GRACIELA MARIA COSTA BARROS[1]
(orientadora)
RESUMO: O presente trabalho tem por objetivo verificar se a inclusão do § 6º-I do art. 7º do Estatuto da Advocacia pela Lei nº 14.365/2022, que veda a colaboração premiada em desfavor de cliente, funciona como mecanismo para garantir o sigilo profissional, elemento indispensável para a relação cliente-advogado. O problema de pesquisa é justamente identificar se a vedação ao referido instituto contribui para a garantia do sigilo profissional. Justifica-se no meio acadêmico por ser uma temática tecnicamente recente, além de o estudo sobre o limite da atuação do advogado ser imprescindível para a compreensão de seu ofício em geral. O autor utiliza do método de abordagem teórico dedutivo e da metodologia da pesquisa jurídica, por meio da pesquisa exploratória bibliográfica, a partir de levantamento de dados científicos e empíricos, extraídos da legislação, da doutrina e da jurisprudência. O resultado extraído permite concluir que a vedação à colaboração premiada efetuada por advogado contra cliente é essencial para a conservação do sigilo profissional.
Palavras-chave: colaboração premiada; advogado; sigilo profissional; Lei nº 14.365/2022.
ABSTRACT: The present work aims to verify whether the inclusion of § 6º-I of art. 7 of the Advocacy Statute by Law nº 14.365/2022, which prohibits award-winning collaboration in disfavor of a client, works as a mechanism to guarantee professional secrecy, an indispensable element for the client-lawyer relationship. The research problem is precisely to identify whether the prohibition of said institute contributes to the guarantee of professional secrecy. It is justified in the academic environment because it is a technically recent topic, in addition to the fact that the study of the limit of the lawyer's performance is essential for the understanding of his job in general. The author uses the theoretical deductive method of approach and the methodology of legal research, through exploratory bibliographical research, based on scientific and empirical data, extracted from legislation, doctrine and jurisprudence. The extracted result allows us to conclude that the prohibition of award-winning collaboration carried out by a lawyer against a client is essential for the preservation of professional secrecy.
Keywords: award-winning collaboration; attorney; professional secrecy; Law No. 14.365/2022.
1 INTRODUÇÃO
O foco do presente artigo é o estudo sobre a Lei nº 14.365, de 2 de junho de 2022 que, dentre outras disposições, alterou a Lei nº 8.906/1994 (Estatuto da Advocacia), notadamente incluindo no rol do § 6º do art. 7º, o parágrafo § 6º-I, a fim de dispor sobre a vedação à colaboração premiada realizada por advogado em face de cliente atual ou pretérito (BRASIL, [2022a]) e sua relação com a garantia do sigilo profissional.
A referida lei trouxe ao corpo do Estatuto da Advocacia a vedação expressa da colaboração premiada pelo advogado contra quem seja ou tenha sido seu cliente, bem como a responsabilização em caso de ofensa a tal determinação, que abrange tanto a esfera administrativa quanto criminal.
Com base nisso, a problemática proposta é a seguinte: A Lei nº 14.365/2022, que incluiu no rol do art. 7º do Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil (Lei nº 8.906/94) o § 6º-I a vedação da colaboração premiada ao advogado contra cliente, contribui para a garantia do sigilo profissional?
A pesquisa em evidência se justifica no meio acadêmico por ser uma temática tecnicamente recente, além de o estudo sobre o limite da atuação do advogado ser imprescindível para a compreensão de seu ofício em geral. Ademais, avaliar as evoluções normativas é sempre imprescindível para que o Direito cumpra seu papel, que é afigurar-se como ciência que acompanha as mudanças sociais.
No âmbito social, destrinchar o presente assunto também é de grande valia, pois permite, não apenas à comunidade acadêmica, mas à população em geral, entender de que modo a vedação à colaboração premiada do advogado trazida pela Lei nº 14.365/2022 funciona como mecanismo para a consecução do sigilo profissional e a manutenção da confiança entre parte e patrono.
O objetivo geral do estudo em evidência é verificar, dentre as diversas alterações trazidas pela Lei nº 14.365/2022, de que modo a inclusão do § 6º-I ao art. 7º do Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) – Lei nº 8.906/94, funciona como mecanismo para a garantia do sigilo entre advogado e seu cliente.
Os objetivos específicos são: a) estudar as principais inovações trazidas pela Lei nº 14.365/2022; b) examinar a aplicabilidade do instituto da colaboração premiada e; c) verificar como se dá a responsabilização do advogado em caso de violação do art. 7º, § 6º-I, do Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) – Lei nº 8.906/94.
