RESUMO: O presente artigo trata sobre o emprego do instituto da colaboração premiada como meio de obtenção de prova para elucidação de crimes cometidos no bojo das organizações criminosas. Embora exista muitas divergências sobre o tema, parte-se da ideia de que diante das dificuldades probatórias que permeiam a criminalidade organizada, o instituto da colaboração premiada é um importante e válido instrumento de elucidação e que deve ser utilizado de forma excepcional e em consonância com os princípios constitucionais do processo penal. Os objetivos do presente estudo são: retratar características das organizações criminosas que dificultam a investigação através dos meios tradicionais de prova; apresentar controvérsias doutrinárias que circundam a colaboração premiada
ABSTRACT: The following work concerns the usage of plea bargaining as a mean towards the achievement of proof in order to clarify crimes commited inside a criminal organization. Despite the fact that there is great divergence regarding the theme, the idea upon which this work is based, it is that plea bargain is a valid and important tool for the clarification of organized crime, due to the inherent proof achievement difficulty of this sort of crime, and it must be used in a exceptional manner and following the constitutional principles of the criminal law procedure code. The purpose of this study is to portray the characteristics of organized crime that make it tougher to clarify this sort of crime through the traditional means of proof, to present some controversies regarding the plea bargain instrument
1. INTRODUÇÃO
Em uma singela definição, a colaboração premiada consiste na celebração de um acordo processual entre acusação e defesa, onde o acusado ou réu se compromete a auxiliar as autoridades nas investigações, confessando os seus crimes e delatando seus comparsas, e em troca a acusação oferece benefícios processuais como redução de pena, perdão judicial, dentre outros.
Dessa forma, por importar uma postura colaborativa, a celebração do acordo pelo réu em um processo criminal pressupõe a renúncia do acusado a uma posição de resistência ao poder punitivo.
Embora seja comum o uso dos termos “colaboração” e “delação” como sinônimos, há que se registrar a diferença entre eles. A delação premiada está mais ligada a entrega de terceiros integrantes do grupo criminoso para obter benefícios. Por outro lado, a colaboração possui maior complexidade, envolve não uma mera incriminação de terceiros, mas também a revelação sobre questões importantes como o funcionamento da organização, a divisão de tarefas, bem como a possibilidade de recuperar produtos dos crimes. (PEREIRA, 2016, pp. 35-37)
O fato é que a colaboração premiada constitui um importante meio de elucidação de uma criminalidade que, normalmente, conforme foi visto, reúne características que a torna imune aos instrumentos investigativos tradicionais. Assim:
Os dispositivos de reforço investigativo devem ser considerados enquanto se destinem ao enfrentamento das novas manifestações da criminalidade, que trazem consigo exatamente uma noção de emergência investigativa, pela quase impossibilidade de abordá-las de outra forma que não seja por novos expedientes de intensificação das técnicas de apuração. (PEREIRA, 2016, p.28)
A relevância da colaboração premiada é reconhecida também no âmbito internacional[1], sendo mecanismo amplamente utilizado no enfrentamento da criminalidade organizada tanto pela Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional (mais conhecida como Convenção de Palermo, ratificada pelo Brasil em 2004) quanto pela Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (mais conhecida como Convenção de Mérida, ratificada pelo Brasil em 2006), as quais estipulam que os Estados-parte deverão providenciar medidas que estimulem e encorajem a cooperação de integrantes de organizações criminosas com as investigações do Estado, podendo ser o caso inclusive, de celebração de acordos para fins de redução de pena.
Márcio Barra Lima (2015, p. 322) defende a importância do instituto, afirmando que o mesmo se harmoniza com os fins de justiça, pois ao incrementar a qualidade das provas, permite-se que o juiz realize uma atividade cognitiva mais profunda, e, portanto, mais próxima o possível da realidade fático-histórica.
De fato, dispondo de um acervo probatório substancial, o julgador tem mais chances de realizar um julgamento justo, seja no sentido de condenar ou de absolver.
