RESUMO: O presente artigo objetivou analisar a possibilidade de aplicação do Princípio da Insignificância ao réu reincidente. Nessa linha, pretende-se abordar toda a fundamentação teórica do postulado da Insignificância, principalmente o que toca sua natureza jurídica de causa supralegal de exclusão da tipicidade material. Ainda, tratar-se-á do instituto da reincidência no Direito Penal brasileiro, analisando seus pressupostos e efeitos. Por fim, através de toda a pesquisa produzida, confronta-se o entendimento jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça. O que se constata no decorrer dos anos é uma notável dissidência de posicionamentos. Entrementes, a atual inclinação da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça é no sentido de que a reincidência demonstraria um maior grau de reprovabilidade do comportamento do agente, o que impediria a incidência do Princípio da Insignificância à espécie.
Palavras-chave: Princípio da Insignificância. Reincidência. Bagatela.
ABSTRACT: This article aimed to analyze the possibility of applying the Principle of Insignificance to repeat offenders. In this line, it is intended to address all the theoretical foundations of the postulate of insignificance, especially what concerns its legal nature as a supra-legal cause of exclusion of the material typicality. Furthermore, we will deal with the institution of recidivism in Brazilian Criminal Law, analyzing its assumptions and effects. Finally, through all the research produced, the jurisprudential understanding of the Federal Supreme Court and the Superior Court of Justice will be compared. What has been noted over the years is a notable divergence of positions. However, the current inclination of the jurisprudence of the Federal Supreme Court and the Superior Court of Justice is in the sense that recidivism would demonstrate a greater degree of reprobability of the agent's behavior, which would prevent the application of the Principle of Insignificance to the species.
Keywords: Principle of Insignificance. Recidivism. Bagatelle.
Sumário: 1. Introdução. 2.O Princípio da Insignificância. 2.1 Conceito de Princípio da Insignificância. 2.2 Critérios de Aplicação do Princípio da Insignificância. 3. Reincidência. 3.1 Conceito e Natureza Jurídica. 3.2 Pressupostos da Reincidência. 4. Entendimento do Supremo Tribunal Federal sobre o Princípio da Insignificância. 5 Considerações Finais. Referências.
1 INTRODUÇÃO
Em razão do sistema político instituído pela Constituição Federal de 1988, o Direito Penal deve ser estruturado a partir de uma concepção democrática do Estado de Direito, respeitando princípios e garantias reconhecidos na Carta Magna. Assim, a intervenção estatal, vez que envolve graves restrições à liberdade individual, somente pode ser considerada legítima quando concretamente houver violação ou ameaça que justifiquem tal interferência.
Destarte, em decorrência de seu caráter fragmentário, bem como de sua natureza subsidiária, o Direito Penal deve ser aplicado apenas quando for o último recurso para a proteção do bem jurídico. Sendo assim, tem como função precípua a proteção dos bens jurídicos relevantes e indispensáveis para o alcance de uma justiça equitativa, devendo-se ater apenas à real violação dos bens jurídicos tutelados.
Nesse norte foi formulado o princípio da insignificância, o qual atua como ferramenta de interpretação restritiva do tipo penal, excluindo da incidência penal as condutas que, embora formalmente encaixadas no molde legal-punitivo, não chegam a colocar em risco o bem jurídico tutelado, em razão de sua mínima ofensividade.
O Princípio da Insignificância, proposto por Claus Roxin em 1964, permite a interpretação restritiva do tipo penal buscando como finalidade a exclusão das lesões tidas como de pouca importância da esfera punitiva estatal.
A jurisprudência pátria dissentia quanto à aplicação do citado postulado, motivo pelo qual o Supremo Tribunal Federal buscou criar vetores que orientassem os julgadores nesse sentido. Nada obstante, uma situação em particular não se enquadrou precisamente nos critérios delineados, tampouco foi apreciada na oportunidade: a do agente reincidente.
As Cortes Superiores enfrentam esta hipótese frequentemente, do que desponta uma divergência notável, considerando-se que são exarados os mais variados entendimentos. Dessa situação emerge uma consequência muito severa: o abalo da segurança jurídica. Isto porque, situações idênticas podem ser tratadas diferentemente ao passo que são submetidas a órgãos julgadores diversos.
Frente a este cenário, o desenvolvimento desta pesquisa tem por objetivo buscar uma solução jurídica à problemática apresentada, evitando, assim, a perpetuação de juízos divergentes. Portanto, é precisamente a possibilidade de aplicação ou não do Princípio da Insignificância nos casos de reincidência que se pretende investigar.
A metodologia de abordagem utilizada foi o método indutivo. Quanto às técnicas de pesquisa, utilizou-se a pesquisa bibliográfica em doutrinas, legislação vigente, artigos publicados em meios eletrônicos e jurisprudência.
2. O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA
Conforme destaca Silva (2011), tal o princípio da insignificância e sua moldura hodierna se deve precipuamente a Claus Roxin, que em 1964 formulou como base de validez para a determinação do injusto, levando em consideração a máxima latina mínima non curat praetor.
Verificam-se vestígios da formulação do princípio em comento na obra de Franz Liszt, de 1903, que discorreu sobre a hipertrofia do direito penal para fins de controle social e pergunta-se se não seria oportuno recorrer à antiga máxima latina mínima non curat. A respeito do significado da máxima latina, entende-se que o magistrado “desprezar os casos insignificantes para cuidar das questões realmente inadiáveis” (SILVA, 2011, p. 87).
Para Lopes (2000), o princípio da insignificância não pode ser estudado de forma desvinculada do princípio da legalidade. Assim, o autor passa a relatar a evolução histórica do princípio da legalidade e seus consequentes desdobramentos, travestidos em brocados latinos como os da nullum crimen nulla poena sine lege praevia, consagrando os princípios da anterioridade e irretroatividade da lei penal incriminadora; nullum crimen nulla poena sine lege stricta, que proíbe o emprego de analogia em malefício ao réu; nullum crimen nulla poena sine lege scripta, que veda o emprego de costumes para incriminar condutas; nullum crimen nulla poena sine lege certa, conhecido como princípio da taxatividade; até que se chegou, enfim, ao princípio da nullum crimen nulla poena sine iuria, ou seja, não há crime sem ofensa a bem jurídico ou gravidade que sustente a aplicação da lei.
