PAULO SERGIO LIMA DOS SANTOS
(orientador)
RESUMO: O presente artigo tem como objeto de estudo o crime de feminicídio, e a sua delimitação se volta para a compreensão das consequências desse crime nas relações familiares. Assim como a violência doméstica contra a mulher, o feminicídio também se refere a violência contra a mulher, mas a conduta consiste no assassinato de mulheres pelo simples fato de elas serem mulheres. O feminicídio traz consequências graves para a família das vítimas, e é isso que se pretende abordar no presente estudo. Nesse mesmo parâmetro, ainda deve ser tratado sobre as ações do Estado voltadas para amparar os familiares das vítimas. A problemática que se pretende responder é a seguinte: Por que ainda há números alarmantes do feminicídio no Brasil e quais as consequências que afetam as famílias das vítimas? O objetivo geral do presente estudo é analisar de forma reflexiva a Lei Maria da Penha, de forma a compará-la com a Lei do Feminicídio, evidenciando a tratativa jurídica para a violência contra a mulher. Como objetivos específicos tem-se a compreensão das raízes históricas da violência contra a mulher e a análise das consequências do feminicídio para as famílias das mulheres. O artigo seguirá o método de pesquisa dedutivo e a metodologia de pesquisa bibliográfica. O artigo será estruturado em três capítulos, o primeiro com foco no histórico da violência doméstica, o segundo se voltará para a analise da Lei Maria da Penha e da Lei do Feminicídio, e o último discutirá as consequências do feminicídio para as famílias das vítimas.
Palavras-chave: Feminicídio; Violência; Consequências.
ABSTRACT: This article has as its object of study the crime of femicide, and its delimitation is aimed at understanding the consequences of this crime in family relationships. Like domestic violence against women, femicide also refers to violence against women, but the conduct consists in the murder of women for the simple fact that they are women. Femicide has serious consequences for the victims' families, and that is what this study intends to address. In this same parameter, the actions of the State aimed at supporting the victims' families must still be addressed. The problem that we intend to answer is the following: Why are there still alarming numbers of femicide in Brazil and what are the consequences that affect the victims' families? The general objective of this study is to reflectively analyze the Maria da Penha Law, in order to compare it with the Feminicide Law, highlighting the legal approach to violence against women. As specific objectives, there is an understanding of the historical roots of violence against women and an analysis of the consequences of femicide for women's families. The article will follow the deductive research method and the bibliographic research methodology. The article will be divided into three chapters, the first focusing on the history of domestic violence, the second focusing on the analysis of the Maria da Penha Law and the Feminicide Law, and the last one will discuss the consequences of femicide for the victims' families.
Keywords: Femicide; Violence; Consequences.
O presente artigo tem como objeto de estudo o feminicídio. A delimitação do tema se volta para a compreensão das consequências do feminicídio para os familiares da vítima.
A violência, por ter sido calcada na cultura no decorrer da história da humanidade, não deixa de ser um fenômeno social. A violência revela vínculos de desigualdade e conflito, declarados entre os oprimidos e seus opressores. Neste ínterim de disparidades, as estruturas de poder e autoridade, sejam de natureza individual ou de comunidade, são impostas sobre os subjugados por intermédio da expropriação cultural, doutrinária, social e financeira, bem como pela desvalorização da vida e do desrespeito aos direitos humanos.
A violência contra a mulher é um crime inaceitável, não se trata de uma realidade exclusiva da contemporaneidade, mas sim um fato extremamente antigo como a própria humanidade.
Na atualidade, a violência contra a mulher é consequência de uma sociedade patriarcal e sexista, na qual há uma forte presença nas relações intrafamiliares do desrespeito à mulher. Ou seja, a violência contra a mulher contém raízes profundas e possui um significado cultural bastante significativo.