Outro ponto importante no trato do tema em digressão é consignar a natureza jurídica do acordo de colaboração premiada.
No julgamento do Habeas Corpus 127.483/PR, de relatoria do Ministro Dias Toffoli, o Supremo Tribunal Federal assentou o entendimento de que a natureza jurídica do acordo de colaboração premiada é de meio de obtenção de prova. Em seu voto, o Relator consignou o seguinte:
Como se observa, a colaboração premiada, como meio de obtenção de prova, destina-se à “aquisição de entes (coisas materiais, traços [no sentido de vestígios ou indícios] ou declarações) dotados de capacidade probatória”, razão por que não constitui meio de prova propriamente dito. Outrossim, o acordo de colaboração não se confunde com os depoimentos prestados pelo agente colaborador. Enquanto o acordo de colaboração é meio de obtenção de prova, os depoimentos propriamente ditos do colaborador constituem meio de prova, que somente se mostrarão hábeis à formação do convencimento judicial se vierem a ser corroborados por outros meios idôneos de prova. (HC nº 127.483/PR, Rel. Min Dias Toffoli, Pleno/STF – Sessão 27/08/2015)
Dessa forma, a colaboração premiada não é prova em si, mas um meio de obtenção de prova, o que significa dizer que sua função é precipuamente “abrir caminhos” para a atividade investigativa do Estado. Assim, o instituto não elimina o ônus probatório da acusação, e as declarações do colaborador, tanto em relação a suas confissões, quanto às informações sobre terceiros, não possuem o condão de, por si só, afastar o Princípio da Presunção de Inocência.
Demonstrada a relevância do instituto, há, contudo, que se registrar que, por se caracterizar como um meio de obtenção de prova de caráter mais invasivo as liberdades individuais, é necessário que o uso da colaboração premiada se dê nos casos em que realmente haja uma necessidade, para fazer frente a um tipo de criminalidade que se esquiva dos meios investigativos tradicionais. Portanto, trata-se de instituto marcado pela excepcionalidade.
Com efeito, a criminalidade organizada possui contornos e formações históricas peculiares de acordo com a parte do mundo na qual se manifesta, possuindo, a depender da região, diferentes raízes e configurações. No Brasil, o surgimento do crime organizado teve como antecedente o cangaço, movimento que reunia jagunços e capangas nordestinos. Sob o comando de Lampião, passaram a efetuar saques em feiras e fazendas do sertão nordestino, bem como a raptar pessoas importantes com intuito de exigir pagamentos de resgate. Registra-se que os cangaceiros contavam com o apoio de alguns policiais corruptos para a aquisição de armamentos e com a complacência de alguns políticos importantes. (SILVA, 2009, pp. 8-9).
A partir da década de 70, começaram a surgir organizações criminosas no seio do caótico sistema prisional carioca, como Falange Vermelha, Comando Vermelho, Terceiro Comando. Nos anos 90, também surgiram organizações nas penitenciárias de São Paulo, a exemplo do Primeiro Comando da Capital – PCC. Essas organizações são dedicadas mais especialmente ao tráfico de drogas. (SILVA, 2009, pp. 10-12).
Ainda nesse contexto da criminalidade organizada, diversos escândalos nacionais envolvendo grandes esquemas de corrupção – tais como Mensalão[2] e Operação Lava Jato[3] - trazem à tona a existência de organizações criminosas estruturadas nos mais altos escalões dos poderes da República.
É possível dizer que a atuação do crime organizado normalmente é fortalecida onde o Estado se faz ausente, seja essa ausência referente às lacunas deixadas pelas proibições ou pela ausência de políticas públicas básicas.
Na atualidade, tendo em vista o contexto da globalização e dos avanços tecnológicos, as organizações criminosas geralmente apresentam moldes de uma estrutura empresarial, muitas vezes com atuação transnacional, bem como possuem uma grande capacidade de esquiva às investigações e ao poder punitivo, o que se dá em razão de algumas características que serão retratadas a seguir.
