Resumo: A tutela coletiva surgiu como necessidade da sociedade de massa, na busca de efetivar o acesso à Justiça diante dos macroconflitos, apresentando-se também como meio de administração da Justiça, através da racionalização do uso do Judiciário. Nesse sentido, a Lei 7.347/85 trouxe importante instrumento de atuação coletiva, a ação civil pública. A alteração realizada pela Lei 9.494/97 no artigo 16 da Lei da Ação Civil Pública porém, acabou por restringir o alcance da tutela coletiva, colidindo com sua finalidade. O presente artigo objetiva analisar a decisão do Supremo Tribunal Federal no Tema 1075 da Repercussão Geral, acerca dos limites territoriais da coisa julgada em sede de ação civil pública através da análise da (in)constitucionalidade do artigo 16 da Lei 7.347/85, com a redação dada pela Lei 9.494/97. A discussão em torno do alcance geográfico das sentenças proferidas em sede de ação civil pública se espraia inevitavelmente até a efetividade do instituto, sua aplicabilidade e atendimento ao espírito da Lei 7.347/85, consoante o objetivo da tutela coletiva.
Palavras-chave: ação civil pública; sentença; coisa julgada; limites.
1. INTRODUÇÃO
A sociedade de massa, surgida especialmente a partir da segunda metade do século XX, deu azo ao surgimento dos direitos de terceira dimensão, aqueles de feição nitidamente coletiva. Os direitos coletivos lato sensu são subdivididos em direitos difusos, coletivos strictu sensu e individuais homogêneos.
O Código de Defesa do Consumidor define como difusos os direitos de natureza transindividual, de natureza indivisível, de titulares indeterminados e indetermináveis, ligados por circunstâncias de fato; os direitos coletivos, por sua vez, são aqueles transindividuais, de natureza indivisível, de titularidade de grupo, categoria ou classes de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base; e os individuais homogêneos, que apesar de divisíveis e de titularidade determinável, são considerados artificialmente coletivos, pois decorrentes de origem comum.
No entanto, apenas reconhecer tais direitos não se mostra efetivo. É preciso que haja meios de instrumentação e efetivação desses direitos. Nesse contexto, e em oposição a uma noção processualista quase que exclusivamente individual até então existente, surgiram paulatinamente instrumentos de atuação coletiva tais como a Ação Popular (Lei 4.717/65), Lei da Ação Civil Pública (Lei 7.347/85), a própria Constituição Federal de 1988 com previsão do mandado de segurança coletivo, por exemplo, a Lei do Mandado de Segurança (Lei 12.016/09), dentre outros.
A tutela processual coletiva se revela não só como instrumento de efetivação dos direitos coletivos, mas também como meio de racionalização do uso do Judiciário, revelando-se como meio de garantir o efetivo acesso à Justiça, não só pelo aspecto da celeridade processual, mas também pelo aspecto da isonomia entre os jurisdicionados e da segurança jurídica.
PEREIRA (1997, p. 10) aduz que:
Com efeito, a ação coletiva possibilita a uniformidade no trato de uma mesma questão que reproduz efeitos em larga escala, garantindo maior efetividade ao processo e propiciando igual tratamento em relação a todos os integrantes da coletividade atingida, com isso evitando-se decisões contraditórias entre dezenas ou centenas de julgados. Ademais, a coletivização do processo é de inegável importância para o desafogo do Poder Judiciário, ao prevenir o ajuizamento descontrolado de ações similares.
A alteração trazida pela Lei 9.494/97 no artigo 16 da Lei 7.347/85 pretendeu limitar o alcance da sentença proferida em sede de ação civil pública aos limites territoriais do órgão prolator, ferindo assim a mens legis da LACP, de prevenir e compor conflitos de massa com isonomia e maior alcance possível. Confundiu também os institutos da eficácia da sentença, competência e coisa julgada, revelando atécnica legislativa e causando enorme celeuma jurídica acerca do tema.
