lei é o reconhecimento de uma esfera individual de precedência estatal: ninguém pode ser sancionado penalmente em relação a um fato que na época de sua realização era irrelevante para o Direito Penal; a segunda, de ordem político-criminal, aparece justificada por falta de sentido de uma retroatividade aplicada: aqui não há compensação de culpabilidade, porque não se vincula a culpabilidade alguma e tampouco pode operar em sentido preventivo, visto que ao tempo da comissão inexistia a coação inibitória da cominação penal”.
Nos casos dos crimes permanentes, ou seja, aqueles delitos em que a execução se prolonga, isto é, se perpetua no tempo, ou continuados, quando o agente por uma ação ou omissão pratica dois ou mais crimes, cometidos nas mesmas condições de tempo, lugar, maneira e execução, indaga-se, na hipótese de houver a sucessão de leis penais durante a permanência ou continuidade, qual delas deverá ser aplicada.
Em novembro de 2003, o Supremo Tribunal Federal (STF) aprovou a Súmula n° 711, pacificando o seu posicionamento sobre a matéria, com a seguinte redação: “A lei penal mais grave aplica-se ao crime continuado ou ao crime permanente, se a sua vigência é anterior à cessação da continuidade ou permanência”.
1.2.2.3 Abolitio Criminis
Por vezes, o legislador descriminaliza condutas já tipificadas, atendendo às mutações sociais, retirando determinada infração penal do ordenamento jurídico, por não ser mais preciso a intervenção do Direito Penal para a proteção do bem jurídico tutelado pela norma abolida. A esse fenômeno dá-se o nome de abolitio criminis.
O CPB[18], em seu art. 2º, tratou do tema, dispondo que “Ninguém pode ser punido por fato que lei posterior deixa de considerar crime, cessando em virtude dela a execução e os efeitos penais da sentença condenatória”.
A título de exemplo, podemos citar a descriminalização do crime de adultério, antes previsto no Código Incriminador. No entanto, é importante distinguir- se a abolito criminis de uma readequação típica.
Na primeira situação, como já explicitado, há descriminalização da conduta, quer dizer, existe uma revogação material da proteção deste bem jurídico, enquanto que na mera readequação típica permanece a conduta anteriormente incriminada, mas constante em outro tipo penal, ou seja, há simplesmente alteração do ponto de vista formal.
2 - DA COMBINAÇÃO DE LEIS PENAIS: TEORIA CLÁSSICA NEGATIVISTA E TEORIA MODERNA AFIRMATIVA.
Define-se como combinação de leis a atuação do juiz, quando em determinada situação concreta, em que se depara com normas penais conflitantes, uma traz benefícios parciais ao réu, enquanto a outra já vigente, em alguns de seus dispositivos, lhe favorece.
Na hipótese acima, combinam-se as leis de forma que a primeira irá retroagir, apenas no que for favorável ao réu, enquanto a segunda será ultrativa apenas nas partes em que for benigna.
No presente capítulo, elucidaremos as duas teorias ou posicionamentos acerca da temática.
Sobretudo, analisando posições de doutrinadores mais clássicos, como Nelson Hungria, os quais advogam a impossibilidade de combinação de leis penais, de forma a criar a denominada “lex tertia”, já que assim o magistrado estaria violando nitidamente o princípio da separação dos poderes.
Outros jurisconsultos mais modernos, como Rogério Greco e outros, sustentam a possibilidade de aplicação da lei terceira ao caso concreto, de forma que o Estado-Juiz cumpriria apenas o estampado no art. 5, inc. LX, da CF/88.
2.1 Posição clássica – negativista
Inicialmente, explicamos o motivo da terminologia, posição clássica, negativista. O referido entendimento é entabulado por juristas como Nélson Hungria, Aníbal Bruno, Heleno Fragoso, Jair Leonardo Lopes, Paulo José da Costa Júnior, José Henrique Pierangeli,[19] e ainda, Battaglini, Mauracha, Ritler, Pannain, Antolisei e Asúa[20]. Referidos doutrinadores são os que formam a doutrina considerada clássica do Direito Penal, os quais negam o reconhecimento da lei terceira no direito incriminador.
Um dos principais fundamentos da teoria negativista é o principio da segregação dos poderes, de forma que a combinação de leis por parte do aplicador do Direito é impossível, já que extrapolaria as suas funções delimitadas constitucionalmente.
A discussão se dá em virtude da redação do parágrafo único, do art. 2º, do CPB, o qual contêm a expressão “de qualquer modo”, dando a entender que a lei deverá sempre retroagir quando favorecer o réu.
Mesmo se considerando o efeito integrador da norma, ou seja, a consideração de valores tutelados pelo dispositivo, sejam de ordem econômica, social, política ou cultural, devem operar como critérios interpretativos.
Destarte, devem ser aplicados. No entanto, para os que negam a existência da “lex tertia”, esses argumentos são irrelevantes, conforme sintetiza Guilherme de Souza Nucci[21]:
“Realmente, se houvesse permissão para a combinação de leis colocar-se- ia em risco a própria legalidade, pois o magistrado estaria criando norma inexistente, por mais que se queira dizer tratar-se de mera integração de leis. Ora, a referida integração não passa do processo criador de uma outra lei, diferente das que lhe serviram de fonte. E quando se diz que o art. 2º, parágrafo único, do CPB, autoriza a aplicação da lei posterior mais benéfica que de “qualquer modo favorecer o agente” não está legitimando o magistrado a recortar pedaços da norma e aplicá-la em formação de uma outra totalmente inédita”;
Não é objeto do presente trabalho o estudo minucioso do sistema de segregação dos poderes. No entanto, limitamos à análise perfunctória do referido sistema, já que é a base da posição clássica negativista.
Por separação de poderes, entende-se a delimitação de funções dos Poderes da República, com o intuito de efetivar a divisão das atribuições essenciais do Estado, bem como evitar a supremacia de um Poder em detrimento de outro.
É bom anotar, desde logo, que pelo grande desenvolvimento e complexidade das relações sociais, cada um dos três Poderes exerce concomitantemente as três funções estatais[22], ou seja, a administrativa, a legislativa e a judiciária, sendo certo que cada um exercerá com preponderância uma dessas funções, sendo a preponderante cpnsiderada típica.
Historicamente, o dogma da separação absoluta entre os Poderes é muito forte, o que é natural, já que nas sociedades mais remotas, como se pode ilustrar com a comunidade francesa do século XVIII, muito influenciada por Montesquieu, onde se buscava fracionar as funções estatais, sob pena de criação de um “superpoder”, absoluto e ilimitado. É interessante trazermos a baila as palavras do próprio Montesquieu[23]:
“Tudo estaria perdido se o mesmo homem ou o mesmo corpo dos principais ou dos nobres, ou do povo, exercesse esses três poderes: o de fazer as leis, o de executar as resoluções públicas e o de julgar os crimes ou as divergências dos indivíduos”
Observa-se o esforço dos estudiosos da época em evitar o protagonismo de uma pessoa no Poder Público, de modo que o monarca absolutista era visto com muitas críticas.
