WALTER MARTINS MULLER[1]
(orientador)
RESUMO: A presente obra tem o propósito de analisar o transtorno da personalidade antissocial (psicopatia) de acordo com a legislação penal vigente no país, e estabelecer uma relação com a omissão do Código Penal em relação à questão da imputabilidade. Serão examinados alguns conceitos relacionados ao transtorno da personalidade antissocial, de acordo com os estudos realizados por especialistas em psicologia e psiquiatria, abordando suas características peculiares e como a psicopatia é interpretada no âmbito jurídico.Além disso, o artigo discute os principais crimes cometidos por psicopatas no contexto nacional, apresentando casos reais já analisados pelo poder judiciário. Também são abordadas as formas como um sujeito psicopata se comporta em relações sociais e familiares. A questão da imputabilidade do psicopata, que ainda gera divergências, também é tratada nesse estudo. A metodologia utilizada consiste em uma abordagem dedutiva, baseada na revisão bibliográfica de diversos autores das áreas de psicologia e direito, além da análise dos dispositivos legais pertinentes. Dessa forma, a conclusão alcançada pela obra é que os indivíduos portadores desse transtorno devem ser julgados por seus atos de acordo com a legislação penal, levando em consideração as decisões reiteradas dos tribunais e as análises realizadas dentro do atual sistema jurídico nacional. Ademais, são necessárias ações do governo federal no sentido de promover políticas públicas que visem o tratamento adequado dos indivíduos com transtorno de personalidade antissocial.
Palavras-chave: Psicopatia. Doença mental. Direito Penal. Imputabilidade. Crimes violentos.
ABSTRACT: This work aims to analyze the antisocial personality disorder (psychopathy) according to the current criminal legislation in the country, and to establish a relationship with the omission of the Penal Code in relation to the issue of imputability. Some concepts related to antisocial personality disorder will be examined, according to studies carried out by specialists in psychology and psychiatry, addressing their peculiar characteristics and how psychopathy is interpreted in the legal field. In addition, the article discusses the main crimes committed by psychopaths in the national context, presenting real cases already analyzed by the judiciary. The ways in which a psychopathic subject behaves in social and family relationships are also addressed. The question of the psychopath's imputability, which still generates divergences, is also addressed in this study. The methodology used consists of a deductive approach, based on a bibliographic review of several authors in the areas of psychology and law, in addition to the analysis of relevant legal provisions. Thus, the conclusion reached by the work is that individuals with this disorder must be judged for their actions in accordance with criminal law, taking into account the repeated decisions of the courts and the analyzes carried out within the current national legal system. In addition, federal government actions are needed to promote public policies aimed at the appropriate treatment of individuals with antisocial personality disorder.
Keywords: Psychopathy. Mental disease. Criminal Law. Accountability. Violent crimes.
INTRODUÇÃO
A presente obra promoverá uma análise objetiva sobre a figura dos portadores de transtorno da personalidade, visto o desenvolvimento de algumas divergências no campo do direito e da psicologia acerca da efetiva relação da psicopatia com as doenças mentais usuais, pois tal fato gera impacto na área do direito, especialmente, na criminal.
Nesse sentido, de início, é abordado o conceito de psicopatia oriundo da psicologia e do direito, tema cercado de divergências interpretativas já que o portador de transtorno dispõe de igualdade com os demais indivíduos, ocasionando serias dificuldades em sua identificação.
As características gerais dos portadores de psicopatia aglutinam alguns traços: falta de sensibilidade com o próximo, são frios (sem alternância de emoções), desprovidos de sentimento afetivo, sempre tendente ao mal e ao favorecimento próprio.
O estudo busca também ressaltar os riscos que um psicopata pode oferecer à sociedade quando não submetido a um tratamento específico, tendo em vista sua incapacidade de compreensão moral de suas ações, o que torna a pena privativa de liberdade pouco efetiva. O principal objetivo é dar um passo a frente no que concerne a esse transtorno, com o intuito de que cada vez mais pessoas consigam reconhecê-los como indivíduos merecedores de amparo, através da sanção penal adequada.
Por seguinte, existe divergência legal acerca da culpabilidade, tendo em vista a possibilidade de enquadrar o psicopata como doente mental ou normal. Tal fato gera profunda divergência doutrinaria e legal. Alguns interpretam que o portador de transtorno da personalidade antissocial deve ser enquadrado como inimputável, outros asseveram a imputabilidade e a Corrente divergente aduz a semi-imputabilidade.