Segundo Marcelo Rodrigues da Silva (2017, p.288) uma dessas características diz respeito ao modus operandi do crime organizado, que se apresenta muito diferente do modus operandi nos crimes clássicos. Enquanto nestes tem-se agressor e vítima individualizados, bem como condutas mais ostensivas e mais delimitadas no espaço e vestígios mais facilmente rastreáveis, naquele, o sujeito passivo é difuso (sociedade), as condutas geralmente são não ostensivas e o poder econômico e tecnológico do qual dispõe possibilita uma eficaz ocultação dos vestígios deixados por ocasião dos delitos.
Além disso, possuem uma estrutura de organização complexa e hierarquizada que dificulta a identificação dos seus integrantes, principalmente daqueles que comandam a máquina criminosa, pois tais pessoas geralmente não executam pessoalmente as condutas típicas. (MASSON e MARÇAL, 2017, p.47)
Essa estrutura hierarquizada – mais notadamente em forma piramidal –apresenta-se da seguinte forma: na base está a grande massa dos “soldados”, executores de ordens e testas-de-ferro e no topo estão os detentores do domínio do funcionamento da empresa criminosa. Estes normalmente atuam de forma não ostensiva –posto que emitem as ordens, enquanto seus subordinados as executam – e geralmente dispõem de grandes fortunas ou são integrantes da classe política e do alto empresariado, o que lhes confere alto poder de corrupção e subordinação. Assim, os chefões do crime organizado dificilmente são identificados. (SILVA, 2009, p.19)
Destaque-se ainda, que o rigor organizacional, consistente na divisão interna de tarefas e na profissionalização dos seus membros, aliado ao grande poder de intimidação contra aqueles que ameacem expor as empreitadas criminosas, são características que permitem agir sem deixar rastros, dificultando sobremaneira a atividade investigativa do Estado.
Outra característica que merece ser destacada é o fato de que esse tipo de criminalidade se mostra como detentora de uma substancial capilaridade dentro dos poderes constituídos. Segundo Flávio Cardoso Pereira apud Cleber Masson e Vinícius Marçal (2017, p. 42), o crime organizado afixa seus tentáculos nos poderes públicos estatais, facilitando a prática de corrupção e impunidade de eventuais delitos, e por estarem no centro de poder conseguem manter-se blindados contra ações preventivas ou repressivas da persecução penal. Inclusive, geralmente essa penetração ilícita possibilita que, mediante financiamento de campanhas políticas, se consiga inserir outros integrantes da organização em posições estratégicas do governo.
Ainda como elemento que contribui para a camuflagem das organizações criminosas está o amplo acesso às modernas tecnologias, as quais permitem a ocultação ou dissipação de provas incriminadoras. A esse respeito, Eduardo Araújo da Silva (2009, p.31) colaciona que:
Ainda uma forma mais sofisticada de impedir a obtenção da prova vem sendo constatada pelas autoridades europeias: com o desenvolvimento nos último anos - tanto no plano legal, como no campo tecnológico - do emprego de técnicas de interceptação ambiental ou de vigilância eletrônica, os integrantes de algumas organizações criminosas passaram a adquirir equipamentos eletrônicos, geralmente com tecnologia superior àqueles utilizados pela polícia, que facilmente identificam a presença de microfones ocultos ou microcâmeras instalados nos ambientes por eles frequentados (moradias, hotéis, escritórios etc.) comprometendo assim a obtenção da prova(...)
Nesse mesmo sentido, destaque-se a existência de um rigoroso código de conduta lastreado na “lei do silêncio”, a qual comumente é mantida à base de coação e ameaças aos pretensos dissidentes da organização e aos seus respectivos familiares. O descumprimento desse pacto de silêncio em muitas vezes tem como punição a morte. (SILVA, 2009, p.17).