Atualmente, o princípio da separação dos poderes, para ser entendido em consonância com a Constituição democrática, exige ponderações de forma que se relativize a total a aparente incomunicabilidade das funções do Estado moderno.
Dissertam muito bem sobre a temática Gilmar Mendes, Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Gustavo Gonet Branco[24]:
“O principio da separação dos poderes, nos dias atuais, para ser compreendido de modo constitucionalmente adequado, exige temperamentos e ajustes à luz das diferentes realidades constitucionais, num círculo hermenêutico em que a teoria da constituição e a experiência constitucional mutuamente se completam, se esclarecem e se fecundam. Nesse contexto de modernização, esse velho dogma da sabedoria política teve de flexibilizar-se diante da necessidade imperiosa de ceder espaço para a legislação emanada do Poder Executivo, como as nossas medidas provisórias – que são editadas com força de lei – bem assim para a legislação judicial, fruto de inevitável criatividade de juízes e tribunais, sobretudo das cortes constitucionais, onde é frequente a criação de normas de caráter geral, como as chamadas sentenças aditivas proferidas por estes super-tribunais em sede de controle de constitucionalidade”.
Apesar da posição dos exímios constitucionalistas acima expressada, a doutrina majoritária ainda tende a se posicionar por uma delimitação rigorosa de cada atribuição estatal típica.
O sistema de separação dos poderes é bem delimitado na República brasileira, de modo que cabe apenas ao Legislativo a inovação de modo positivo no ordenamento jurídico. Por esta razão, a teoria denominada neste trabalho como clássica negativista atesta que a combinação de leis penais em um caso concreto, realizado pelo Juiz, seria uma nítida violação à segregação dos Poderes.
Em recente julgado, o Supremo Tribunal Federal (STF), discutindo a possibilidade de aplicação da minorante prevista na nova lei de drogas (Lei Federal 11.343/06), sob a pena cominada na antiga legislação (Lei Federal 6.368/76), concluiu a primeira Turma do Pretório pela inadmissibilidade de combinação de leis penais, de acordo com a posição até aqui exposta.
Pedimos vênia para transcrever a ementa do referido julgado[25]:
EMENTA: PENAL. HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE ENTORPECENTES (ART. 12 DA LEI N. 6.368/76). PRETENSÃO DE INCIDÊNCIA RETROATIVA DA MINORANTE PREVISTA NO § 4º DO ART. 33 DA LEI N. 11.343/06 SOBRE A PENA COMINADA NO ART. 12 DA LEI 6.368/76 (ART. 5º, INC. XL, DA CONSTITITUIÇÃO FEDERAL). IMPOSSIBILIDADE DE MESCLAR PARTES FAVORÁVEIS DE LEIS CONTRAPOSTAS NO TEMPO, SOB PENA DE SE CRIAR, PELA VIA DA INTERPRETAÇÃO, UM TERCEIRO SISTEMA (LEX TERTIA). USURPAÇÃO DE FUNÇÃO LEGISLATIVA. VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES. POSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DA LEI EM SUA INTEGRALIDADE, COM O QUE RESTA ATENDIDO O PRINCÍPIO DA RETROAÇÃO DA LEI BENÉFICA. CONCESSÃO DA ORDEM, EM PARTE, PELO STJ PARA QUE O TJ/RS EXAMINASSE O CASO CONCRETO E APLICASSE, EM SUA INTEGRALIDADE, A LEI MAIS FAVORÁVEL. MINORANTE DA LEI N. 11.343/2006 NEGADA PELA CORTE ESTADUAL EM RAZÃO DE O PACIENTE OSTENTAR MAUS ANTECEDENTES, EMERGINDO FAVORÁVEL A FIXAÇÃO DA PENA COMINADA NA LEI N. 6.368/76. AUSÊNCIA DE CONSTRANGIMENTO ILEGAL.
A Excelsa Corte decidiu que a benignidade de cada dispositivo legal deve incidir em sua totalidade, e que não cabe ao Juiz extrair de cada norma o que mais favoreça o réu. Dessa forma, ficou rechaçada nesse julgado a possibilidade da lex tertia no Direito Penal brasileiro.
Alertamos que esta posição é da 1ª Turma do STF, órgão fracionário, bem assim que não há unanimidade entre os Ministros sobre a possibilidade de criação da lex tertia, conforme será exposto em capítulo destinado à análise da jurisprudência dos Tribunais Superiores.
Questão interessante, que surge quando aplicamos a teoria negativista, é de saber a quem cabe a escolha de qual norma seja mais favorável ao réu. Temos dois posicionamentos em nossa doutrina: (i) um que defende que ninguém melhor do que o Defensor e o próprio acusado, para escolher quais das legislações aparentemente conflitantes irá incidir sobre sua conduta criminosa; (ii) outro, que advoga a tese de que cabe ao Magistrado escolher a norma que julgue ser mais favorável à situação jurídica do réu, já que a aplicação do Direito é de sua competência.
Data vênia, posição contrária, acreditamos que a melhor doutrina é a que afirma ser a escolha do Juiz, já que cabe a este a aplicação do Direito, bem como que o réu poderá externar a sua inconformidade através de recurso, levando a escolha definitiva a órgão jurisdicional superior. Em posição contrária, aduz Júlio Fabbrini Mirabete[26]:
(…) “Há sugestões, inclusive, no sentido de se deixar ao interessado a escolha da lei que mais lhe convém quando surgir uma dúvida no conflito intertemporal da lei penal. Não parece absurdo que se permita ao defensor do réu ou condenado escolher aquela que mais convier a este quando, havendo conflito, somente o interessado possa aquilatar que lei mais o beneficia”.
Entendemos ainda que a escolha da lei cabe ao órgão julgador, mesmo naquelas hipóteses em que não se é possível exercitar a garantia constitucional do duplo grau de jurisdição, inviabilizando recurso para a reapreciação da matéria, como ocorre com os réus detentores de foro especial por prerrogativa de função junto ao STF.
Por exemplo, se um parlamentar federal, detentor de foro privilegiado, depara-se com julgamento criminal, em que há conflito intertemporal de normas penais, a escolha de que norma será aplicada caberá à Suprema Corte, e não ao réu, que inclusive nesse caso não poderá insurgir-se.
A posição negativista parte de conceitos mais clássicos sobre a atividade judicante, desconsiderando a possibilidade de criação do Direito pelo Juiz no caso concreto, com o claro intuito de desconsiderar o ativismo judicial.
