Resumo: O presente artigo visa problematizar a importância da decisão saneadora sob a ótica da vinculação aos precedentes introduzida pelo Código de Processo Civil de 2015. Busca-se teorizar a questão sob um novo olhar, que pretende extrair do dispositivo legal inserto no art. 357 do CPC, não só a importância já reconhecida pelos doutrinadores, quanto a estabilização das questões controvertidas e o encerramento do que seria a primeira fase do procedimento comum, mas a sua intrínseca relação com a uniformização da jurisprudência, à luz da vinculação dos precedentes. O intuito é relacionar a delimitação das questões de fato e de direito sobre as quais irá recair a atividade probatória com a consequente incidência dos precedentes vinculantes ou seu distinguishing. Nessa linha, em termos práticos, havendo alegação das partes quanto a aplicabilidade de algum precedente ou súmula, deve o magistrado, quando do saneamento do processo, indicar com precisão, quais provas devem ser produzidas pelas partes a fim de confirmar ou infirmar a aplicação da jurisprudência vinculante, garantindo assim, a estabilidade, integridade e coerência das decisões judiciais, bem como reforçando o contraditório substancial.
Palavras-chave: Decisão; saneadora; vinculação; precedentes; atividade; probatória.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2.A decisão de saneamento e organização do processo. Função prospectiva. 3.O direito à prova como corolário da decisão saneadora. 4.O dever de fundamentação da decisão saneadora sob o pálio dos padrões decisórios. 5.Da vedação à decisão surpresa e sua correlação com a decisão saneadora. 6.Do sistema de vinculação de precedentes. Padrões decisórios. 7.A eficácia prospectiva da decisão saneadora à luz da vinculação aos precedentes. 8.Da estabilidade da decisão saneadora à luz da possibilidade de eficácia ex tunc dos precedentes vinculantes. 9.Da aplicabilidade da tese desenvolvida. 9.1. Caso hipotético – temas repetitivos 952 e 1016 do Superior Tribunal de Justiça. 9.2. Caso concreto – processo nº 5016945-36.2022.4.02.5101 – 3ª Vara Federal de Execução Fiscal do Rio de Janeiro. 9.3. Caso concreto – processo nº 0220321-06.2019.8.19.0001 – 10ª Vara Cível da Comarca da Capital/RJ. 10.Considerações finais. 11.Referências.
1.Introdução.
A decisão de saneamento e organização do processo disposta no art. 357 do Código de Processo Civil é nominada, por muitos doutrinadores, como a interlocutória mais importante proferida nos autos e seria a decisão que encerraria a primeira fase do “procedimento bifásico” identificado por Alexandre Câmara, para quem:
“Isto decorre do fato de que o procedimento comum é organizado – nos mesmos termos do que se dá os procedimentos cognitivos dos mais modernos sistemas processuais contemporâneos – em duas fases bem distintas, a primeira, que pode ser chamada de fase introdutória, destinada à preparação do processo para chegar à resolução do mérito; a segunda, fase principal, destinada à instrução e julgamento.” (Câmara, 2016: p.215)
Da análise do texto no qual o legislador enumerou em cinco incisos quais seriam as providências a serem adotadas pelo magistrado para sanear e organizar o processo, facilmente se confirma a relevância dessa decisão, que como o próprio nome indica, saneia as questões processuais pendentes e delimita as questões fáticas e jurídicas relevantes para a controvérsia trazida à juízo, definindo, consequentemente, a atividade probatória a ser produzida e a quem incumbirá esse ônus.
Importante atentar, que na linha do tempo da marcha processual, essa decisão será proferida após a apresentação da contestação, excluindo-se as hipóteses de improcedência liminar do pedido; julgamento antecipado do mérito; extinção do processo sem resolução do mérito ou com resolução do mérito, nos casos dos incisos II e III do art. 487 CPC.
Dentre os provimentos jurisdicionais anteriores, cabe destacar a decisão de improcedência liminar do pedido prevista no art. 332 CPC, na medida que os seus quatro incisos apresentam hipóteses relacionadas a vinculação da jurisprudência, denotando que se o pedido formulado contrariar, de plano, qualquer dos vetores elencados pelo legislador, a demanda sequer chegará a fase de conhecimento.
Todavia, caso não seja caso de improcedência liminar, não se encontra descartada a possibilidade de reconhecimento, pelo magistrado, da incidência de algum precedente vinculante quando da prolação da sentença, seja reconhecendo sua aplicabilidade ou decidindo pelo distinguishing. E é a partir dessa premissa que será desenvolvido o presente artigo.
Com efeito, a temática dos precedentes encontra-se intrinsicamente relacionada com a atividade probatória, notadamente aquela que é determinada na decisão saneadora, posto que será através das provas, que as partes poderão defender suas teses baseadas em algum precedente, ou, refutar sua incidência.
Como se vê, extrai-se da decisão de saneamento e organização do processo, um novo desdobramento para a segunda fase do procedimento comum – instrução e julgamento – conferindo ao magistrado o ônus processual de incluir um capítulo na decisão saneadora, nos casos de alegações pelas partes ou mesmo do magistrado, entender pertinente a incidência de algum precedente e/ou súmula vinculante, definindo quais são essas questões de fato e de direito, e que provas devem ser produzidas para ratificar ou não o uso do precedente, em atendimento ao contraditório substancial e a fim de dar concretude ao princípio constitucional da duração razoável do processo.
2.A decisão de saneamento e organização do processo. Função prospectiva.
O dispositivo legal inserto no art. 357 do Código de Processo Civil não introduziu, fundamentalmente, uma novidade no direito processual, vez que a decisão saneadora tem sua origem no início do século XX, evoluindo desde o CPC de 1939 até a forma do instituto como foi posta pelo legislador em 2015.
Conforme leciona Marcelo Abelha Rodrigues, na obra, Despacho pós saneador no Brasil e em Portugal:
(...) o pronunciamento judicial de saneamento e organização do processo no CPC brasileiro é um ato judicial complexo. De uma simples leitura, percebe-se que ele tem um olhar para o passado – saneador de defeitos processuais – e um olhar para o futuro servível à organização e eficiência do processo. (RODRIGUES, 2021: p. 58)
Essa visão apresentada pelo doutrinador, indica a função retrospectiva e prospectiva do dispositivo, que serve ao mesmo tempo, para limpar as imperfeições processuais identificadas na primeira fase e organizar o futuro do processo.
Desde os primórdios, muito se discute quanto a aplicabilidade prática do despacho saneador e sua real importância para a marcha processual, na medida em que muitos processos têm essa fase negligenciada.
A gestão processual revelada pela decisão de saneamento e organização visa, em apertada síntese, a efetividade e eficiência do processo, à luz dos postulados da segurança jurídica, da economia processual, do contraditório substancial, consectários das garantias constitucionais de um Estado Democrático de Direito.
Ressalte-se que a gênese do despacho saneador e a função reguladora exercida pelo magistrado, pode ser identificada no Decreto Lei nº 960/1938, que trazia em seu artigo 19, o dever de o juiz ordenar o processo após a apresentação da defesa, proferindo despacho saneando o feito.
Já com o Código de Processo Civil de 1939, os artigos 293 a 295 enunciavam o despacho saneador, sem, contudo, tratar da função prospectiva, apenas olhando para o passado, visando sanear as irregularidades, senão vejamos:
Art. 293. Decorrido o prazo para contestação, ou reconvenção, se houver, serão os autos conclusos, para que o juiz profira o despacho saneador dentro de dez (10) dias.
Art. 294. No despacho saneador, o juiz: (Redação dada pelo Decreto-Lei nº 4.565, de 1942).
I, decidirá sobre a legitimidade das partes e de sua representação, ordenando, quando for o caso, a citação dos litisconsortes necessários e do órgão do Ministério Público; (Redação dada pelo Decreto-Lei nº 4.565, de 1942).
II, mandará ouvir o autor, dentro em três dias, permitindo-lhe que junte prova contrária, quando na contestação, reconhecido o fato em que se fundou, outro se lhe opuser, extintivo do pedido; (Redação dada pelo Decreto-Lei nº 4.565, de 1942).
III, examinará se concorre o requisito do legítimo interesse econômico ou moral; (Redação dada pelo Decreto-Lei nº 4.565, de 1942).
IV, pronunciará as nulidades insanaveis ou mandará suprir as sanaveis, bem como as irregularidades; (Redação dada pelo Decreto-Lei nº 4.565, de 1942).
IV – pronunciará as nulidades insanáveis, ou mandará, suprir as sanáveis bem como as irregularidades; (Redação dada pelo Decreto-Lei nº 8.570, de 1946).
V, determinará exames, vistorias e quaisquer outras diligências, na forma do art. 295; (Incluído pelo Decreto-Lei nº 4.565, de 1942).
V – determinará, ex-officio ou a requerimento das partes, exames, vistorias e outras quaisquer diligências, na forma do art. 295, ordenando que os interessados se louvem dentro de 24 horas em peritos, caso já não haja feito, e indicando o terceiro desempatador, como prescreve o art. 129. (Redação dada pelo Decreto-Lei nº 8.570, de 1946).
Parágrafo único. As providências referidas nos ns. I e II serão determinadas nos três primeiros dias do prazo a que se refere o artigo anterior. (Redação dada pelo Decreto-Lei nº 4.565, de 1942).
Art. 295. Para o suprimento de nulidades ou irregularidades e a realização de diligências, o juiz marcará prazos não superiores a quinze (15) ou trinta (30) dias, conforme a realização do ato seja dentro ou fora da jurisdição. Findos os prazos, serão os autos conclusos para que o juiz, dentro de quarenta e oito (48) horas, proceda na forma dos ns. I e II do artigo seguinte.