Por fim, o presente trabalho foi desenvolvido em níveis explicativos: conceito de psicopatia; caracterização do indivíduo; crimes praticados por psicopatas; definição de crime; culpabilidade; imputabilidade e a psicopatia.
1.CONCEITO DE PSICOPATIA
O Transtorno da personalidade (ou psicopatia) decorre de uma anormalidade na formação da personalidade do indivíduo, resultando em vários problemas comportamentais no convívio em sociedade. A pessoa já nasce com fatores psicológicos afeitos à psicopatia. O transcurso do tempo apenas promove seu agravamento. Sua constatação é difícil, merecendo análise clínica, social e psicológica de um profissional habilitado (COLLETTA; VIERO, 2018).
Antes de adentrar ao mérito, é importante promover rasa analise acerca da personalidade, e como ocorre sua formação.
A palavra personalidade possui inúmeros significados no campo das ciências, angariando mais de 50 definições distintas. Entre estas, existe aquela que aduz a personalidade como uma força ativa presente no interior de cada indivíduo; ou fator único de cada pessoa. No mesmo sentido, há alguns teóricos que representam a personalidade como a descrição mais profunda e específica, ou seja, mostra o real interior do ser (COLLETTA; VIERO, 2018).
Segundo Táki Cordás e Mario Louzã (2020), a personalidade é a reunião de todos os fragmentos característicos de cada ser humana, como os atributos físicos, psíquicos, fisiológicos e morais. Segundo os autores, cada indivíduo detém sua própria personalidade, desenvolvida com o decurso da vida, por meios, eventos marcantes ou pela influência familiar, social, pessoal e muitos outros fatores; nunca existiu ou existira dois ou mais indivíduos com a mesma personalidade.
O renomado psicanalista Sigmund Freud desenvolveu a teoria do aparelho psíquico, no qual afirmou que a personalidade é estrutura em três elementos: “id”, “ego” e “superego”. A princípio, “id” é relacionado ao prazer e impulso, presente na zona inconsciente do cérebro, quando o ser humano age por meio dos instintos. Já o “ego” – mediador entre “id” e “superego” - é a parte racional da mente, ligado a memória, sentimentos e pensamentos, decorrendo em ações éticas. Por último, o “superego” decorre da moral, do agir regularmente, conforme os valores e normas de vivência. A respectiva definição é lógica e viável, adotada por grande parcela da doutrina, inclusive, por outras áreas do conhecimento, como nas ciências jurídicas (FREUD, 1932 apud COLLETTA; VIERO, 2018).
Assim, a personalidade é uma construção influenciada por inúmeros fatores sociais e individuais, a partir do nascimento, percorrendo a infância - é o período que mais se desenvolve – e terminado apenas com a morte. Cumpre observar que a fase adulta também pode gerar influências na modificação da personalidade, como eventos traumáticos e situações extremas. Como exemplo, uma pessoa com 40 anos que passa por um sequestro, em que sua família é feita refém por 2 dias, ante o poder de criminosos violentos. Segundo a psicologia, é totalmente plausível que essa pessoa de 40 anos desenvolva algum tipo de modificação comportamental, visto o evento marcante vivenciado.(COLLETTA; VIERO, 2018).
Os autores Dainez e Smolka afirmam que:
[...] Na psicologia individual de Adler, cada pessoa é concebida como uma totalidade integrada dentro de um sistema social. A personalidade, então, corresponde a uma unidade e o seu estudo se orienta para a luta que ela realiza para se desenvolver e exprimir [...] os mais importantes determinantes da estrutura da vida da personalidade se originam nos primeiros tempos da infância [...] sendo que o propósito específico e o efeito particular da vida psíquica não se fundem sobre uma realidade objetiva, mas sobre a impressão subjetiva que o indivíduo teve dos acontecimentos da vida. Cada indivíduo se organiza em função de sua percepção subjetiva do mundo social (2014, p.1098 apud COLLETTA; VIERO, 2018, p.62).
Nessa perspectiva, existem algumas normalidades psicológicas atrofiadas ao desenvolvimento da personalidade do ser humano. A psicopatia, por ser o mérito do presente trabalho, é uma das muitas espécies de distúrbio da personalidade, pois já surge com o indivíduo, longe de ser uma doença alcançada pela convivência social. Cumpre observar que o individuo já possui algumas anormalidades anteriores, ainda no desenvolvimento do aparelho sensórial, e na formação do cérebro.