Segundo o autor acima mencionado, a insignificância não surge do Direito Romano, mas sim dos ideais iluministas, tendo como seu maior instrumento normativo a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789.
Da origem histórica surge, controvérsia doutrinária: para uns, o princípio da insignificância surge com o Direito Romano; para outros, o princípio da insignificância não se deu no Direito Romano. Para Capez (2021), o princípio em voga surge do Direito Romano, tendo cunho civilista, tendo forte influência do brocardo latino minimus non curat praetor, sendo que, em 1964, Claux Roxin traz o princípio da insignificância para o Direito Penal, tendo em vista seus benefícios de ordem social, objetivos estes traçados pela moderna política criminal daqueles tempos
Segundo Masson (2016), o princípio da insignificância surge no Direito Civil do aforismo latino minimus non curat praetor. Assim, o direito penal não deve se ocupar de temas irrelevantes, incapazes de lesar o bem jurídico a ser tutelado. Ainda, o autor relembra que o princípio em comento fora incorporado ao direito penal na década de 70 pelos estudos do saudosos doutrinador Claus Roxin.
Lopes (2000) pontua que o delito da bagatela (Bagatelledelikte, para os alemães) surge na Europa pós 2ª Guerra Mundial. Para o doutrinador, por conta da grave crise econômica vivida pelo Velho Continente, os delitos de caráter patrimonial e econômico aumentaram sobremaneira, e, na sua grande maioria, consistentes na subtração de bens de pequena monta.
Contudo, o autor supracitado observa que parte da jurisprudência, sendo esta “menos socialmente avançada”, vem se plasmando no sentido de que o princípio da insignificância traz necessariamente em seu âmago a patrimonialidade, de forma que só é aplicável o princípio em voga em delitos que envolvam interesses econômicos, servindo de baluarte para o exegeta a quantidade ínfima de lesão provocada à vítima.
2.1 Conceito de Princípio da Insignificância
Conforme se depreende dos ensinamentos de Lopes (2000), o princípio em voga surge de uma criação exclusivamente pretoriana e doutrinária: não há na legislação, seja ela ordinária ou constitucional, algo que o defina, sendo, portanto, criado através da interpretação sistemática do ordenamento jurídico O autor explicando Alberto Silva Franco, vincula o princípio da insignificância à antijuridicidade material à força de oito argumentos:
O primeiro, de ordem constitucional, segundo o qual se vive em um Estado de Direito, e esse Estado de Direito pressupõe mais que um mero Estado de Legalidade. Assim, apesar de haver necessariamente uma ligação com garantias formais advindas da premissa anteriormente dita, não há como se olvidar o elo que liga, também, o Estado de Direito à justiça material.
A segunda consideração também leva a uma análise constitucional, inspirada pelo brocardo latino cogitationes poenm nemo patitur, segundo o qual não há incriminação de mero pensamento interno, devendo, necessariamente, ocorrer uma lesão ao bem jurídico tutelado pela norma penal. Assim, para o autor, existe uma ligação entre o direito à liberdade moral e a noção de crime como fato necessariamente lesivo.
A terceira consideração, de ordem dogmática, interpreta que os bens jurídicos tutelados pelo Direito Penal não são objetos estáticos, que permanecem em repouso, “mas sim unidades funcionais de caráter social, sem as quais nossa sociedade, em sua estruturação concreta, não seria capaz de existir” (LOPES, 2000, p. 49). Assim, os bens jurídicos só existem por conta de estarem em constante contato com a vida social e serem dela originados.
A quarta consideração preceitua que o patrimônio de uma pessoa não pode ser levada como uma mera operação aritmética de todos os bens que possuem valor monetário, não se trata de um determinado estado, mas sim “de uma concreta unidade funcional, a unidade da função de assegurar ao titular, como fundamento da vida econômica da pessoa, um âmbito de efetividade econômica e de existência” (LOPES, 2000, p. 50).
Já a quinta consideração “é a de que a lesão patrimonial deve conceber-se na sua concreta repercussão no âmbito da vida de uma pessoa e não como uma diminuição abstrata de valor de seu potencial econômico” (LOPES, 2000, p. 50).
Quanto à sexta consideração, esta atribui um peso à lesão patrimonial relevante
A sétima consideração é de que os crimes de bagatela se situam exatamente nessa posição das lesões ínfimas, de forma que a única repercussão que enseja na Justiça Criminal é carga excessiva de processos e a consequente falta de tempo para análise de casos realmente relevantes.
Por derradeiro, a oitava consideração “é a de que, em relação a delitos não patrimoniais, a jurisprudência tem reconhecido a necessidade da lesividade do ilícito penal” (LOPES, 2000, p. 50)
Para Nucci (2021), conceituando o princípio da insignificância e relacionando-o com outros da seara penal, sustenta que o direito penal, diante de seu caráter subsidiário, funciona como ultima ratio no sistema punitivo, não devendo se ocupar com bagatelas, decorrendo tal postura da intervenção mínima, que, situada em um Estado Democrático de Direito, demanda legítima ofensividade ao bem jurídico tutelado para ser, então, acionado o jus puniendi estatal
No entendimento de Sirvinskas (2003), o princípio da insignificância está relacionado com a teoria social da ação, devendo ser punido somente fatos que possuam relevância social. Contudo, alerta que o sistema penal pátrio admite a conciliação das teorias finalista e social da ação, pois, se não fosse assim, nãos seria admitida a aplicação do princípio em comento. Lembra o autor que tal princípio possui a natureza jurídica de exclusão de tipicidade.