No presente trabalho buscar-se-á analisar os limites da coisa julgada em sede de ação civil pública sob a perspectiva do STF exarada no Tema 1075 da Repercussão Geral.
A fim de atender ao objeto de estudo foi realizada pesquisa bibliográfica sobre o tema, além de pesquisa normativa e jurisprudencial, utilizando como fontes produções acadêmicas, livros, a própria legislação, artigos, pareceres e notícias relacionadas ao tema, bem como o conteúdo disponibilizado junto ao sítio eletrônico do Supremo Tribunal Federal referente ao Tema de Repercussão Geral 1075, abarcando, a pesquisa, tanto o método qualitativo quanto o método quantitativo.
Inicialmente, a pesquisa passa pela análise da tutela coletiva, bem como da origem dessa espécie de tutela, relacionado-a ao contexto social em que surgiu. Após, proceder-se-á à análise dos aspectos técnicos relativos à extensão da coisa julgada em sede de tutela coletiva, seus limites e alcance.
Passar-se-á então à análise da restrição feita na Lei 9.494/97 com a alteração no artigo 16 da Lei de Ação Civil Pública e a interpretação dada pelo Supremo Tribunal Federal acerca da (in)constitucionalidade desse dispositivo, a fim de satisfazer a mens legis da Lei 7.347/85 e sua função social, interpretação esta realizada em sede de análise do Tema 1075 da Repercussão Geral da Suprema Corte.
2. TUTELA COLETIVA: SUA ORIGEM E FINALIDADE
A consolidação do sistema capitalista e o crescimento populacional, aliados ao fenômeno da globalização trouxeram novos parâmetros para todo o mundo nos mais diversos aspectos, impactando temas como políticas públicas, consumo, tutela de direitos e a própria jurisdição.
Diante da massificação dos conflitos e da existência de macrolesões a bens jurídicos sociais, comuns, a tutela meramente individual tornou-se ineficaz ao atendimento das necessidades sociais. Isso porque não se está mais diante de direitos meramente individuais, mas de direitos notadamente coletivos lato sensu, marcados pela titularidade transindividual ou ainda quando individual, homogênea.
Nesse sentido ensina CAPPELLETTI (1988, p. 49-50):
A concepção tradicional do processo civil não deixava espaço para a proteção dos direitos difusos. O processo era visto apenas como um assunto entre duas partes, que se destinava à solução de uma controvérsia entre essas mesmas partes a respeito de seus próprios interesses individuais. Direitos que pertencessem a um grupo, ao público em geral, ou a um segmento do público não se enquadravam bem nesse esquema.
PIZZOL (2020, p.46) aduz que:
Uma ação coletiva pode substituir várias ações individuais, o que permite uma melhor atuação do Judiciário, além de proporcionar maior segurança jurídica, pois são evitados julgados conflitantes. Usando as palavras de Kazuo Watanabe, a ação coletiva permite a substituição da atomização das ações pela molecurarização dos conflitos. O processo coletivo atua como instrumento de mediação dos conflitos sociais e não apenas como instrumento de solução de lides, evita a banalização das demandas em decorrência da sua fragmentação e confere peso político mais adequado às ações coletivas.
Desse modo, é de se observar que a tutela coletiva se afigurou não como mera criação da sociedade de massa, mas como verdadeira necessidade desta, marcada especialmente pela alta conflituosidade. A solução das controvérsias em âmbito coletivo mostrou-se, portanto, necessidade inerente ao próprio equilíbrio social.
A tutela coletiva surge no contexto da segunda onda renovatória de acesso à justiça, proposta por Mauro Cappelletti e Bryant Garth. Tais autores dividem o problema do acesso à justiça em três distintas ondas. A primeira, tem enfoque na desburocratização e precificação do acesso, pugnando pela gratuidade da justiça e acesso a juizados especiais de pequenas causas; a segunda onda, por sua vez, trata da coletivização do processo e a terceira, dos métodos alternativos de solução de conflitos, como a mediação e a conciliação.