O Dicionário trata a psicopatia como uma “perturbação da personalidade que se manifesta essencialmente por comportamentos antissociais (passagens a ato), sem culpabilidade aparente”.(AURÉLIO, 2002, n.p.)
Já nos dizeres de Roberto Hare (2013), a psicopatia consiste em um transtorno da personalidade que versa em comportamentos peculiares aos do homem médio. O vínculo com a criminalidade, ações violentas, fraude, mentiras, a supressão da capacidade de correção são alguns dos muitos indícios, que podem ser identificados desde a infância. No entanto, os psicopatas não são loucos, mas, sim, dispõem de um raciocínio frio e calculista. Segundo o autor, na América do Norte existem, no mínimo, 2 milhão de psicopatas, números parelhos a esquizofrenia. Os números retratam o real significado da escalonada dos crimes violentos na America do Norte, no qual os psicopatas têm total relação:
Exemplos dramáticos de psicopatia que surge em nossa sociedade recentemente. Dezenas de livros, filmes e programas de tele- visão, centenas de artigos e manchetes de jornal contam essa história: os psicopatas são porcentagem significativa das pessoas descritas na mídia – serial killers, estupradores, ladrões, trapaceiros, golpistas, espancadores de mulheres, criminosos de colarinho branco, promotores de ações “pilhados” e corretores dependurados em dezenas de telefones, molestadores de crianças, membros de gangues, advogados com licença cassada, barões do tráfico de drogas, jogadores profissionais, membros do crime organizado, médicos com licença cassada, terroristas, líderes de seitas, mercenários e empresários inescrupulosos (HARE, 2013, p.22).
Nessa mesma linha, o psicopata seria aquele desprovido de sentimentos ligados ao afeto, a moralidade, guiado por seus impulsos e suas vontades, não havendo apego por qualquer norma de conduta legal ou moral.
A OMS (Organização Mundial da Saúde), desenvolveu várias listas de doenças, entre estas, as que acometem a sanidade mental – que afeta a personalidade -, condicionando a psicopatia como um transtorno especifico da personalidade (F60), não decorrente de lesão ou doença. Assim, segundo a OMS, a psicopatia tem relação com a baixa tolerância à frustração e um baixo limiar de descarga de agressividade, “inclusive da violência. Existe uma tendência a culpar os outros ou a fornecer racionalizações plausíveis para explicar um comportamento que leva o sujeito a entrar em conflito com a sociedade” (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE, 1993, n.p.).
No entanto, ainda perdura da doutrina muitas dúvidas sobre a psicopatia como uma doença mental, existindo várias correntes conflitantes sobre o tema, longe de ser pacífico. No decorrer do estudo será abordado de forma mais específica esta divergência no âmbito nacional.
1.1 Caracterização
A psicologia trata a personalidade problemática do psicopata como um desvio social, fracionado por condutas impulsivas, descontrole sobre o comportamento, excitação, irresponsabilidade, problemas comportamentais na menor idade e comportamentos antissociais. Podem incidir com maior intensidade ou menor, a depender do indivíduo (HARE, 2013).
Os primeiros sintomas da psicopatia podem surgir ainda na infância, quando a criança começa a apresentar comportamento violento, mentir com muita frequência e, principalmente, agredir animais.
A personalidade dos psicopatas, segundo Kurt Schneider (1980), possui características especificas: hipertímico; depressivo; insegurança de si; fanático; necessitado de valorização; lábil de humor; explosivo; sem índole; sem vontade; e, astênico. Existe a mistura de características, como humor alegre e triste; temperamento vivaz e angustiado; insegurança interior e dominação por várias ideias; falta de confiança e expansivo; necessidade de atenção e oscilações de humor; irritabilidade e reação adversa a qualquer tipo de ato; sem piedade, vergonha ou consciência e frieza; dificuldade de concentração e memória, pouca capacidade produtiva e cansaço (APUD; LOUZÃ, 2020).
Complementando, Costa especifica que: “Após anos de evolução do conceito, hoje, pode-se resumir o conceito de personalidade psicopática, atual antissocial, caracterizada principalmente por ausência de sentimentos afetuosos, amoralidade, impulsividade, principalmente falta de adaptação social e incorrigibilidade” ( 2008, p.247 apud PIMENTEL, 2019, n.p.).
Os sintomas constantes – acrescentando os já tratados – são aparentes nos aspectos emocionais. A facilidade na expressão verbal, em aprofundar em uma conversa ou assunto, a valorização excessiva em suas conquistas próprias (egocentrismo), ausência de remorso ou culpa e, principalmente, grande habilidade em manipulação emocional (HARE, 2013).
