RESUMO: O presente trabalho tem a finalidade de elucidar em que medida a condução coercitiva para o interrogatório pode ser inconstitucional. Para isto, faz-se uma análise do instituto da condução coercitiva para fins de interrogatório, à luz da Constituição Federal de 1988 e da jurisprudência do STF, firmada recentemente no julgamento das ADPF’s 395/DF e 444/MG. Destarte, visando entender a complexidade do tema exposto, realiza-se uma análise qualitativa de natureza descritiva e exploratória dos institutos apresentados, por meio de pesquisas bibliográficas, com a finalidade de, através dos posicionamentos doutrinário e jurisprudencial, abalizar o presente trabalho. Então, como resultado da pesquisa, verifica-se que o pretório excelso decidiu de forma acertada, pela inconstitucionalidade da medida, por ela violar o direito à liberdade de locomoção e o princípio da não culpabilidade.
Palavras-chave: Condução coercitiva; Interrogatório; Inconstitucionalidade.
ABSTRACT: The present work aims to elucidate the extent to which coercive interrogation may be unconstitutional. To this end, an analysis of the institute of coercive conduct for interrogation purposes is carried out, in light of the Federal Constitution of 1988 and the jurisprudence of the STF, recently established in the judgment of ADPF's 395/DF and 444/MG. Therefore, aiming to understand the complexity of the exposed topic, a qualitative analysis of a descriptive and exploratory nature of the institutes presented is carried out, through bibliographical research, with the purpose of, through doctrinal and jurisprudential positions, supporting the present work. So, as a result of the research, it appears that the excellent praetorium decided correctly, that the measure was unconstitutional, as it violated the right to freedom of movement and the principle of non-culpability.
Keywords: Coercive driving; Questioning; Unconstitutionality.
1 introdução
Recentemente, as polícias judiciárias vêm realizando importantes investigações criminais, com a finalidade de combater os infratores da lei. Exemplo disso cita-se a “Operação Lava Jato”, promovida pela Polícia Federal e pelo Ministério Público Federal, que visou apurar um esquema de lavagem de dinheiro que movimentou bilhões de reais em propina (BARRETO, 2019).
Todavia, as autoridades passaram a empregar, a medida de condução coercitiva, de forma indiscriminada, a fim de obrigar o indivíduo, sob a força policial, participar de interrogatório, frente à autoridade competente. Nesse sentido, utilizavam-se da referida medida, como espécie de elemento surpresa, que se dava sem prévia intimação do conduzido, muito menos sem sua recusa, portanto, em desacordo à previsão legal.
A vasta utilização da medida chamou atenção. A doutrina e muitos juristas começaram a se resignar com a temática. Eis que em abril de 2016, foi proposta perante o Supremo Tribunal Federal (STF), a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 395, atacando a utilização da medida, tanto na fase de investigação, quanto na fase judicial, baseando-se na violação ao direito a não autoincriminação, pelo que foi requerida a declaração de não recepção parcial do art. 260 do CPP, pela CRFB/88.
Em seguida, em março de 2017, foi proposta a ADPF 444, pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (CFOAB). A referida, por sua vez, foi mais restrita quanto ao seu objeto, atacando a medida apenas em fase de investigação, mas sustentando um rol maior de direitos violados, sendo eles, os direitos ao silêncio, do devido processo legal, da ampla defesa, do contraditório, da paridade de armas e do sistema acusatório, bem como ao princípio da imparcialidade.
Assim, objetiva-se com este trabalho, explorar os institutos processuais da condução coercitiva e do interrogatório, depois, analisá-los em face da Constituição Federal de 1988, bem como da jurisprudência do STF, e identificar quais as consequências resultantes da decisão, aos investigados, após a declaração de inconstitucionalidade.
Justifica-se o desenvolvimento desta temática, pela minha inquietação com relação à forma como a medida tem sido utilizada por determinadas autoridades, que na direção de investigações, pretendem transformar prisões e conduções coercitivas em verdadeiros espetáculos midiáticos, os quais desgastam de forma irreparável a imagem do conduzido, violando, assim, direitos e garantias fundamentais, como do princípio da presunção de inocência.