Muito embora a origem das class actions (ou ações de classe) remonte à Inglaterra do século XVII, foi no sistema norte-americano, a partir da primeira metade do século XX, que tomaram força e contornos mais definidos. No Brasil, já lei da Ação Popular, em 1965, inaugurou a tutela coletiva, seguida pela Lei da Ação Civil Pública, em 1985 e posteriormente pela Constituição Federal, de 1988.
O Código de Defesa do Consumidor, Lei 8.078/90, reforçou o quadro legislativo de tutela coletiva, trazendo relevantes e inovadores dispositivos processuais coletivos. Nesse contexto, também merece destaque a Constituição Federal de 1988, que constitucionalizou a tutela coletiva e trouxe importante ponto de inflexão em prol desta.
Previu direitos coletivos, bem como meios de garantia e efetivação desses direitos, seja no âmbito judicial (a exemplo do mandado de segurança, da ação civil pública, do habeas data entre outros), seja no âmbito administrativo/legislativo, pugnando também pela ênfase dos Poderes Públicos a ações e programas de cunho social, como saúde, educação e trabalho, além de tutelar expressamente bens difusos como o meio ambiente, por exemplo.
A tutela coletiva, além de concentrar conflitos, molecularizando-os, também faz o papel de vocalizar interesses que, individualmente, não possuiriam expressão econômica, social ou política.
Nesse espeque leciona MALLET (2010, p. 114):
Ademais, há ilícitos cuja discussão judicial somente faz sentido quando considerada a lesão do ponto de vista transindividual. Insignificantes no plano individual - de modo a não estimular a busca judicial da reparação para a lesão sofrida -, adquirem magnitude apenas vistos coletivamente. (...) Um bom exemplo talvez seja o das microlesões individuais, que atingem grande número de pessoas, milhares ou milhões delas. O fabricante de açúcar que comercializa o seu produto em embalagem de 1 quilograma e subtrai alguns poucos gramas de cada embalagem - 2 ou 3 gramas - certamente lesa vários indivíduos. Cada u m dos consumidores, embora lesado pessoalmente, e m toda compra feita, não tem estímulo suficiente para ir a juízo, a fim de postular, para si apenas, alguma reparação, dada a quase irrelevância do dano individual. Transposta a lesão para o plano coletivo, porém, considerada a venda global de embalagens durante largo período de tempo, sua magnitude torna-se enorme. Assim, somente a tutela coletiva adquire abrangência suficiente para estimular a busca de alguma forma de tutela judicial.
A finalidade precípua do instituto então, se volta à solução de macroconflitos, a fim de dar solução uniforme a questões que necessitem de decisão uniforme, evitando a quebra da isonomia entre os jurisdicionados, bem como racionalizando o uso do Judiciário e alcançando maior gama de direitos e beneficiários.
Nesse sentido, NETO (2012, p. 331) afirma:
Com efeito, a ação coletiva possibilita a uniformidade no trato de uma mesma questão que reproduz efeitos em larga escala, garantindo maior efetividade ao processo e propiciando igual tratamento em relação a todos os integrantes da coletividade atingida, com isso evitando-se decisões contraditórias entre dezenas ou centenas de julgados. Ademais, a coletivização do processo é de inegável importância para o desafogo do Poder Judiciário, ao prevenir o ajuizamento descontrolado de ações similares.
3. MICROSSISTEMA PROCESSUAL DE TUTELA COLETIVA E A LEI 7.347/85
Embora a tutela coletiva seja uma realidade, não existe ainda hoje uma codificação de seus instrumentos, como ocorre com o processo civil ou o processo penal, por exemplo.
Na verdade, a doutrina teve importante papel nessa seara, no que convencionou chamar de "microssistema processual de tutela coletiva". Tal microssistema se pauta pela teoria dos vasos comunicantes, em que as legislações até então esparsas se comunicam, enviando e reenviando comandos entre si, complementando-se.