Juntamente com os discursos de ódio e o preconceito social, a violência contra a mulher foi se ampliando, com diversas notícias diárias de alguma mulher assassinada, violentada, lesada e ONGs difundindo informações sobre a gravidade da situação. O discurso de violência contra a mulher, do continuum ao assassinato, internacionalizava-se, indo muito além dos movimentos a favor dos direitos das mulheres.
Esse cenário preocupante impulsionou a criação de mecanismos de proteção e punição aos casos de violência contra mulheres, como conselhos comunitários, coletivos feministas, delegacias da mulher, a Lei Maria da Penha e a Lei de Feminicídio.
O feminicídio representa a última etapa de um ciclo de violência que leva ao último ato, a morte. Trata-se de crimes cometidos por homens contra as mulheres, e suas motivações são as mais diversas, precedido por outros eventos, tais como agressões físicas e psicológicas, com o objetivo de submeter às mulheres a uma lógica de dominação masculina, baseado em um padrão cultural que subordina a mulher.
É importante compreender quais as consequências do feminicídio no núcleo familiar da vítima, bem como compreender quais as ações do Estado voltadas para o amparo dessas famílias. A problemática que se pretende responder é a seguinte: Por que ainda há números alarmantes do feminicídio no Brasil e quais as consequências que afetam as famílias das vítimas?
Com o fim de atingir os resultados propostos, o trabalho seguiu o método dedutivo e a metodologia de pesquisa bibliográfica, a pesquisa é explicativa, tendo em vista a abordagem de conceitos e o aprofundamento de ideia dentro da temática proposta.
1 VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E DE GÊNERO CONTRA A MULHER
1.1 AS RAÍZES DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER
É sabido que a discussão a respeito das desigualdades entre homens e mulheres, não é algo novo na sociedade. Dos gregos antigos até poucas décadas atrás, a sociedade acreditava que a mulher era um ser inferior na escala metafísica que dividia os seres humanos, e, por isso, os homens detinham o direito de exercer uma vida pública.
Strey (1997) explica que a discriminação contra a mulher remonta à antiguidade, onde no Código Hindu de Manu havia a previsão de que a mulher, na infância, dependia de seu pai, durante a juventude, de seu marido, e caso o seu marido viesse a óbito, de seus filhos, caso a mulher não tivesse filhos, ela dependeria dos parentes próximos do seu marido, porque a mulher não poderia governar-se à sua vontade.
No Império Romano, a mulher era considerada “rés” ou seja, “coisa”, nesse período as mulheres eram vítimas de diversos tipos de violência, e os seus agressores não eram punidos e não havia reprovação social nessas ações. O Direito Romano retirava a capacidade jurídica da mulher.
Para os hebreus, a mulher também pertencia aos homens, era um bem, assim como os animais e os escravos, no entanto, sob o ponto de vista jurídico ela era considerada um bem mais importante em comparação com os outros (DUBY; PERROT, 1990).
Portanto, como visto, a mulher sempre foi alvo de preconceito social e estrutural. O assassinato de mulheres por razões de gênero é denominado de feminicídio, trata-se de uma realidade presente em todas as sociedades, essa realidade nasce de uma cultura de dominação e desequilíbrio de poder existente entre os gêneros masculino e o feminino. Essa cultura (patriarcal e machista) é responsável pela inferiorização da condição feminina, resultando na violência de gênero (feminicídio e violência doméstica).
O patriarcado é entendido como sendo um sistema contínuo de dominação masculina que se encontra presente, ainda na atualidade, nas estruturas sociais e estatais, mantendo as formas de divisão sexual do trabalho e perpetuando a violência de gênero.
Meneghel e Portella (2017, p. 3079) afirmam que “em sociedades patriarcais, a condição feminina é o fator de risco mais importante para a violência letal”. Isso porque é no patriarcalismo que surge o ódio contra a mulher, bem como a subjugação feminina na sociedade.