O princípio em comento se divide conforme Lopes (2000) em dois: independentes ou próprios e dependentes ou impróprios:
A infração de bagatela imprópria é aquela que surge como relevante para o Direito Penal, apresentando desvalor na conduta e também no resultado. Portanto, existe tipicidade, ilicitude e culpabilidade do agente. Todavia, a pena revela-se incabível no caso concreto, tendo em vista fatores ligados à personalidade do agente, colaboração com a Justiça, reparação do dano causado à vítima, reduzida reprovabilidade do comportamento etc. Assim, na bagatela imprópria, obrigatoriamente se observa a insignificância no caso concreto, jamais no plano abstrato. Assim, o autor relembra que o fato real deve ser confrontado com um princípio basilar do Direito penal, qual seja, o da necessidade da pena, insculpido no art. 59 do CP. Para ilustrar melhor o caso, cite-se como exemplo - o sujeito que comete furto privilegiado (CP, art. 155, § 2º), que, após dois anos de persecução penal, o magistrado verifica que o agente não cometera mais nenhum deslize, sendo portanto aplicável o princípio em comento. Assim, ao contrário da insignificância própria, na imprópria a ação penal necessariamente deve ser iniciada, mas, na análise do caso concreto, o magistrado verifica melhor guarida a exclusão da pena.
Na infração bagatelar própria, o agente jamais poderá ser preso em flagrante. Ao invés disso, deverá ser conduzido até a presença de uma autoridade para a singela lavratura do TC (termo circunstanciado), vez que o fato é materialmente atípico. Todavia, deve-se registrar o fato para posterior arquivamento. Duas posturas devem ser evitadas pela autoridade policial: não registrar o acontecimento, tendo em vista ter sido fato atípico por conta da insignificância; a segunda seria a lavratura do auto de prisão em flagrante em decorrência de conduta materialmente atípica.
Na infração bagatelar imprópria, na opinião de Gomes (2009), se fala de conduta formal e materialmente típica, e, portanto, haverá persecução penal. Porém, ao final do processo, caso sejam revelados os requisitos da insignificância, tais como reparação dos danos, ofensa não muito relevante do bem jurídico, bem jurídico de relevância não exageradamente importante, autor bagatelar - sem antecedentes, culpabilidade não significante etc. -, o fato de já ter sido eventualmente preso, de ter respondido a um processo etc., o juiz deverá absolver o réu por conta do princípio da insignificância, dispensando o réu do cumprimento da pena, nos termos do art. 59 do CP.
Lopes (2000) tece importante consideração ao uso e critérios de aplicação do princípio da insignificância. Para o autor, faltam as condições para o reconhecimento do princípio aqui em debate. Assim, tende a doutrina brasileira a elastecer o seu conteúdo. Pela falta de critério, por via transversa, tende-se a malversar a igualdade jurídica e também o princípio da legalidade, transformando o princípio da insignificância em um “conceito particular”. Tal movimento, assevera o autor, tende a levar a derrocada do princípio da bagatela.
Assim, a falta de critérios para a implementação do princípio em estudo torna-se obstáculo instransponível para se atingir o princípio da igualdade, que, como se sabe, é um dos fundamentos da aplicação do princípio da insignificância.
Outrossim, Lopes (2000) tece crítica ao entendimento de Luiz Flávio Gomes, em que alerta para a nocividade da confusão de conceitos entre o princípio da insignificância com crimes de pouca significação. Para o autor, pelo princípio afasta-se a tipicidade material do crime, já pelo segundo busca-se alternativas para dar tratamento mais célere à persecução penal, tendo em vista a menor importância do crime.
2.2 Critérios de Aplicação do Princípio da Insignificância
Lopes (2000) afirma categoricamente que não há critérios precisos para a distinção entre o delito de bagatela e o delito criminalmente relevante. Porém, o autor se estriba nos ensinamentos de Teresa Armenta Deus, que traz as seguintes distinções:
A primeira delas é a escassa reprovabilidade do delito. Ensina Ribeiro Lopes que a reprovabilidade está jungida com a adequação social. Só é reprovável o que não é, também, adequado para fins sociais, sendo, portanto, uma espécie de censura projetada pela sociedade sobre a conduta
O segundo requisito é o de ofensa a bem jurídico de menor relevância. É de fundamental relevância o estudo da dogmática acerca do bem jurídico, tendo em vista que o direito penal se destina somente à proteção de bens jurídicos. O legislador não pode eleger bens jurídicos diversos daqueles protegidos pela Constituição, funcionando esta como parâmetro de controle negativo da atuação do legislador ordinário.
Para Lopes (2000, p. 148), o bem jurídico de menor relevância não pode ser confundido com o que vem previsto no art. 98, inciso I, da Constituição Federal, que estatui os crimes de menor potencial ofensivo. Nesse sentido, a potencialidade lesiva é medida de forma abstrata, não existe nenhum juízo de valor, tendo, conforme previsto pela legislação pátria, efeitos meramente processuais, ao passo que a irrelevância do bem jurídico “tem uma dimensão plúrima, implicando as conotações sob o prisma da intervenção mínima e da insignificância”. Assim, o bem juridicamente irrelevante é aquele que, analisado abstratamente, não merece pender de tipificação incriminadora, e também aquele que abstratamente é considerado relevante, todavia, “não foi suficientemente alcançado num grau mínimo para legitimar a intervenção concreta do Direito Penal”.
O terceiro e último requisito é o da habitualidade. Os delitos em massa merecem uma tutela penal diversificada, isso, pois, visa-se proteger o princípio da igualdade, tendo em vista aqueles que não praticam delitos com habitualidade e também o interesse das próprias vítimas.
Segundo Gomes (2009), há que se analisar o princípio da insignificância sob duas vertentes: uma no resultado e outra na conduta. Para isso, o autor dá o seguinte exemplo: a conduta de atirar uma bola de papel contra um transporte coletivo (art. 264) é absolutamente insignificante, a insignificância reside na própria conduta. Já a ação de subtrair uma cebola de alguém, por mais que o resultado seja insignificante, a conduta não o é. Nesse diapasão, Gomes considera inadequado mesclar como critério de aplicação da insignificância fatores pessoais e do próprio fato. Ou a conduta é insignificante ou o resultado. Para o autor, o juiz não deve adentrar em fatores pessoais, sob pena de fugir por completo da dimensão objetiva da insignificância, dando margem, inclusive, para a introdução no sistema penal pátrio do famigerado direito penal do autor.
A fim de compreender a discussão da qual decorre o tema do presente artigo, é imprescindível analisar o instituto da reincidência, ao passo que ele é uma das hipóteses que gera dissidência jurisprudencial no momento da aplicação ou não do princípio da insignificância.