Ainda ignoraram outra interpretação, dada ao art. 5º, inc. XL da CF/88, a qual, para doutrinadores que afirmam a possibilidade da lei terceira, o referido dispositivo constitucional interpretado sistematicamente com outros princípios e regras da Carta Política, dá margem ao entendimento de que o Juiz, no caso concreto, deve sempre beneficiar o réu, face às mudanças legislativas no tempo, de modo que o acusado não se submeta ao dinamismo legiferante.
A posição que afirma a conjugação de leis penais será objeto de estudo no próximo tópico, mostrando-se muito aceita por doutrinadores modernos, conforme será demonstrado adiante.
2.2 Posição moderna – afirmativa
Assim como quando iniciamos o tópico anterior, inicialmente justificamos o porquê da terminologia adotada para mencionar esta posição doutrinária. Os que afirmam ser possível a combinação de leis penais são Basileu Garcia, Magalhães Noronha, Júlio Fabbrini Mirabete, Damásio de Jesus, Celso Delmanto, Rogério Greco e outros[27], doutrinadores tidos como modernos no Direito Penal brasileiro.
O posicionamento que afirma a possibilidade da conjunção de duas normas penais, de forma a obter uma lei que mais favoreça ao réu, combinando partes mais benignas das duas anteriores, o faz praticamente através de dois fundamentos: (i) um, a partir de uma interpretação extensiva e sistemática do art. 5º, inc. XL, da Constituição Federal; (ii) outro, considerando que se o Juiz pode aplicar toda integralidade da lei, também o pode fazer de forma parcial, conforme a teoria dos poderes implícitos, através da máxima de que “quem pode o mais pode o menos”.
Neste momento, explicaremos o segundo fundamento. Pela teoria dos poderes implícitos, entende-se que quando a Carta Magna outorga atribuições para determinados órgãos, subtende-se que implicitamente é assegurado os poderes necessários para a sua execução[28].
Assim ocorre quando a Constituição Federal assevera que a lei penal não irá retroagir, salvo para beneficiar o réu. Dessa forma, resta claro que a Carta Política priorizou em garantir ao condenado sempre uma situação mais favorável face as mutações legislativas, de forma que o Magistrado ao aplicar a determinação constitucional pode combinar duas leis penais conflitantes no tempo, para resguardar ao réu uma situação mais favorável.
A teoria dos poderes implícitos parte da máxima de que “quem pode o mais, pode o menos”. Ao adotarmos a referida teoria para a problemática da combinação de leis penais, concluímos que se o Juiz pode retroagir totalmente a lei nova para um caso pretérito, também o poderá fazer de forma parcial.
É como elucida Paulo Queiroz[29]:
Pois bem, se a lei posterior for inteiramente favorável ao réu, é evidente que retroagirá de forma integral; mas se o for em parte, então o caso é de retroatividade parcial da nova lei. Parece evidente assim que, se a lei deve retroagir quando for integralmente favorável, tal deverá ocorrer, com maior razão, quando o for apenas em parte, em respeito ao princípio constitucional da retroatividade da lex mitior, pouco importando o quanto de benefício encerre; afinal, se a lei deve retroagir no seu todo quando mais branda, o mesmo há de ocorrer quando somente o for em parte. Ademais, o Código (art. 2º, parágrafo único) prevê a retroatividade quando a lei posterior favorecer o agente de qualquer modo,
Ora, a título de exemplo, podemos citar o que ocorreu com as Leis Federais de nº 6.368/76 e 11.343/2006. A pena mínima cominada ao crime de tráfico de drogas era de 3 (três) anos (revogado art. 12), sendo que a novatio legis a aumentou para 5 (cinco) anos (atual art. 33). No entanto, a nova Lei previu, em seu art. 33, § 4º, uma causa especial de redução de pena que não constava na lei anterior, dizendo que, verbis: “os delitos definidos no caput e no § 1º deste artigo, as penas poderão ser reduzidas de 1/6 (um sexto) a 2/3 (dois terços)), vedada a conversão em penas restritivas de direito, desde que o agente seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa”[30].
Para a teoria afirmativa, no exemplo mencionado, o Juiz, sempre quando se deparar com um crime de tráfico de entorpecentes, desde que cometido na vigência da lei antiga, deverá aplicar a pena cominada na lei revogada, e permitir a incidência da causa especial de diminuição de pena. Desta forma estaria o Magistrado em estrita observância ao mandamento esculpido no art. 5º, inc. XL, da Constituição Federal.
Outro exemplo interessante foi o que aconteceu com a nova lei que trata dos crimes contra a dignidade sexual, chamados antes de crimes contra os costumes. A Lei Federal 12.015/09 alterou o título VI, do Código Penal, de forma que fora cominada uma pena maior para a violação aos bens jurídicos por ela protegidos. No entanto, além da alteração no quantum da pena, foi revogada a presunção de violência para o estupro de vulneráveis, de modo que, o agente que cometeu o crime na vigência da lei anterior, tem o direito de ver aplicada a pena por ela prevista, e ainda para sua condenação, no caso de estupro de vulneráveis, deverá o Parquet fazer prova das imputações, mesmo para as vítimas menores de 14 (catorze) anos, não sendo mais satisfatória apenas a comprovação da conjunção carnal, como era na sistemática da lei anterior.
Nesse sentido, já decidiu o colendo STJ. Transcrevemos a respectiva ementa31:
PENAL. RECURSO ESPECIAL. ESTUPRO. AUMENTO PREVISTO NO ART. 9º DA LEI Nº 8.072/90. VIOLÊNCIA REAL E GRAVE AMEAÇA. INCIDÊNCIA. SUPERVENIÊNCIA DA LEI Nº 12.015/2009.