Nesse sentido, BASTOS (2018, p. 57):
Como ainda não há uma regulamentação própria corporificada em uma codificação, a doutrina com respaldo da jurisprudência reconhece que as diversas leis existentes se comunicam entre si formando um verdadeiro sistema policentrado de tutela coletiva. (...) Assim, podemos afirmar que a formação do microssistema de tutela coletiva decorre das normas de reenvio e do sistema de vasos comunicantes por intermédio dos diversos diplomas legislativos. Os diplomas legislativos, portanto, que tratam da tutela coletiva são intercambiantes entre si.
Entre as normas mais importantes desse microssistema, tem-se a Lei da Ação Popular (4.717/65) e o Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90) como fundamentais. Tais normas trazem o panorama geral da tutela coletiva, sendo complementadas por outras tais como a Lei da Ação Popular (Lei 4.717/65), a Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei 6.938/81), a Lei 7.853/89, que trata da tutela coletiva dos interesses das pessoas com deficiência, o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90), dentre outras.
Tais normas, porque específicas, são aplicadas subsidiariamente entre si, nesse intercâmbio de fontes, aplicando-se o Código de Processo Civil apenas supletivamente, ou seja, à falta de disposições naquelas normas.
Como parte essencial do microssistema e fonte indispensável do instituto, a Lei 7.347/85 disciplinou a Ação Civil Pública, trazendo rol de legitimados, bens e interesses por ela defendidos, bem como rito procedimental específico. Embora a Lei 4.717/65 tenha inaugurado a tutela coletiva em nosso ordenamento jurídico, foi efetivamente a Lei 7.347/85 que sedimentou o tema, tendo a ação civil pública posteriormente sido constitucionalizada pela Carta Magna de 1988.
Aliás, a Constituição Cidadã trouxe a ação civil pública como instrumento posto à disposição do Ministério Público (art. 129, III) na realização de seu mister constitucional de defender a ordem jurídica, os interesses sociais e individuais indisponíveis.
A lei 7.347/85, por sua vez, traz rol taxativo de legitimados em seu artigo 5º, disciplinando já no artigo 1º os bens e interesses por ele defendidos. Trouxe também previsão de importante instrumento de efetivação dos direitos de massa, o Termo de Ajustamento de Conduta (art. 5º, §6º), a ser manejado pelos órgãos públicos legitimados para a ação civil pública. Instrumento, aliás, amplamente utilizado pelo Ministério Público, na prevenção de conflitos evitando a judicialização excessiva.
Diante da melhor obtenção da prova e a fim de melhor aproveitar o conhecimento e contato com os fatos, a LACP previu a competência do foro do local do dano para as ações com base nela propostas (art. 2º), tratando no seu decorrer de aspectos processuais (que posteriormente foram aprimorados pelo Código de Defesa do Consumidor), bem como dos efeitos da sentença proferida em sede de ação civil pública (art. 16).
Embora a LACP seja fruto da segunda onda renovatória, o artigo 18 da Lei, com a redação dada pelo CDC, atende também a anseio da primeira onda, determinando não haver adiantamento de custas, emolumentos ou honorários periciais nem condenação da associação autora em tais despesas, salvo comprovada má-fé.
4. A DISCUSSÃO ACERCA DA (IN) CONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 16 DA LEI 7.347/85 COM A REDAÇÃO DADA PELA LEI 9.494/97 E O ENTENDIMENTO DO STF NO TEMA 1075 DE REPERCUSSÃO GERAL
A controvérsia que se impõe acerca do artigo 16 da LACP pauta-se, primeiro, em conceitos jurídicos distintos. O artigo 2º da referida lei dispôs acerca da competência para o julgamento das ações civis públicas, fixando-se como competente o foro do local do dano. Uma vez que não se trata de competência apenas territorial, mas territorial-funcional, tem natureza absoluta, isto é, não pode ser prorrogada.
Vale dizer, o juízo competente para apreciar a demanda será aquele cuja jurisdição seja afeta ao local do dano.
A eficácia subjetiva da sentença, por sua vez, está relacionada aos destinatários ou beneficiários da decisão emanada do juízo competente. Regra geral, a eficácia subjetiva está ligada aos sujeitos em si e não ao local onde eles se encontram.