Conforme ensina Teles e Melo, a violência de gênero surge do poder de dominação do homem, o autor ainda afirma que essa violência é fruto do processo de socialização das pessoas, e não da natureza:
A violência de gênero deve ser entendida como uma relação de poder dominação do homem e de submissão da mulher. Ela demonstra que os papes impostos às mulheres e aos homens, consolidados ao longo da história e reforçados pelo patriarcado e sua ideologia, induzem relações violentas entre os sexos e indica eu a prática desse tipo de violência não é fruto da natureza, mas sim do processo de socialização das pessoas. Ou seja, não é a natureza responsável pelos padrões e limites sociais que determinam comportamentos agressivos aos homens e dóceis e submissos às mulheres (TELES; MELO, 2017, p. 25).
Seguindo o mesmo pensamento anteriormente exposto, de acordo com Gebrim e Borges (2014), a violência contra a mulher tem um caráter estrutural, trata-se de uma relação de poder que se baseia em padrões de dominação, controle e opressão, esses padrões “leva à discriminação, ao individualismo, à exploração e à criação de estereótipos, os quais são transmitidos de uma geração para outra e reproduzidos tanto no âmbito público [...] como no âmbito privado”. (GEBRIM; BORGES, 2014, p. 59).
Por fim, destaca-se que a expressão máxima da violência contra a mulher é o óbito. As mortes de mulheres decorrentes de conflitos de gênero, ou seja, pelo fato de serem mulheres, são denominados feminicídios ou femicídios.
Feminicídio é uma palavra antiga, tendo em vista que se refere ao assassinato de pessoas do gênero feminino, crime esse que sempre ocorreu, como estudado no primeiro capítulo. No entanto, no meio jurídico e acadêmico, a palavra passou a ser usada de forma difundida há pouco tempo. Mas ainda no século XVIII essa terminologia já era utilizada.
Assim, o termo Feminicídio apareceu pela primeira vez no livro A SatiricalViewof London, de John Corry, datado de 1801, no qual o historiador mencionou o assassinato de uma mulher, entretanto, apenas dois séculos seguintes essa expressão teria seu conteúdo utilizado novamente.
Embora não haja confirmação, vários pesquisadores indicam que foi a autora Diana Russel quem utilizou a palavra “feminicídio” pela primeira vez em público. A palavra foi citada no ano de 1976 enquanto discursava no Tribunal Internacional de Crimes contra Mulheres, realizado na cidade de Bruxelas na Bélgica. O seu discurso girava em torno da violência de gênero, mais especificamente do assassinato de mulheres.
Russel estabelece uma conexão entre os diversos tipos de violência contra a mulher, como é o caso do estupro, do incesto, do abuso físico e emocional, do assédio sexual, do uso das mulheres na pornografia, na exploração sexual, a esterilização ou a maternidade forçada etc., que, resultantes em morte, são considerados femicídio (GEBRIM; BORGES, 2014).
Na década de 90, o termo passou a ser largamente utilizado, e estabeleceu-se o consenso de seu conceito: tratava-se o feminicídio do assassinato de mulheres pelo fato de serem mulheres.
Nesse vértice, Luiz Regis Prado (2019, p. 102) enfatiza que “qualquer homicídio praticado contra mulher, fora das relações domésticas e familiares, sobretudo se o sujeito ativo for do sexo masculino, pode dar margem à “presunção” de uma situação de discriminação ou menosprezo”.
O autor continua:
Afinal, se de um lado a discriminação, no sentido perquirido pelo legislador, refere-se a um impulso proveniente da segregação e do preconceito, de outro, o menosprezo dá margem à inclusão das mais variadas motivações para o crime, visto que contempla a indiferença, a falta de consideração e a depreciação (PRADO, 2019, p. 102).
Assim, como explicado pelo autor, a mulher é vítima de segregação e preconceito, e esse menosprezo por si só pode fazer com que a mulher seja vítima do feminicídio.