Ditticio (2007, p. 46), em seu estudo acerca da reincidência, dispõe que a ideia de que o agente reincidente deve ser mais severamente punido não é nova, já aparecendo no Velho Testamento, bem como nos direitos romano e germânico e difundindo-se pelo mundo com o Código Penal Francês de 1810.
Bissoli Filho (1998) afirma que no Direito Penal brasileiro a reincidência criminal foi ingressando aos poucos, passando a exercer uma influência muito visível. Não há registro que no período das Ordenações do Reino o instituto fosse reconhecido, sendo que foi através do Código Criminal do Império de 1831 que a reincidência, como instituto penal, ingressou no Direito brasileiro.
Desta forma, a fim de entender sua evolução, importante traçar um breve panorama histórico da reincidência no ordenamento jurídico brasileiro. Capela (2013) afirma que o instituto da reincidência sofreu sensíveis alterações legislativas desde o Código Criminal do Império até a redação que se conhece atualmente.
Segundo Prado (2018, p. 604), o Código Criminal do Império de 1830, em seu art. 16, §3º, bem como o Código Penal de 1890, no art. 40, consagravam tão somente a reincidência específica como circunstância agravante da pena. No entanto, enquanto o Código de 1830 não definia “delito da mesma natureza”, o diploma de 1890 “o fez em termos excessivamente restritos – ‘como tal entende-se, para os efeitos da lei penal, o que consiste na violação do mesmo artigo’ (art. 40) ”.
Prado (2018) leciona que esse dispositivo foi alvo de severas críticas doutrinárias, vindo a sofrer alterações substanciais com o Código Penal de 1940. Tal diploma passou a acolher, além da reincidência específica, a reincidência genérica, porém ainda adotava o sistema de reincidência perpétua.
Foi com a Lei 6.416/1977, a qual alterou inúmeros dispositivos do Código Penal, que o instituto da reincidência sofreu suas mais consideráveis modificações. Houve a extinção da reincidência específica, bem como o estabelecimento de um limite temporal aos efeitos da condenação anterior, com o escopo de não estigmatizar para sempre o condenado.
O Código Penal atual (após a reforma de 1984), segundo Zaffaroni e Pierangeli (2018, p. 717), “suprimiu os conceitos de habitualidade e outros análogos, e as medidas de segurança ligadas a essas ‘classificações’ de pessoas arbitrárias e perigosas, que claramente advieram do Código italiano de 1930. Todavia, mantém a reincidência [...]”
Assim, verifica-se que a reincidência passou por sensíveis alterações legislativas até chegar à redação em que se encontra atualmente, bem como houve diversas mudanças quanto ao seu conceito e aos requisitos necessários a sua configuração, o que se analisará a seguir.
3.1 Conceito e Natureza Jurídica
Conforme Bissoli Filho (1998) a palavra reincidência deriva de reincidere ou de recidere, o que significa, no sentido literal, recair ou repetir o ato. Desta forma, em termos comuns, seria a repetição da prática do crime.
No entanto, sabe-se que no sentido jurídico sua definição não é tão simples. Bissoli Filho (1998) afirma que para poder ser feita uma definição de tal instituto, deve-se reportar ao texto legal, certificando-se quais são os elementos que a configuram. É desta configuração que pode ser retirado seu conceito jurídico.
Assim, considerando que no ordenamento jurídico brasileiro a reincidência está prevista nos artigos 63 e 64 do Código Penal, são nesses dispositivos que se podem encontrar os elementos para sua conceituação, bem como as condições de sua verificabilidade.
Bissoli Filho (1998, p. 99) sintetiza que a reincidência criminal, em sentido amplo, é composta de dois elementos básicos, os quais seriam: “a) uma condenação anterior transitada em julgado; b) a prática posterior de uma infração penal (tentada ou consumada), no prazo de cinco anos. ”.
Quanto à sua natureza jurídica, Mirabete (2019) afirma que prevê a lei a reincidência como circunstância agravante do delito, em virtude do maior índice de censurabilidade na conduta do agente que reitera na prática de um delito.
Trata-se de circunstância agravante genérica, incidindo na segunda fase da aplicação da pena privativa de liberdade. Ademais, é de caráter subjetivo, pois se relaciona à figura do agente, e não ao fato. Assim não se comunica aos demais coautores ou partícipes.
Com o escopo de elucidar o que seriam tais circunstâncias, ao lecionar sobre a individualização judicial da pena, Bitencourt (2022) ressalva que os tipos penais descrevem as condutas ilícitas e estabelecem seus elementos essenciais. Além desses elementos, sem os quais a figura típica não se completa, o tipo penal pode ser integrado por outras circunstâncias influenciadoras na dosagem final da pena.
Prado (2018) afirma que sua razão de ser no ordenamento jurídico penal é decorrente do princípio da proporcionalidade, exigindo-se uma individualização dos delitos e de suas consequências. Além disso, aduz que tais circunstâncias atenuam ou exasperam a pena em virtude da maior ou menor gravidade do injusto ou da culpabilidade ou por exigências político-criminais.
3.2 Pressupostos da Reincidência
Queiroz (2020) afirma que não basta o cometimento de novo crime para a configuração da reincidência, é necessário que esse novo crime tenha sido cometido após transitar em julgado a sentença que o tenha condenado por crime anterior. Ademais, não é suficiente uma sentença condenatória se esta ainda está pendente de recurso, não tendo passado em julgado. Além disso, pouco importa se o agente cumpriu ou não a pena da condenação anterior que gerou a reincidência.
Do art. 63 do Código Penal é possível extrair os requisitos para a configuração do instituto, os quais seriam: a) prática de um crime anterior, no Brasil ou no estrangeiro; b) trânsito em julgado da sentença condenatória; c) prática de novo crime após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória
Destarte, um dos pressupostos para a configuração da reincidência é que o cometimento do novo delito se dê após o trânsito em julgado da decisão que o havia condenado anteriormente.
Contudo, nem todos os crimes geram reincidência. Queiroz (2020) aduz que o Código excepciona os crimes militares próprios e os crimes políticos, conforme disposição do art. 64, II, do CP. Os crimes militares próprios são aqueles dispostos no Código Penal Militar e que só podem ser cometidos por militares, não por civis, como por exemplo, a insubordinação.