Da mesma forma o Código de Processo Civil de 1973 em sua redação original, não evoluiu na matéria da compilação das questões de fato e de direito que seriam analisadas na fase da instrução e julgamento do processo. Manteve-se a mera função de sanear, ignorando-se a necessidade de organizar o futuro procedimental, verbis:
Art. 331. Se não se verificar nenhuma das hipóteses previstas nas seções procedentes, o juiz, ao declarar saneado o processo:
I - decidirá sobre a realização de exame pericial, nomeando o perito e facultando às partes a indicação dos respectivos assistentes técnicos;
II - designará a audiência de instrução e julgamento, deferindo as provas que nela hão de produzir-se.
Todavia, com a alteração operada pela lei 8.952/94, a lei adjetiva, pela primeira vez, trouxe de forma expressa a imprescindibilidade da fixação dos pontos controvertidos da demanda, onde leia-se: análise das questões de fato sobre as quais repousará a atividade probatória. Além disso, também foi introduzida a obrigatoriedade da realização de audiência de conciliação caso não fosse hipótese de extinção do processo ou de julgamento antecipado da lide.
Ocorre que, a introdução obrigatória da realização da audiência de conciliação não foi bem recepcionada pela doutrina e pelos magistrados, o que gerou nova alteração legal em 2002 (Lei 10.444/02), restando a seguinte redação ao artigo 331:
Art. 331. Se não ocorrer qualquer das hipóteses previstas nas seções precedentes, e versar a causa sobre direitos que admitam transação, o juiz designará audiência preliminar, a realizar-se no prazo de 30 (trinta) dias, para a qual serão as partes intimadas a comparecer, podendo fazer-se representar por procurador ou preposto, com poderes para transigir. (Redação dada pela Lei nº 10.444, de 7.5.2002)
§ 1 o Obtida a conciliação, será reduzida a termo e homologada por sentença. (Incluído pela Lei nº 8.952, de 13.12.1994)
§ 2 o Se, por qualquer motivo, não for obtida a conciliação, o juiz fixará os pontos controvertidos, decidirá as questões processuais pendentes e determinará as provas a serem produzidas, designando audiência de instrução e julgamento, se necessário. (Incluído pela Lei nº 8.952, de 13.12.1994)
§ 3 o Se o direito em litígio não admitir transação, ou se as circunstâncias da causa evidenciarem ser improvável sua obtenção, o juiz poderá, desde logo, sanear o processo e ordenar a produção da prova, nos termos do § 2 o . (Incluído pela Lei nº 10.444, de 7.5.2002)
Por fim, após anos de vigência do CPC de 1973, o Código de Processo Civil de 2015, em seu Capítulo X – Do julgamento conforme o estado do processo -, Seção IV – Do saneamento e da Organização do Processo -, apresentou o artigo 357 com a seguinte redação:
Art. 357. Não ocorrendo nenhuma das hipóteses deste Capítulo, deverá o juiz, em decisão de saneamento e de organização do processo:
I - resolver as questões processuais pendentes, se houver;
II - delimitar as questões de fato sobre as quais recairá a atividade probatória, especificando os meios de prova admitidos;
III - definir a distribuição do ônus da prova, observado o art. 373 ;
IV - delimitar as questões de direito relevantes para a decisão do mérito;
V - designar, se necessário, audiência de instrução e julgamento.
§ 1º Realizado o saneamento, as partes têm o direito de pedir esclarecimentos ou solicitar ajustes, no prazo comum de 5 (cinco) dias, findo o qual a decisão se torna estável.
§ 2º As partes podem apresentar ao juiz, para homologação, delimitação consensual das questões de fato e de direito a que se referem os incisos II e IV, a qual, se homologada, vincula as partes e o juiz.
§ 3º Se a causa apresentar complexidade em matéria de fato ou de direito, deverá o juiz designar audiência para que o saneamento seja feito em cooperação com as partes, oportunidade em que o juiz, se for o caso, convidará as partes a integrar ou esclarecer suas alegações.
§ 4º Caso tenha sido determinada a produção de prova testemunhal, o juiz fixará prazo comum não superior a 15 (quinze) dias para que as partes apresentem rol de testemunhas.
§ 5º Na hipótese do § 3º, as partes devem levar, para a audiência prevista, o respectivo rol de testemunhas.
§ 6º O número de testemunhas arroladas não pode ser superior a 10 (dez), sendo 3 (três), no máximo, para a prova de cada fato.
§ 7º O juiz poderá limitar o número de testemunhas levando em conta a complexidade da causa e dos fatos individualmente considerados.
§ 8º Caso tenha sido determinada a produção de prova pericial, o juiz deve observar o disposto no art. 465 e, se possível, estabelecer, desde logo, calendário para sua realização.
§ 9º As pautas deverão ser preparadas com intervalo mínimo de 1 (uma) hora entre as audiências.
Certo é, todos os dispositivos supramencionados acabam por revelar que a decisão de organização e saneamento sempre foi um marco delimitador entre a fase postulatória e a fase de julgamento propriamente dita. Assim, como o próprio nome indica, saneamento do processo significa a ação ou efeito de sanear; expurgar vícios, irregularidades ou defeitos. Da mesma forma que organizar denota a ideia de disposição ordenada; estruturar-se de forma metódica.
No tocante ao objeto específico do presente trabalho, considerando-se a complexidade da decisão de organização e saneamento, todas as teses serão baseadas na função prospectiva do dispositivo. Nesse olhar para o futuro do processo, para o juízo constitutivo, enunciado pelo professor Didier, para quem a decisão tem um capítulo declaratório e outro constitutivo:
“Há, pois, nessa decisão, um capítulo decisório em que se reconhece a admissibilidade do processo (juízo declaratório) e outro capítulo decisório em que se fixam os pontos controvertidos e delimita a atividade de instrução (juízo constitutivo).” (DIDIER, 2012:p. 561)
Destaca-se que a definição de um procedimento bifásico serve a concretização do devido processo legal como princípio constitucional orientador de toda a atividade jurisdicional, revelando a imperiosidade e importância da decisão saneadora.
Conjugando-se o saneamento e a organização disposta na referida decisão tem-se que essa é a mais importante após a sentença, porquanto é nela que o juiz faz o gerenciamento de todas as teses e antíteses em que se fundam a controvérsia posta em juízo e orienta qual será a atividade probatória necessária para dirimir essas questões.
Mais uma vez servindo-se das lições de Marcelo Abelha Rodrigues, tem-se que:
“(...) mais do que simplesmente servir à organização e à eficiência do processo em prol de uma tutela efetiva em tempo razoável, esta tarefa é fundamental também para que, legitimado pelo contraditório participativo e cooperativo, tenha-se segurança jurídica sobre o que será objeto de prova e objeto de julgamento, bem como para também servir de guia, de roteiro, de projeto previsível e seguro, ao contexto da descoberta e da justificação na futura fundamentação da decisão judicial.” (RODRIGUES, 2021: p. 59)
Portanto, o gerenciamento do processo emoldurado pelo art. 357 do CPC deve ser interpretado pela lente do devido processo legal, como uma técnica processual racional, que busca a efetividade, eficiência e economicidade do processo, através do contraditório substancial, traduzido na segurança jurídica do modelo coparticipativo do processo civil contemporâneo, no qual a função gerenciado exercida pelo magistrado no despacho saneador, apesar de não se exaurir nesta, apresenta um importante marco para o desfecho do processo.
3.O direito à prova como corolário da decisão saneadora.
Analisar a decisão saneadora do art. 357 CPC implica necessariamente adentrar a questão probatória, vez que a prova será o instrumento através do qual o despacho de saneamento ganhará concretude.
Sendo certo que o texto expresso da lei é o vetor principal do presente artigo, importante destacar dois dispositivos específicos do já mencionado artigo 357 do CPC, que enunciam com clareza o vértice do trabalho:
Art. 357. Não ocorrendo nenhuma das hipóteses deste Capítulo, deverá o juiz, em decisão de saneamento e de organização do processo:
II - delimitar as questões de fato sobre as quais recairá a atividade probatória, especificando os meios de prova admitidos;
(...)
IV - delimitar as questões de direito relevantes para a decisão do mérito;
Esses incisos positivam a função prospectiva do processo, nos dizeres de Marcelo Abelha Rodrigues, a qual iremos apropriarmo-nos a partir de agora, por traduzir com perfeição o gerenciamento processual que será concretizado pelo magistrado, visando os passos futuros.
Nesse sentido, ao fixar os pontos controvertidos da lide, no que se refere as questões fáticas, deverá o magistrado especificar quais meios de prova serão admitidos. Isso, porque é direito das partes empregar todos os meios legais para provar a verdade dos fatos em que se funda o pedido ou a defesa – art. 369 CPC. Daí a umbilical relação das questões fáticas com as teses de direito que as fundamentarão.
Como se sabe, a prova incide, via de regra, nas questões fáticas, pois como se diz, o juiz conhece o direito (da mihi factum, dabo tibi ius), e as provas serão o meio utilizado para se alcançar a tão desejada “verdade processual”.
Nesse diapasão, importante ressaltar que, conquanto a doutrina seja vacilante quanto a (in)distinção entre as questões de fato e as questões de direito, e o Código de Processo Civil indique ter adotado a distinção entre elas, opta-se aqui pelo critério da indistinção ontológica, que reconhece que a situação de fato não existe dissociada da questão de direito, eis que, esta última, nada mais é do que um enunciado abstrato de algum acontecimento fático que pode ali se enquadrar.
Assim, não se olvide que no tocante as questões de direito, sua delimitação também perpassa pelo direito à produção probatória, especialmente se pensarmos na sistemática de precedentes instituída pelo Código de Processo Civil de 2015, visto que será por meio das provas que os litigantes poderão comprovar a incidência de um precedente, demonstrando que o fato apresentado se enquadra naquela mesma hipótese que fundamentou as razões de decidir de determinada decisão/súmula vinculante.