O tema em evidência é indispensável para a ideal compreensão acerca da confiança entre advogado e cliente na prestação de serviços advocatícios, como essência do ofício, caracterizando a colaboração premiada como um óbice para o regular funcionamento dessa relação jurídica.
Para que os objetivos deste trabalho sejam alcançados, o autor utiliza do método de abordagem teórico dedutivo, consistente em um método racionalista de cadeia de raciocínio descendente, isto é, parte de uma ideia central para que se cheguem a conclusões específicas, o que denota o chamado silogismo (ALMEIDA, [201-?]).
Além disso, é utilizada a metodologia da pesquisa jurídica, por meio da pesquisa exploratória bibliográfica, a fim de favorecer um real contato com a problemática proposta e suas possíveis soluções, a partir de levantamento de dados científicos e empíricos, buscados tanto na legislação, quanto na doutrina e na jurisprudência brasileira (ALMEIDA, [201-?]).
Por fim, para promover a análise de dados utiliza-se a técnica qualitativa, pois objetiva-se com os dados coletados aprofundar-se na compreensão do tema, sem ater-se a dados numéricos, estatísticos e eventuais relações de causa e efeito (GUERRA, 2014).
A pesquisa está estruturada em três capítulos. Inicialmente será realizado um aparato geral sobre as principais alterações trazidas pela Lei nº 14.365/2022 ao teor da Lei nº 8.906/94 (Estatuto da Advocacia), com enfoque no § 6º-I do art. 7º, de maneira a compreender o intuito do legislador com esse acréscimo.
Após, será examinada a aplicabilidade do instituto da colaboração premiada no ordenamento jurídico vigente, trazendo à baila eventuais precedentes nos quais tenha havido a admissão desse instituto quando proferido por advogado em desfavor de cliente.
Em seguida, será verificada de que forma se dá a responsabilização do advogado após o advento da Lei nº 14.365/2022 e a vedação da colaboração premiada, seja na esfera disciplinar, criminal, ou em ambas.
Por fim, a pesquisa se direcionará a averiguar se a Lei nº 14.365/2022 e a consequência da vedação à colaboração premiada feita por advogado contra cliente é um instrumento para a garantia do sigilo profissional, indispensável para a composição da relação entre ambos.
2 AS PRINCIPAIS ALTERAÇÕES TRAZIDAS PELA LEI Nº 14.365/2022 AO TEOR DA LEI Nº 8.906/94 (ESTATUTO DA ADVOCACIA)
A referência mais remota que se pode ter da advocacia é a que se funda no estudo do direito romano, pois como advogado podia ser considerado duas espécies de ofício: a que se destinava a representar o povo e a que pertencia ao indivíduo com notável saber, os chamados jurisconsultos, responsáveis mais tarde pela responsia prudentium (jurisprudência) (LÔBO, 2023).
Na época romana, a função do advogado era praticamente privativa dos patrícios, tendo em vista que era a única classe que tinha acesso ao direito. Tal situação passou a ser relativizada após a edição da Lei das XII Tábuas, estendendo-se o acesso ao acervo jurídico também aos plebeus, que passaram a assumir a função de advogados leigos (LÔBO, 2023).
Contudo, a atividade da advocacia como instituição somente veio com o governo de Justino, “que constituiu no século VI a primeira Ordem dos Advogados no Império Romano do Oriente, obrigando o registro a quantos fossem advogar no foro”, (LÔBO, 2023, p. 18), exigindo-se também o preenchimento de requisitos.
No âmbito brasileiro, a figura do advogado com essência tal como é conhecida hodiernamente surgiu com a criação dos cursos jurídicos em 1827. A Ordem dos Advogados do Brasil veio posteriormente, em 1930. Mais tarde houve a edição do Estatuto da Advocacia – a Lei nº 8.906, de 04 de abril de 1994 (LÔBO, 2023).
Anteriormente a esse lapso, a advocacia no Brasil era interpretada com muita limitação, pois acreditava-se, sob a leitura dos dois estatutos que antecederam o de 1994, que apenas era advogado aquele profissional liberal e autônomo, que atuava unicamente perante o Poder Judiciário (LÔBO, 2023).
Somente com a edição do estatuto atual é que houve a previsão da atuação advocatícia extrajudicial, do advogado contratado pelo Poder Público e na esfera privada, bem como sendo o profissional que presta atividade de consultoria, assessoria e direção jurídicas, ressaltando-se a indispensabilidade da atuação desse profissional para a administração da justiça, recepcionando-se e disciplinando-se a previsão constitucional do art. 133 (LÔBO, 2023).