Já quanto aos crimes políticos, Queiroz (2020, p. 342) afirma que “são as infrações penais contra a segurança interna e externa do Estado, sendo puramente políticos os crimes que atentam exclusivamente contra interesses políticos da nação [...]”. Já os relativamente políticos seriam os crimes comuns, porém praticados com finalidade político-subversiva. Somente os primeiros – puramente políticos – não geram reincidência. Ademais, em relação às contravenções penais.
Bissoli Filho (1998) afirma que a reincidência criminal que envolva contravenção somente ocorre se ambos ou o segundo fato for contravenção. Desta forma, se o primeiro fato delituoso for uma contravenção e o segundo um crime, não se operará a reincidência.
Greco (2019, p. 567) afirma que “somente haverá reincidência se o agente houver praticado dois crimes, não podendo cogitar dessa circunstância agravante se a infração penal anterior ou posterior constituir em uma contravenção penal”
No entanto, sabe-se que no caso de o agente vir a cometer uma infração penal após passar em julgado uma sentença que o tenha condenado por qualquer crime, será reincidente. Tal entendimento está previsto no art. 7º da Lei das Contravenções Penais, Decreto-lei n.3.688 (GRECO, 2019).
Para Zaffaroni e Pierangeli (2018) aduzem que a lei não faz distinção se o delito anterior foi doloso ou culposo, tampouco a respeito do segundo delito.
Nesse mesmo sentido seguem os ensinamentos de Capela (2013), ao salientar que para a configuração da reincidência não importa a quantidade de pena anteriormente imposta, bem como qual sanção aplicada, podendo o delito anterior ter sido apenado tão somente com pena de multa
No ordenamento jurídico brasileiro, o agravamento de pena é apenas um dos efeitos decorrentes do reconhecimento da recidiva. Destarte, o reincidente está sujeito a diversas consequências legais, as quais restringem benefícios de natureza material e processual.
Para Bissoli Filho (1998), a reincidência criminal passou a exercer uma profunda influência no Direito brasileiro, interferindo em todas as fases do processo de criminalização, desde a elaboração das leis até a fase de execução penal. Serão essas interferências que se estudará a seguir.
Bissoli Filho (1998) destaca que, além de influir profundamente na aplicação da pena, por ser uma circunstância que sempre agrava a pena, a reincidência está prevista como requisito de avaliação de vários institutos penais, interferindo desde a elaboração das leis até a fase de execução penal. O autor sustenta que a reincidência constitui fator de diferenciação dos indivíduos. Estes, quando considerados reincidentes, são inseridos em um grupo específico - considerado como perigoso - merecendo tratamento processual específico, o que resulta nos efeitos elencados anteriormente.
Ademais, a influência da reincidência no sistema penal não é limitada apenas ao contido na lei. Tal instituto acaba por orientar os operadores do Direito na formação de posturas dogmáticas e na apreciação dos casos em concreto.
Portanto, além de exercer influência explicita no Direito Positivo, a reincidência acaba por influir implicitamente na atuação dos operadores jurídico-penais, interferindo na formação de juízo de valor destes e direcionando as decisões. Essa influência pode ser constatada inclusive na problemática do presente artigo, ou seja, a aplicação do princípio da insignificância ao réu reincidente.
Verifica-se que, por muitas vezes, operadores de direito deixam de aplicar o princípio da insignificância em razão de fatores exclusivamente subjetivos do agente, como por exemplo a reincidência.
4. ENTENDIMENTO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL SOBRE O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA
Delineados os aspectos doutrinários que esclarecem os institutos penais do Princípio da Insignificância e da reincidência, necessário faz-se convergir o estudo para averiguar a possibilidade ou não da aplicação da benesse da insignificância ao réu comprovadamente reincidente, principal indagação desta pesquisa, a partir de entendimento do Supremo Tribunal Federal, que ao longo dos anos vem caminhando por posicionamentos divergentes.
A divergência jurisprudencial quanto à aplicação do princípio da insignificância ao réu reincidente não é orientação recente na Corte Suprema. Conforme (2013), o Ministro Francisco Rezek, já em 1993, ao analisar o HC nº 70.747/RS, deixou de acatar o princípio da insignificância, embora o desvalor do resultado fosse mínimo, em face das condições do agente. O resultado jurídico foi insignificante, no entanto o fato não foi considerado irrelevante porque o réu era reincidente, possuindo condenações por desacato e desobediência.
Tal decisão foi alvo de críticas por parte de Luiz Luisi (1998), ao afirmar que os fatos se tratavam de uma espécie de lesão corporal, a qual era constituída de um arranhão com um pouco mais de um centímetro. O autor questiona se essa ínfima lesão corporal tem a relevância suficiente para constituir um efetivo dano ao bem jurídico tutelado pelo tipo previsto no § 6º do art. 129 do Código Penal. Indo além, afirma que, se inexistente a tipicidade, a vida pregressa do indiciado, não têm o condão de dar matiz criminal ao fato.
Em relação aos últimos anos, Gonçalves (2011) aduz que a controvérsia no STF ainda persiste. Alguns Ministros do STF sustentam que a aplicação do princípio da insignificância nos casos de reincidência seria um incentivo a prática de novos delitos. Entendem desta maneira os ministros Ricardo Lewandowski (HC 102.651/MG), Carlos Ayres Britto (HC 96.202/RS). Dias Toffoli (HC 101.591/MG), Carmen Lúcia (HC 107.674/MG) e Joaquim Barbosa (AgRg no AI 600.500/MG).
Porém, em sentido contrário, Gonçalves (2011) elenca que entendem pela aplicabilidade do princípio em questão não obstante a reincidência do agente os Ministros Cézar Peluso (HC 93.393/RS), Celso de Mello (HC 106.510/MG) e Gilmar Mendes (HC 106.510/MG). Os defensores desta corrente argumentam que apenas devem ser analisadas as particularidades da conduta e de seu resultado, não as particularidades do agente.
Assim, levando em consideração as decisões proferidas pelos Ministros acima citados, passa-se a uma breve análise cronológica do entendimento exarado pelo Supremo Tribunal Federal acerca da aplicação do princípio da insignificância aos casos envolvendo agentes reincidentes.