Nesse olhar, ressalta-se a necessidade de que o direito processual esteja sempre a serviço do direito material, o que foi exaltado pelo Código de Processo Civil de 2015 ao enunciar em seus artigos 4º e 6º a primazia da solução integral do mérito.
Por consequência, o mero exercício de subsunção do fato (premissa menor) à lei (premissa maior) não é mais suficiente nos tempos atuais, visto que a lei não é a única fonte do direito, na medida que os precedentes, súmulas vinculantes, recursos repetitivos e até mesmo os princípios exsurgem como fontes do direito.
Mais uma vez utilizando-se das lições de Marcelo Abelha Rodrigues, podemos concluir que:
“A arte de julgar, fincada num modelo subsuntista estático, iluminista, cartesiano, positivista no sentido de reduzir o papel do juiz àquilo que está descrito na lei (moderno), foi aos poucos superada por um modelo (pós-moderno) interpretativista, cognitivista que considera as relações intersubjetivas complexas e dinâmicas e não vê na lei uma fonte pronta para ser simplesmente decalcada ao fato.” (RODRIGUES, 2021: p. 97)
Assim, num encadeamento lógico podemos entender que o direito processual está para o direito material, na mesma medida que o direito à prova está para o direito material, vez que são instrumentos de concretização da garantia constitucional a inafastabilidade da jurisdição, à luz do devido processo legal.
Com efeito, o direito à prova, corolário do direito constitucional e convencionalmente positivado ao contraditório, com os meios e recursos a ele inerentes – art. 5, inc. LV Constituição Federal; art. 8 da Convenção Americana de Direitos Humanos – CADH e art. 14.1, “e” do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos – PIDCP -, ressai como ponto nodal da decisão saneadora.
De acordo com a lição de Fredie Didier Jr. a respeito da teoria geral da prova:
“No processo jurisdicional, o objetivo principal é a efetivação de um determinado resultado prático favorável a quem tenha razão, que seja produto de uma decisão judicial que se baseia nos fatos suscitados no processo (normalmente pelas partes, mas e, algumas situações, podem ter sido suscitados pelo próprio magistrado) e postos sob o crivo do contraditório.” (DIDIER JR., 2017: p. 47/48)
Portanto, ao pensarmos no cerne do procedimento probatório que será emoldurado na decisão de saneamento e organização, enxergamos um fator que reforça a importância desse despacho estabilizador da demanda, ao determinar, com base nos fatos e fundamentos jurídicos apresentados, quais serão as provas indispensáveis para formação do convencimento do juiz, sob a ótica da persuasão racional.
Sobretudo quando as partes têm a sua disposição a possibilidade de fundar seu direito em algum precedente vinculante, posto que serão as provas que criarão o norte em que seguirá a demanda quanto a aplicabilidade da causa-piloto.
Assim, considerando-se que os precedentes, súmulas e repetitivos, como fontes do direito, possuem grande fluidez e permeabilidade, na parte da decisão do art. 357 do CPC que especificamente tratar da organização do processo, deve o magistrado orientar a atividade probatória, antes de tudo, respondendo aos seguintes questionamentos:
i. Há pedido das partes para aplicação de algum precedente/súmula nos termos do art. 927 do CPC?;
ii. Há pleito de distinguishing em relação aos mesmos padrões decisórios?;
iii. A causa comporta a aplicação de algum precedente, considerando a possibilidade de reconhecimento de ofício?
Respondidas essas questões, exsurge a necessidade de o magistrado atentar para quais meios de prova serão imprescindíveis para se aplicar ou não a jurisprudência vinculante, respondendo a mais uma pergunta: quais provas devem/podem ser produzidas pela parte para comprovar ou infirmar a incidência de um precedente?
Certo é que, a prova, como elemento que vem ao processo para formar o convencimento do magistrado, decorre do que chamamos de contraditório dinâmico, ou seja, a apresentação das provas visa efetivamente influenciar a decisão do juízo, e, para tanto, é importante que seja utilizada de forma correta e direcionada.
Não se olvide que as questões fáticas que serão delimitadas pelo magistrado estão vinculadas primeiramente àquilo que foi apontada pelas partes, em atendimento ao princípio dispositivo. Depois, a delimitação deve se ater apenas aos fatos que foram controvertidos. E por fim, esses fatos apresentados e que foram controvertidos, devem sobreviver ao crivo da pertinência e da relevância para o deslinde da causa.
E uma vez emolduradas as questões fáticas apresentadas, controvertidas e relevantes para o desenrolar do processo, a indicação dos meios de prova, bem como a possibilidade de distribuição dinâmica do ônus da prova ganham relevo.
Nesse particular, quanto mais preciso for o despacho, correlacionando a questão fática ao meio de prova a ela indicado, melhor será o pronunciamento judicial, consubstanciado na função gerenciadora do magistrado.
Não obstante, reconhece-se a dificuldade que pode ser ventilada pelos magistrados diante do volume exorbitante de processos e as consequentes escolhas que precisam ser feitas no gerenciamento do processo.
Nesta senda, ao proferir a decisão organizadora, em resposta aos questionamentos supra relacionados, é preciso que o magistrado inclua um tópico específico, cujo texto exemplificativo se formula no seguinte sentido: Considerando-se a controvérsia quanto a aplicabilidade ou não do precedente/súmula, como questão de direito relevante para a decisão de mérito, defino que a atividade probatória deve ser orientada no sentido de (...), admitindo-se, para tanto, a produção dos seguintes meios de prova (...).
Aliás, antevendo possíveis críticas a essa proposição, cabe pontuar que a tese ora formulada não se assemelha ao que era posto pelo Código de Processo Civil Português, na redação do artigo 515 do CPC de 1939 e artigo 511 do CPC de 1961, eis que nestes dispositivos era previsto a apresentação de uma lista numerada de perguntas e quesitos, listados com perguntas sobre cada fato específico e fragmentado.
Essa quesitação obrigatória sempre foi alvo de inúmeras críticas, posto que tornava o trabalho do magistrado burocrático, maçante, e no fim, contraproducente. Mas isso não significa que despachos genéricos, abstratos, indefinidos, que serviriam a qualquer processo, devam ser a regra.
Certo é que, quanto a evolução do despacho saneador no Brasil, Marcelo Abelha Rodrigues reconhece que, diferentemente de Portugal, nunca houve a determinação de elaboração de uma lista, o que pode ter feito com que o judiciário brasileiro tenha sido ainda mais negligente com essa importante fase de gerenciamento:
“Por nunca ter havido na legislação processual brasileira, sobre o tema objeto deste estudo, qualquer delimitação da forma como o magistrado brasileiro devesse fazer a seleção das questões de fato que deveriam ser objeto de prova, este nunca foi um problema a ser resolvido. A rigor, o problema sempre se deu exatamente pelo inverso, ou seja, sempre faltou ao magistrado brasileiro uma preocupação em delimitar com alguma precisão o que deva ser objeto de prova no despacho de organização do processo, permitindo absurdos, por exemplo, que peritos sejam questionados sobre fatos convertidos que nada têm a ver com o seu mister, e, o que é pior, que opinem sobre esses fatos; que testemunhas sejam questionadas – e respondam – sobre fatos de percepção técnica que deveriam ser direcionados apenas ao perito etc.” (RODRIGUES, 2021: p. 115)
Portanto, conquanto tal proposição seja inovadora, já que não se encontra na literatura qualquer orientação nesse sentido, a quesitação proposta, diferentemente do que era traduzido pelo CPC Português, não visa burocratizar, nem sobrecarregar o trabalho do magistrado, mas sim, através de um formulário substancialmente genérico, dar concretude aos princípios insertos no CPC de 2015, notadamente o da segurança jurídica, decorrente da estabilidade, integridade e coerência da jurisprudência dos Tribunais.
Por consequência, com a adoção da presente proposição, a decisão de saneamento e organização do processo será erigida ao local de destaque propagada por muitos doutrinadores, que a definem como a mais importante, após a sentença, já que aquela servirá de base fundante para esta.
4.O dever de fundamentação da decisão saneadora sob o pálio dos padrões decisórios
Dentre os dispositivos de maior impacto e repercussão introduzidos pelo legislador no CPC de 2015, o art. 489 ressai como aquele que denota a nova fase em que se funda o processo civil, qual seja, a do processo civil-constitucional, na medida que cristaliza a necessidade inafastável de fundamentação de toda e qualquer decisão judicial, nos termos do princípio constitucional inserto no art. 93, inc. IX da Constituição Federal.
O dever de fundamentação que se impõe ao judiciário se contrapõe ao direito dos jurisdicionais de ver seus argumentos analisados. Esse exercício da jurisdição, concretizado na fundamentação, visa não só a preservação das garantias fundamentais, como também o controle das decisões judiciais, permitindo a sindicabilidade de qualquer provimento jurisdicional, materializando uma das facetas do Estado Democrático de Direito.
E esse dever/direito deve ser potencializado na decisão saneadora/organizadora do art. 357 do CPC, posto que, como já dito, esta é a decisão que põe fim a primeira fase do procedimento bifásico, e é por meio dela que se orienta a segunda fase, relacionada umbilicalmente com a produção probatória, que irá culminar com a prolação da sentença.
Impende, portanto, que a fundamentação da decisão organizadora do processo expressamente informe, considerando os fundamentos determinantes em que se fundou o padrão decisório (precedente ou súmula) e com base nas controvérsias postas pelas partes, quais provas serão imprescindíveis.