Desse modo, aprioristicamente tem-se que, ainda que a competência para julgamento tenha relação com o território, os efeitos da sentença proferida por juiz competente não se restringirão àquele território, mas será limitada pelos sujeitos processuais em litígio.
Note-se que no processo comum, individual, a sentença faz coisa julgada inter partes, isto é, limitadamente ao autor (ou autores) e réu (ou réus) presentes nos opostos pólos da demanda. No processo coletivo porém, a regra geral não se aplica.
O artigo 16 da Lei 7.347/85 trata sobre os limites da coisa julgada em sede de ação civil pública. Quanto aos limites subjetivos, o referido artigo tanto em sua redação original quanto em sua redação alterada pela Lei 9.494/97 indica que a sentença será erga omnes, saldo improcedência por falta de provas (secundo eventum probationes).
O artigo 16 da Lei 7.347/85 em sua redação original e na redação alterada pela Lei 9.494/97 assim dispõe:
Art. 16. A sentença civil fará coisa julgada erga omnes, exceto se a ação for julgada improcedente por deficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova.
Art. 16. A sentença civil fará coisa julgada erga omnes, nos limites da competência territorial do órgão prolator, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova. (Redação dada pela Lei nº 9.494, de 10.9.1997) (grifo nosso)
Isto quer dizer que a eficácia subjetiva não se restringirá às partes em juízo, mas se estenderá a todos os que compõem o grupo ali representado, a depender do resultado da lide ou da sorte das provas.
Seja a todos indistintamente (no caso de direitos difusos), seja às pessoas integrantes do grupo, classe ou categoria (na hipótese de direitos coletivos strictu sensu, caso em que será ultra partes) ou ainda àqueles ligados por direitos de origem comum (no caso de procedência na hipótese de direitos individuais homogêneos).
Fato é que a condicionante para a formação da coisa julgada não é o território, mas sim a sorte das provas ou o resultado da demanda, conforme se extrai do artigo 103 do CDC, abaixo transcrito:
Art. 103. Nas ações coletivas de que trata este código, a sentença fará coisa julgada:
I - erga omnes, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação, com idêntico fundamento valendo-se de nova prova, na hipótese do inciso I do parágrafo único do art. 81;
II - ultra partes, mas limitadamente ao grupo, categoria ou classe, salvo improcedência por insuficiência de provas, nos termos do inciso anterior, quando se tratar da hipótese prevista no inciso II do parágrafo único do art. 81;
III - erga omnes, apenas no caso de procedência do pedido, para beneficiar todas as vítimas e seus sucessores, na hipótese do inciso III do parágrafo único do art. 81.
§ 1° Os efeitos da coisa julgada previstos nos incisos I e II não prejudicarão interesses e direitos individuais dos integrantes da coletividade, do grupo, categoria ou classe.
§ 2° Na hipótese prevista no inciso III, em caso de improcedência do pedido, os interessados que não tiverem intervindo no processo como litisconsortes poderão propor ação de indenização a título individual.
§ 3° Os efeitos da coisa julgada de que cuida o art. 16, combinado com o art. 13 da Lei n° 7.347, de 24 de julho de 1985, não prejudicarão as ações de indenização por danos pessoalmente sofridos, propostas individualmente ou na forma prevista neste código, mas, se procedente o pedido, beneficiarão as vítimas e seus sucessores, que poderão proceder à liquidação e à execução, nos termos dos arts. 96 a 99.
Ocorre que a Lei 9.494/97 inovou ao restringir os efeitos da sentença em sede de ação civil pública aos "limites da competência territorial do órgão prolator", querendo fazer crer que a sentença se aplicaria apenas aos beneficiários sob jurisdição territorial do juízo prolator da decisão. A partir de então iniciou-se verdadeira batalha jurídica, de um lado pugnando pela inconstitucionalidade do dispositivo e de outro, por sua aplicação.