I - Esta Corte firmou orientação de que a majorante inserta no art. 9º da Lei nº 8.072/90, nos casos de presunção de violência, consistiria em afronta ao princípio ne bis in idem. Entretanto, tratando-se de hipótese de violência real ou grave ameaça perpetrada contra criança, seria aplicável a referida causa de aumento. (Precedentes). II
- Com a superveniência da Lei nº 12.015/2009, restou revogada a majorante prevista no art. 9º da Lei dos Crimes Hediondos, não sendo mais admissível a sua aplicação para fatos posteriores à sua edição. Não obstante, remanesce a maior reprovabilidade da conduta, pois a matéria passou a ser regulada no art. 217-A do CP, que trata do estupro de vulnerável, no qual a reprimenda prevista revela-se mais rigorosa do que a do crime de estupro (art. 213 do CP). III - Tratando-se de fato anterior, cometido contra menor de 14 anos e com emprego de violência ou grave ameaça, deve retroagir o novo comando normativo (art. 217-A) por se mostrar mais benéfico ao acusado, ex vi do art. 2º, parágrafo único, do CP. Recurso parcialmente provido. (STJ – Min. Felix Fisher – Recurso Especial 1.102.005).PENAL. RECURSO ESPECIAL. ESTUPRO. AUMENTO PREVISTO NO ART. 9º DA LEI Nº 8.072/90. VIOLÊNCIA REAL E GRAVE AMEAÇA. INCIDÊNCIA. SUPERVENIÊNCIA DA LEI Nº 12.015/2009. I - Esta Corte firmou orientação de que a majorante inserta no art. 9º da Lei nº 8.072/90, nos casos de presunção de violência, consistiria em afronta ao princípio nec bis in idem. Entretanto, tratando-se de hipótese de violência real ou grave ameaça perpetrada contra criança, seria aplicável a referida causa de aumento. (Precedentes). II - Com a superveniência da Lei nº 12.015/2009, restou revogada a majorante prevista no art. 9º da Lei dos Crimes Hediondos, não sendo mais admissível a sua aplicação para fatos posteriores à sua edição. Não obstante, remanesce a maior reprovabilidade da conduta, pois a matéria passou a ser regulada no art. 217-A do CP, que trata do estupro de vulnerável, no qual a reprimenda prevista revela-se mais rigorosa do que a do crime de estupro (art. 213 do CP). III - Tratando-se de fato anterior, cometido contra menor de 14 anos e com emprego de violência ou grave ameaça, deve retroagir o novo comando normativo (art. 217-A) por se mostrar mais benéfico ao acusado, ex vi do art. 2º, parágrafo único, do CP. Recurso parcialmente provido. (STJ – Min. Felix Fisher – Recurso Especial 1.102.005).[31]
É importante destacar que a “Inherente Powers” é sobretudo um importante instrumento de interpretação constitucional, como é por vezes reconhecido na jurisprudência da Suprema Corte brasileira, de forma que não se pode negar a força deste fundamento.
Se a Carta Magna, outorga ao Estado-Juiz a função de aplicação do Direito ao caso concreto, prevendo que em se tratando de modificação intertemporal de leis penais, a mais benéfica ao acusado deve retroagir, excepcionando a regra geral do “tempus regit actum”, é bastante conclusivo que é concedido ao Magistrado todos os meios para que lhe seja possível o exercício desta função, inclusive com a possibilidade de aplicação ainda que apenas parcial da lei nova, já que o mesmo pode fazer retroagir a legislação penal de forma total.
Constitui outro fundamento. para os que aceitam a conjunção de normas penais, uma interpretação integradora e sistemática da Constituição Federal.
O critério integrativo da interpretação constitucional reflete notadamente o princípio da plenitude do ordenamento jurídico, cuja inteligência é a de que na ordem jurídica não existe lacuna, de forma que o Direito posto é satisfatório para a solução dos conflitos sociais.
A premissa acima baseia-se no fato de que da mesma forma que o Judiciário não pode escusar-se de julgar um litígio proposto, alegando lacuna na lei, o legislador não pode prever todas as situações concretas possíveis, tendo que legislar de forma ampla e abstrata, estando consagrada a atuação criativa do operador do direito no caso concreto.
Não é possível que o constituinte, nem muito menos o legislador ordinário, anteveja casuisticamente todas as situações jurídicas penais em que deverá haver a retroatividade da lex mitior, mas poderá prever genericamente que, quando qualquer lei favorecer o réu, essa deverá ter efeito retroativo.
Ao Juiz caberá analisar no caso concreto qual lei é a mais favorável, e, se, a posterior trazer apenas alguns pontos benignos, estes deverão retroagir.
O que se percebe claramente no sentido da norma constitucional (art. 5º, XL) e da infraconstitucional (art. 2º, parágrafo único do CPB) é a garantia do favorecimento do acusado, sempre que a legislação que tutela um determinado bem jurídico, o faça de forma mais branda, inclusive como decorrência do princípio da individualização da pena.
Pelo princípio da individualização da pena, em síntese, entende-se consistir na determinação de que as sanções penais impostas aos condenados devem ser individualizadas, tanto quanto possível, de acordo com as circunstâncias do fato e das qualidades pessoais do agente.
Conclui-se, em consonância com a doutrina moderna afirmativa, que o Juiz não cria uma terceira lei, ao levar a efeito a combinação de leis penais no caso concreto, e, sim, age dentro de parâmetros fixados pelo constituinte.
O que a “Lex Mater” pretende é assegurar que o condenado tenha uma atenuação na cominação penal de sua conduta, sempre que a sociedade enxergar, esta representada pelo Parlamento, uma maior brandura para a conduta delituosa, de modo que quando uma lei posterior seja mais favorável, total ou parcialmente, deve retroagir seja de forma integral, se assim for seu grau de benignidade, ou parcial, quando algumas partes da nova lei é melhor para o réu.
3. ANÁLISE JURISPRUDENCIAL SOBRE A PROBLEMÁTICA
Neste capítulo dedicaremos os estudos à análise jurisprudencial sobe a possibilidade de combinação de leis penais no tempo, tendo como foco sobretudo decisões do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do Supremo Tribunal Federal (STF).
A matéria é de tamanha divergência que, em nenhum dos colendos Tribunais referidos, se vai encontrar uma uniformidade de entendimento.
Ficará demonstrado que no âmbito do STJ existe discrepância entre a 5ª (quinta) e a 6ª (sexta) Turmas, ao passo que no STF o Recurso Extraordinário 596.152/SP, que trata sobre a problemática deste trabalho, teve votação encerrada em 5x5 (cinco a cinco).
No âmbito do STJ, optamos pela escolha para a análise da decisão adotada no Recurso Especial nº 1.117.068 - PR, uma vez que o mesmo foi julgado pela 3ª Seção desse colendo Tribunal Superior, de forma que as decisões da 5ª (quinta) e da 6ª (sexta) Turmas não são pacíficas, e ainda a referida decisão serviu de alicerce para o firmamento do entendimento em decisões posteriores, na seara deste Tribunal.
É certo que ao pesquisarmos no sítio da Suprema Corte brasileira, sob a possibilidade de combinação de leis penais, encontramos 09 (nove) acórdãos que tratam sobre o tema.
O RE nº 596.152/SP foi escolhido para a análise da jurisprudência do STF neste trabalho, por dois motivos: (I) é o único recurso extraordinário em que se discute a possibilidade ou não de combinar leis penais, pois os outros acórdãos são originados de sua maioria de Habeas Corpus; (II) todas as decisões posteriores ao RE referido o tem como paradigma de decisão[32].
A importância de se ter um RE discutindo a matéria é a certeza da relevância do tema posto em debate, já que o crivo de admissibilidade do referido recurso é rígido, sobretudo pela existência do instituto da repercussão geral.