Nos dizeres de Fredie Didier Jr,Paula Braga e Rafael Oliveira:
É na fundamentação que o magistrado resolve as questões incidentais, assim entendidas aquelas que devem ser solucionadas para que a questão principal possa ser decidida. Daí se vê que é exatamente aqui, na motivação, que o magistrado deve apreciar e resolver as questões de fato e de direito que são postas à sua análise. (DIDIER JR., 2017: p. 358)
A fundamentação deve se orientar pela racionalidade e pela sindicabilidade, configurando-se aquela, como a necessidade de que o discurso seja justificado, decorrendo que um raciocínio jurídico lógico, enquanto esta, positiva-se com um texto compreensível, passível de controle pelas instâncias revisoras.
Some-se a isso, a ótica ofertada por Alexandre Câmara, para quem a fundamentação é um exercício de justificação, ao afirmar que: “E é exatamente em razão disso que se vem de dizer que é afirmado que a fundamentação é um discurso de justificação das decisões judiciais.” (CÂMARA, 2022: p. 61)
Aliás, mormente quanto a temática dos precedentes qualificados, merece destaque os incisos V e VI do §1º do art. 489, que prescrevem:
§ 1º Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que:
V - se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos;
VI - deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.
O legislador foi cogente ao enumerar como vetores que devem orientar a fundamentação das decisões a necessidade de menção expressa aos enunciados de súmula, precedente e jurisprudência que forem evocadas pelos atores processuais.
Portanto, sendo invocada a incidência de um precedente obrigatório, ou, em contrapartida, alegada a necessidade de distinção, posto que a ratio decidendi não se coaduna com a tese dos autos, mostra-se mandatório que o magistrado faça um juízo analítico da conformação do padrão decisório ao caso concreto.
Neste momento, importante pontuar que o ônus argumentativo das partes e do juiz assume papel fundante para o desenvolvimento da presente tese. Isso porque, como reconhecido por Dierle Nunes e Aurélio Viana, no livro, Precedentes: a mutação do ônus argumentativo, a sistemática dos precedentes persuasivos introduzida pelo CPC de 2015 exige das partes um poder argumentativo muito maior para confirmar a aplicação da tese vinculante aos fatos apresentados.
Da mesma forma, cabe ao magistrado, mormente quando for afastar a incidência de um padrão decisório, o reforço argumentativo de sua fundamentação a fim de proferir uma decisão que atenda a racionalidade necessária para garantir a concretude da segurança jurídica.
Outra não foi a orientação dada pelo legislador, que no §4º do art. 927 do CPC, pontificou que: “§ 4º A modificação de enunciado de súmula, de jurisprudência pacificada ou de tese adotada em julgamento de casos repetitivos observará a necessidade de fundamentação adequada e específica, considerando os princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da isonomia.”
Na mesma esteira o Enunciado 459 do Fórum Permanente de Processualistas Civis: “As normas sobre fundamentação adequada quanto à distinção e superação e sobre a observância somente dos argumentos submetidos ao contraditório são aplicáveis a todo o microssistema de formação dos precedentes.”
Conclui-se que não só a alteração de entendimento – overruling – como também o simples afastamento de um precedente – distinguishing - sobrepesa o ônus argumentativo tanto do magistrado quanto das partes.
5.Da vedação à decisão surpresa e sua correlação com a decisão saneadora.
Anunciam os artigos 9º e 10º do Código de Processo Civil que:
Art. 9º Não se proferirá decisão contra uma das partes sem que ela seja previamente ouvida.
Art. 10. O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício.
Esses dispositivos foram inseridos pelo legislador de 2015, não possuindo correspondente no extinto CPC de 1973 e buscam cristalizar o princípio constitucional do contraditório e da ampla defesa, fazendo surgir o que a doutrina nominou do princípio da vedação à decisão surpresa, ou como chama a doutrina italiana, decisão de terceira via.
Seguindo a linha de concretização e otimização dos princípios constitucionais insertos no direito processual civil, a vedação à decisão surpresa cria para o magistrado a obrigatoriedade de sempre oportunizar as partes, antes da tomada de uma decisão, o direito de se manifestarem acerca da questão ventilada pelo juízo.
Essa determinação encontra-se umbilicalmente atrelada a outros tantos princípios, sobretudo o da cooperação e da primazia da decisão de mérito.
Isso, porque o contraditório não pode ser resumido a sua faceta formal – dever de audiência, comunicação, ciência - mas, sobretudo, deve ser garantido o contraditório dinâmico/substancial, ou seja, a possibilidade de as partes apresentarem seus argumentos com o fito de efetivamente influenciar a decisão do magistrado.
Ressalte-se que a vedação a decisão de terceira via aplica-se indistintamente a qualquer provimento jurisdicional, mas alcança importância superior quando pensamos na decisão saneadora do processo, vez que esta sintetiza o passado (fase postulatória), para organizar o futuro (fase probatória), visando sempre, conforme orienta o código, a futura prolação de uma sentença de mérito.
Assim, a decisão do art. 357 CPC pode ser vista como a aglutinadora da garantia do contraditório dinâmico, à luz da vedação à decisão surpresa, porquanto, nesta fase de transição entre a primeira e a segunda fase do procedimento bifásico, todas as questões controvertidas devem ser pontuadas pelo juízo, assentando o contraditório como reflexo do princípio democrático na estruturação do processo, que nos dizeres que Fredie Didier Jr: “Democracia é participação, e a participação no processo opera-se pela efetivação da garantia do contraditório.” (DIDIER JR., 2017: p. 91)
Portanto, na circunstância em que as partes ventilam a aplicabilidade de um precedente qualificado, a decisão de saneamento, sob a égide da vedação à decisão surpresa, deve ser formulada com o fim de apontar todas as vertentes de ratificação, distinção ou superação do julgado/súmula, garantindo-se aos litigantes a materialização do contraditório substancial.
Nem se olvide que o próprio legislador pontuou, expressamente, no art. 10 CPC, que mesmo nas matérias cognoscíveis de ofício, como exemplo, a incidência dos precedentes qualificados, que podem fundar até mesmo improcedência liminar do pedido, deve o magistrado, antes de proferir a decisão, ouvir as partes, vez que, decidir de ofício é o poder de decidir sem necessidade de provocação, mas não quer dizer decidir sem oitiva dos atores processuais.
A essa altura, precisamos nos debruçar sobre a sistemática dos precedentes, positivada no CPC de 2015, apresentando suas nuances e concretizando a necessidade de menção explícita no despacho saneador.
6.Do sistema de vinculação de precedentes. Padrões decisórios.
Há cerca de 7 anos atrás quando o CPC de 2015 foi publicado, a palavra precedente passou a ser corriqueira no linguajar jurídico, trazendo consigo inúmeros debates e questionamentos, dentre eles se incluindo a principal pergunta: “teria o Brasil abandonado o sistema do civil law e adotado o da common law? Não!”
Em verdade, a nova normativa inserta no CPC apenas sedimentou o que já vinha sendo construído há algum tempo acerca da utilização dos precedentes e súmulas como fontes do direito.
Pede-se vênia para a partir desse momento, apropriarmo-nos da expressão tão bem utilizada por Alexandre Câmara no recém-lançado Manual de Direito Processual Civil, “padrão decisório”. Para o renomado jurista:
“(...) a expressão “padrão decisório” (que aparece no texto legal, como se pode ver pelo disposto no § 5º do art. 966) designa um gênero que compreende duas espécies, o precedente e o enunciada de súmula. E ambos esses padrões decisórios atuam com função normativa, sendo, pois, “fontes” do Direito (inclusive do direito processual civil).” (Câmara, 2022: p.19)
Esses padrões decisórios cristalizados em inúmeros dispositivos da lei adjetiva, reforçam a ideia já desenvolvida por vários doutrinadores de que o sistema processual brasileiro é singular, não se concretizando apenas como civil law ou common law, restando uma miscigenação, que em última análise, deve servir ao bem maior do Direito, a segurança jurídica.
Portanto, definir a forma ou a nomenclatura deve ser secundário, exsurgindo apenas a imperiosa necessidade de que seja reconhecido que os padrões decisórios são efetivas fontes do direito e sua função deve ser a de garantir a efetividade dos princípios da isonomia, proteção da confiança e segurança jurídica.
Decorre daí, que o ponto de partida explícito no Código de Processo Civil está inserto no art. 926, que dispõe: “Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente.”
Uniformizar denota a coesão que deve ser perquirida pelos Tribunais, que deve ser concretiza através dos enunciados de súmula e até mesmo dos incidentes de resolução de demanda repetitiva e de assunção de competência (art. 926, §2º CPC).
A estabilidade indica que as decisões não devem seguir cambaleando de um ponto a outro do direito, devendo se ajustarem ao que já foi decidido nos precedentes/súmulas vinculantes.
A ideia de integridade, assim como a dos outros termos insertos no referido dispositivo, gera muita discussão teórica, mas utilizando-se da definição gramatical, pode se dizer que essa expressão informa a completude, a unidade e a qualidade de não se deixar corromper, que deve orientar a jurisprudência dos Tribunais.
Por fim, coerente, seguindo a mesma definição acima exposta, significa ser lógico, evitando-se informações contraditórias.
Conquanto esses termos pareçam extremamente indeterminados ou indetermináveis, a lógica da adoção dos padrões decisórios como fonte do direito, contém todos esses elementos, pontificando as premissas principais do legislador e de todo o sistema de justiça, que é garantir segurança jurídica aos jurisdicionados, proteger a confiança que se busca nas decisões, tudo isso sob o manto da igualdade substancial.
Nessa toada, cabe ressaltar que a exposição de motivos do Código de Processo Civil de 2015 apresentou de forma expressa, a umbilical relação entre a sistemática dos precedentes e o princípio da segurança jurídica, senão vejamos:
“A segurança jurídica fica comprometida com a brusca e integral alteração do entendimento dos tribunais sobre questões de direito.