Realizado um efêmero aparato sobre o surgimento da figura do advogado, bem como enfatizada a sua importância, passa-se a analisar as influências da edição da Lei nº 14.365/2022 para o Estatuto da Advocacia (Lei nº 8.906/1994).
De um modo geral, a nova lei trouxe benesses para a classe de advogados, dentre as quais pode-se pontuar a ampliação da atuação profissional também “em processo administrativo e em processo legislativo, e na produção de normas” (MIGALHAS, 2023, não paginado), que passou a ser contemplada no § 2º - A do art. 2º do estatuto:
Art. 2º O advogado é indispensável à administração da justiça.
§ 2º - A. No processo administrativo, o advogado contribui com a postulação de decisão favorável ao seu constituinte, e os seus atos constituem múnus público. (Incluído pela Lei nº 14.365, de 2022). (BRASIL, [2022a], não paginado).
A nova lei também veio enfatizar a prescindibilidade da instrumentalização da forma de prestação da atividade advocatícia, dispensando a necessidade de outorga de mandato e de se redigir contrato para a configuração de seu labor, que pode ser realizado tanto verbal quanto por escrito, a teor do que passa a dispor o § 4º do art. 5º:
Art. 5º O advogado postula, em juízo ou fora dele, fazendo prova do mandato.
§ 4º As atividades de consultoria e assessoria jurídicas podem ser exercidas de modo verbal ou por escrito, a critério do advogado e do cliente, e independem de outorga de mandato ou de formalização por contrato de honorários. (Incluído pela Lei nº 14.365, de 2022). (BRASIL, [2022a], não paginado).
Além disso, ampliou a pena relativa ao crime de violação das prerrogativas advocatícias a que dispõem os incisos II, III, IV e V do caput do art. 7º:
Art. 7º - B Constitui crime violar direito ou prerrogativa de advogado previstos nos incisos II, III, IV e V do caput do art. 7º desta Lei: (Incluído pela Lei nº 13.869. de 2019) [...]
Pena - detenção, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa. (Redação dada pela Lei nº 14.365, de 2022). (BRASIL, [2022a], não paginado).
Insta sublinhar, ademais, como alterações benéficas trazidas pela Lei nº 14.365/2022 ao Estatuto da Advocacia: a) a previsão expressa da figura do advogado associado, de modo a assegurar a “autonomia contratual interna dos escritórios de advocacia.” (MIGALHAS, 2023, não paginado), disposta no art. 17-B, caput, e parágrafo único; b) o arbitramento de honorários nos moldes elencados pelo Código de Processo Civil (CPC), conforme § 2º do art. 22; c) o direito ao destaque de honorários (art. 22-A) e; d) a viabilidade de percepção de honorários por indicação de cliente (§ 8º do art. 28) (MIGALHAS, 2023, não paginado).
Finalmente, atendo-se à contemplação do objeto do presente trabalho, põe-se sob enfoque o § 6º - I do art. 7º do Estatuto da Advocacia, com redação dada pela nova lei, que reza:
§ 6º - I. É vedado ao advogado efetuar colaboração premiada contra quem seja ou tenha sido seu cliente, e a inobservância disso importará em processo disciplinar, que poderá culminar com a aplicação do disposto no inciso III do caput do art. 35 desta Lei, sem prejuízo das penas previstas no art. 154 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal). (Incluído pela Lei nº 14.365, de 2022). (BRASIL, [2022a], não paginado).
Indubitavelmente, a referida previsão reforçou o múnus da advocacia, pois a partir dessa redação, há o reforço da magnitude do sigilo profissional para o vínculo entre o profissional e seu cliente, que a despeito de já ser deduzido pelo acervo de normas relativas ao exercício da advocacia, passa a expressar por escrito a nocividade da prestação de informações de clientes atuais ou passados, bem como as punições que tal ato acarretará (ADAMS; FRAGA, 2022).
Sob essa análise, verifica-se que a nova lei trouxe uma série de alterações para o corpo do estatuto, fazendo ajustes necessários para o aperfeiçoamento da atividade do advogado, resguardando tanto seus direitos, quanto de seus clientes.
3 A COLABORAÇÃO PREMIADA NO BRASIL: UM BREVE ESTUDO SOBRE O INSTITUTO
A colaboração premiada está contemplada no corpo da Lei nº 12.850/2013, podendo ser definida, conforme o art. 3º - A, incluído pela Lei nº 13.964/2019, “como o “negócio jurídico processual e meio de obtenção de prova, que pressupõe utilidade e interesse públicos.” (BRASIL, 2019, não paginado).