Fernando Capez (2019) traz em sua obra a definição de feminicídio, destacando que é o crime cometido por ser a vítima uma mulher, ou seja, a motivação é o fato de ela ser do sexo feminino, como se vê:
feminicídio é o homicídio doloso praticado contra a mulher por “razões da condição de sexo feminino”, ou seja, desprezando, menosprezando, desconsiderando a dignidade da vítima por ser mulher, como se as pessoas do sexo feminino tivessem menos direitos do que as do sexo masculino. A lei pune mais gravemente aquele que mata mulher por “razões da condição de sexo feminino” (por razões de gênero). Não basta a vítima ser mulher para que exista o crime de feminicídio, é preciso que a morte aconteça pelo simples fato de a vítima ter a condição de sexo feminino (CAPEZ, 2019, p. 159).
Damásio de Jesus e André Estefan (2020) explica que existem duas formas de feminicídio: a primeira se refere ao assassinato de mulher em situação de violência doméstica ou familiar, como é o caso, por exemplo, do marido que mata a esposa; a segunda se refere ao assassinato praticado por menosprezo ou discriminação à condição de mulher, por exemplo, quando o homem mata a mulher por considera-la gênero inferior a ele.
2.1 ANALISANDO A LEI MARIA DA PENHA
Diante do alto número de mulheres sendo vítimas de violência doméstica, fez-se necessário a criação de uma legislação especial visando a criação de mecanismos para coibir a ocorrência desse tipo de violência. Assim surgiu a lei 11.340 de 2006, conhecida popularmente como Maria da Penha.
A lei leva o nome de Maria da Penha porque uma das vítimas desse tipo de violência se chama Maria da Penha, e o seu caso foi amplamente divulgado, tanto no cenário nacional como no internacional, devido a sua luta para ver seu agressor, que era seu próprio marido, sendo devidamente punido.
Maria da Penha Fernandes trabalhava como biofarmacêutica e residia em Fortaleza – Ceará. No ano de 1983, Marco Antonio H. Ponto Vieiros atentou contra a vida de Maria da Penha, desferindo um tiro de espingarda em suas costas, enquanto dormia. Devido a tentativa de homicídio, Maria da Penha ficou paraplégica (ANDREUCCI; 2019).
As violências por parte do marido de Maria da Penha não cessaram, uma semana depois a vítima recebeu uma descarga elétrica de seu marido, enquanto tomava banho. O agressor foi denunciado em 1984, o processo caminhava lentamente e o acusado não havia sido preso ainda. A própria Maria da Penha buscou ajuda internacional e apresentou denúncia à Comissão Internacional de Direitos Humanos (ANDREUCCI; 2019).
No ano de 2001 o Brasil foi condenado pela Organização dos Estados Americanos (OEA), por negligência e omissão em relação à violência doméstica, recomendando a tomada de providências a respeito. Ainda no ano de 2001 a Comissão Interamericana de Direitos Humanos publicou o relatório 54/2001, onde as principais disposições são as seguintes:
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos reitera ao Estado Brasileiro as seguintes recomendações: 1. Completar rápida e efetivamente o processamento penal do responsável da agressão e tentativa de homicídio em prejuízo da Senhora Maria da Penha Fernandes Maia. 2. Proceder a uma investigação séria, imparcial e exaustiva [...]. 3. Adotar, sem prejuízo das ações que possam ser instauradas contra o responsável civil da agressão, as medidas necessárias para que o Estado assegure à vítima adequada reparação simbólica e material pelas violações [...]. 4. Prosseguir e intensificar o processo de reforma que evite a tolerância estatal e o tratamento discriminatório com respeito à violência doméstica contra mulheres no Brasil [...] (CIDH; 2001, p. 02).
A prisão do acusado ocorreu somente em setembro de 2002, após 19 anos do cometimento dos crimes. Nota-se que essa prisão só veio a ocorrer após a grande pressão internacional exercida sobre o Brasil, e aos esforços da própria vítima, Maria da Penha.