Encampou-se, por isso, expressamente princípio no sentido de que, uma vez firmada jurisprudência em certo sentido, esta deve, como norma, ser mantida, salvo se houver relevantes razões recomendando sua alteração.
Trata-se, na verdade, de um outro viés do princípio da segurança jurídica, que recomendaria que a jurisprudência, uma vez pacificada ou sumulada, tendesse a ser mais estável.”
Segundo Didier: “Em sentido lato, o precedente é a decisão judicial tomada à luz de um caso concreto, cujo elemento normativo pode servir como diretriz para o julgamento posterior de casos análogos.” (DIDIER, 2017, p. 505)
Por consequência, a eficácia persuasiva de um precedente não decorre de toda a norma jurídica exposta na decisão, mas apenas da ratio decidendi - holding, que se configura na norma geral construída pelo magistrado que servirá de diretriz para outros processos.
Assim, para se identificar a holding, a doutrina reconhece a existência de dois métodos. O Teste de Wambaugh que aplica uma regra de inversão, reconhecendo como razão decidir aquilo que, se for invertido, irá conduzir a mudança da conclusão final. E o Método de Goodhart – cuja ênfase está nos fatos subjacentes à causa e que deram origem aquela decisão.
Certo é que ambos os métodos são incompletos, e o ideal é que utilizemos o Método Eclético, que segundo Didier foi o aplicado por Luiz Guilherme Marinoni, para o qual a ratio decidendi é resultado da análise dos fatos determinantes em que se fundam a demanda e os motivos jurídicos determinantes que levaram aquela conclusão. Essa deve ser a fórmula de subsunção do caso concreto a eventual precedente.
Nesse sentido, o enunciado 173 do Fórum Permanente de Processualistas Civis: “Cada fundamento determinante adotado na decisão capaz de resolver de forma suficiente a questão jurídica induz os efeitos de precedente vinculante, nos termos do Código de Processo Civil.”
Bem como o enunciado 317, também do FPPC: “O efeito vinculante do precedente decorre da adoção dos mesmos fundamentos determinantes pela maioria dos membros do colegiado, cujo entendimento tenha ou não sido sumulado.”
Não se olvide o já mencionado inciso V, do §1º do art. 489 do CPC que informa para uma decisão estar devidamente fundamentada no caso da aplicação de um precedente, deve o julgador identificar seus fundamentos determinantes e demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos.
Assim, exclui-se das razões de decidir aquelas manifestações nominadas de obter dictum, ou seja, argumentos expostos na decisão, mas que não foram determinantes para a solução da questão, não se inserindo na tese vinculante, não servindo de base para casos análogos.
A fim de facilitar a sistematização dos padrões decisórios que devem ser seguidos, e quais são os elementos que ressaltam como primordiais na jurisprudência, o próprio legislador pontuou nos §§ 1º e 2º do art. 926 do CPC, algumas formas de sedimentação dos precedentes:
§ 1º Na forma estabelecida e segundo os pressupostos fixados no regimento interno, os tribunais editarão enunciados de súmula correspondentes a sua jurisprudência dominante.
§ 2º Ao editar enunciados de súmula, os tribunais devem ater-se às circunstâncias fáticas dos precedentes que motivaram sua criação.
Ultrapassada a etapa de identificação da ratio decidendi, cabe apresentar o texto legal do artigo 927 do CPC, que anuncia quais são os padrões decisórios que devem ser seguidos pelos Tribunais:
Art. 927. Os juízes e os tribunais observarão:
I - as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade;
II - os enunciados de súmula vinculante;
III - os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos;
IV - os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional;
V - a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados.
Os referidos incisos apresentados pelo legislador adjetivo de 2015 surgem como fontes do direito processual, em que alguns possuem força vinculante – I a III – e outros força persuasiva – IV e V. Onde leia-se com vinculante – aquilo que é obrigatório, e persuasivo – aquele que tem capacidade de influenciar.
Entretanto, ao que parece, numa análise sistemática do Código de Processo Civil, essa distinção entre vinculante ou persuasivo não se coaduna com a definição gramatical das palavras, posto que, por exemplo, a decisão de improcedência liminar do pedido pode ser fundada em enunciado de súmula do STF ou STJ – art. 332, inc. I – mesmo se configurando como uma fonte meramente persuasiva.
No mais, como explica Alexandre Câmara, nem toda decisão judicial é um precedente, que na definição do professor é:
“precedente é um pronunciamento judicial, proferido em um processo anterior, que é empregado como base da formação de outra decisão judicial, prolatada em processo posterior. Significa isto dizer que, sempre que um órgão jurisdicional, ao proferir uma decisão, partir de outra decisão, proferida em outro processo, empregando-a como base, a decisão anteriormente prolatada terá sido um precedente.” (CÂMARA, 2022: p. 27)
Nesta linha de ideias, os padrões decisórios erigidos a fontes do direito, onde inclui-se os precedentes e súmulas, vinculantes ou meramente persuasivos, mostram-se na sistemática processual hodierna, importantes dispositivos concretizadores do Estado Democrático de Direito no viés da proteção da confiança que deve ressair das decisões judiciais.
Com efeito, ainda que ressoem críticas a esse modelo híbrido, que não é a um só tempo civil law ou commom law, a segurança jurídica que se extrai do brocardo inglês – to treat like cases alike – ou seja, tratamento igual para casos análogos – é um anseio de qualquer jurisdicionado.
7.A eficácia prospectiva da decisão saneadora à luz da vinculação aos precedentes.
Ultrapassada a apresentação dos alicerces do presente artigo fixados: (i) na decisão de saneamento do processo inserta no art. 357 do CPC e seu efeito prospectivo; (ii) no direito ao contraditório substancial emanado do referido dispositivo, mormente dos incisos II e IV; (iii) no dever de fundamentação da decisão de gerenciamento do processo sob o pálio da racionalidade e da vinculação aos fundamentos determinantes dos precedentes; (iv) na vedação à decisão surpresa como corolário do devido processo legal num modelo coparticipativo de processo; e, por fim (v) no sistema de vinculação aos padrões decisórios positivado pelo CPC de 2015, chegamos ao ponto em que iremos costurar essas bases à luz da sistemática processual-civil-constitucional enaltecida pelo Código de Processo Civil.
Veja-se, a proposta ora formulada tem como ponto de partida a decisão saneadora do art. 357 do CPC, especificamente seu inciso II – controvérsia das questões de fato, e inciso IV – delimitação das questões de direito.
Como já enunciado, propõe-se que o magistrado, ao chegar neste momento processual, em que já ultrapassado os casos de improcedência liminar, julgamento antecipado do mérito, extinção do processo sem resolução do mérito ou com resolução do mérito, nos casos dos incisos II e III do art. 487 CPC, ao proferir a decisão saneadora, verifique se há pedido das partes quanto a aplicabilidade ou afastamento de incidência de algum precedente, ou se ele próprio vislumbra semelhança da tese ou da antítese com algum padrão decisório ou súmula.
E essa análise é necessária, na medida que não se pode dissociar o efeito prospectivo da decisão saneadora, que irá irradiar seus efeitos na decisão mais importante a ser proferida – a sentença.
Para além disso, ao olhar para o futuro neste momento processual de gerenciamento do processo, o magistrado deve projetar os efeitos da sua decisão, não só para a sentença, como também para a fase recursal ordinária e extraordinária.
Isso porque, inúmeros são os dispositivos do Código de Processo Civil que vinculam os precedentes e súmulas, sejam eles vinculantes ou não, a providências/decisões a serem adotadas pelo julgador, notadamente sob o viés prospectivo da decisão saneadora, senão vejamos.
Comecemos pelos novos incidentes processuais de assunção de competência – art. 947 – e de resolução de demanda repetitiva – art. 985 – para os quais o legislador apresentou claramente em seu texto a obrigatoriedade de aplicação das teses formadas nesses incidentes, verbis:
Art. 947. É admissível a assunção de competência quando o julgamento de recurso, de remessa necessária ou de processo de competência originária envolver relevante questão de direito, com grande repercussão social, sem repetição em múltiplos processos.
§ 3º O acórdão proferido em assunção de competência vinculará todos os juízes e órgãos fracionários, exceto se houver revisão de tese.
Art. 985. Julgado o incidente, a tese jurídica será aplicada:
I - a todos os processos individuais ou coletivos que versem sobre idêntica questão de direito e que tramitem na área de jurisdição do respectivo tribunal, inclusive àqueles que tramitem nos juizados especiais do respectivo Estado ou região;
II - aos casos futuros que versem idêntica questão de direito e que venham a tramitar no território de competência do tribunal, salvo revisão na forma do art. 986 .
§ 1º Não observada a tese adotada no incidente, caberá reclamação.
§ 2º Se o incidente tiver por objeto questão relativa a prestação de serviço concedido, permitido ou autorizado, o resultado do julgamento será comunicado ao órgão, ao ente ou à agência reguladora competente para fiscalização da efetiva aplicação, por parte dos entes sujeitos a regulação, da tese adotada.
Como se percebe, caso ventilada a aplicabilidade de tese firmada em incidente de assunção de competência ou de resolução de demanda repetitiva, torna-se imprescindível que o julgador, ao gerenciar o processo, preparando-o para a segunda fase de instrução e julgamento, identifique esse ponto como controvertido, e, consequente, quais provas devem ser produzidas para confirmar ou infirmar a incidência do padrão decisório.
Seguindo na sistemática das demandas repetitivas e sua influência nas demandas, cabe apontar os artigos 1039 e 1040 do CPC, que versam sobre a adoção das teses firmadas em recursos repetitivos tanto do Supremo Tribunal Federal quanto do Superior Tribunal de Justiça:
Art. 1.039. Decididos os recursos afetados, os órgãos colegiados declararão prejudicados os demais recursos versando sobre idêntica controvérsia ou os decidirão aplicando a tese firmada.