Instado a se manifestar sobre o tema, o Superior Tribunal de Justiça decidiu pela inconstitucionalidade da redação dada ao artigo 16 da LACP pela Lei 9.494/97, entendendo ser incabível e incoerente a restrição dos efeitos da sentença em ACP ao território do órgão prolator.
Nesse sentido, exarou o Ministro do Superior Tribunal de Justiça Luis Felipe Salomão no relatório e voto do REsp 1.243.887/PR, ainda no ano de 2011:
A bem da verdade, o art. 16 da LACP baralha conceitos heterogêneos - como coisa julgada e competência territorial - e induz a interpretação, para os mais apressados, no sentido de que os "efeitos" ou a "eficácia" da sentença podem ser limitados territorialmente, quando se sabe, a mais não poder, que coisa julgada - a despeito da atecnia do art. 467 do CPC - não é "efeito" ou "eficácia" da sentença, mas qualidade que a ela se agrega de modo a torná-la "imutável e indiscutível". É certo também que a competência territorial limita o exercício da jurisdição e não os efeitos ou a eficácia da sentença, os quais, como é de conhecimento comum, correlacionam-se com os "limites da lide e das questões decididas" (art. 468, CPC) e com as que o poderiam ter sido (art. 474, CPC) - tantum judicatum, quantum disputatum vel disputari debebat. A apontada limitação territorial dos efeitos da sentença não ocorre nem no processo singular, e também, como mais razão, não pode ocorrer no processo coletivo, sob pena de desnaturação desse salutar mecanismo de solução plural das lides. (grifos nossos)
Firmada então a Tese 480 no âmbito do STJ sob o rito dos Recursos Repetitivos, que assim dispõe:
A liquidação e a execução individual de sentença genérica proferida em ação civil coletiva pode ser ajuizada no foro do domicílio do beneficiário, porquanto os efeitos e a eficácia da sentença não estão circunscritos a lindes geográficos, mas aos limites objetivos e subjetivos do que foi decidido, levando-se em conta, para tanto, sempre a extensão do dano e a qualidade dos interesses metaindividuais postos em juízo (arts. 468, 472 e 474, CPC e 93 e 103, CDC). (grifos nossos)
Apesar da firme jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, desde 2011, pela inaplicabilidade da limitação territorial da sentença em sede de ação civil pública, o tema chegou à Suprema Corte por meio do RE 1.101.937, de relatoria do Ministro Alexandre de Moraes.
No leading case, o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor propôs ação civil pública objetivando a revisão de contratos de financiamento imobiliário contra diversos bancos, tendo o juízo de primeiro grau afastado a incidência do artigo 16 da LACP. No STJ a decisão foi mantida e as instituições bancárias recorreram extraordinariamente ao STF, por alegada ofensa aos artigos 5º, XXXVII, LIII e LIV; 22, I; e 97, todos da Constituição Federal, bem como alegando ofensa ao decidido no tema 499 (RE 612.043/PR) e na ADI 1.576/97.
Em parecer, a Procuradoria Geral da República defendeu a inconstitucionalidade do artigo 16 da Lei 7.347/85 com a redação dada pela Lei 9.494/97. Defendeu ainda a inaplicabilidade do que decidido no tema 499 vez que nesse caso a ação fora proposta por associação de classe em sede de ação coletiva e não de ação civil pública propriamente dita, submetida inclusive a rito procedimental diferenciado.
Quanto à inaplicabilidade do quanto decidido na ADI 1.576/97, defendeu a PGR que não tratou, aquela ação, de decidir sobre dispositivos da Lei 7.347/85, inclusive porque a ação não teve sequer seu mérito decidido.
Decidindo o tema definitivamente, o Supremo Tribunal Federal julgou RE 1.101.937, firmando a Tese 1075, que assim dispõe:
Constitucionalidade do art. 16 da Lei 7.347/1985, segundo o qual a sentença na ação civil pública fará coisa julgada erga omnes, nos limites da competência territorial do órgão prolator.