Posteriormente, no art. 4º da mesma lei são dispostos os critérios que deverão ser preenchidos para que o colaborador seja beneficiado, seja com a redução de pena, seja com a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, ou até com o perdão judicial, devendo haver, além da voluntariedade e efetividade do procedimento, a obtenção de alguns dos seguintes resultados:
Art. 4º [...] I - a identificação dos demais coautores e partícipes da organização criminosa e das infrações penais por eles praticadas;
II - a revelação da estrutura hierárquica e da divisão de tarefas da organização criminosa;
III - a prevenção de infrações penais decorrentes das atividades da organização criminosa;
IV - a recuperação total ou parcial do produto ou do proveito das infrações penais praticadas pela organização criminosa;
V - a localização de eventual vítima com a sua integridade física preservada. (BRASIL, 2019, não paginado).
Nas palavras Dipp (2019, p. 7),
Como observa-se a lei 12.850 aumentou os benefícios concedidos ao colaborador, prevendo, não apenas redução de pena, como também perdão judicial e substituição da pena corpórea por pena restritiva de direitos. Ampliou significativamente o rol de resultados para a concessão de possíveis benefícios. E, além disso, tanto estabeleceu direitos ao colaborador, como instituiu requisitos de validade do termo de acordo da colaboração.
A colaboração premiada é reconhecida como “meio de obtenção de elementos de prova, tem por propósito promover a rápida apuração dos ilícitos e de modo célere a aplicação das punições correspondentes em face de condutas de difícil comprovação.” (DIPP, 2019, p. 9).
Em verdade, o fundamento da colaboração premiada reside na extração de informações de um dos sujeitos geralmente incluídos em uma associação criminosa que resulte na absorção de informações sobre o crime organizado, a despeito de cada integrante ter um objetivo e meta pessoal com a realização da conduta delituosa (DIPP, 2019).
Ainda de acordo com Dipp (2019), observa-se pelo acervo legislativo atinente à colaboração ou delação premiada que o legislador passou a se preocupar paulatinamente com a disciplina desse instituto, de modo a consignar que somente se aplicará a crimes cuja organização demande dois ou mais agentes:
A principal marca da disciplina legal relativa a essa forma de colaboração nos diferentes regramentos é que ela se refere sempre a crimes praticados por mais de um agente em forma de coautoria ou coparticipação, ou de organização criminosa ou quadrilha ou bando, de modo a deixar assente que a delação ou colaboração não se aplica aos casos de crimes individuais ou sem a característica de grupo, bando, quadrilha ou organização voltada para o crime. (DIPP, 2019, p. 17).
Quanto à natureza jurídica do instituto, o Supremo Tribunal Federal (STF) posicionou-se no sentido de ratificar o que foi disposto expressamente na lei que trata sobre a colaboração premiada, dispondo que se trata de negócio jurídico bilateral firmado entre colaborador e Ministério Público, excluído da reserva de jurisdição a fixação de seus termos:
Essa característica é representada pelas normas extraídas dos §§ 6º e 7º do art. 4º da Lei 12.850/2013, as quais vedam a participação do magistrado na celebração do ajuste entre as partes e estabelecem os limites de cognoscibilidade dos termos pactuados. Trata-se, portanto, de meio de obtenção de prova cuja iniciativa não se submete à reserva de jurisdição, diferentemente do que ocorre, por exemplo, com a quebra do sigilo bancário ou fiscal e com a interceptação de comunicações telefônicas. (BRASIL, 2017, não paginado).
Nesse norte, nota-se a crucialidade desse acordo e meio de prova, na medida em que, levando-se em consideração o paulatino aumento dos números de crimes organizados no Brasil, a entabulação de um acordo que prevê benefícios em troca de vantagens para a elucidação e desvendamento de atividades criminosas, tal mecanismo revela-se eficaz nesse tipo de combate (BRASIL, 2022b).
Dessa forma, “o acordo de colaboração é de grande valia para os órgãos de investigação e repressão à criminalidade organizada, mas deve ser conduzido sempre em conformidade com a lei, para que as informações obtidas possam ser efetivamente utilizadas no processo penal.” (BRASIL, 2022b, não paginado).