Diante das características que foram expostas acima, é possível perceber a razão por que os meios de prova tradicionais se mostram insuficientes para elucidar essa complexa forma de criminalidade. As provas testemunhais, por exemplo, são escassas se for levado em conta a “lei do silêncio” entre os membros da organização, bem como o alto poder de intimidação e ameaça contra terceiros que porventura tomem conhecimento acerca dos fatos criminosos.
As provas documentais e periciais, em regra, são igualmente escassas, em razão da grande capacidade de ocultação de vestígios. Aliás, nesse sentido é preciso destacar que, muitas vezes, essas organizações, através do uso de seu poder econômico, cooptam ou corrompem agentes públicos para que acobertem sua situação.
Dessa forma, é insuficiente a utilização exclusiva dos tradicionais métodos de investigação (como requisição de documentos, oitiva de testemunhas, busca e apreensão) para elucidar as atividades de uma organização criminosa. São necessárias técnicas especiais de investigação para desvendar, ainda assim com dificuldade, o funcionamento da criminalidade organizada e seus membros. (MASSON e MARÇAL, 2017, p. 108).
Portanto, para uma criminalidade especial, surge a necessidade de adoção, dentro das balizas impostas pelos direitos fundamentais, de métodos de investigação especiais, os quais atualmente encontram-se regulamentados pela Lei 12.850/2013, e é nesse contexto que será apresentada a importância da colaboração premiada como instrumento de elucidação de organizações criminosas.
2 CONTROVÉRSIAS DOUTRINÁRIAS E O DEBATE EFICIENTISMO X GARANTISMO PENAL
A colaboração premiada, uma vez que se relaciona com a justiça penal consensual, é tema gerador de grandes embates doutrinários. Embora não seja o objetivo central do presente estudo, entende-se pertinente fazer uma breve exposição das discussões atualmente aventadas acerca do tema, bem como demonstrar qual o pano de fundo teórico-ideológico que está por trás de tais controvérsias.
Os embates teóricos que se desenham no tema da colaboração premiada pertencem a um ambiente de debate mais amplo, que remete ao campo de tensão entre o garantismo e o eficientismo penal.
Pretende-se, nesse tópico, retratar algumas das críticas que são formuladas por expoentes no campo da produção dogmática em matéria processual penal a respeito da colaboração premiada, sem, no entanto, fazer qualquer aprofundamento ou análise mais detida acerca dessas críticas .
Deixando de lado polarizações taxativas e indevidas, e atendo-se a uma análise mais genérica, é possível afirmar que, de um lado, os defensores do instituto inclinam-se ao entendimento de que o direito penal – aqui compreendido em seu sentido mais amplo, abrangendo o direito substancial e processual – possui uma dupla função: a de garantir os direitos individuais do réu/acusado, mas também a função de tutelar de forma efetiva os bens jurídicos mais relevantes de uma sociedade, através da elucidação dos crimes e responsabilização dos seus autores.
Nessa esteira de pensamento, Frederico Valdez Pereira (2016, p. 86) aduz que as ameaças aos direitos fundamentais não provêm apenas do Estado, mas também dos próprios indivíduos. Dessa forma, nesse caso, haveria que se reconhecer que o Direito Penal não visa somente conter o poder punitivo estatal, mas também deve funcionar como instrumento de proteção a interesses, bens e valores de alto relevo social que o sistema de justiça criminal – e, de modo destacado, o subsistema de segurança pública- está voltado a proteger.
Assim, para tal corrente doutrinária, o direito penal e as políticas criminais devem buscar o equilíbrio entre o respeito às garantias individuais e uma resposta estatal eficiente frente a criminalidade, de forma que, em algumas circunstâncias, “os direitos de liberdade deverão, em determinada medida, ceder para a satisfação do interesse público investigativo” (PEREIRA, 2016, p.109), e a intensidade destas restrições irá variar conforme o grau de ameaça à segurança e ao grau de agressão da criminalidade que se visa combater.