I - É inconstitucional a redação do art. 16 da Lei 7.347/1985, alterada pela Lei 9.494/1997, sendo repristinada sua redação original.
II - Em se tratando de ação civil pública de efeitos nacionais ou regionais, a competência deve observar o art. 93, II, da Lei 8.078/1990 (Código de Defesa do Consumidor).
III - Ajuizadas múltiplas ações civis públicas de âmbito nacional ou regional e fixada a competência nos termos do item II, firma-se a prevenção do juízo que primeiro conheceu de uma delas, para o julgamento de todas as demandas conexas. (grifos nossos)
Decidiu, então o Supremo, em consonância com o que já havia entendido o Superior Tribunal de Justiça, mas agora sob o viés constitucional, pela não limitação territorial da decisão em sede de ação civil pública, inclusive para atender à finalidade do instituto. Nas palavras do Ministro Relator Alexandre de Moraes no voto exarado no RE 1.101.937:
Inconstitucionalidade do artigo 16 da LACP, com a redação da Lei 9.494/1997, cuja finalidade foi ostensivamente restringir os efeitos condenatórios de demandas coletivas, limitando o rol dos beneficiários da decisão por meio de um critério territorial de competência, acarretando grave prejuízo ao necessário tratamento isonômico de todos perante a Justiça, bem como à total incidência do Princípio da Eficiência na prestação da atividade jurisdicional.
(...)
A sentença espraia seus efeitos aos limites objetivos e subjetivos da lide, não importando onde se localizem as partes beneficiadas, não se relacionando com a competência territorial do órgão jurisdicional, que somente limita o exercício da jurisdição, e não os efeitos ou a eficácia da sentença, os quais têm correlação com os limites da lide e das questões decididas.
(...)
O atentado aos princípios da igualdade, da eficiência, da segurança jurídica e da efetiva tutela jurisdicional é flagrante, pois, ao limitar os efeitos da sentença aos beneficiados residentes no território da competência do julgador, impõe-se a obrigatoriedade de que diversas ações, com o mesmo pedido e causa de pedir, sejam ajuizadas em diferentes comarcas ou regiões, possibilitando a ocorrência de julgamentos contraditórios; além de enfraquecer a efetividade da prestação jurisdicional e a segurança jurídica, pois permite que sujeitos vulneráveis, que foram afetados pelo dano, mas que residem em local diferente daquele da propositura da demanda, não sejam tutelados.
(...)
Dessa maneira, em respeito à unidade da Constituição, que exige da interpretação constitucional evitar contradições entre suas normas; à máxima efetividade ou à eficiência, pela qual a uma norma constitucional deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe conceda e à justeza ou à conformidade funcional, em que os órgãos encarregados da interpretação da norma constitucional não poderão chegar a uma posição que subverta, altere ou perturbe o esquema organizatório-funcional constitucionalmente estabelecido pelo legislador constituinte originário, não é possível compatibilizar a indevida restrição criada pelo artigo 16 da LACP com os princípios da igualdade e da eficiência na prestação jurisdicional, bem como torna-se incompatível com a consagração constitucional da ação civil pública como verdadeiro instrumento de garantia dos direitos fundamentais de terceira geração. (grifos nossos)
Também a Ministra Carmem Lúcia assim consignou em seu voto:
A limitação territorial da eficácia da coisa julgada coletiva, imposta pela atual redação do art. 16 da Lei n. 7.347/1985, acanha os efeitos de decisão tomada em ação de estatura constitucional, instrumento de realização de direitos fundamentais, em contrariedade à razão de ser da tutela coletiva e aos princípios do acesso à justiça, da eficiência, da segurança jurídica e da isonomia. (grifo nosso)
De fato, entender pela limitação territorial dos efeitos da sentença seria na verdade tolher a finalidade da lei 7.347/85 e o manejo da ação civil pública. Isso porque, se a ACP se revelou como principal instrumento de vocalização de interesses coletivos lato sensu, e objetiva o uso racional da máquina judiciária, a celeridade processual, a preservação da isonomia e a uniformidade necessária para direitos iguais, não se mostra razoável cindir seu campo de efetividade.