Na mesma linha orienta Robert: “Reunidas, as peças desse quebra-cabeça formam a imagem de uma pessoa autocentrada, fria, que não sente remorso, com profunda falta de empatia, incapaz de estabelecer relações emocionais calorosas com os outros; uma pessoa que age sem as restrições da consciência.” (2014, p.18).
O renomado psicólogo canadense, Robert Hare (2013), especialista em psicologia criminal e psicopatia, promoveu um rico estudo com intuito de identificar um psicopata em meio a sociedade. A escala de Robert Hare, nome utilizado até os dias atuais, visa estabelecer 20 pistas fundamentais para conseguir identificar um psicopata. Em resumo, o especialista ira analisar as características sociais do indivíduo: consumo de álcool, drogas, irritabilidade, envolvimento com práticas ilícitas, violência, comportamento escolar e convivência familiar.
Nesse sentido, o diagnóstico arremete a uma análise técnica de um psicólogo ou medica especializado, pois, em muitos casos, a superficialidade do diagnóstico pode resultar em preconceito e segregação.
2 PRINCIPAIS CRIMES COMETIDOS POR PSICOPATAS
Todas as informações direcionam ao fato de que os portadores de psicopatia são afeitos a crimes violentos e cruéis, em que ocorre a “coisificação” do ser humano. Não existe remorso ou arrependimento quanto da prática dos crimes. Inclusive, a crueldade extrema (humilhação e tortura) é uma característica de suas ações, que, em muitas vezes, protelam a consumação do ato com fim de gerar repercussão máxima, chamar atenção do maior número de pessoas e deixar seu nome marcado na história da respectiva localidade.
O sistema penal nacional possui vasta lista de psicopatas condenados por crimes hediondos que comoveram e amedrontaram a sociedade brasileira.
Com a incursão pelo modus operendi dos psicopatas, e sua relação com todas as espécies delitivas, é importante acrescer que os psicopatas representam 15% a 20% da população carcerária. Quando se trata de crimes de violência sexual contra menores, a quantidade varia entre 18% e 45% dos apenados (SILVA, 2020).
Segundo o autor:
Nem todos os criminosos são psicopatas, e nem todos os psicopatas são criminosos. No entanto, a prevalência deles na população carcerária é enorme: na cadeia eles são 20% – e esses 20% são responsáveis por mais de 50% dos delitos graves cometidos por presidiários. Sabe aqueles crimes com crueldade que chocam todo mundo na televisão? Provavelmente existe um psicopata por trás deles. […], Mas o tempo na prisão não muda seu comportamento quando retorna à sociedade. Sua personalidade o compele a novos crimes: sua taxa de reincidência chega a 70%, e apenas a metade deles reduz a atividade criminosa após 40 anos”. (SZKLARZ, 2010, p.12)
Existem inúmeros exemplos de criminosos potenciais que foram diagnosticados com psicopatia: maníaco do parque (condenado há 268 anos de prisão), Pedrinho matador (condenado há 128 anos de prisão) e os canibais de Garanhuns (condenados a 71 anos de prisão). Todos foram condenados pela prática de crimes de extrema violência, como, homicídio, tortura, sequestro, estupro e violência (ALVIM, 2022).
Cumpre aduzir que as vítimas sempre apresentam similaridade, ou seja, um padrão definido. No caso do Pedrinho Matador, a maioria dos crimes foi praticado no sistema prisional, contra homossexuais e “caguetas” (delatores). Enquanto o maníaco do parque, conhecido por seus crimes no centro de São Paulo, nos anos 80, violentava e matava suas vítimas, majoritariamente, mulheres jovens. Por último, os canibais de caranhuns, condenados pela morte de 3 pessoas e pelo uso da carne das vítimas para o preparo de “salvados”, os agentes participavam de uma seita cuja ideia central era a diminuição da população (ALVIM, 2020).
Nesse sentido, a existência de um padrão definido para a prática dos crimes é uma característica peculiar aos psicopatas. Os alvos principais são homossexuais, mulheres, negros, marginalizados ou qualquer grupo minoritário.
Insta observar, porém, que alguns psicopatas são afetos a crimes menos violentos, como, fraude, estelionato, corrupção, negócios escusos ou qualquer outro crime de repercussão (SILVA, 2020).