A Constituição Federal de 1988 procurou traduzir o anseio de equilíbrio no processo criminal entre a importância da resposta penal e o respeito aos direitos do acusado, assim o é que contemplou tanto dispositivos destinados as garantias individuais frente ao poder punitivo quanto dispositivos relacionados a um dever de proteção estatal, a exemplo do mandado de criminalização inserto no art. 5º, XLIII[4]. (FERNANDES, 2006, p. 4)
Também nesse sentido, Frederico Valdez Pereira (2016, p. 92) entende que existem deveres estatais de prevenção de crimes com respaldo constitucional, ideia essa que “deve ser acolhida, ao menos, como um indicativo importante, apontando para uma resposta que não parece passar pela indiferença do aparelho repressivo estatal ante o fenômeno da emergência investigativa quando envolve delitos de especial gravidade”.
Não obstante seu posicionamento favorável ao instituto, o autor menciona a existência de críticas que não podem ser desconsideradas, e nesse sentido ressalta aquelas dirigidas às pressões aos acusados para celebração do acordo, tal como a estratégia da acusação em enrijecer sua atuação com relação àqueles que porventura não concordarem em aderir ao acordo, justamente como mecanismo para coagir os acusados a optarem pelo caminho das negociações processuais. Ressalta, ainda, os riscos de má-utilização das prisões preventivas como instrumento provocador da adesão do acusado ao acordo. (PEREIRA, 2016, pp. 76-77).
Porém, críticas como a dos riscos de atitudes coercitivas em face do acusado não implicam, de pronto, a incompatibilidade do instituto dos arrependidos com o modelo constitucional vigente. A (in)validade do acordo deve ser analisada segundo o caso concreto, sendo certo que se houver qualquer tipo de coerção (seja mediante prisão provisória indevida ou ilegal ou ameaças de condenações mais severas) o juiz não poderá homologá-lo.
Aliás, foi com o intuito de repelir tais riscos que a Lei 12.850/2013, em seu art. 4ª, § 7º previu que o juiz só poderá homologar o acordo de colaboração premiada após verificar que sua celebração se deu de forma efetivamente voluntária, e inclusive, nessa aferição, poderá ouvir o acusado reservadamente.
Por outro lado, há que se mencionar o fundamento das críticas formuladas por aqueles que se posicionam de forma contrária à colaboração premiada. Esse fundamento, geralmente, consiste na ideia de que não seria concebível um equilíbrio entre garantismo e negociações que visem maior eficiência ou incrementem o poder de persecução penal, pois estas desnaturariam a essência do processo como garantia.
Para Luigi Ferrajoli (2010, p. 560), as negociações entre imputado e acusação que visem uma postura colaborativa daquele seriam incompatíveis com um modelo de processo penal garantista.
Para o autor, essas transações são problemáticas porque, dentre outras questões, seriam violadoras do nexo retributivo entre pena e delito, haja vista que a penalidade leva em conta não o fato praticado, mas fatores como a conduta processual do réu e as estratégias de defesa. Haveria também, violação ao princípio do contraditório, devido a uma suposta confusão de papéis entre as partes, bem como ao princípio da igualdade penal, pois os que cometeram crimes graves (e naturalmente possuem alto poder de barganha) podem conseguir grandes reduções de penas, enquanto os que teriam cometido delitos menos graves, recebem punições mais severas, já que não têm tanto poder de barganha. (FERRAJOLI, 2010, pp. 691-692).
Consigne-se, também, que para o autor “a negociação entre acusação e defesa é exatamente o oposto do contraditório, que é próprio do método acusatório, e reclama acima de tudo práticas persuasórias consentidas pelo segredo, na relação ímpar que é própria da inquisição” (FERRAJOLI, 2010, p. 690).