Art. 1.040. Publicado o acórdão paradigma:
I - o presidente ou o vice-presidente do tribunal de origem negará seguimento aos recursos especiais ou extraordinários sobrestados na origem, se o acórdão recorrido coincidir com a orientação do tribunal superior;
II - o órgão que proferiu o acórdão recorrido, na origem, reexaminará o processo de competência originária, a remessa necessária ou o recurso anteriormente julgado, se o acórdão recorrido contrariar a orientação do tribunal superior;
III - os processos suspensos em primeiro e segundo graus de jurisdição retomarão o curso para julgamento e aplicação da tese firmada pelo tribunal superior;
Nem se argumente que esses dispositivos apenas devem nortear as decisões proferidas pelos Tribunais, posto que o inc. III do art. 1040 é direcionado aos processos de primeiro grau, além do que, a função prospectiva que ressai da decisão saneadora, exige que ela ultrapasse o crivo dos repetitivos, evitando-se futura reforma da sentença.
Seguindo essa linha do olhar para o futuro que deve nortear o gerenciamento do processo feito através do art. 357 do CPC, podemos mencionar os artigos 496, §4º e 932, incisos IV e V, que assim dispõe:
Art. 496. Está sujeita ao duplo grau de jurisdição, não produzindo efeito senão depois de confirmada pelo tribunal, a sentença:
§ 4º Também não se aplica o disposto neste artigo quando a sentença estiver fundada em:
I - súmula de tribunal superior;
II - acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça em julgamento de recursos repetitivos;
III - entendimento firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de competência;
IV - entendimento coincidente com orientação vinculante firmada no âmbito administrativo do próprio ente público, consolidada em manifestação, parecer ou súmula administrativa.
Art. 932. Incumbe ao relator:
IV - negar provimento a recurso que for contrário a:
a) súmula do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça ou do próprio tribunal;
b) acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça em julgamento de recursos repetitivos;
c) entendimento firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de competência;
V - depois de facultada a apresentação de contrarrazões, dar provimento ao recurso se a decisão recorrida for contrária a:
a) súmula do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça ou do próprio tribunal;
b) acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça em julgamento de recursos repetitivos;
c) entendimento firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de competência;
Atentando-se ao art. 496 do CPC que trata das hipóteses de remessa necessária, o §4º enumera quatro hipóteses em que não se aplicará esse instituto, e todas elas representam algum padrão decisório, seja precedente ou súmula. Portanto, não é conferido ao julgador a possibilidade, por exemplo, de não analisar com cuidado, a alegação da parte, de afastamento da aplicabilidade de uma súmula do STJ, se ao final, ao proferir a sentença, caso reconheça, contrariamente ao alegado, isso, por si só, obstará a remessa necessária do processo.
Outrossim, no tocante ao art. 932, o legislador previu a possibilidade do relator, ao receber um recurso, negar provimento de plano, ou dar provimento, após as contrarrazões, a recurso que verse sobre os padrões decisórios ali enumerados.
Também cabe pontuar o texto constitucional inserto nos artigos 102, §2º e art. 103-A, que tratam respectivamente das decisões proferidas em sede de controle concentrado de constitucionalidade e edição de súmula vinculante:
Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:
§ 2º As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal.
Art. 103-A. O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei.
A eficácia vinculante desses padrões decisórios, que irradiam seus efeitos sobre todo o ordenamento jurídico, deve ser objeto de especial atenção pelo julgador, quando ventilada qualquer uma dessas teses em seus articulados.
Desta fenda, o julgador não pode negligenciar a incidência de um precedente, porquanto sua decisão certamente será reformada, monocraticamente, pelo relator.
Por fim, e não menos importante, os padrões decisórios apontados pelo legislador de 2015, também constam no enunciativo do cabimento da reclamação, conforme preleciona o art. 988 do CPC:
Art. 988. Caberá reclamação da parte interessada ou do Ministério Público para:
I - preservar a competência do tribunal;
II - garantir a autoridade das decisões do tribunal;
III – garantir a observância de enunciado de súmula vinculante e de decisão do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade;
IV – garantir a observância de acórdão proferido em julgamento de incidente de resolução de demandas repetitivas ou de incidente de assunção de competência;
Não restam dúvidas que o despacho saneador, no seu viés prospectivo, através do diálogo racional da construção de todas as fases processuais, que se seguem até a prolação da sentença, merece capítulo próprio para tratar das alegações de incidência de precedentes.
Conforme vaticina Marcelo Abelha Rodrigues:
“Num processo que se intitula cooperativo e pretende ser talhado de democrático, não se permite que o processo decisório seja feito a partir de um salto mental dos articulados à sentença. A racionalidade da decisão judicial não se contenta mais com o dever de justificar na sentença com apontamento minudente do caminho perseguido pelo juiz para chegar aonde chegou, neste modelo democrático e cooperativo, brasileiro e português, é preciso que a formação do convencimento seja feita em tempo real, passo a passo, em cada etapa processual vencida e superada com a participação dos sujeitos do processo.” (RODRIGUES, 2021: p.138)
Esse capítulo decisório, que deve ser inserto no despacho saneador, atende a um só tempo a diversos postulados constitucionais garantidores do Estado Democrático de Direito, nomeadamente a garantia do contraditório dinâmico, corolário da segurança jurídica, da isonomia, da vedação à decisão surpresa e em última análise, da primazia da decisão de mérito.
O modelo coparticipativo de processo, no qual todos os atores processuais ocupam lugares equânimes, garante que, uma vez apresentado pelas partes, questões de fato que conduzirão a aplicabilidade ou não de algum precedente persuasivo, súmula vinculante, ou qualquer outro padrão decisório enunciado pelo legislador, é dever do magistrado, que ocupa o tripé desse modelo processual, decidir de forma clara e objetiva, acerca das teses apresentadas.
Por tudo o que foi posto, é mandatório que o art. 357 do Código de Processo Civil seja erigido, efetivamente, ao lugar de destaque que já foi reconhecido por inúmeros doutrinadores, como a decisão mais importante da marcha processual, após a sentença, eis que o dever de gerenciar o processo, mormente diante da garantia do contraditório, do dever de fundamentação, da vedação à decisão surpresa e da nova sistemática dos precedentes, mostra-se um importante instrumento de concretização do Estado Democrático de Direito
8.Da estabilidade da decisão saneadora à luz da possibilidade de eficácia ex tunc dos precedentes vinculantes.
Com o fito de elucidar uma pequena aresta que não pode ser ignorada no texto do artigo 357 do CPC, importante trazer luz a parte do dispositivo que trata da possibilidade de estabilização da decisão saneadora: “§ 1º Realizado o saneamento, as partes têm o direito de pedir esclarecimentos ou solicitar ajustes, no prazo comum de 5 (cinco) dias, findo o qual a decisão se torna estável.”
Não se pretende aqui, adentrar nas nuances dessa questão, quanto aos efeitos dessa estabilização, eis que não é o escopo do presente trabalho, mas apenas questionar, em que medida essa eficácia preclusiva pode incidir caso seja proferida uma decisão saneadora nos moldes em que está sendo proposta.
Compartilhando dos ensinamentos de Marcelo Abelha Rodrigues, reconhece-se que, antes de tudo, o gerenciamento do processo não é feito exclusivamente na decisão saneadora, devendo ser feito de forma contínua pelo gestor do processo – julgador – seja antes ou depois.
Outrossim, a complexidade da decisão de saneamento, que tem um olhar retrospectivo e prospectivo, indica que a estabilização atinge com muito mais força os efeitos pretéritos do que os efeitos futuros.
Nesta linha, imaginemos a hipótese em que seja proferida uma decisão saneadora nos exatos moldes em que foi formulada no presente artigo, em que tenha sido identificada a incidência de uma súmula vinculante, e orientada a produção probatória neste sentido.
Entretanto, após a decisão de gerenciamento, e antes que seja prolatada sentença, o Supremo Tribunal Federal, com fulcro no art. 103-A, §2º da Constituição, e nos termos da lei 11.417/06, revisão do entendimento sumulado, ou mesmo cancela o enunciado da súmula que havia fixado como ponto controvertido.
Diante dessa situação, alterada a fonte do direito que serviu de fundamento ao despacho saneador, é imprescindível que o magistrado, garantindo-se o contraditório, profira nova decisão acerca da questão, o que retira a estabilidade da decisão saneadora.
Como bem assinala Marcelo Abelha Rodrigues:
“É perfeitamente possível, por exemplo, que precedentes, jurisprudências dos tribunais de cúpula, súmulas e enunciados que não tinham sido notados ou observados até então, ou até supervenientes, exsurjam após a prolação deste pronunciamento e devam ser levados em consideração, ou seja, debatidos, analisados e, se for o caso, até mesmo alterar o conteúdo das matérias de direito do que foi antes delimitado.” (RODRIGUES, 2021, p. 134)
Como se vê, o doutrinador vai além, e aponta também a possibilidade de alteração do despacho saneador diante da formação de uma jurisprudência superveniente. O que por certo é perfeitamente cabível, sendo fácil imaginarmos um recurso repetitivo que venha a ser julgado após o despacho saneador, mas que se adequa perfeitamente ao caso em julgamento.