A Segunda Turma da Suprema Corte, no julgamento do HC 93.393/RS ocorrido em 14.04.2009, concluiu pela aplicabilidade do princípio da insignificância ao paciente acusado de furtar um pneu automotivo de aproximadamente R$ 160,00 (cento e sessenta reais), mesmo ele sendo reincidente específico.
Nestes termos, colhe-se da ementa:
AÇÃO PENAL. Justa causa. Inexistência. Delito de furto. Subtração de roda sobressalente com pneu de automóvel estimados em R$ 160,00 (cento e sessenta reais). Res furtiva de valor insignificante. Crime de bagatela. Aplicação do princípio da insignificância. Irrelevância de considerações de ordem subjetiva. Atipicidade reconhecida. Absolvição. HC concedido para esse fim. Precedentes. Verificada a objetiva insignificância jurídica do ato tido por delituoso, é de ser afastada a condenação do agente, por tipicidade do comportamento. (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus n. 93393, Segunda Turma, Rel. Min. Cezar Peluso, julgado em: 14 abr. 2009.).
Justificando o posicionamento, o Ministro Cezar Peluso sustentou que para a averiguação da tipicidade da conduta, não há a necessidade de ponderação acerca das circunstâncias pessoais do agente, isto porque, reconhecido a atipicidade do fato, torna-se irrelevante se o delito foi praticado por reincidente contumaz, simplesmente porque não haverá crime.
Divergindo deste entendimento, a Primeira Turma, no mesmo ano, negou provimento ao Habeas Corpus n. 97.772/RS, no qual o réu era acusado de violação de domicílio e furto de uma pequena quantidade de roupas usadas no valor de R$ 143,00 (cento e quarenta e três reais).
Neste writ, a relatora Ministra Cármen Lúcia reconheceu que para verificar a tipicidade só seria necessária à análise das circunstâncias pessoais do agente se estas constituíssem elementar do crime; entretanto, ponderou que a reincidência deve ser levada em consideração, excepcionando-se da regra, visto que, apesar de ser uma condição subjetiva, remete-se ao critério objetivo da reprovabilidade do comportamento. Nesse contexto, concluiu a Ministra:
O criminoso contumaz, mesmo que pratique crimes de pequena monta, não pode ser tratado pelo sistema penal como se tivesse praticado condutas irrelevantes, pois, crimes considerados ínfimos, quando analisados isoladamente, mas relevantes quando em conjunto, seriam transformados pelo infrator em verdadeiro meio de vida. [...] Tenho, pois, que o criminoso reincidente apresenta comportamento reprovável que não pode ficar imune ao direito penal e sua conduta deve ser considerada materialmente típica, tal como decidido pelas instâncias inferiores na espécie em pauta (BRASIL. Supremo Tribunal Federal Habeas Corpus n. 97772, da Primeira Turma, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgado em: 03 nov. 2009).
Ainda, a título de demonstração da divergência existente entre as duas Turmas do STF, cabe mencionar o julgamento do HC 107.674/MG, pela Primeira Turma, e do HC 108.872/RS, pela Segunda Turma, ambos no ano de 2011. A Primeira Turma, em 2011, negou provimento ao Habeas Corpus n. 107.674/MG, no qual o paciente foi denunciado por tentativa de furto de cinco barras de chocolate avaliadas em R$ 19,95 (dezenove reais e noventa e cinco centavos), sob o argumento que o mesmo era reincidente.
A relatora Ministra Cármen Lúcia ressalva que o valor “realmente causa estranhamento para os fins de persecução penal e acionamento da máquina estatal para apuração e apenação de conduta antijurídica”, no entanto, “é necessária a análise materialmente valorativa das circunstâncias do caso concreto” (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus n. 107674, Primeira Turma, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgado em: 30 ago. 2011).
Divergindo desse entendimento foi o julgamento do HC 108.872/RS, também no ano de 2011, pela Segunda Turma do STF. Neste writ, concluiu-se pela aplicabilidade do princípio da insignificância a um agente reincidente denunciado por tentativa de furto de um cabo de cobre de para-raios, avaliado em R$ 100,00 (cem reais).
Colhe-se da ementa:
Habeas Corpus. 2. Tentativa de furto. Bem de pequeno valor (R$ 100,00). Mínimo grau de lesividade da conduta. 3. Aplicação do princípio da insignificância. Possibilidade. Precedentes. 4. Reincidência. Irrelevância de considerações de ordem subjetiva. 5.Ordem concedida (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus n. 108872, Segunda Turma, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em: 06 set. 2011).
O relator Ministro Gilmar Mendes aduz que, para a incidência do princípio da insignificância, devem ser analisadas as circunstâncias objetivas em que se deu a prática delituosa, e não os atributos inerentes ao agente
Além da divergência apresentada entre as Turmas, cabe salientar que se verificam dissidências no entendimento dentro das próprias Turmas, de acordo com a composição do órgão colegiado. De acordo com Cunha (2014), em sua análise das jurisprudências do STF quanto à aplicação do princípio da insignificância ao réu reincidente nos delitos de furto, verificou-se que a Primeira Turma do STF possuía uma posição definida, sempre pelo não cabimento do princípio em questão aos reincidentes. Já a Segunda Turma divergia em seu entendimento, ao passo que em alguns casos concedia a ordem e em outros a denegava, havendo Ministros que votavam de forma incoerente em casos parecidos.