Ponto importante a ser destacado é sobre a eticidade do instituto em comento. Autores como Roberto Soares Garcia[5], Rômulo de Andrade Moreira[6] e Cezar Roberto Bittencourt a veem como instituto incompatível com a ética, pois estaria o Estado institucionalizando a traição e a deslealdade entre as pessoas. Nesse sentido as palavras de Bittencourt (2017) quando alega, em artigo denominado “Delação premiada é favor legal, mas antiético”[7], que:
Não se pode admitir, sem qualquer questionamento, a premiação de um delinquente que, para obter determinada vantagem, “dedure” seu parceiro, com o qual deve ter tido, pelo menos, uma relação de confiança para empreenderem alguma atividade, no mínimo, arriscada, que é a prática de algum tipo de delinquência.
Por outro lado, os defensores da prática apresentam a seguinte ponderação, bem sintetizada por Américo Bedê Freire Júnior e Willy Potrich da Silva Dezan (2017, pp. 53-54): a preservação da ética criminosa não é uma pauta legítima do Estado, não sendo um bem fundamental a ser resguardado às custas das mazelas sociais geradas pela criminalidade organizada. Por conseguinte, antiético seria o Estado se abster de utilizar meios legítimos de persecução penal em nome de uma suposta necessidade de proteger a interligação de criminosos.
Nessa direção, elucidativas são as palavras de David Teixeira de Azevedo (2014):
A ética que define a delação premiada está comprometida com a afirmação dos valores essenciais de convivência (proteção de bens jurídicos fundamentais à vida em sociedade) sobre os desvalores próprios de um determinado grupo criminoso, cuja proeminência axiológica encontra-se na fidelidade que deve interceder entre os membros da organização delituosa ou entre os comparsas do crime.
Vê-se do exposto, que a corrupção político-administrativa equivale à negação da ética e ao desvirtuamento do bom funcionamento da sociedade, ensejando muitas vezes o desvio de recursos que seriam destinados à educação, à saúde, a programas sociais e ao bem-estar coletivo. A conduta nesse tipo de criminalidade revela sim um desvalor ético, e não uma ética merecedora de proteção do Estado. Assim, não há como alegar que um recurso que visa desmantelar essas atividades criminosas extremamente nocivas seria contrário a noção de ética.
Ademais, registrem-se algumas críticas no sentido de que a colaboração processual seria violadora de um devido processo legal (aqui entendido como caminho percorrido em contraditório para se chegar a uma verdade aproximativa), do direito de defesa e de não autoincriminação.
Essas questões serão tratadas ao longo do trabalho, mas adiante-se de logo que o entendimento aqui adotado é no sentido de que não haveria violação do princípio da verdade aproximativa, pois diferentemente da plea bargaining de matriz anglo-saxônica, em que a assunção de culpa encerra o processo e acarreta em renúncia a um julgamento, na colaboração premiada existe processo e julgamento, só podendo haver condenação com base num conjunto probatório a ser apreciado pelo juiz, posto que as declarações e confissões do imputado não são suficientes para condenar.
A celebração do acordo em si também não viola o direito de defesa, posto que o acordo pode ser, inclusive, utilizado como uma forma de estratégia da defesa. Frise-se ainda que todos os atos que envolvam a negociação deverão obrigatoriamente ser feitos com a assistência de advogado, conforme dispõe o art. 4º, §15, da Lei 12.850/2013.
Por fim, não se vislumbra violação ao direito de não-autoincriminação, pois, como se verá adiante, a adoção ou não de uma posição de resistência em face do poder punitivo diz respeito, na verdade, ao direito de autodeterminação do imputado. Assim, desde que o acordo seja celebrado em obediência ao requisito legal da voluntariedade, não há que se falar em violação ao direito de não se autoincriminar.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Foi destacado no presente trabalho que as organizações criminosas, notadamente aquelas com infiltração no bojo do próprio Estado, reúnem algumas características que as permitem atuar de forma camuflada e dissimulada, dificultando sobremaneira a atividade investigativa. Uma das consequências desse cenário é a perpetuação da ausência de resposta penal a uma forma de criminalidade bastante nociva à sociedade e que, muitas vezes, compromete a higidez das instituições e a confiança no Estado.