Nesse ponto, Alexandre Câmara faz uma observação importante quanto a possibilidade de eficácia ex tunc dos padrões decisórios, afirmando que:
“É que, em algumas situações, o acórdão dotado de eficácia vinculante, que no Brasil vem sendo chamado – e até pelo texto do CPC é assim designado – de precedente tem uma certa eficácia retroativa. Nesse caso, então, o acórdão acaba funcionando como uma espécie de (perdoe-se o neologismo) “pós-cedente”.” (CÂMARA, 2022, p. 36)
No mais, ainda que se reconheça a possibilidade de eficácia retroativa dos precedentes, não se ignora que o CPC, nos §§ 3º e 4º do art. 927, apresentaram expressamente a possibilidade de modulação dos efeitos da alteração da jurisprudência dos Tribunais, sedimentadas em súmulas ou precedentes, diante da garantia da segurança jurídica, senão vejamos:
§ 3º Na hipótese de alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica.
§ 4º A modificação de enunciado de súmula, de jurisprudência pacificada ou de tese adotada em julgamento de casos repetitivos observará a necessidade de fundamentação adequada e específica, considerando os princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da isonomia.
Fato é, a estabilização da decisão saneadora, conquanto reforce sua importância como marco final da primeira fase do procedimento bifásico, gerando efeitos prospectivos, merece ser mitigada nos casos em que situações supervenientes, especificamente, a superação, modificação ou cancelamento de algum padrão decisório outrora reconhecido, sem que isso represente ofensa a segurança jurídica, desde que garantido o contraditório substancial, à luz do princípio da vedação à decisão surpresa.
9.Da aplicabilidade da tese desenvolvida
9.1 Caso hipotético – temas repetitivos 952 e 1016 do Superior Tribunal de Justiça
A fim de materializar o método e a teoria desenvolvida no presente artigo, concretizado a hipótese de análise da decisão saneadora à luz dos precedentes qualificados e súmulas vinculantes, propõe-se a análise do tema repetitivo 952 do Superior Tribunal de Justiça no qual foi discutida a validade da cláusula contratual de plano de saúde que prevê o aumento da mensalidade conforme a mudança de faixa etária do usuário.
A tese repetitiva firmada pelo STJ assim sedimentou:
O reajuste de mensalidade de plano de saúde individual ou familiar fundado na mudança de faixa etária do beneficiário é válido desde que (i) haja previsão contratual, (ii) sejam observadas as normas expedidas pelos órgãos governamentais reguladores e (iii) não sejam aplicados percentuais desarrazoados ou aleatórios que, concretamente e sem base atuarial idônea, onerem excessivamente o consumidor ou discriminem o idoso.
Considerando a temática jurídica apresentada podemos vislumbrar um processo em que o Autor postula a revisão do reajuste aplicado a sua mensalidade do plano de saúde ao fundamento de que estaria sendo baseado exclusivamente na mudança de faixa etária. Para tanto, ciente do padrão decisório do STJ, alega a incidência do tema repetitivo 952, informando que: i. não foi fornecido pelo plano de saúde o contrato firmado entre as partes e ii. os percentuais de aumento são desarrazoados.
Nessa hipótese, aplicando-se os vetoriais desenvolvidos no presente trabalho, quando da decisão saneadora do art. 357 do CPC, é dever do magistrado fixar como pontos controvertidos: i. A existência de previsão contratual expressa, que pode ser vista como um ônus da parte autora, ou, aplicando-se a distribuição dinâmica do ônus probatório (art. 373, §1º CPC) converter esse ônus a parte ré; ii. Como pode se provar o aumento aleatório ou desarrazoado das mensalidades? Seria necessária prova pericial?
O ponto nodal do processo está na aplicabilidade ou não do tema 952 do STJ. E nessa medida, não pode a decisão saneadora ser omissa quanto a essas questões, sob pena de afronta aos princípios do contraditório, da segurança jurídica, da proteção da confiança e da isonomia.
Imagine-se, hipoteticamente, que o magistrado é silente quanto a necessidade de produção probatória no tocante a existência de cláusula contratual, num processo em que o autor não apresentou o contrato por não o possuir. Neste caso, poderia o magistrado, no momento da sentença, julgar improcedente o pedido ao argumento de que o autor não se desincumbiu do seu ônus probatório pois deixou de apresentar o contrato de plano de saúde?
Parece que não, pois era dever do juiz ter fixado esse ponto como controvertido na decisão saneadora. E se não o fez, estaremos diante de uma decisão que fere o dever de cooperação, o princípio da primazia da decisão de mérito, e, sobretudo, a vedação à decisão surpresa.
Na mesma linha, se ao final, o magistrado indefere o pedido exordial por ausência de comprovação do alegado aumento exorbitante, mas quando do despacho saneador entendeu que era prescindível prova pericial para comprovar a disparidade do percentual de aumento, mais uma vez terá afrontado o contraditório dinâmico, retirando do autor a possibilidade de influenciar a decisão.
E ainda pode se pensar em hipótese distinta, considerando-se que o plano de saúde contratado pelo autor era um plano coletivo. Nesse caso, seria aplicável a tese 952?
Veja-se, até recentemente, não seria cabível responder esse questionamento de forma objetiva, vez que, desde a fixação do tema 952, em 2016, instaurou-se profunda controvérsia quanto a incidência do entendimento lá qualificado com a distinção entre planos individuais e coletivos.
Nesse interim, por certo, muitos foram os processos em que se aplicou a tese, reconhecendo que as razões de decidir também se aplicaria na presente hipótese, porém, outras tantas foram as lides em que se negou a aplicabilidade do julgado vinculante ao argumento de que não incidiria sobre planos coletivos.
Independente do caminho, emerge mais uma vez a importância da decisão de organização, na medida que, nas referidas situações hipotéticas, deveria o magistrado, ao fim da primeira fase do procedimento bifásico, ter pontuado de forma objetiva, que: embora não houvesse previsão contratual de reajuste e o aumento fosse desarrazoado, inaplicável seria a tese 952 STJ posto que atenderia apenas aos planos individuais.
Atualmente, com a edição do tema repetitivo 1016 do STJ, o dilema cessou, já que foi firmado que:
(a) Aplicabilidade das teses firmadas no Tema 952/STJ aos planos coletivos, ressalvando-se, quanto às entidades de autogestão, a inaplicabilidade do CDC;
(b) A melhor interpretação do enunciado normativo do art. 3°, II, da Resolução n. 63/2003, da ANS, é aquela que observa o sentido matemático da expressão 'variação acumulada', referente ao aumento real de preço verificado em cada intervalo, devendo-se aplicar, para sua apuração, a respectiva fórmula matemática, estando incorreta a simples soma aritmética de percentuais de reajuste ou o cálculo de média dos percentuais aplicados em todas as faixas etárias.
Assim, na linha do que foi desenvolvido no presente artigo, e diante da eficácia ex tunc dos precedentes, podemos pensar na hipótese em que havia sido negado o direito a incidência do tema 952 STJ, quando da decisão de gerenciamento do processo – art. 357 CPC - pois tratava-se de plano de saúde coletivo, e com a superveniência do tema 1016, o magistrado profira nova decisão saneadora, arguindo acerca da aplicabilidade da nova tese, garantido aos atores processuais o contraditório substancial e visando a vedação à decisão de terceira via.
9.2 Caso concreto – processo nº 5016945-36.2022.4.02.5101 – 3ª Vara Federal de Execução Fiscal do Rio de Janeiro
Após intensa pesquisa jurisprudencial foi possível identificar o processo em referência no qual a magistrada proferiu despacho, antecedente a decisão saneadora, apresentando narrativa muito próxima da que está sendo proposta no presente artigo, senão vejamos:
EMBARGOS DE TERCEIRO Nº 5016945-36.2022.4.02.5101/RJ
EMBARGANTE: VANESSA AMORIM JENSEN EMBARGANTE: MARIA TERESA AMORIM JENSEN
EMBARGADO: INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL - INSS DESPACHO/DECISÃO.
1.Na forma dos artigos 1035 §5º e 1036 do CPC, digam as partes, em 10 dias, se há repercussão geral do Eg. STF ou recurso repetitivo do Eg. STJ apto a ensejar o sobrestamento do feito.
2.Esclareçam as partes, no mesmo prazo, se desejam produzir prova (documental/pericial que desde logo faculto, em atenção à não surpresa), JUSTIFICANDO-AS E APONTANDO – A PARTIR DAS CAUSAS DE PEDIR FORMULADAS NA PEÇA INICIAL – DE FORMA ANALÍTICA OS FATOS CONTROVERSOS, a fim de viabilizar o exame pelo juízo de sua utilidade e essencialidade para a solução da lide.
Recorde-se que nosso sistema processual probatório deve ser manejado para dirimir controvérsias pertinentes a QUESTÕES DE FATO, exclusivamente.
Extrai-se da decisão supra, uma intenção, ainda que embrionária, muito próxima da formulada na tese ora desenvolvida, na medida que, a fim de evitar decisão surpresa, a magistrada requer que as partes informem se há alegação de algum recurso repetitivo ou repercussão.
Aliás, debruçando-se sobre o trabalho desenvolvido por Marcelo Abelha Rodrigues, ao comparar o despacho saneador no Brasil e em Portugal, é cabível reconhecer na decisão supra, o que o direito português já reconheceu como despacho pré-saneador, que era previsto no Código de Processo Civil Português de 1939, conforme leciona Abelha:
“Do que se percebe acima, do diploma português de 1939, resta claro que há um momento procedimental muito importante de gestão do processo e se situa entre o fim da fase dos articulados e a eventual fase de instrução e julgamento. Colhe-se do referido diploma a existência de um momento pré-saneador, um momento saneador e um momento pós-saneador, aqui entendido como momento de condensação das questões de fato que deverão ser objeto de prova.” (RODRIGUES, 2021: p.39)
Nesta senda, digna de elogios a decisão proferida pela juíza federal, Fernanda Duarte Lopes Lucas da Silva, da qual se extrai a nítida intenção de evitar a decisão surpresa, à luz do contraditório substancial e da sistemática dos precedentes, exatamente como sugerido no presente trabalho.