O Superior Tribunal de Justiça (STJ) constantemente vem adequando a aplicação da colaboração premiada através de seus precedentes. Em 2019, no julgamento do REsp 1.728.847, de relatoria do ministro Sebastião Reis Júnior, a Sexta Turma entendeu que a aplicação da fração de diminuição de pena em troca da colaboração premiada trata-se de discricionariedade judicial, desde que haja enquadramento nos limites legais (BRASIL, 2022b, não paginado).
Além disso, em 2022, no julgamento do HC 582.678, de relatoria da ministra Laurita Vaz, a Sexta Turma entendeu que, em se tratando de crimes que envolvam concurso de agentes, sempre será possível a concessão das benesses relativas à colaboração premiada, sendo dispensável que haja organização criminosa, segundo seu conceito técnico (BRASIL, 2022b, não paginado).
No que diz respeito aos precedentes em que o colaborador era advogado, a Quinta Turma do STJ declarou nulo o procedimento da colaboração premiada, no julgamento do RHC 164.616, de relatoria do ministro João Otávio de Noronha considerando que os fatos delatados à autoridade judiciária se originaram do exercício de sua atividade profissional (BRASIL, 2022c). Consoante a ementa do julgado:
RECURSO EM HABEAS CORPUS. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL POR HABEAS CORPUS. EXCEPCIONALIDADE. LEI N. 12.850/2013. COLABORAÇÃO PREMIADA FEITA POR ADVOGADO. NATUREZA JURÍDICA DE MEIO DE OBTENÇÃO DE PROVA. POSSIBILIDADE DE ANULAÇÃO. VIOLAÇÃO DE SIGILO PROFISSIONAL. ART. 34, VII, DA LEI N. 8.906/1994. AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA. MÁ-FÉ CARACTERIZADA. NULIDADE DO ACORDO DE COLABORAÇÃO PREMIADA. PRECEDENTES DO STF. RECURSO PROVIDO.
[...]
2. Nos termos da Lei n. 12.850/2013, o acordo de colaboração premiada é um meio de obtenção de provas, no qual o poder estatal compromete-se a conceder benefícios ao investigado/acusado sob condição de cooperar com a persecução penal, em especial, na colheita de provas contra os outros investigados/acusados.
3. É possível a anulação e a declaração de ineficácia probatória de acordos de colaboração premiada firmados em desrespeito às normas legais e constitucionais.
4. O dever de sigilo profissional imposto ao advogado e as prerrogativas profissionais a ele asseguradas não têm em vista assegurar privilégios pessoais, mas sim os direitos dos cidadãos e o sistema democrático.
5. É ilícita a conduta do advogado que, sem justa causa, independentemente de provocação e na vigência de mandato, grava clandestinamente suas comunicações com seus clientes com objetivo de delatá-los, entregando às autoridades investigativas documentos de que dispõe em razão da profissão, em violação ao dever de sigilo profissional imposto no art. 34, VII, da Lei n. 8.906/1994.
6. O sigilo profissional do advogado é premissa fundamental para exercício efetivo do direito de defesa e para a relação de confiança entre defensor técnico e cliente.
7. O Poder Judiciário não deve reconhecer a validade de atos negociais firmados em desrespeito à lei e em ofensa ao princípio da boa-fé objetiva.
8. A conduta do advogado que, sem justa causa e em má-fé, delata seu cliente, ocasiona a desconfiança sistêmica na advocacia, cuja indispensabilidade para administração da justiça é reconhecida no art. 133 da Constituição Federal.
9. Ausente material probatório residual suficiente para embasar a ação penal, não contaminado pela ilicitude, inafastável o acolhimento do pedido de trancamento da ação penal.
10. Recurso provido para determinar o trancamento da ação penal. (BRASIL, 2022d, não paginado).
Portanto, verifica-se que esse posicionamento é perfeitamente compatível com a garantia do sigilo profissional que deve haver entre o advogado e seu cliente. Pelo observado do precedente acima colacionado, a colaboração premiada não pôde prejudicar o delatado, pois afigurou-se como meio de prova ilícito por derivação, e em se tratando do único meio de prova trazido pela acusação, o trancamento da ação penal foi a medida imposta, ressaltando a supremacia do sigilo profissional (BRASIL, 2022d).
4 A RESPONSABILIZAÇÃO DO ADVOGADO APÓS O ADVENTO DA LEI Nº 14.365/2022
O Estatuto da Advocacia, em seu art. 35, prevê as possíveis punições sanções disciplinares a serem aplicadas em caso de violação aos termos do estatuto, quais sejam, a censura, a suspensão, a exclusão e a multa (BRASIL, [2022a]).