Em breve síntese, já que não é objeto deste trabalho o estudo do recurso extraordinário, por repercussão geral, o art. 543-A, § 1º do Código de Processo Civil37, acrescentado pela Lei nº 11.418/06, assim dispõe:
Art. 543-A. O Supremo Tribunal Federal, em decisão irrecorrível, não conhecerá do recurso extraordinário, quando a questão constitucional nele versada não oferecer repercussão geral, nos termos deste artigo. (Incluído pela Lei nº 11.418, de 2006).
§ 1o Para efeito da repercussão geral, será considerada a existência, ou não, de questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, que ultrapassem os interesses subjetivos da causa. (Incluído pela Lei nº 11.418, de 2006).
A Corte Suprema reconheceu a repercussão geral da matéria posta em debate, gerando ampla polêmica entre os magistrados que a compõe.
O Resp nº 1.117.068/ PR tem a seguinte ementa:
RECURSO ESPECIAL REPETITIVO. PENAL. VIOLAÇÃO AOS ART. 59, INCISO II, C.C. ARTS. 65 E 68, CAPUT, DO CÓDIGO PENAL. CIRCUNSTÂNCIAS ATENUANTES. MENORIDADE E CONFISSÃO ESPONTÂNEA. REDUÇÃO DA PENA ABAIXO DO MÍNIMO LEGAL. IMPOSSIBILIDADE. CRIME PREVISTO NO ART. 12, CAPUT, DA LEI N.º 6.368/76. COMBINAÇÃO DE LEIS. OFENSA AO ART. 2.º, PARÁGRAFO ÚNICO, DO CÓDIGO PENAL E AO ART. 33, § 4.º, DO ART. 11.343/06. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO.
1. É firme o entendimento que a incidência de circunstância atenuante não pode conduzir à redução da pena abaixo do mínimo estabelecido em lei, conforme disposto na Súmula n.º 231 desta Corte Superior.
2. O critério trifásico de individualização da pena, trazido pelo art. 68 do Código Penal, não permite ao Magistrado extrapolar os marcos mínimo e máximo abstratamente cominados para a aplicação da sanção penal.
3. Cabe ao Juiz sentenciante oferecer seu arbitrium iudices dentro dos limites estabelecidos, observado o preceito contido no art. 93, inciso IX, da Constituição Federal, sob pena do seu poder discricionário se tornar arbitrário, tendo em vista que o Código Penal não estabelece valores determinados para a aplicação de atenuantes e agravantes, o que permitiria a fixação da reprimenda corporal em qualquer patamar.
4. Desde que favorável ao réu, é de rigor a aplicação da causa de diminuição prevista no art. 33, § 4.º, da Lei n.º 11.343/06, quando evidenciado o preenchimento dos requisitos legais. É vedado ao Juiz, diante de conflito aparente de normas, apenas aplicar os aspectos benéficos de uma e de outra lei, utilizando-se a pena mínima prevista na Lei n.º 6.368/76 com a minorante prevista na nova Lei de Drogas, sob pena de transmudar-se em legislador ordinário, criando lei nova.
5. No caso, com os parâmetros lançados no acórdão recorrido, que aplicou a causa de diminuição no mínimo legal de 1/6 (um sexto), a penalidade obtida com a aplicação da causa de diminuição do art. 33,
§ 4º, da Lei n.º 11.343/06, ao caput do mesmo artigo, não é mais benéfica à Recorrida.
6. Recurso especial conhecido e provido para, reformando o acórdão recorrido, i) afastar a fixação da pena abaixo do mínimo legal e ii) reconhecer a indevida cisão de normas e retirar da condenação a causa de diminuição de pena prevista art. 33, § 4º, da Lei n.º 11.343/06, que no caso é prejudicial à Recorrida, que resta condenada à pena de 03 anos de reclusão. Acórdão sujeito ao que dispõe o art. 543-C do Código de Processo Civil e da Resolução STJ n.º 08, de 07 de agosto de 2008.
O entendimento sustentando pela 3ª (terceira) Seção do STJ, órgão que reune as duas Turmas de Direito Penal, é pela impossibilidade de conjugação de leis penais, sob o fundamento de que o Juiz se assim o fizesse estaria legislando.
Em verdade, para esta Corte Superior a análise da lei mais benfazeja se dá apenas de forma integral em uma referida legislação, não podendo o Juiz mesclar dois estatutos jurídicos diferentes ao argumento de beneficiar o réu.
Observemos a posição da Min. Laurita Vaz[33], Relatora do recurso especial, em análise:
“De outro lado, o Superior Tribunal de Justiça, tem admitido a aplicação retroativa do art. 33 da Lei n.º 11.343/06, na sua integralidade, sem a combinação de lei anterior e posterior, isto é, sem a possibilidade de aplicar a minorante com a pena prevista na Lei n.º 6.368/76, conforme se fez no caso concreto. Vedada a aplicação parcial da Lei n.º 11.343/2006, resta saber qual das normas é a mais favorável à ré, em face do princípio da retroatividade da lei penal mais benigna. A lei antiga comina pena mínima de 03 (três) anos de reclusão (art. 12, caput, da Lei n.º 6.368/76), enquanto a nova prevê 05 (cinco) anos de reclusão (art. 33, caput, da Lei n.º 11.343/06), denotando, prima facie, ser mais gravosa e, por conseguinte, inaplicável aos fatos anteriores. Não obstante, a alteração do sistema introduzido com a novel legislação, a par de dispensar tratamento mais rigoroso ao traficante, com a elevação das penas mínimas, possibilitou ao magistrado o abrandamento do rigorismo, instituindo causa de diminuição (§ 4.º do mesmo art. 33), em se tratando de réu primário, de bons antecedentes, que não se dedique a atividades criminosas, nem integre organização criminosa, o que traria a pena, se fixada no mínimo e sem acréscimos, para o patamar de 01 (um) ano e 08 (oito) meses de reclusão, sendo utilizada a redução máxima. Assim, encaixando- se a hipótese no disposto no § 4.º do citado artigo – tratando- se de réu primário, de bons antecedentes, que não se dedique a atividades criminosas, nem integre organização criminosa –, a pena reclusiva de 05 (cinco) anos pode reduzir-se para menos de 03 (três) anos, a depender da fração redutora, passando, assim, a ser a mais benéfica do que a antiga.”
No caso concreto, concluiu-se que a lei 11.346/2006 não pode retroagir no que tange apenas à causa especial de diminuição de pena, prevista em seu art. 33, § 4ª, a qual que aduz “Nos delitos definidos no caput e no § 1º deste artigo, as penas poderão ser reduzidas de um sexto a dois terços, desde que o agente seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa”.
A referida causa de diminuição de pena só deve ser aplicada à punição prevista na própria lei 11.346/2006, não podendo retroagir para diminuir a pena cominada na lei 6.368/76.