A ideia de que todos os psicopatas são violentos é a que mais prevalece, porém, a maioria das pessoas que sofrem desse transtorno não são necessariamente agressivos e assassinos. Contudo, eles ainda possuem o desvio e ainda podem manipular os sentimentos das outras pessoas e continuam não sentindo remorso por adotarem este tipo de conduta. Por terem essas características, muitas vezes ocupam cargos de grande relevância, como juízes, advogados, políticos, médicos etc. (MORANA; STONE; ABDALLA-FILHO, 2006).
A psiquiatra Ana Barbosa Silva, autora da obra “Mentes Perigosas”, faz um link entre a psicopatia e os crimes que não envolvem violência, utilizado como exemplo a corrupção: “Todo corruptor contumaz, na minha opinião, é um psicopata. Porque há uma indiferença com a população, há uma inconsequência com seus atos no sentido de não ver o que esta tirando do outro”(2020, p.23).
3 DEFINIÇÃO DE CRIME
A culpabilidade é uma das bases presentes na constituição do fato-crime, em conjunto com a tipicidade e a ilicitude, que, em decorrência do conceito analítico de crime, deverão ser analisadas individualmente, em consonância com o potencial fato criminoso. Primeiro ocorre à verificação da tipicidade, depois da ilicitude e, por último, a culpabilidade.
Visto isto, cumpre observar que para alcançar o raciocínio acerca influencia que a psicopatia pode gerar na análise da culpabilidade, é importante analisar os outros dois elementos constitutivos do crime, resumidamente.
Assim, a doutrina desenvolveu 3 conceitos diversos de crime: sentido formal, material e analítico. Quanto ao sentido formal, o crime é a conduta que furte as normas impositivas editadas pelo Estado. Por outro lado, o conceito material anota o crime como qualquer conduta que viole os pressupostos da convivência em sociedade, não havendo nenhuma norma oriunda do Estado. Por último, o conceito analítico assevera o crime como a cumulação de fato típico, ilícito (ou antijurídico) e culpável, sendo o adotado pelo sistema jurídico brasileiro – sendo, inclusive, o conceito tripartido de crime (GRECO, 2021).
Segundo Luiz Regis Prado (2021), o conceito analítico de crime, adotado pelas normas penais nacionais, permitem uma visão racional, objetiva e igualitária, cuja função se atrela ao Direito positivo vigente.
No mesmo sentido afirma Gueiros e Japiassú:
Em suma, mediante a análise dos pressupostos do conceito do crime permite-se chegar um resultado final adequado e justo. A teoria do crime objetiva colocar limites, por meio da construção de conceitos, possibilitando a aplicação segura e calculável do Direito Penal, subtraindo-o à irracionalidade, ao arbítrio e à improvisação (2018, p.189).
Em decorrência da teoria tripartida, que fixa o crime como a junção de fato típico, ilícito e culpável, existem outros elementos aderidos aos requisitos constitutivos do crime.
Nessa linha, o fato típico é a consunção do fato ao tipo penal. A título de exemplo, todo individuo que mata deve responder pelo crime de homicídio, pois o artigo 121 prevê como crime o ato de retirar a vida alheio. Inclusive, no fato tipico aferida a presença de alguns requisitos: conduta, resultado, tipicidade e nexo causal entre a conduta e o resultado ilícito gerado.
O tipo penal é uma garantia contra ações abusivas do poder estatal, pois existe um conjunto de normas anteriores impossibilita o surgimento de crimes pré-moldados a qualquer indivíduo ou situações expressionais. Assim, o tipo deve ser anterior, sob pena de inexistir a figura ilícita (NUCCI, 2021).
Quando foi identificada a existência da tipicidade, deve, agora, analisar a ilicitude (antijuridicidade) da conduta. Seria a contrariedade da ação (conduta) do sujeito ativo ao regramento legal. Ou seja, cumpre observar se o fato foi desenvolvido em alguma condição anormal, como: Estado de Necessidade, Legitima de Defesa, Estrito Cumprimento do dever legal ou Exercício Regular do direito, todos previstos no artigo 23, do Código Penal (BRASIL, 1940).
Nessa ponto, os autores Pierangeli e Zaffarori (2010, p.510), ante a óptica finalista, aduzem que:
A antijuridicidade é, pois, o choque da conduta com a ordem jurídica, entendida não só como uma ordem normativa (antinormatividade), mas como uma ordem normativa e de preceitos permissivos. O método, segundo o qual se comprova a presença da antijuridicidade, consiste na constatação de que a conduta típica (antinormativa) não está permitida por qualquer causa de justificação (preceito permissivo), em parte alguma da ordem jurídica (não somente no direito penal, mas tampouco no civil, comercial, administrativo, trabalhista etc.) (apud NUCCI, 2021, p.424).