Assim, com a edição da lei 11.340 de 2006, o país passou a ter uma legislação especial voltada para a proteção da mulher vítima de violência doméstica, objetivando a punição do agressor. O intuito é coibir a prática desse tipo de violência, com a consequente diminuição dos casos.
De acordo com Porto:
Mais do que para regulamentar quaisquer relações econômicas ou sociais, a Lei Maria da Penha ingressa no sistema jurídico brasileiro com uma finalidade muito determinada: contribuir para modificar uma realidade social, forjada ao longo da história, que discrimina a mulher nas relações familiares ou domésticas, aviltando-a à condição de cidadã de segunda categoria, rebaixando sua autoestima e, por consequência, afetando-lhe a dignidade humana (PORTO; 2021, p. 24).
Para que se caracterize a violência doméstica e familiar contra a mulher, não é necessário que o sujeito ativo seja um homem. O agressor pode ser um homem (união heterossexual) ou uma mulher (união homoafetiva) ao se considerar uniões civis e afetivas. Mas o agressor também pode ser um integrante da família da vítima, como o pai, a mãe, o irmão, dentre outros. Por outro lado, o sujeito passivo sempre será a mulher, seja ela cisgênero[1] ou transgênero[2]; o sujeito passivo não poderá ser o homem.
Nesse vértice, Porto (2021; p. 28) entende que o legislador ao utilizar da expressão “violência doméstica e familiar”, quis realizar uma diferenciação entre os dois núcleos, sendo que no primeiro, será abrangida todas as formas de violência contra a mulher que ocorram no âmbito doméstico, sem a necessidade de vínculo parental, ao passo que a segunda se refere aos atos de violência praticado por um sujeito ativo que detém vínculo familiar com a vítima.
2.2 COMPARAÇÃO COM A LEI DO FEMINICÍDIO
Decorrente do Projeto de Lei do Senado de número 8.305, de 17 de dezembro de 2014, em 9 de março de 2015 foi publicada a Lei nº 13.104, alterando o artigo 121 do Código Penal[3], criando-se uma modalidade de homicídio qualificado, que passou a ser denominado de “feminicídio”.
A necessidade em criar uma lei específica no Brasil, que possa prevenir e punir o feminicídio segue orientações de organizações internacionais, tais como a Comissão sobre a situação da Mulher (CSW) e o Comitê sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW), da ONU.
Ainda, a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito sobre a Violência contra a Mulher, que investigou a violência contra a mulher nos estados brasileiros de março de 2012 até 2013, observou o alto número de agressões contra a mulher e fez uma recomendação para a criação da referida lei.
A Comissão Parlamentar Mista de Inquérito de Violência contra a mulher no Brasil foi instaurada com a finalidade de investigar e apurar a omissão do poder público na efetividade dos instrumentos previstos em lei.
A inclusão da tipificação do feminicídio foi muito solicitada pelos movimentos feministas, ativistas, de certo ponto também para responsabilizar e fomentar a responsabilidade do Estado. Assim, como já destacado, a Lei de Feminicídio foi elaborada a partir de uma orientação da CPMI entre 2012 e 2013.
Assim, a Lei nº. 13.104/2015 tipifica o feminicídio como homicídio qualificado, considerado crime hediondo. Antes do advento dessa lei não havia nenhuma punição específica para o homicídio praticado contra a mulher por razões de gênero, ou seja, pela condição de sexo feminino. O crime também passa a integrar o rol de crimes hediondos.
O homicídio contra a mulher pelo simples fato de ela ser mulher, antes da legislação em questão, caracterizava homicídio qualificado por motivo fútil ou torpe, dependendo do caso concreto. O Brasil foi o 16º país da América Latina a prever o crime de feminicídio.
O feminicídio tem como marco normativo, na esfera internacional, a Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, ratificada pelo Brasil em 1984.Essa convenção tem o objetivo de eliminar qualquer forma de discriminação e garantir a igualdade (PIOVESAN, 2010).