Um exemplo desta divergência dentro da própria Turma, tem-se o julgamento do HC 106.510/MG, pela Segunda Turma do STF, em 2011. O caso trata da possibilidade de aplicação ou não do princípio da insignificância a um paciente reincidente que praticou tentativa de furto de uma máquina de cortar cabelo, avaliada em R$70,00 (setenta reais). Conforme a ementa:
PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA - IDENTIFICAÇÃO DOS VETORES CUJA PRESENÇA LEGITIMA O RECONHECIMENTO DESSE POSTULADO DE POLÍTICA CRIMINAL - CONSEQÜENTE DESCARACTERIZAÇÃO DA TIPICIDADE PENAL EM SEU ASPECTO MATERIAL - DELITO DE FURTO SIMPLES, EM SUA MODALIDADE TENTADA (CP, ART. 155, “CAPUT”, C/C O ART. 14, II) – “RES FURTIVA” NO VALOR (ÍNFIMO) DE R$ 70,00 – DOUTRINA - CONSIDERAÇÕES EM TORNO DA JURISPRUDÊNCIA DO STF – “HABEAS CORPUS” DEFERIDO. O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA QUALIFICA-SE COMO FATOR DE DESCARACTERIZAÇÃO MATERIAL DA TIPICIDADE PENAL. (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus n. 106510, Segunda Turma, Rel. Min. Joaquim Barbosa, Rel. p/ acórdão: Min. Celso de Mello, julgado em: 22 mar. 2011)
O relator Ministro Joaquim Barbosa entendeu estarem ausentes os requisitos autorizadores da incidência do princípio da insignificância, visto que o paciente era reincidente.
Ayres de Britto acompanha o relator, aduzindo que por se tratar de um paciente afeito à criminalidade, profere seu voto no sentido da denegação da ordem de Habeas Corpus. Aduz que o reconhecimento do princípio não pode significar um estímulo à reincidência.
Por outro lado, o Ministro Celso de Mello discorda do relator, manifestando-se pela concessão da ordem. Justifica seu voto pelo fato de entender que os requisitos inerentes ao princípio da insignificância estavam preenchidos, sendo eles critérios objetivos.
Assim, o Ministro Gilmar Mendes, ao sustentar que a conduta seria atípica, bem como que o entendimento acerca do princípio ainda está em processo de construção, votou pelo deferimento da ordem, sendo então deferido o Habeas Corpus em razão do empate. Nos últimos anos, percebe-se que há certa tendência das duas Turmas em considerar os elementos concernentes à personalidade do agente, orientando-se no sentido de que a reincidência do agente impede a aplicação do princípio da insignificância.
Neste sentido, o Ministro Ricardo Lewandowski se posicionou no Habeas Corpus nº 120.489, julgado em 10/12/2013, ao reforçar a reprovabilidade da prática de condutas criminosas reiteradas com a consequente necessidade de condenação do réu reincidente (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus n. 120.489, Segunda Turma, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgado em: 10 dez. 2013).
Em 2016, pode-se mencionar outra decisão do STF quanto ao tema, no julgamento do Habeas Corpus 133.252/MG em que foi afastada a aplicação do princípio da insignificância em razão do agente ser reincidente. (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus n. 133252, Segunda Turma, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgado em: 15 mar. 2016).
Em decisão mais recente, ocorrida em 23 de abril de 2019, no julgamento do Habeas Corpus 135.164/MT, a primeira Turma do STF não reconheceu por aplicar o princípio da insignificância. O caso refere-se a um furto avaliado em R$ 130, 00 (cento e trinta reais). Em primeira instância o juiz considerou o princípio da insignificância. Discordando da decisão, o Ministério Público estadual recorre ao Tribunal de Justiça e neste novo julgamento a Primeira Câmara Criminal condena o agente ao regime semiaberto. Após imposição do regime inicial semiaberto, a Defensoria Pública da União impetra o HC no STF. Trata-se de réu reincidente.
HABEAS CORPUS. FURTO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. INAPLICABILIDADE. REITERÂNCIA DELITIVA. ABRANDAMENTO DE REGIME INICIAL DE CUMPRIMENTO DA PENA. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO. 1. A orientação firmada pelo Plenário do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL é no sentido de que a aferição da insignificância da conduta como requisito negativo da tipicidade, em crimes contra o patrimônio, envolve um juízo amplo, que vai além da simples aferição do resultado material da conduta, abrangendo também a reincidência ou contumácia do agente, elementos que, embora não determinantes, devem ser considerados (HC 123.533, Relator Min. ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, DJe de 18/2/2016). 2. Busca-se, desse modo, evitar que ações típicas de pequena significação passem a ser consideradas penalmente lícitas e imunes a qualquer espécie de repressão estatal, perdendo-se de vista as relevantes consequências jurídicas e sociais desses fatos decorrentes. 3. A aplicação do princípio da insignificância não depende apenas da magnitude do resultado da conduta. Essa ideia se reforça pelo fato de já haver previsão na legislação penal da possibilidade de mensuração da gravidade da ação, o que, embora sem excluir a tipicidade da conduta, pode desembocar em significativo abrandamento da pena ou até mesmo na mitigação da persecução penal. 4. Não se mostra possível acatar a tese de atipicidade material da conduta, pois não há como afastar o elevado nível de reprovabilidade assentado pelas instâncias antecedentes, ainda mais considerando os registros do Tribunal local dando conta de que o paciente é contumaz na prática delituosa, o que desautoriza a aplicação do princípio da insignificância, na linha da jurisprudência desta CORTE. 5. Quanto ao modo de cumprimento da reprimenda penal, há quadro de constrangimento ilegal a ser corrigido. A imposição do regime inicial semiaberto, com arrimo na reincidência e nos maus antecedentes, parece colidir com a proporcionalidade na escolha do regime que melhor se coadune com as circunstâncias da conduta de furto de bem pertencente a estabelecimento comercial, avaliado em R$ 130,00 (cento e trinta reais). Ainda, à exceção dos antecedentes, as demais circunstâncias judiciais são favoráveis, razão por que a pena-base fora estabelecida pouco acima do mínimo legal (cf. HC 123.533, Tribunal Pleno, Rel. Min. ROBERTO BARROSO), de modo que o regime aberto melhor se amolda à espécie. 6. Ordem de Habeas Corpus concedida, de ofício, para fixação do regime inicial aberto para cumprimento da reprimenda (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC: 135164 MT 4001750-21.2016.1.00.0000, Relator: Min. MARCO AURÉLIO, Data de Julgamento: 23/04/2019, Primeira Turma, Data de Publicação: DJe-170 06-08-2019).
Por maioria de votos (3x2), os ministros da primera Turma - Luiz Fux, Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso, consideraram que para o caso - não caberia aplicação do princípio da insignificância por se tratar de agente reincidente, porém, não concordaram com a aplicação de regime semiaberto, decidindo então, pelo regime inicial aberto. Dos votos vencidos, o Ministro Marco Aurélio não aceitou a tese do Ministério Público Federal que se posicionou pelo regime aberto, indeferindo a ordem. Já a ministra Rosa Weber considerou que o caso se aplica o princípio da insignificância, reconhecendo a atipicidade material.