Os arts. 36, 37, 38 e 39 trazem as hipóteses de cabimento da aplicação de cada uma das sanções supramencionadas, e a aplicabilidade se dará pela gravidade da conduta do profissional advogado.
Após o advento da Lei nº 14.365/2022, no caso do advogado que venha a delatar quem seja ou tenha sido seu cliente, será cabível além da pena prevista no preceito secundário do art. 154 do Código Penal, a sanção disciplinar disposta no inciso III do caput do art. 35 do Estatuto, qual seja, a exclusão do quadro da Ordem dos Advogados do Brasil (BRASIL, [2022a]).
Dessa forma,
A partir de agora é vedado ao advogado efetuar colaboração premiada contra quem seja ou tenha sido seu cliente. O descumprimento dessa regra acarretará em processo disciplinar previsto no artigo 35º do Estatuto da Advocacia e em pena prevista no Código Penal. (ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL, 2022, não paginado).
Em regra, o advogado só será excluído do quadro da OAB em situações excepcionais. Pela observância do art. 38 do Estatuto da Advocacia, caberá a pena de exclusão após reiteradas três aplicações de suspensão e nos casos dispostos nos incisos XXVI a XXVIII do art. 34, que versa sobre as “infrações e sanções disciplinares”, ou seja, nas hipóteses de “XXVI - fazer falsa prova de qualquer dos requisitos para inscrição na OAB; XXVII - tornar-se moralmente inidôneo para o exercício da advocacia; e XXVIII - praticar crime infamante.” (BRASIL, [2022a], não paginado).
A inclusão da colaboração premiada no rol das condutas suscetíveis de pena de exclusão denota a seriedade de tal, como verdadeiro instrumento garantidor do sigilo profissional e do próprio fundamento da advocacia.
Até então, conforme dispõe Oliveira (2022, p. 431), quando da violação do sigilo profissional pelo advogado:
De um lado, de forma mais geral, tipifica-se a violação ao sigilo profissional como crime (art. 154, do CP) e como uma infração ética da advocacia (art. 34, VII, EOAB). Sob essa perspectiva, tem-se normas materiais que tornam ilícita a violação do sigilo, em proteção ao confitente.
Conforme o próprio § 6º-I do art. 7º do Estatuto da Advocacia passou a dispor com a vigência da Lei nº 14.365/2022, além da sanção de exclusão será cabível a condenação pelo crime a que dispõe o art. 154 do Código Penal, intitulado “violação do segredo profissional.” (BRASIL, [2023a], não paginado), cujo caput preconiza:
Art. 154 - Revelar alguém, sem justa causa, segredo, de que tem ciência em razão de função, ministério, ofício ou profissão, e cuja revelação possa produzir dano a outrem:
Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa de um conto a dez contos de réis. (BRASIL, [2023a], não paginado).
A teor do exposto, verifica-se a preocupação do legislador, com a edição da nova lei, em punir severamente quem coloque em risco o sigilo profissional inerente à prática advocatícia, ressaltando a importância deste liame para o funcionamento da relação profissional.
Importante enfatizar, ademais, que o legislador não se ateve a dispor sobre especificações sobre o tipo de serviço prestado ao cliente a ser delatado, isto é, independentemente do serviço jurídico realizado, seja desde uma consultoria jurídica até a representação ad judicia, será inviável a aplicação da colaboração premiada, o que denota a indispensabilidade do sigilo profissional.
5 A VEDAÇÃO À COLABORAÇÃO PREMIADA FEITA POR ADVOGADO CONTRA CLIENTE E A GARANTIA DO SIGILO PROFISSIONAL
A questão do sigilo profissional envolve a ética na advocacia. Para Santos (2011, p. 2), “ética é a parte da filosofia que se ocupa da moral.” Nesse contexto, nasce a figura tanto da ética geral quanto da ética especial.
O estudo em questão possibilita abranger o conceito de ética especial, que é aquela inerente a alguma área de atuação, seja na medicina, seja na psicologia, ou seja no direito. Nessa perspectiva, quando se fala sobre ética na advocacia, necessariamente estar-se-á realizando discussão sobre a moralidade ou não da conduta do profissional liberal denominado advocado (SANTOS, 2011).
Conforme ensina Oliveira (2022, p. 430),
Na seara dos limites jurídicos à prova, destacam-se os sigilos profissionais, que põem de fora da atividade probatória as informações adquiridas por determinadas pessoas em razão de sua função, profissão ou ofício, o que as torna confidentes necessárias. Enquadram-se nesse grupo desde os ministros religiosos aos médicos, interessando a este estudo, porém, apenas a figura do advogado.