Assim, após a manifestação das partes, com a consequente prolação da decisão saneadora do artigo 357 do CPC, em decorrência lógica do despacho anterior e tendo em conta a resposta dos sujeitos processuais, provavelmente a magistrada irá indicar, de forma fundamentada, a aplicabilidade ou não de algum precedente suscitado.
9.3 Caso concreto – processo nº 0220321-06.2019.8.19.0001 – 10ª Vara Cível da Comarca da Capital/RJ
Como último caso exemplificativo, traz-se a decisão saneadora proferida nos autos do processo em epígrafe, no qual o magistrado enumera os fatos sobre os quais cai a controvérsia trazida a juízo e identificando as provas a serem produzidas.
A decisão é digna de citação, embora não trate de nenhum caso de aplicabilidade de padrões decisórios, mas tão somente por ter sido proferida, já que na maioria dos processos pesquisados, os julgadores sequer proferem a decisão de gerenciamento do processo da forma como determina o art. 357.
Decisão fl. 531
Presentes os pressupostos processuais, e regulares as condições para o regular exercício do direito de ação, declaro saneado o presente feito, passando-se à organização do processo.
Não obstante muito se ter explanado acerca de "chargeback", o fato é que, de acordo com os pedidos deduzidos pelo autor, a controvérsia se cinge a (i) a licitude da conduta da ré quanto ao bloqueio dos valores referentes às operações que não foram objeto de "chargeback", (ii) a ocorrência de danos materiais e morais, sua extensão e a responsabilidade da parte ré pelos mesmos.
Apesar de ser conhecida a longa discussão acerca da natureza consumeirista da relação contratual estabelecida entre as partes, não é cabível, na hipótese vertente, a inversão do ônus da prova, data venia.
Isso porque a distribuição do ônus probatório no caso destes autos impõe à parte autora que comprove que, de acordo com a legislação vigente, a conduta da ré, ao bloquear valores referentes a transações que não foram alvo de "chargeback", foi ilícita, enquanto se impõe à ré a demonstração de que, ainda de acordo com a mesma legislação, agiu de forma lícita.
Assim, indefiro o pedido de inversão do ônus da prova, e, na mesma linha de raciocínio, indefiro a produção das provas requeridas pelas partes.
Nada mais sendo requerido, venham os autos conclusos para sentença.
Intimem-se.
A decisão é merecedora de destaque e reverência a tecnicidade e preocupação do juiz, Ricardo Cyfer, não só por dar concretude ao texto legal do art. 357 CPC, como também pela decisão seguinte, que atendendo ao pedido de esclarecimentos do Autor, proferiu outra decisão, aclarando as questões pontuadas:
Decisão fl. 547
Quanto ao primeiro esclarecimento a que se refere a parte autora a fls. 543/544, na verdade, o que há na petição é a exposição de dois fatos.
O primeiro, a afirmação do autor de que anexou à inicial as planilhas de adiantamento junto ao seu banco, e a segunda, de que "o dano material, requerido, (sic) significa a devolução em dobro dos valores indevidamente bloqueados", não se identificando, portanto, o teor do esclarecimento solicitado.
No que diz respeito ao segundo esclarecimento pedido na petição acima referida, a prova do ponto controverso "i" compete à ré produzir, e a do ponto "ii", à parte autora.
Nessa medida, pode se concluir, que certamente este julgador, ao se deparar com uma situação fática que permita a aplicação de algum padrão decisório, irá proferir decisão saneadora nos termos em que foi apresentada no presente trabalho, considerando sua preocupação em garantir aos jurisdicionados a efetividade do modelo coparticipativo positivado pelo legislador adjetivo.
10.Considerações finais
A decisão de saneamento e organização do processo desde os seus primórdios sempre foi merecedora de deferência pelos operadores do direito, porquanto, sua função no gerenciamento do processo e na inauguração da segunda fase do procedimento bifásico do processo de conhecimento, através da racionalidade que dele se espera, denota sua superior importância na concretude do devido processo legal substancial, notadamente na efetividade e eficiência que se espera da jurisdição num Estado Democrático de Direito.
Com o presente artigo buscou-se problematizar o dispositivo inserto no art. 357 do Código de Processo Civil, especialmente sob seu viés prospectivo, introduzindo-se uma nova hipótese, considerando-se a amplitude do texto legal à luz da sistemática dos precedentes.
A formulação visa a inserção de um capítulo específico na decisão saneadora, em que se propôs que o julgador, antes de lançar a decisão saneadora, responda mentalmente alguns questionamentos: (i) Há pedido das partes para aplicação de algum precedente/súmula nos termos do art. 927 do CPC?; (ii) Há pleito de distinguishing em relação aos mesmos padrões decisórios?; (iii) A causa comporta a aplicação de algum precedente, considerando a possibilidade de reconhecimento de ofício?
Essas proposições são resultado do gerenciamento do processo no olhar para o futuro, que se encontra atrelado ao direito à prova, corolário do contraditório substancial, o que conduz a necessidade de o julgador solucionar mais um questionamento: quais provas devem/podem ser produzidas pela parte para comprovar ou infirmar a incidência de um precedente?
Ultrapassadas estas etapas, e com o fito de resguardar o princípio da vedação à decisão de terceira via, esse dever de gestão que é conferido ao magistrado no despacho saneador, mas que nele não se exaure, sustenta-se a positivação de um capítulo do despacho saneador, cujo texto sugestivo pode ser assim redigido: Considerando-se a controvérsia quanto a aplicabilidade ou não do precedente/súmula, como questão de direito relevante para a decisão de mérito, defino que a atividade probatória deve ser orientada no sentido de (...), admitindo-se, para tanto, a produção dos seguintes meios de prova (...).
Nesta senda, a hipótese que aqui se propõe, não só parte da notória importância da decisão saneadora, mas para além disso, entrelaça sua temática com a vinculação aos padrões decisórios que foi reforçada e ratificada pelo legislador do Código de Processo Civil de 2015.
Explicitou-se a imprescindibilidade da extração da ratio decidendi dos padrões decisórios – precedentes e súmulas – para que as teses formuladas pelas partes sejam confrontadas com os fundamentos da causa-piloto, evitando-se distorções que podem conduzir a decisões equivocadas.
Considerou-se que a eficácia prospectiva do despacho saneador irradia seus efeitos para a sentença e até mesmo em grau recursal, não só porque gerencia e orienta o encadeamento do processo gerando uma necessária congruência entre o saneamento e a sentença, como também porque inúmeros são os dispositivos espalhados pelo Código que informam a vinculação necessária de diversos padrões decisórios.
Conquanto se reconheça que a hipótese que ora se emoldura possa ser passível de crítica por gerar um ônus excessivo ao julgador, não há como admitir que os magistrados continuem negligenciando essa importante decisão, se esquivando de gerenciar o processo de forma racional e coparticipativa.
E para que não reste dúvidas quanto a necessidade de acolhimento da tese formulada, foram apresentados dois casos reais e um hipotético que corroboram a dimensão da decisão de organização do processo, como instrumento de concretização do direito à vinculação dos precedentes e sua umbilical relação com a atividade probatória e a vedação à decisão surpresa.
Num Estado que propaga ser democrático, não há processo que se legitime sem que se respeite os postulados constitucionais da segurança jurídica, da proteção à confiança, do contraditório dinâmico e da isonomia substancial.
11.Referências
CÂMARA, Alexandre Freitas. Manual de direito processual civil. 1. ed. – Barueri/SP: Atlas, 2022.
DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil: teoria da prova, direito probatório, ações probatórias, decisão, precedente, coisa julgada e antecipação os efeitos da tutela. 12. ed. – Salvador/BA: Jus Podvim, 2016.
_____. Curso de direito processual civil: o processo civil nos tribunais, recursos, ações de competência originária de tribunal e querela nullitatis, incidentes de competência originária de tribunal. 14. ed. reform. – Salvador/BA: Jus Podvim, 2017.
_____. Curso de direito processual civil: introdução ao direito processual civil, parte geral e processo de conhecimento. 19. ed. – Salvador/BA: Jus Podvim, 2017.
RODRIGUES, Marcelo Abelha. O despacho pós saneador no Brasil e em Portugal. Londrina/PR: Toth, 2021.
https://books.google.com.br/books/about/SANEAMENTO_DO_PROCESSO.html?id=R5MtEAAAQBAJ&printsec=frontcover&source=kp_read_button&hl=pt-PT&redir_esc=y#v=onepage&q&f=true
https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-processual-civil/o-codigo-de-processo-civil-e-a-logica-bifasica-no-procedimento-comum-o-saneamento-do-processo-no-paradigma-da-cooperacao/
https://processualistas.jusbrasil.com.br/artigos/566990639/primeiras-impressoes-sobre-a-estabilidade-da-decisao-saneadora
https://www.academia.edu/34224708/SANEAMENTO_DO_PROCESSO_ESTABILIDADE_E_COISA_JULGADA
http://genjuridico.com.br/2016/05/10/as-provas-e-onus-dinamico-no-ncpc-e-seus-desdobramentos-para-o-processo-do-trabalho/
https://www.nucleodoconhecimento.com.br/lei/saneamento-e-organizacao
Analista Processual da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro. Pós-graduada em Direito Público e Direito Processual Civil.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOARES, Adriana da Silva Pena. A decisão saneadora à luz da atividade probatória, da vedação à decisão surpresa e como instrumento de concretização do direito à vinculação aos precedentes Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 18 mar 2024, 04:40. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/64914/a-deciso-saneadora-luz-da-atividade-probatria-da-vedao-deciso-surpresa-e-como-instrumento-de-concretizao-do-direito-vinculao-aos-precedentes. Acesso em: 22 nov 2024.
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