Verificou-se, assim, que as organizações criminosas normalmente possuem uma estrutura empresarial e complexa, onde seus membros ocupam diferentes escalões e desempenham atribuições específicas, de forma que essa divisão de tarefas permite uma alta especialização e uma atuação profissional que raramente deixa rastros. Também em decorrência da estrutura escalonada e hierarquizada, dificilmente é possível identificar o grande chefe da empresa criminosa, pois este, em regra, apenas emite as ordens, mas não executa diretamente as infrações.
Além disso, evidenciou-se como marca desse tipo de criminalidade um substancial poder de corrupção de agentes públicos e de penetração nos poderes constituídos, o que facilita sobremaneira uma atuação mais livre e longe de persecuções.
Há que se destacar ainda que o modus operandi do crime organizado é um fator que permite sua camuflagem, tendo em vista que não deixa vestígios evidentes. Além disso, registre-se a existência de um rigoroso código de silêncio entre os integrantes bem como o alto poder de intimidação contra eventuais testemunhas que tenham conhecimento dos fatos criminosos.
Destaque-se, ainda, que enquanto na criminalidade tradicional existem sujeito ativo e passivo bem delimitados e identificáveis, na criminalidade organizada o sujeito passivo possui um caráter mais difuso ou mesmo abstrato. Assim, dificilmente é possível dispor das “declarações da vítima” como meio de prova diante desse tipo de criminalidade.
Constatou-se, dessa forma, que os meios probatórios tradicionais como provas documentais, periciais e testemunhais raramente são aptas, por si só, a evidenciarem o modo de funcionamento da organização criminosa e a reconstituírem os crimes cometidos em seu bojo.
Buscou-se demonstrar assim a necessidade de se fazer valer novos expedientes de investigação e elucidação de crimes complexos. Nesse contexto, buscou-se estudar o tema da colaboração premiada como meio excepcional de obtenção de prova previsto e disciplinado pela lei 12.850/2013 (Lei das Organizações Criminosas).
É reconhecido que o instituto da colaboração premiada não é um tema pacífico no meio jurídico. Nessa esteira, registrou-se que aqueles que se posicionam de forma favorável ao instituto normalmente partem do pressuposto de que há necessidade de reforçar as ferramentas investigativas do Estado na persecução da criminalidade organizada. Por outro lado, os que se posicionam contra o instituto, normalmente entendem que os espaços de consenso no âmbito penal ensejam riscos de lesões às garantias individuais do imputado.
Assim, é possível vislumbrar que as discussões em torno da colaboração premiada são substancialmente marcadas pelo campo de tensão entre as exigências de observância das garantias do devido processo penal e as de eficiência no processo penal.
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SILVA, Marcelo Rodrigues da. A colaboração premiada como terceira via do direito penal no enfrentamento à corrupção administrativa organizada. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, vol.3, n.1,2017. Disponível em: http://bdjur.stj.jus.br/jspui/handle/2011/109196 Acesso em 17/11/2017.
VASCONCELLOS, Vinícius Gomes de; LIPPEL, Mayara Cristina Navarro. Críticas a barganha no processo penal: inconsistências do modelo proposto no projeto de Código de Processo Penal (PLS 156/2009). Quaestio Iuris. Rio de Janeiro, v.09, n. 03, 2016. Disponível em: http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/quaestioiuris/article/view/20135/17956. Acesso em 19/03/2018.
[1] Na Convenção de Palermo, o seu artigo 26 estabelece que “1. Cada Estado Parte tomará as medidas adequadas para encorajar as pessoas que participem ou tenham participado de grupos criminosos organizados: a) A fornecerem informações úteis às autoridades competentes para efeitos de investigação e produção de provas (...) 2. Casa Estado Parte poderá considerar a possibilidade, nos casos pertinentes, de reduzir a pena de que é passível arguida que coopere de forma substancial na investigação ou no julgamento dos autores de uma infração prevista na presente Convenção”. Na Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (Convenção de Mérida, ratificada pelo Brasil em 2006) prevê em seu artigo 37.2 que: “Cada Estado Parte considerará a possibilidade de prever, em casos apropriados, a mitigação da pena de toda pessoa acusada que preste cooperação substancial à investigação ou ao indiciamento dos delitos qualificados de acordo com a presente Convenção.”