Hodiernamente, a conduta do advogado deve observar aos ditames contemplados no seu Código de Ética e Disciplina – Resolução nº 02/2015 do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (2015), que estabelece parâmetros e limites para sua atuação profissional.
Nessa perspectiva, a conduta do advogado deverá zelar sempre pela moralidade, visando encaixar-se constantemente no conceito de “conduta ilibada”. Porém, não basta que o ato não seja eivado de imoralidade. É necessário, contudo, um diferencial, que nas palavras de Santos (2011, p. 21):
Há um núcleo comum a caracterizar a conduta ilibada dos profissionais do direito. Pelo mero fato de se dedicarem ao cultivo do direito, acredita-se atuem retamente. Deseja-se que os integrantes de uma função forense venham a se caracterizar pela incorruptibilidade, sejam merecedores de confiança, possam desempenhar com dignidade o seu papel de detentores da honra, da liberdade e dos demais valores tutelados pelo ordenamento jurídico.
Além disso, como bem elucida Santos (2011), a relação entre cliente e advogado é personalíssima, o que incita a indelegabilidade do mandato outorgado, justificando, por consequência, a importância da confiança entre outorgante e outorgado.
Em síntese, a ética do advogado se restringe, sobretudo, na aplicação da lei. Em segundo lugar, na sua relação com seu cliente. Em terceiro, à não vinculação a um resultado benéfico ao cliente, porquanto desempenha atividade de meio, estando o sucesso da lide alheio ao seu controle (SANTOS, 2011).
Quanto ao sigilo profissional, como bem elucida Santos (2011), o Código de Processo Penal, em seu art. 207 fez questão de proibir “de depor as pessoas que, em razão de função, ministério, ofício ou profissão, devam guardar segredo, salvo se, desobrigadas pela parte interessada, quiserem dar o seu testemunho.” (BRASIL, [2022e], não paginado), o que inclui a figura do advogado.
Além disso, o próprio Código de Ética estendeu a possibilidade da quebra do sigilo do advogado, em se tratando de ofensa a bens jurídicos considerados pelo legislador de valor superior, consoante denota-se de seu art. 37: “O sigilo profissional cederá em face de circunstâncias excepcionais que configurem justa causa, como nos casos de grave ameaça ao direito à vida e à honra ou que envolvam defesa própria.” (BRASIL, 2015, não paginado).
Com a edição da Lei nº 14.365/2022, especialmente com a inclusão do § 6º-I do art. 7º no Estatuto da Advocacia, a opção de depor contra cliente passou a ser expressamente vedada, distanciando-se da facultatividade mesmo em hipóteses excepcionais, ressaltando a indispensabilidade do sigilo profissional.
Se acaso se parta da premissa de que a colaboração premiada realizada por advogado está vinculada necessariamente à quebra da ética do advogado, infalivelmente pode-se afirmar que tal vedação corroborou para o sigilo profissional entre advogado e seu cliente ou ex-cliente.
Importante enfatizar que com a inclusão do referido parágrafo, não foi excepcionada qualquer exceção, o que denota que muito possivelmente essa seja uma determinação que não comporte ressalvas, reservando-se posteriormente à jurisprudência ou à edição de nova lei ditar os limites de aplicação desse dispositivo.
Nas palavras de Oliveira (2022, p. 425),
O advogado é indispensável à administração da justiça e, para que possa bem exercer o seu mister, deve contar com a plena confiança daquele que representa em juízo. Essa confiança, porém, pressupõe que os segredos revelados pelo constituinte sejam protegidos e é a isso que serve o sigilo profissional.
Portanto, pela leitura do trecho acima delineado, observa-se que a defesa do sigilo profissional é o que garante o exercício do próprio mister do advogado, consubstanciado na manutenção de relação de confiança entre ele e seu constituinte.
Embora a legislação já fizesse restrições quanto à prestação de declarações pelo advogado em desfavor a seu cliente ou ex-cliente, percebe-se que a Lei nº 14.365/2022 foi acurada para, de uma vez por todas, vedar a aplicação do instituto da colaboração premiada, quando o delator for advogado, inclusive sob pena de aplicação cumulativa de sanção penal e disciplinar.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A advocacia é considerada uma profissão nobre, cujo múnus público é conferir aos representados a oportunidade de postularem por seus direitos e garantias fundamentais. Desde sempre a figura do advogado foi associada à defesa dos interesses não somente dos particulares, mas de toda a sociedade.