Este posicionamento foi aceito quase à unanimidade, com ressalva do posicionamento do Min. Marco Aurélio Belizze[34], o qual divergiu pela possibilidade de combinação de leis penais no caso concreto.
Vejamos:
“Não há função de legislador ao juiz que aplica, sobre a lei vigente ao tempo do fato, uma lei benéfica, ainda que para isso seja necessário dar uma interpretação a lei nova, fundada nos princípios da razoabilidade e proporcionalidade, de forma a limitar o benefício advindo da conjugação de leis ao máximo que poderia ser obtido pelos destinatários da lei nova. Em síntese, a aplicação retroativa da nova Lei de Drogas, reconhecendo-se a incidência da causa de redução da pena sobre condenação pelo crime de tráfico da Lei nº 6.368/76, não poderá resultar para este condenado pena menor que aquela prevista para o destinatário da Lei nº 11.343/06.”
Enfim, o STJ, através da 3ª (terceira) Seção, concluiu pela impossibilidade da combinação de leis penais. Para esta Corte Superior, haveria violação ao princípio da separação dos poderes, pois o juiz estaria criando uma lei terceira não prevista pelo legislador.
Inicialmente pedimos vênia para transcrever a ementa do referido julgado:
EMENTA: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL. PENAL. TRÁFICO DE ENTORPECENTES. CAUSA DE DIMINUIÇÃO DE PENA, INSTITUÍDA PELO § 4º DO ART. 33 DA LEI 11.343/2006. FIGURA DO PEQUENO TRAFICANTE. PROJEÇÃO DA GARANTIA DA INDIVIDUALIZAÇÃO DA PENA (INCISO XLVI DO ART. 5º DA CF/88). CONFLITO INTERTEMPORAL DE LEIS PENAIS. APLICAÇÃO AOS CONDENADOS SOB A VIGÊNCIA DA LEI 6.368/1976. POSSIBILIDADE. PRINCÍPIO DA RETROATIVIDADE DA LEI PENAL MAIS BENÉFICA (INCISO XL DO ART. 5º DA CARTA MAGNA). MÁXIMA EFICÁCIA DA CONSTITUIÇÃO. RETROATIVIDADE ALUSIVA À NORMA JURÍDICO-POSITIVA. INEDITISMO DA MINORANTE. AUSÊNCIA DE CONTRAPOSIÇÃO À NORMAÇÃO ANTERIOR. COMBINAÇÃO DE LEIS. INOCORRÊNCIA. EMPATE NA VOTAÇÃO. DECISÃO MAIS FAVORÁVEL AO RECORRIDO. RECURSO DESPROVIDO.
1. A regra constitucional de retroação da lei penal mais benéfica (inciso XL do art. 5º) é exigente de interpretação elástica ou tecnicamente “generosa”.
2. Para conferir o máximo de eficácia ao inciso XL do seu art. 5º, a Constituição não se refere à lei penal como um todo unitário de normas jurídicas, mas se reporta, isto sim, a cada norma que se veicule por dispositivo embutido em qualquer diploma legal. Com o que a retroatividade benigna opera de pronto, não por mérito da lei em que inserida a regra penal mais favorável, porém por mérito da Constituição mesma.
3. A discussão em torno da possibilidade ou da impossibilidade de mesclar leis que antagonicamente se sucedem no tempo (para que dessa combinação se chegue a um terceiro modelo jurídico-positivo) é de se deslocar do campo da lei para o campo da norma; isto é, não se trata de admitir ou não a mesclagem de leis que se sucedem no tempo, mas de aceitar ou não a combinação de normas penais que se friccionem no tempo quanto aos respectivos comandos.
4. O que a Lei das Leis rechaça é a possibilidade de mistura entre duas normas penais que se contraponham, no tempo, sobre o mesmo instituto ou figura de direito. Situação em que há de se fazer uma escolha, e essa escolha tem que recair é sobre a inteireza da norma comparativamente mais benéfica. Vedando-se, por conseguinte, a fragmentação material do instituto, que não pode ser regulado, em parte, pela regra mais nova e de mais forte compleição benéfica, e, de outra parte, pelo que a regra mais velha contenha de mais benfazejo.
5. A Constituição da República proclama a retroatividade dessa ou daquela figura de direito que, veiculada por norma penal temporalmente mais nova, se revele ainda mais benfazeja do que a norma igualmente penal até então vigente. Caso contrário, ou seja, se a norma penal mais nova consubstanciar política criminal de maior severidade, o que prospera é a vedação da retroatividade.
6. A retroatividade da lei penal mais benfazeja ganha clareza cognitiva à luz das figuras constitucionais da ultra-atividade e da retroatividade, não de uma determinada lei penal em sua inteireza, mas de uma particularizada norma penal com seu específico instituto. Isto na acepção de que, ali onde a norma penal mais antiga for também a mais benéfica, o que deve incidir é o fenômeno da ultra- atividade; ou seja, essa norma penal mais antiga decai da sua atividade eficacial, porquanto inoperante para reger casos futuros, mas adquire instantaneamente o atributo da ultra-atividade quanto aos fatos e pessoas por ela regidos ao tempo daquela sua originária atividade eficacial. Mas ali onde a norma penal mais nova se revelar mais favorável, o que toma corpo é o fenômeno da retroatividade do respectivo comando. Com o que ultra-atividade (da velha norma) e retroatividade (da regra mais recente) não podem ocupar o mesmo espaço de incidência. Uma figura é repelente da outra, sob pena de embaralhamento de antagônicos regimes jurídicos de um só e mesmo instituto ou figura de direito.
7. Atento a esses marcos interpretativos, hauridos diretamente da Carta Magna, o § 4º do art. 33 da Lei 11.343/2006 outra coisa não fez senão erigir quatro vetores à categoria de causa de diminuição de pena para favorecer a figura do pequeno traficante. Minorante, essa, não objeto de normação anterior. E que, assim ineditamente positivada, o foi para melhor servir à garantia constitucional da individualização da reprimenda penal (inciso XLVI do art. 5º da CF/88).
8. O tipo penal ou delito em si do tráfico de entorpecentes já figurava no art. 12 da Lei 6.368/1976, de modo que o ineditismo regratório se deu tão-somente quanto à pena mínima de reclusão, que subiu de 3 (três) para 5 (cinco) anos. Afora pequenas alterações redacionais, tudo o mais se manteve substancialmente intacto.
9. No plano do agravamento da pena de reclusão, a regra mais nova não tem como retroincidir. Sendo (como de fato é) constitutiva de política criminal mais drástica, a nova regra cede espaço ao comando da norma penal de maior teor de benignidade, que é justamente aquela mais recuada no tempo: o art. 12 da Lei 6.368/1976, a incidir por ultra-atividade. O novidadeiro instituto da minorante, que, por força mesma do seu ineditismo, não se contrapondo a nenhuma anterior regra penal, incide tão imediata quanto solitariamente, nos exatos termos do inciso XL do art. 5º da Constituição Federal.