Outro marco normativo é a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, chamada de “Convenção de Belém do Pará”, ratificada pelo Brasil em 1995, definindo a violência contra a mulher como qualquer ato baseado no gênero, que cause morte ou dano físico, sexual ou psicológico (PIOVESAN, 2010).
Rogério Sanches Cunha explica como o feminicídio pode incidir no caso concreto:
O feminicídio, entendido como a morte de mulher em razão da condição em sido sexo feminino. A incidência da qualificadora reclama situações de violência praticada contra a mulher, em contexto caracterizado por relação de poder e submissão, praticada por homem ou mulher sobre mulher em situação de vulnerabilidade (CUNHA, 2017, p. 64).
Para a tipificação da qualificadora prevista no art. 121, IV, CP faz-se necessária a verificação de todos os elementos do tipo, ou seja, a conduta deve ser: “matar alguém” (art. 121, caput), sendo o sujeito passivo, “mulher” (art. 121, VI), estando o crime envolvido em “violência doméstica ou familiar” (art. 121, § 2º-A, I) ou motivado por misoginia, que o Código define como “menosprezo ou discriminação à condição de mulher” (art. 121, § 2º-A, II). A pena de reclusão para o feminicídio pode variar de 12 a 30 anos, sem considerar condições agravantes.
No feminicídio, assim como ocorre no homicídio, o Estado age quando da violação do direito à vida. A punição da pessoa que violou esse direito é retirada do Código Penal. O direito à vida é, portanto, o objeto jurídico do crime. A diferença entre homicídio e feminicídio se refere ao objeto material do crime e do sujeito passivo, que é a mulher, bem como pela motivação da conduta.
O direito à vida encontra-se previsto na Constituição Federal, em seu artigo 5º, tal direito é um bem jurídico protegido pelo Direito Penal. Assim sendo, a vida é bem jurídico e também é objeto jurídico do crime de feminicídio, sendo a sua tutela efetivada através da utilização do aparato penal, que objetiva punir quem mata outrem, neste caso, em razão da condição de mulher.
A Lei 13.104/2015 explica no que consiste a chamada “condição do sexo feminino”: ““§ 2º-A Considera-se que há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve: I – violência doméstica e familiar; II – menosprezo ou discriminação à condição de mulher” (BRASIL, 2015).
Define-se o menosprezo como desprezo, ódio ou repulsa à pessoa em razão do sexo feminino. A discriminação denota toda exclusão, restrição ou distinção, que prejudique ou suprime o reconhecimento, o gozo ou exercício pela mulher dos direitos humanos e liberdades fundamentais.
Para sua incidência, no caso do §2º-A, inciso I, não basta que o crime seja consumado no âmbito da violência doméstica, ou seja, dentro do espaço doméstico, no convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, ainda que esporadicamente ligadas a este espaço de convívio. Tal violência doméstica caracterizadora do feminicídio precisa estar agregada ao fator do gênero feminino. (GONÇALVES, 2016).
O sujeito ativo do crime, em regra, é o homem, mas não impedimento para a mulher, ou seja, o sujeito ativo também pode ser uma mulher, embora venha a ser contraditório uma mulher matar outra mulher pelo simples fato de ela ser mulher.
O sujeito passivo necessariamente deve ser a mulher. É possível que o transexual feminino (aquele que se submeteu a cirurgia de mudança de sexo) possa figurar como sujeito passivo. (SALIM; AZEVEDO, 2020).
Deve-se destacar que a mulher que não passou pela transgenitalização, mas modificou o seu gênero com a alteração civil, é, para fins jurídicos, uma mulher. Nesse caso, também poderá figurar no polo passivo do crime.
Damásio de Jesus e André Estefam (2020) explicam que pode haver feminicídio contra homem, mas estritamente nos casos de erro na execução, e exemplifica: um homem pretende matar uma mulher, mas por erro na execução (aberratio icitus) atinge um homem que caminhava pelo local. Nessa situação, de acordo com o Código Penal, o agente irá responder por feminicídio, como se tivesse atingido a vítima pretendida.