A existência de qualquer das seguintes excludentes de ilicitude torna o fato, até o momento típico, lícito, visto que o desenvolvimento dos fatos se deu em situação adversa ao comum. O sujeito só praticou o fato típico por não dispor de alternativa viável, pois seria resultado, ou estava diante, de alguma conduta que iria ocasionar alguma lesão ou perda, individual ou alternativa.
Nesse sentido, quando verificada a tipicidade e a ilicitude do fato, e não houver nenhuma excludente de ilicitude, a análise do operador do direito ira se voltar para a culpabilidade, ponto fundamental para o desenvolvimento.
4 CULPABILIDADE
O terceiro elemento essencial para a caracterização do ilícito penal é a culpabilidade, que surgiu por intermédio da Teoria normativa pura da culpabilidade, vigente no atual sistema finalista, em que não haverá nova analise acerca da existência do crime ou da ilegitimidade da ação, mas sobre as condições pessoais do sujeito ativo. O individuo é o foco da tríade investigativa.
Na mesma linha, segue o doutrinador Guilherme Nucci (2021), que interpreta a culpabilidade como um juízo de reprovação, incidente sobre o indivíduo e o fato, sendo este imputável, agindo com consciência potencial do ilícito, com total noção da reprobilidade de sua conduta que, podendo agir de outro modo, não o faz.
Em seu turno, Guiros e Japiassú aderem ao seguinte conceito:
É a capacidade de livre autodeterminação. Ou, dito de outra forma, é o conjunto de condições pessoais que dão ao agente a faculdade de atuar de modo distinto, permitindo, assim, que lhe seja atribuída juridicamente a responsabilidade pelo injusto típico. Ausente a imputabilidade, não haverá que falar em liberdade de autodeterminação, sendo, portanto, desculpável pelo fato que praticou (2018, p.340).
Assim, a culpabilidade deve ser interpretada como uma questão ligada a consciência do agente, visto a presença de todos os elementos referentes à existência do crime. Ou seja, decorre da verificação da existência de responsabilidade do autor do fato.
No entanto, cumpre estabelecer os três elementos respectivos à culpabilidade: primeiro é a imputabilidade do agente; segundo, potencial consciência da ilicitude; terceiro, exigibilidade de conduta diversa.
A imputabilidade é o primeiro elemento a ser analisado. Dele é possível alcançar a resposta sobre a sanidade do sujeito ativo, podendo ser imputável ou inimputável. No entanto, para alcançar esta resposta, o sistema penal desenvolveu vários sistemas de aferição da imputabilidade, existindo o Biológico, Psicológico e o Biopsicológico.
O sistema Biopsicológico, adotado atualmente, previsto nos artigo 26 e 28 do Código Penal, estabelece que o diagnóstico da imputabilidade decorre da conjugação de causa e efeito. É imprescindível demonstrar a falta de capacidade mental e a presença dos efeitos da incapacidade no momento da prática do crime. O agente não deve ser apenas portador da deficiência mental, mas deve ter sua capacidade de entender e autodeterminação suprimida, total ou parcial, no instante da consumação. Será realizada uma perícia e expedido um relatório conclusivo (CAPEZ, 2019).
O individuo pode ser declarado como imputável, assim, não apresentava nenhuma divergência metal no instante do fato, mesmo que detenha alguma doença mental. Por outro lado, o inimputável possui sua capacidade metal modificada, seja por algum tipo de doença mental ou modificação da consciência por efeito de algum agente externo – consumo de tóxico, bebidas, pancada na cabeça – no momento do fato, sendo, assim, declarado como inimputável. Já quando ocorre apenas a redução das capacidades mentais será declarado como semi-imputável.
Insta observar que o artigo 26 do Código Penal prevê absolvição imprópria para os inimputáveis, por conta da supressão da capacidade de entender ou de autodeterminação, incorrendo em Medida de Segurança. Para o semi-imputável a sanção pode variar entre o Mandado de Segurança ou a diminuição da pena, consoante o grau de periculosidade gerado pelo indivíduo a sociedade (BRASIL, 1940).
A imputabilidade decorre, assim, de um fator intelectivo, atrelado na capacidade de entendimento, e outro volitivo, sendo a aptidão de equilibrar o próprio animo. Cedendo um desses elementos o sujeito não responderá pelos seus atos (CAPEZ, 2019).