Aceitar tal desiderato seria admitir que a mesma situação tivesse tratamento diferenciado em diversos lugares do país, além de impor gastos desnecessários ao Estado com a movimentação não só do Judiciário mas também dos órgãos legitimados, tais como o Ministério Público, que teria de se movimentar em várias localidades ao mesmo tempo para submeter à apreciação do Judiciário uma mesma demanda, mas em localidades diferentes, subvertendo a própria finalidade do instituto.
5. CONCLUSÃO
A sociedade de massa e a globalização fizeram exsurgir nova categoria de direitos, os direitos coletivos ou de solidariedade, categorizados como direitos de terceira dimensão. A tutela processual coletiva adveio da necessidade de garantir tais direitos também no âmbito processual.
Fruto da segunda onda renovatória de acesso à Justiça, objetiva dar resposta efetiva diante dos macroconflitos, apresentando-se também como meio de administração da Justiça, através da racionalização do uso do Judiciário.
Apesar de não existir de forma codificada, o processo coletivo se pauta no que se convencionou chamar de "microssistema processual coletivo", cujo núcleo essencial pauta-se na Lei 7.347/85 e na Lei 8.078/90, complementando-se reciprocamente por meio do diálogo entre as demais fontes coletivas tais como a Lei da Ação Popular, do Mandado de Segurança e a própria Constituição Federal, de modo que a aplicação do Código de Processo Civil se dá de maneira supletiva.
Nesse sentido, apesar de não ser pioneira no ponto, a Lei 7.347/85 trouxe importante instrumento de atuação coletiva, a ação civil pública. No entanto, a alteração promovida no artigo 16 da LACP pela Lei 9.494/97 gerou enorme celeuma jurídica acerca da (in)constitucionalidade da limitação territorial da sentença proferida em sede de ação civil pública, sobretudo por ofender a diversos postulados constitucionais e à própria finalidade da tutela processual coletiva.
Instados a se manifestar, tanto o Superior Tribunal de Justiça quanto o Supremo Tribunal Federal, sob as perspectivas infraconstitucional e constitucional, respectivamente, decidiram pela inadequação do artigo 16 da Lei 7.347/85 com a redação dada pela Lei 9.494/97.
O Supremo Tribunal Federal concluiu pela inconstitucionalidade do dispositivo, tendo fixado sobre o tema a Tese 1075 da Repercussão Geral e atribuído efeitos repristinatórios de modo a restaurar a vigência da redação original do artigo 16 da Lei de Ação Civil Pública.
Entendeu, o Pretório Excelso, que entender pela limitação territorial da sentença proferida em sede de ação civil pública atentaria contra os princípios da igualdade, celeridade, eficiência, segurança jurídica e do direito à efetiva tutela jurisdicional.
6. REFERÊNCIAS
BASTOS, Fabrício Rocha. Do Microssistema da Tutela Coletiva e a Sua Interação com o CPC/2015. Revista do Ministério Público do Rio de Janeiro nº 68, abr./jun. 2018. Disponível em: http://www.mprj.mp.br/documents/20184/12428 29/Fabricio_Rocha_Bastos.pdf. Acesso em 19 abr. 2022.
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Pós-graduada em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho e em Direitos Difusos e Coletivos pela Uniamerica e Especialista em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho com capacitação para o Ensino no Magistério Superior pela Faculdade de Direito Damásio de Jesus.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: COSTA, DEISIANE CHRISTMAS SANTOS LEÃO MACHADO DA. Limites da coisa julgada em sede de ação civil pública sob a perspectiva do STF exarada no Tema 1075 da Repercussão Geral Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 27 abr 2023, 04:16. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/61357/limites-da-coisa-julgada-em-sede-de-ao-civil-pblica-sob-a-perspectiva-do-stf-exarada-no-tema-1075-da-repercusso-geral. Acesso em: 22 nov 2024.
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