Sendo assim, em síntese, analisando a redação do inciso VI, pode-se verificar que feminicídio é o homicídio doloso qualificado contra a mulher, por razões das condições do sexo feminino, com reclusão de 12 a 30 anos, ficando evidente que a pena base já parte dos 12 anos, demonstrando o endurecimento da pena aplicada no caso concreto. É um crime de competência do Tribunal do Júri, seguindo, portanto, o rito especial, ocasião na qual, quem julga o crime de feminicídio são os jurados (conselho de sentença).
3 CONSEQUÊNCIAS DO FEMINICIDIO NAS RELAÇÕES FAMILIARES
3.1 COMO AS FAMÍLIAS SOFREM AS CONSEQUÊNCIAS
Qualquer tipo de violência deixa marcas, em suas vítimas ou nos familiares das vítimas fatais. Observa-se o pronunciamento do ex-secretário geral da ONU Kofi Anann, sobre esse tema:
A violência contra as mulheres causa enorme sofrimento, deixa marcas nas famílias, afetando várias gerações, e empobrece as comunidades. Impede que as mulheres realizem suas potencialidades, limita o crescimento econômico e compromete o desenvolvimento. No que se refere a violências contra as mulheres, não há sociedades civilizadas (2006 apud UNRIC, 2019, p. 1).
Trata-se o feminicídio de um crime extremamente grave, capaz de deixar consequências negativas na vida dos familiares da vítima, notadamente das crianças e adolescentes. Conviver durante toda a vida com o fato de que a mãe ou parente próxima foi vítima de um assassinato por razões de gênero exige um preparo psicológico específico. É na infância que ocorre o desenvolvimento do indivíduo, é por isso que conviver com situações de violência extrema em seu núcleo familiar é uma realidade prejudicial.
Nesse sentido:
O feminicídio já é muito grave, mas ele deixa uma consequência ainda pior, porque além da perda da vida, quando acontece um feminicídio crianças e adolescentes ficam órfãs. Precisamos amadurecer para que a sociedade se acorde e que as políticas públicas aconteçam. O problema social já é imenso quando se tem um índice de natalidade tão alto, imagine sendo retirado do núcleo familiar aquela que vai cuidar. Isso gera mais problema social [...] Já está provado que as crianças e adolescentes que têm seus direitos violados ou vivenciam situação de violência, negligência, abandono, e principalmente de violência dentro de sua casa, elas têm consequência dentro do seu desenvolvimento (CARVALHO, 2020, p. 01).
No caso da tentativa de feminicídio, a vítima sobrevivente pode desenvolver problemas psicológicos, como a depressão, a fobia, a vergonha, desencadeando o consumo de álcool ou até mesmo drogas, além de distúrbios de sono e alimentação. Tudo isso influenciará diretamente em sua família.
3.2 O QUE O ESTADO FAZ PARA AMPARAR AS FAMÍLIAS DAS VÍTIMAS
Quando ocorre o feminicídio, o Estado e a sociedade se preocupam unicamente com a punição do autor do crime. Essa preocupação não está errada, é necessário que haja a justa punição do agressor. No entanto, os familiares da vítima precisam ser o foco da atenção social e do Estado. Nesse cenário se insere a Justiça Restaurativa.
A Justiça Restaurativa é tida como um fenômeno social de grande importância para a superação das consequências do crime pela vítima, e também pelos seus familiares. A justiça restaurativa, nas palavras de Renato Sócrates Gomes Pinto:
[...] baseia-se num procedimento de consenso, em que a vítima e o infrator, e, quando apropriado, outras pessoas ou membros da comunidade afetados pelo crime, como sujeitos centrais, participam coletiva e ativamente na construção de soluções para a cura das feridas, dos traumas e perdas causados pelo crime (PINTO, 2010, p. 20).