5 IMPUTABILIDADE E A PSICOPATIA
A interpretação doutrinária sobre o transtorno de personalidade relativa à psicopatia é controvertida, pois alguns visualizam como uma situação de explícita ruptura com a pressuposto da culpabilidade, outros reforçam que não deve resultar em qualquer atenuante sobre o sujeito e a corrente divergente observa a semi-imputabilidade dos sujeitos.
A primeira corrente aduz que a psicopatia não compromete a capacidade de entendimento ou autodeterminação do indivíduo, ante a falta de delimitação do conceito de doença mental. Não existem os pressupostos essenciais da culpabilidade. O sujeito portador do transtorno de personalidade tem plenas condições de visualizar as condições anormais de sua conduta e remedia-las, não havendo supressão de sua capacidade intelectiva ou cognitiva no instante da ação, ou omissão (JUNQUEIRA; VANZOLINI, 2019).
Segundo o mesmo autor, tudo muda quando configura uma situação onde o autor apresentava alguma anormalidade mental, o que impossibilitaria sua tomada de decisão racional e lógica.
A brilhante passagem de Tobias Barreto (1886, p.82) ilustra o caminho dos doutrinadores da corrente:
Não há dúvida que, se todas as afecções mórbidas, exclusivas da imputabilidade, tivessem uma rubrica legal, havia mais garantias contra a injusta condenação de alienados, tidos em conta de espírito normais, e não menos injusta absolvição de verdadeiros facínoras, tomados por insensatos. Mas isso será possível? Talvez que não; e esta impossibilidade, que se levanta em terreno comum aos juristas e aos médicos, provém menos do lado do direito do que do lado da medicina. A proposição pode causar uma certa estranheza, porém, não deixa de ser verídica. Na falta de outras provas, bastaria lembrar o seguinte fato: ainda hoje os alienistas psiquiatras não estão de acordo sobre o modo exato de denominar as moléstias mentais, determinar o seu conceito e sujeitá-las a uma classificação. Cada autor apresenta a sua maneira de ver, que pode ser mais ou menos aceitável, mas não é definitiva. (...) A exuberância de termos, que fazem o cortejo de uma ideia, encerra alguma coisa de parecido com o guarda-roupa de um dandy. Assim como este, dentre seus vinte fracs, tem sempre um que mais lhe assenta, ou de dentre as suas cinquenta gravatas, sempre uma, que melhor lhe fica, da mesma forma sucede com o pensamento. A riqueza dos sinônimos não o inibe de achar uma expressão, que mais lhe convenha. Mas isto mesmo é o que não se dá na questão, que nos ocupa. Ao ser sincera, a ciência deve confessar que ainda não chegou a indicar o termo mais apropriado ao conceito de alienação do espírito, e a formular uma definição que se adapte a todo o definido.
Como aduz o autor, a interpretação de tipos normativos abertos, síndromes pouco exploradas e institutos deficientes em estudos causa deformação no desenvolvimento de uma linha argumentativa coerente, pois os doutrinadores e estudiosos estabelecem visões afeitas a sua forma de pensamento, divergindo da razão e da lógica.
Sanches (2012) afirma que as condições pessoais de entendimento surge da conjunção da higidez biopsíquica (possibilidade de visualizar a ilicitude do fato e a saúde mental), maturidade (desenvolvimento físico e mental que condiciona o sujeito nas relações sociais bem adaptadas, distante da assistência de seus representantes, estruturar os pensamentos e dispor de segurança emotiva). O portador de psicopatia não possui anormalidade em sua higidez biopsíquica e em sua maturidade. Não existe disfunção na formação de suas ações, pois são tomadas em alinhamento ao senso advindo de sua própria personalidade.
Michele Abreu (2013), entende que a psicopatia não tem posição de, unicamente, afastar a capacidade de culpabilidade do seu portador. O psicopata não seria detentor de qualquer doença mental, desenvolvimento mental incompleto ou retardado, ou perturbação mental. Mesmo que alguma das formas fosse atribuída, não ensejaria a diminuição ou exclusão da capacidade de entender o caráter criminoso do fato, ou guiar-se em concomitância com tal entendimento.
A outra corrente repudia todos os argumentos oriundos da corrente anterior. Estes interpretam a psicopatia como uma doença mental que acomete a capacidade de compreensão e de autodeterminação:
É a perturbação mental ou psíquica de qualquer ordem, capaz de eliminar ou afetar a capacidade de entender o caráter criminoso do fato ou a de comandar a vontade de acordo com esse entendimento. Compreende a infindável gama de moléstias mentais, tais como epilepsia condutopática, psicose, neurose, esquizofrenia, paranoias, psicopatia, epilepsias em geral etc (CAPEZ, 2019, p.564).