10. Recurso extraordinário desprovido.
A imensa divergência acerca do tema se comprova mediante o empate na votação do referido recurso extraordinário. De início esclarecemos que o desprovimento do recurso extraordinário se deu por razões regimentais, já que os Ministros da Suprema Corte entenderam que na essência do referido recurso havia pleito típico de Habeas Corpus e, ocasionando empate, dever-se- ia adotar o mais favorável ao réu.
O STF até então adotava posição similar a da terceira Seção do STJ (Resp nº 1.117.068). No entanto, a partir do recurso extraordinário ora analisado, inaugurou-se uma divergência sobre a problemática.
Destacamos que os cinco Ministros (Ricardo Lewandowski [Relator], Cármen Lúcia, Joaquim Barbosa, Luiz Fux e Marco Aurélio), que votaram pela impossibilidade de mesclagem de leis, assim decidiram pelos fundamentos já expostos na análise do tópico anterior, considerando invasão do Magistrado em função que não lhe cabe, notadamente a função legiferante.
A título de exemplo citamos um trecho do voto do Min. Luiz
Fux[35]:
(...)”A lex tertia viola, ainda, dois outros fundamentos do art. 5º, XL, in fine, da Lei Maior: o princípio da legalidade e a democracia. Cria- se, com a tese que ora se refuta, uma regra que não está prevista nem na lei antiga e nem na lei nova, que não goza do batismo democrático atribuído à Lei aquele aplicável aos que delinquirem após o advento da Lei de Drogas de 2006. Diversas razões militam contra essa conclusão. Passo a enumerá-las. A primeira, e mais evidente, é a afronta acachapante ao princípio da isonomia, previsto no art. 5º, caput, da Constituição. Nenhum argumento é capaz de justificar que o princípio da retroatividade da lei penal mais benigna permita que duas pessoas, que praticaram o mesmo fato delituoso, nas mesmas condições, recebam penas distintas, apenas em razão do tempo em que o crime foi levado a cabo. Essa situação é possível quando a lei antiga punia o crime de maneira mais branda que a lei modificada – aplicando-se o princípio da irretroatividade da novatio legis in pejus –, porém, em tal conjuntura é mantida a reprimenda prevista na legislação anterior. Os que defendem a lex tertia talvez não tenham se apercebido do paradoxo que seria uma lei retroagir conferindo aos fatos passados uma situação jurídica mais favorável do que àqueles praticados durante a sua vigência. Vale lembrar que a igualdade perante a lei é um dos fundamentos da retroatividade da lei penal mais favorável. Conforme dito alhures, outro fundamento desse princípio reside na mudança da valoração de uma conduta delituosa pela sociedade, que passa a considerar despicienda ou excessiva a punição até então dispensada a ela. Ocorre que a retroatividade da lei “em tiras” consiste em velada deturpação da nova percepção que o legislador, responsável por expressar os anseios sociais, manifestou a respeito dessa mesma conduta. Em palavras mais singelas: a sociedade pós-Lei
11.343 quer uma punição mínima de 1 (um) ano e 8 (oito) meses de reclusão para o “tráfico privilegiado”, não sendo possível dispensar tratamento mais brando aos crimes pretéritos dessa natureza. A lex tertia viola, ainda, dois outros fundamentos do art. 5º, XL, in fine, da Lei Maior: o princípio da legalidade e a democracia. Cria-se, coma tese que ora se refuta, uma regra que não está prevista nem na lei antiga e nem na lei nova, que não goza do batismo democrático atribuído à Lei formal. Ao Judiciário não é dado arvorar-se no papel de legislador para pretender, mediante manobra interpretativa, resultado contrário à vontade da lei (ou melhor, das leis) e da Constituição”.
Já os Ministros divergentes, (Ayres Britto, Cezar Peluso (Presidente), Dias Toffoli, Gilmar Mendes e Celso de Mello), entenderam não se tratar de combinação de lei, já que a causa de diminuição de pena, com seus requisitos próprios, aplicados ao chamado “pequeno traficante”, é uma figura de direito autônoma, aplicando-se o princípio da retroatividade da lei mais benéfica.
Para os eminentes magistrados, há uma mitigação da teoria do conglobamento, quando se tratar de instituto jurídico próprio, o que se veda é a combinação de requisitos para uma mesma figura de direito, não se pode mesclar requisitos de leis distintas sobre um mesmo instituto, com o intuito de beneficiar o agente, isso sim, seria uma lex tertia, o que é vedado ao julgador.
É como decidiu o Min. Carlos Ayres Britto[36]:
“(...)Deste ponto se infere que a prefalada discussão em torno da possibilidade ou da impossibilidade de mesclar leis que antagonicamente se sucedem no tempo (para que dessa combinação se chegue a um terceiro modelo jurídico-positivo) é de se deslocar do campo da lei para o campo da norma; isto é, não se trata de admitir ou não a mesclagem de leis que se sucedem no tempo, mas de aceitar ou não a combinação de normas penais que se friccionem no tempo quanto aos respectivos comandos. E a se tomar como válido o juízo técnico de vedação da mescla, então a pergunta que nos cabe fazer é simplesmente esta: quando se tem uma indevida combinação de modelos prescritivos em matéria penal? Resposta: o que a nossa Constituição rechaça é a possibilidade de mistura entre duas normas penais que se contraponham, no tempo, sobre o mesmo instituto ou figura de direito. Situação em que há de se fazer uma escolha, e essa escolha tem que recair é sobre a inteireza da norma comparativamente mais benéfica. Vedando-se, por conseguinte, a fragmentação material do instituto, que não pode ser regulado, em parte, pela regra mais nova e de mais forte compleição benéfica, e, de outra parte, pelo que a regra mais velha contenha de mais benfazejo. Isso equivaleria a criar uma normação extralegislativa, puramente imaginária, como se fosse possível colocar um dos pés da interpretação na canoa mais nova e o outro pé na canoa mais velha para alcançar um mesmo destino. Proibição, portanto, decorrente do pétreo esquema constitucional da separação dos Poderes (inciso I do § 4º do art. 60 da CF/88), já antecipadamente formatado pelo art. 2º da mesma Lei Republicana, pois ao Poder Judiciário descabe legislar”.
Ess posição do STF é intermediária, entre a teoria que aceita a lex tertia e a que rejeita a combinação de leis penais, apesar de rechaçar a fusão de partes de leis penais, que se sucedem no tempo, com o intuito de beneficiar a situação jurídica do réu.
Afirma-se que quando se tratar de uma figura de direito autônoma, se for benfazeja ao réu, será dotada de retroatividade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS.