Assim, percebe-se que nos últimos anos, no âmbito jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal, embora seja possível vislumbrar entendimentos pela aplicação do princípio da insignificância mesmo nos casos que o réu seja reincidente, tal posicionamento não é dominante.
Em relação ao Superior Tribunal de Justiça, em seu histórico de julgamentos sobre a aplicabilidade ou não do princípio da insignificância ao réu reincidente até bem pouco tempo havia uma variação de entendimentos, havendo uma tendência atual para a não aplicação do princípio da insignificância no caso de constante reincidência. É o caso do AgRg no HC 490903/SC:
AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. FURTO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. APLICAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. REINCIDÊNCIA. AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO.
1. As instâncias ordinárias destacaram a dupla reincidência da agravante pela anterior condenação definitiva por crimes de tráfico de drogas e de posse ilegal de arma de fogo, o que, nos termos da jurisprudência desta Corte Superior, é suficiente para obstar a incidência do princípio da insignificância.
2. Agravo regimental não provido (BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. AgRg no HC 490903/SC. Relator Ministro Rogerio Schietti Cruz. Sexta Turma. Julgamento 06/06/2019, publicação DJe 11/06/2019).
No caso acima, apesar do furto de cerveja, bala, iogurte e carne não ser considerado em termos de valor relevante, o agente não foi absolvido devido possuir outros agravantes. A reincidência impediu a aplicação do princípio da insignificância.
Outro julgado trata-se do AgRg no AREsp 1420946 GO 2018/0336615-2:
PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. REINCIDÊNCIA ESPECÍFICA. INAPLICABILIDADE. DECISÃO MANTIDA.
I - Esta Corte tem entendimento pacificado no sentido de que não há que se falar em atipicidade material da conduta pela incidência do princípio da insignificância quando não estiverem presentes todos os vetores para sua caracterização, quais sejam: a) mínima ofensividade da conduta; b) nenhuma periculosidade social da ação; c) reduzido grau de reprovabilidade do comportamento, e; d) inexpressividade da lesão jurídica provocada.
II - Como dito no decisum reprochado, é inaplicável, na hipótese, o denominado princípio da insignificância, tendo em vista que, apesar do pequeno valor da res furtiva, o recorrente é reincidente específico na prática de delitos patrimoniais. Agravo regimental desprovido (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no AREsp 1463296/MG. Relator: Ministro Felix Fischer. Julgamento 25/06/2019. Publicação DJe 01/08/2019).
No caso acima, ainda que se trate de furto de dois frascos de xampu no valor de R$ 23,05 (vinte e três reais e cinco centavos), entenderam os Ministros da Quinta Turma, por unanimidade, não aplicar o princípio da insignificância, devido conduta reiterada do agente.
Verifica-se desta forma que tanto o Supremo Tribunal Federal como o Superior Tribunal de Justiça, tendem atualmente a não aplicação do princípio da insignificância nos casos de réus que praticam delitos reiteradamente.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conforme proposto, esta pesquisa analisou a possibilidade de aplicação do Princípio da Insignificância ao réu reincidente a partir do posicionamento do Supremo Tribunal Federal, bem como da doutrina.
Constatou-se que o Princípio da Insignificância desponta como postulado geral do direito penal que permite a interpretação restritiva do tipo, isto é, opera como um corretivo frente às situações que não poderiam ser antecipadas pelo legislador, afastando, assim, uma reprimenda penal injusta ou desproporcional.
Nessa senda, salientou-se que a corrente predominante no Direito Penal pátrio compreende que a natureza jurídica do Princípio da Insignificância é de causa supralegal de exclusão da tipicidade. Logo, ele legitima que uma ofensa ínfima ao bem jurídico, mas formalmente típica, torne-se atípica sob a perspectiva material, em razão de não se justificar uma repreensão penal na situação.
Em relação as decisões do STF a questão, percebeu-se uma visível oscilação de entendimento no decorrer dos anos, a qual ocorre inclusive dentro das próprias Turmas. Porém, nas últimas decisões do STF, tem-se que o entendimento predominante considera inaplicável o princípio da insignificância ao réu reincidente, principalmente sob o argumento de que a reiteração criminosa demonstra um maior grau de reprovabilidade do comportamento. Este posicionamento também se vislumbra nas mais recentes decisões do Superior Tribunal de Justiça.
Ponderando-se todo o exposto, conclui-se que a aplicação do Princípio da Insignificância depende da visão adotada pelo operador do direito, entretanto, adotando-se a visão teórica da doutrina, a reincidência não se mostraria um óbice ao emprego do Postulado da Insignificância.
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BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus n. 107674, Primeira Turma, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgado em: 30 ago. 2011
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus n. 108872, Segunda Turma, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em: 06 set. 2011
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus n. 106510, Segunda Turma, Rel. Min. Joaquim Barbosa, Rel. p/ acórdão: Min. Celso de Mello, julgado em: 22 mar. 2011
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus n. 120489, Segunda Turma, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgado em: 10 dez. 2013
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus n. 133252, Segunda Turma, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgado em: 15 mar. 2016.
BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. AgRg no HC 490903 / SC. Relator Ministro Rogerio Schietti Cruz. Sexta Turma. Julgamento 06/06/2019, publicação DJe 11/06/2019.
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Formado em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí, Pós-graduado em Direito Contratual pela Universidade Cândido Mendes. Atualmente exerço o cargo de Analista Judiciário do Tribunal Regional Eleitoral do Amazonas (aprovado em 1º lugar); aprovado nos concursos de Delegado de Polícia do Ceará; Delegado de Polícia do PR; Delegado de Polícia do Amazonas e Juiz do Acre.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CASTRO, MARCELO DOS ANJOS DE. A aplicação do princípio da insignificância ao réu reincidente à luz do entendimento dos tribunais superiores Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 29 maio 2023, 04:50. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/61532/a-aplicao-do-princpio-da-insignificncia-ao-ru-reincidente-luz-do-entendimento-dos-tribunais-superiores. Acesso em: 22 nov 2024.
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