A orientação decorre da sistêmica visão da psicologia, que interpreta a síndrome da personalidade como uma doença que figura no rol (inter)nacional de doenças que acometem a sanidade mental.
O julgado traz o seguinte fundamento:
[O paciente] é portador de perturbação da saúde mental (transtorno da personalidade antissocial ou dissocial), condição que à época do evento não comprometia sua capacidade de entendimento, mas comprometia parcialmente sua capacidade de determinação. Necessita de tratamento psiquiátrico e psicológico, a princípio por tempo indeterminado, em local de onde não possa evadir-se. Requer também o acompanhamento do Serviço Social competente desse Tribunal. Tem periculosidade elevada e vinculada ao seu transtorno mental (APELAÇÃO CRIMINAL Nº 20090110022512APR).
A resolução dessa celeuma reside na semi-imputabilidade, pois o psicopata tem condições de entender o caráter ilícito dos seus atos e até de se comportar de acordo com esse entendimento, mas não vê nenhum problema neles. Assim, serão condenados como pessoas “normais”, tendo a redução do parágrafo único do artigo 26 do Código penal aplicado em sua pena.
Essa conclusão, qual seja, a semi-imputabilidade do psicopata, se dá pelo fato de que, segundo estudos da psiquiatria e conforme já demonstramos ao longo desse escrito não são necessariamente dotados de baixa capacidade intelectual, tendo completo conhecimento quando praticam algum ilícito penal, sabendo distinguir o que é certo do que é errado.
6 CONCLUSÃO
Em síntese, a presente obra analisou a questão do sujeito portador de psicopatia e sua capacidade de responder pelos crimes que comete, em relação ao atual Código Penal vigente no país.
A síndrome da personalidade antissocial, conhecida como psicopatia, emerge a partir das interpretações dos cientistas da psicologia, sendo, de certa forma, negligenciada pelos estudiosos do direito devido à falta de estudos aprofundados que orientem o judiciário e a sociedade acerca dos efeitos gerados por essa síndrome. Portanto, foram realizadas análises específicas sobre o desenvolvimento da psicopatia e suas características.
Os fatos relacionados ao desenvolvimento da personalidade do indivíduo desde a infância até a fase adulta contribuem para o desenvolvimento da psicopatia, mesmo que de maneira velada. Além disso, exploramos informações sobre alguns distúrbios mentais abordados pelo CID-10 e DSM, os quais foram de extrema relevância para chegar à conclusão
de que a psicopatia não é necessariamente uma doença mental, mas sim um transtorno da personalidade.
Em outro momento, apresentamos os principais aspectos da responsabilidade penal, abordando conceitos como culpabilidade e imputabilidade. Concluímos pela semi- inimputabilidade do psicopata, argumentando que esses indivíduos devem ser punidos de acordo com as disposições do Código Penal.
Cumpre ressaltar que este estudo gerou resultados específicos sobre um tema de significativa complexidade, contribuindo para o conhecimento acerca do transtorno da psicopatia e suas consequências jurídicas, além de aprimorar e enriquecer o entendimento da doutrina e o julgamento dos casos. Diante da natureza altamente complexa desse tema, a necessidade de mais pesquisas e estudos aprofundados se fazem imprescindíveis.
Portanto, a conclusão deste artigo instiga a continuidade do debate e o estímulo a mais pesquisas, visando aprimorar o entendimento e fornecer subsídios para a legislação e o judiciário lidarem de forma mais adequada com a questão da psicopatia no contexto do direito penal. Somente assim poderemos promover uma abordagem mais justa, equilibrada e eficaz no tratamento desses indivíduos, considerando tanto a proteção da sociedade quanto a necessidade de tratamento e ressocialização dos portadores desse transtorno.
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[1] docente do Curso de direito do Centro Universitario de Santa Fé do Sul. E-mail: [email protected].
graduanda do curso de Direito do UNIFUNEC - Centro Universitário de Santa Fé do Sul-SP
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ANNA LAURA DE OLIVEIRA FALCãO, . A relação da psicopatia e a culpabilidade no Direito Penal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 28 ago 2023, 04:31. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/62736/a-relao-da-psicopatia-e-a-culpabilidade-no-direito-penal. Acesso em: 22 nov 2024.
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