Do exposto, concluímos que existe a possibilidade de se mesclar leis para beneficiar o réu, sobretudo quando se tratar de institutos jurídicos autônomos ou figuras de direito diversas.
O que não será possível é juntar requisitos de determinado instituto jurídico de diversas legislações. Se assim o fizer, é notável que o Juiz estaria criando uma terceira lei.
A criação desta lex tertia, data vênia, transbordaria os limites da retroatividade benigna da lei penal. Tal limitação é decorrência da Constituição Federal que prevê o efeito retroativo da lei penal que beneficia o réu, bem como não se permite ao Magistrado criar uma figura distinta da prevista pelo legislador.
É certo que se trata de garantia constitucional do réu uma proteção contra as mutações legislativas, seja quando há um agravamento ou um melhoramento da sua situação jurídica.
Na primeira hipótese, deve prevalecer a irretroatividade; já na segunda, subsistirá como regra a retroatividade. Nisso consiste a extra- atividade da lei penal.
No entanto, nos posicionamos no sentido de que apenas quando tratar-se de uma figura de direito única, inédita, é que possa haver a mesclagem de leis para beneficiar o agente. Este entendimento é condizente com a posição prevalecente no âmbito do Supremo Tribunal Federal.
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RICARDO. Allan apud TOLEDO. Assis. Direito Penal I. Disponível em http://pt.scribd.com/doc/94251154/Direito-Penal-i-1 .
[1] BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília. Senado; 1988.
[2] RICARDO. Allan apud TOLEDO. Assis. Direito Penal I. Disponível em http://pt.scribd.com/doc/94251154/Direito‐Penal‐i‐1
[3] GRECO. Rogério. Curso de Direito Penal parte geral. 14ª edição. Niterói/RJ. Impetus. 2012 (p. 115).
[4] CALHEIROS, Maria Clara. Aplicação da lei no tempo. Disponível em http://delegadodireito1.files.wordpress.com/2010/06/aplicacao_da_lei_no_tempo.pdf.
[5] Gagliano, Pablo Stolze; Pamplona Filho, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil. Parte Geral. 14ª edição. São Paulo. Saraiva. 2012. “O fato é que o referido Decreto-Lei, originariamente intitulado de ‘Lei de Introdução ao Código Civil’, sempre teve um alcance normativo muito mais vasto e profundo, na medida em que não apenas traçava diretrizes fundamentais para o Direito Civil propriamente dito, como também para diversos outros ramos da dogmática jurídica”
[6] Diniz. Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. Teoria Geral. 26ª edição. São Paulo. Saraiva. 2009.
[7] BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília. Senado; 1988.
[8] BRASIL. Código Penal. Decreto-Lei nº 2.848 (1940).
[9] FALCONI, Romeu. Lineamentos de Direito Penal. 3ª. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Ícone, 2002, p. 118.
[10] STJ. REsp 1123747 / RS. Rel. Min. Gilson Dipp. Julgado em 16/12/2010.
[11] BARROS, Flávio Augusto Monteiro de. Direito Penal. 2ª edição. São Paulo. Saraiva (p.29‐30)
[12] GRECO. Rogério. Curso de Direito Penal parte geral. 14ª edição. Niterói/RJ. Impetus. 2012 (p. 104).
[13] GOMES, Luiz Flávio. Direito Penal: parte geral. 2ª. ed. rev. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004,( p. 135).
[14] BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília. Senado; 1988.
[15] ROXIN. Claus. Derecho Penal‐ Parte general, t. 1. p. 161
[16] BRASIL. Código Penal. Decreto-Lei nº 2.848 (1940)
[17] PRADO. Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. Volume I. 6ª edição. São Paulo. Revista dos Tribunais (p. 190)
[18] BRASIL. Código Penal. Decreto-Lei nº 2.848 (1940). BRASIL.
[19] SOUZA NUCCI. Guilherme. Manual de Direito Penal. 3ª edição. São Paulo/SP. Revista dos Tribunais. 2007 (p. 96‐97).
[20] DE JESUS. Damásio E. Direito Penal, parte geral. 23ª edição. São Paulo/SP. Saraiva. 1999 (p.95)
[21] SOUZA NUCCI. Guilherme. Manual de Direito Penal. 3ª edição. São Paulo/SP. Revista dos Tribunais. 2007 (p. 97).
[22] AGRA. Walber de Moura. Curso de Direito Constitucional. 5ª edição. Rio de Janeiro. Forense. 2009 (p. 438).
[23] MONTESQUIEU. Charles‐Louís de. Do espírito das leis. Difusão Europeia do livro, 1962 (p.181).
[24] MENDES E OUTROS.Gilmar. Curso de Direito Constitucional. 5ª edição. São Paulo. Saraiva. 2010 (p. 220).
[25] STF. HC 107.583/MG. Rel. Min. Luiz Fux. Julgado em 17/04/2012.
[26] MIRABETE. Julio Fabbrini Manual de Direito Penal, parte geral. 22ª edição. São Paulo. Atlas. 2005 (p. 67)
[27] SOUZA NUCCI. Guilherme. Manual de direito penal. 3ª edição. São Paulo/SP. Revista dos Tribunais. 2007 (p. 97).
[28] STF. RHC107515. Rel. Min. Ricardo Lewandoski. Julgado em 15/03/2012.
[29] QUEIROZ. Paulo. Curso de Direito Penal, parte geral. Disponível em: http://pauloqueiroz.net/combinacao‐de‐leis‐penais/
[30] GRECO. Rogério. Curso de Direito Penal parte geral. 14ª edição. Niterói/RJ. Impetus. 2012 (p. 115).
[31] STJ. RESP. 1.102.005. Rel. Min. Felix Fisher. Julgado em 19/08/2007.
[32] Vide.http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28combina%E7%E3o+de+leis+penais%29&base=baseAcordaos
[33] STJ. RESP. 1.117.068 . Rel. Min. Laurita Vaz. Julgado em 26/10/2011.
[34] STJ. RESP. 1.117.068 . Voto. Min. Marco Aurélio Belizze. Julgado em 26/10/2011.
[35] STF. RE. 596.152 . Voto. Min. Luiz Fux. Julgado em 13/10/2011.
[36] STF. RE. 596.152 . Voto. Min. Carlos Ayres Britto. Julgado em 13/10/2011
Bacharel em Direito pela Faculdade Asces, Pós graduado em Direito Penal e Processual Penal pela Escola Superior da Magistratura do Estado de Pernambuco; Analista Judiciário e Assessor Técnico em gabinete de Desembargador do TJPE.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOUSA, Caio Emanuel Severiano Santos e. Possibilidade de aplicação da “lex tertia” no direito penal brasileiro. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 mar 2023, 04:42. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/61218/possibilidade-de-aplicao-da-lex-tertia-no-direito-penal-brasileiro. Acesso em: 22 nov 2024.
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