[2] Escândalo de corrupção política ocorrido entre os anos de 2005 e 2006, consistente na compra de votos de parlamentares do Congresso Nacional brasileiro. O nome “mensalão” vem da ideia de uma mesada que era paga aos parlamentares para que votassem a favor dos interesses do poder Executivo. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/infograficos/2012/07/30/o-escandalo-do-mensalao.htm Acesso em 09/04/2018.
[3] A Operação Lava Jato teve início em março de 2014, com investigações voltadas para apurar organizações criminosas envolvendo doleiros que praticavam crimes financeiros com dinheiro público. O nome da operação se deu razão da descoberta de uma rede de postos de combustíveis e lava jato de veículos que eram utilizados para movimentação do dinheiro ilícito. No desdobramento dessas investigações, foi descoberto um grande esquema de corrupção existente na Petrobrás, onde várias empreiteiras formavam um cartel para “lotear” entre elas as contratações com a referida empresa pública. Nessas contratações, que eram superfaturadas, havia pagamentos de propinas variáveis entre 1% a 5 % do valor do contrato, e esses valores se destinavam a partidos políticos, empresários, funcionários da Petrobrás. Disponível em: https://arte.folha.uol.com.br/poder/operacao-lava-jato/#capitulo1. Acesso em 12/03/2018.
[4] O art. 5º, XLIII da CF dispõe que “ a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evita-los, se omitirem;”.
[5] Em seu artigo “Delação Premiada: ética e moral, às favas!”, o autor afirma que um Estado democrático jamais pode incentivar condutas antiéticas, “ainda que, no final a sociedade possa se locupletar dessa violação”. A delação é sempre ato antiético, pois a própria vida em sociedade pressupõe a extirpação da traição das relações entre as pessoas. Sustenta que a delação feita por infratores da lei contra outros marginais ainda assim fere a ética, pois a imoralidade é intrínseca à traição, não valendo, aqui, a regra matemática em que “menos com menos dá mais”. Disponível em: https://www.ibccrim.org.br/boletim_artigo/3158-Delacao-premiada-etica-e-moral-as-favas Acesso em 12/03/2018
[6] Em artigo intitulado “A Delação Premiada no Direito Brasileiro”, Rômulo de Andrade Moreira defende que “o Estado deve sempre indicar condutas sérias, moralmente relevantes e aceitáveis, jamais ser arcabouço de estímulo a perfídias, deslealdades, aleivosias (...)”. E acrescenta que “não podemos nos valer de meios esconsos, em nome de quem quer que seja ou de qualquer bem, sob pena, inclusive, de sucumbirmos à promiscuidade da ordem jurídica corrompida”. Disponível em: http://www.ibadpp.com.br/wp-content/uploads/2013/04/A-dela%C3%A7%C3%A3o-no-Direito-brasileiro-Romulo-Moreira.pdf Acesso em 12/03/2018
[7] Disponível em: https://www.conjur.com.br/2017-jun-10/cezar-bitencourt-delacao-premiada-favor-legal-antietico. Acesso em 12/03/2018
formada em Direito pela Universidade Federal de Sergipe. Assessora Jurídica no Ministério Público Federal em Sergipe
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SANTOS, Vivian Leite. Colaboração premiada: compreendendo discussões acerca do instituto e sua importância no combate ao crime organizado. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 12 jan 2024, 04:49. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/64456/colaborao-premiada-compreendendo-discusses-acerca-do-instituto-e-sua-importncia-no-combate-ao-crime-organizado. Acesso em: 22 nov 2024.
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