Nesse sentido, os traumas deixados na vida dos familiares das vítimas merecem especial atenção da sociedade e também do Estado. A violência não deve ser o único foco do direito penal e das pessoas. As vítimas não merecem ser somente integrantes de uma estatística.
Deve haver a preocupação social em fazer com que os seus familiares se sintam bem e acolhidos, e deve haver a preocupação do Estado em realizar a justiça restaurativa, dando foco para os sentimentos dos familiares das vítimas. Os traumas de uma violência brutal, embora seja difícil, podem ser superados.
Ainda, cabe destacar o Plano Nacional de Enfrentamento ao Feminicídio – PNEF, que consiste em um conjunto de ações e metas que pretende implementar políticas públicas integradas e articuladas em todo o território nacional. Esse Plano é composto de 5 eixos, e o eixo de número 4 consiste em promover o atendimento humanizado, não revitimizador e qualificado às mulheres em situação de violência. Além disso, serão contempladas as vítimas de feminicídio tentado, bem como as vítimas indiretas (familiares e filhos). Ou seja, mais uma ação estatal cuja preocupação também é voltada para os familiares da vítima.
Ademais, é evidente que a maior preocupação é a punição, e não o amparo dos familiares das vítimas, por isso são encontrados poucos programas destinados a esse amparo familiar. O Estado deve atuar ativamente no núcleo familiar das vítimas, de forma a minimizar as consequências da sua perda violenta.
Conforme estudado no desenvolvimento do presente estudo, o feminicídio é um dos crimes mais graves do nosso ordenamento jurídico, pois consiste na retirada da vida de uma mulher pelo simples fato de ela ser mulher, ou seja, trata-se de uma violência de gênero.
Infelizmente, muitos casos de violência doméstica contra a mulher, prevista na Lei Maria da Penha evoluem para o feminicídio, por esse motivo foi necessária a edição da Lei de Feminicídio, tendo em vista a recorrência desse tipo de crime.
Ademais, a preocupação do Estado quando da ocorrência do feminicídio, como de qualquer crime, é a punição do criminoso, conforme as exigências legais, jurídicas e sociais. No entanto, a preocupação quase nunca recai sobre a família da vítima.
Em vários casos, a vítima deixa filhos e familiares próximos que vão sofrer com a violência sofrida pela mulher, o que pode desencadear inúmeros problemas psicológicas nesses familiares, notadamente dos filhos.
Exige-se, nessa situação, uma participação ativa do Estado, de forma a amparar os familiares das vítimas de feminicídio, por meio de programas assistenciais e disponibilização de assistência psicológica, visando superar esse episódio de violência no núcleo familiar. Atualmente, muito se fala em Justiça Restaurativa, que realmente se volta para a vítima e seus familiares, mas ela por si só não é suficiente. É importante que todos os poderes direcionem a sua preocupação para a família, cujas consequências podem ser fatais também.
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[1] Pessoa que se identifica completamente com o seu gênero de nascimento.
[2] Pessoa que nasceu com determinado sexo biológico, e não se identifica com o seu corpo.
[3] Art. 121. Matar alguém: Pena - reclusão, de seis a vinte anos. [...] Feminicídio VI - contra a mulher por razões da condição de sexo feminino: [...] Pena - reclusão, de doze a trinta anos. [...] § 2o-A Considera-se que há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve: (Incluído pela Lei nº 13.104, de 2015) I - violência doméstica e familiar; (Incluído pela Lei nº 13.104, de 2015) II - menosprezo ou discriminação à condição de mulher. (BRASIL, 1940).
Advogado OAB/AM
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOUSA, MARCIO FERNANDO MENEZES DE. As consequências do feminicídio nas relações familiares Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 23 maio 2023, 04:20. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/61507/as-consequncias-do-feminicdio-nas-relaes-familiares. Acesso em: 22 nov 2024.
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