Por esse motivo, é que o legislador vem constantemente aperfeiçoando o ordenamento jurídico brasileiro para fortalecer o vínculo entre advogado e cliente, eis que se trata de uma relação pautada na confiança.
Verificou-se através do presente trabalho que a nova lei 14.365/2022 introduziu diversas alterações ao corpo do Estatuto da Advocacia (Lei nº 8.906/94), dentre as quais se destaca a vedação expressa da colaboração premiada feita por advogado em desfavor de quem seja ou tenha sido seu cliente (§ 6º-I do art. 7º).
De certa forma, a aludida menção expressa não causou surpresa, porquanto a própria legislação esparsa já previa dispositivos em que o sigilo profissional do advogado é inviolável e que deve prezar pela manutenção da confiança depositada por seu constituinte.
De toda forma, o legislador reputou importante mencionar a vedação expressa, já que os dispositivos editados anteriormente previam exceções à violação do sigilo profissional.
Com a edição da lei em comento, em caso de haver colaboração premiada, a sanção cabível será a aplicação da pena relativa ao art. 154 do Código Penal e a pena de exclusão do quadro da Ordem dos Advogados do Brasil (art. 35, inciso III, do Estatuto da Advocacia).
Observou-se, além disso, que a norma que dispõe sobre o funcionamento da colaboração premiada é a Lei nº 12.850/2013, que prevê os critérios a serem preenchidos para que o delator seja beneficiado, que vão desde a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, até o perdão judicial, desde que haja voluntariedade e efetividade do procedimento.
A colaboração premiada afigura-se, conforme visto, como negócio jurídico bilateral firmado entre Ministério Público e colaborador, mediante o estrito cumprimento dos termos, e constitui meio de obtenção de prova hábil à rápida resolução do processo penal e à elucidação do funcionamento do crime organizado.
Observou-se também alguns julgados dos Tribunais Superiores acerca da aplicação da colaboração premiada. Dentre eles, evidenciou-se um em que foi declarado nulo o procedimento da colaboração premiada (RHC 164.616) e, considerando que se tratava do único meio de prova, houve o trancamento da ação penal em virtude da ilicitude do meio de prova por derivação.
Buscou-se, outrossim, explicar como se dá a responsabilização do advogado à luz do Estatuto da Advocacia, mediante a aplicação das sanções de censura, suspensão, exclusão e multa, inclusive, destrinchar como se dá a responsabilização do advogado após a Lei nº 14.365/2022.
No que diz respeito ao sigilo profissional, estudou-se brevemente o conceito de ética aplicável à advocacia, demonstrando que é o principal elemento que sustenta a relação entre cliente e advogado.
Enfatizou-se também que o advogado deverá zelar, sobretudo, pela correta aplicação da lei, assumindo o seu ofício uma função social. Em seguida, deverá observar os interesses de seu cliente. Por último, jamais deverá prometer um deslinde processual favorável ao seu constituinte, por ser incompatível com a natureza jurídica da responsabilidade do profissional liberal de advocacia.
Nessa senda, observa-se que a problemática proposta na pesquisa em evidência foi solucionada, chegando-se à conclusão de que a Lei nº 14.365/2022, que incluiu no rol do art. 7º do Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil (Lei nº 8.906/94) o § 6º-I a vedação da colaboração premiada ao advogado contra cliente, contribui para a garantia do sigilo profissional.
O estudo em evidência é substancial para entender, além do fundamento legal da nova lei, a coerência dessa norma com o ordenamento jurídico vigente e com a própria função da advocacia na sociedade, defendendo tanto interesses públicos quanto particulares.
Como desafio proposto, fica a análise da jurisprudência de agora em diante, a fim de analisar a aplicação do dispositivo incrementado, verificando-se se há algum tipo de flexibilização quanto à permissão da colaboração premiada ou se a aplicação prática se restringirá à literalidade do dispositivo em comento.
REFERÊNCIAS
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[1] Mestre em Prestação Jurisdicional e Direitos Humanos
Graduanda em Direito pela União Educacional de Ensino Superior do Médio Tocantins (UNEST)
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SIMONE GOMES ARAÚJO, . A Lei nº 14.365/2022 e a vedação da colaboração premiada do advogado contra cliente para a garantia do sigilo profissional Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 05 maio 2023, 04:55. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/61396/a-lei-n-14-365-2022-e-a-vedao-da-colaborao-premiada-do-advogado-contra-cliente-para-a-garantia-do-sigilo-profissional. Acesso em: 22 nov 2024.
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