Para alcançar a resposta da inquietação acima exposta, foi adotada a metodologia de natureza exploratória, por meio de pesquisas bibliográficas às principais fontes jurídicas, quais sejam: a doutrina, jurisprudência, legislação nacional e declarações internacionais no âmbito dos direitos humanos e fundamentais.
2 A CONDUÇÃO COERCITIVA PARA O INTERROGATÓRIO À LUZ DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL E DA JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
A condução coercitiva para fins de interrogatório do acusado, cuja previsão legal advém do disposto no artigo 260, do Código de Processo Penal, durante muito tempo foi combatida pelos doutrinadores e advogados atuantes no âmbito penal, sob o argumento que a medida não é compatível com a Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 2019).
Em razão disso, recentemente, o referido instituto foi atacado pela Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 395, interposta pelo Partido dos Trabalhadores (PT), e posteriormente, pela Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 444, interposta pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (CFOAB) (BARRETO, 2019).
A ação é prevista no artigo 102, §1º, da Constituição Federal de 1988 e na Lei nº 9.882/99. Sua função é combater determinada espécie normativa frente à CRFB/88, perante o Supremo Tribunal Federal, a fim de declarar sua inconstitucionalidade (BRASIL, 2019).
No caso concreto, a ADPF 395 sustentou que o instituto da condução coercitiva para fins de interrogatório viola o direito a não autoincriminação (direito ao silêncio), direito ao tempo necessário à preparação da defesa (direito a ampla defesa), direito à liberdade de locomoção e o direito à presunção de inocência (não culpabilidade).
Em razão disso, requereu-se a declaração da não recepção parcial do artigo 260 do CPP, no tocante a permissão da condução coercitiva do investigado ou do réu para a realização de interrogatório. E, também, a declaração da inconstitucionalidade do uso da condução coercitiva como medida cautelar autônoma com a finalidade de obtenção de depoimentos de suspeitos, indiciados ou acusados em qualquer investigação de natureza criminal.
Posteriormente, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil também ajuizou perante o Supremo Tribunal Federal a ADPF 444, que por sua vez, foi mais restrita quanto ao objeto, atacando a medida apenas em fase de investigação, mas sustentando a violação de um rol maior de direitos fundamentais (BARRETO, 2019).
Sendo eles, princípio da imparcialidade (art. 5º, § 2º, CRFB/88 c/c art. 8, I, do Pacto de San José da Costa Rica); direito ao silêncio (art. 5º, LXIII, da CRFB/88); princípio do nemo tenetur se detegere (direto a não autoincriminação); princípio do sistema penal acusatório (art. 156, caput, do CPP ); devido processo legal (art. 5º, inc. LIV, da CRFB/88); paridade de armas; ampla defesa e contraditório (art. 5º, LV, da CRFB/88).
2.1 Julgamento das ADPF’s 395 e 444: O que o plenário do STF entendeu acerca da (in)constitucionalidade da condução coercitiva para fins de interrogatório?
O Supremo Tribunal Federal, por maioria dos votos (6 a 5), e nos termos do voto do Relator, julgou procedentes as referidas Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental, pelo que declarou a não recepção da expressão “para o interrogatório”, contida no artigo 260 do CPP, bem como a incompatibilidade da condução coercitiva com a CRFB/88, pelo que os agentes que a praticarem estarão sujeitos a responsabilização disciplinar, civil e penal, e as provas obtidas declaradas ilícitas, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado (BRASIL, 2019).
Segundo o entendimento firmado pela Suprema Corte a utilização da medida de condução forçada do suspeito para ser interrogado, constitui manifesta supressão do direito de liberdade de locomoção do indivíduo, e violação ao princípio da presunção de não culpabilidade, pelo que se revela incompatível com o texto constitucional.
O tribunal modulou os efeitos da decisão, atribuindo-lhe o efeito ex nunc e declarou que o novo entendimento não desconstituiria interrogatórios realizados até a data do presente julgamento, mesmo que os interrogados tenham sido coercitivamente conduzidos para tal ato. Assim, a decisão exarada não tem efeito retroativo (BARRETO, 2019).
Assim, apresenta-se nesse texto a transcrição dos votos dos ministros acerca do julgamento das ADPF’s 395 e 444. É importante destacar que as análises que se seguem foram extraídas do acórdão que julgou a medida da condução coercitiva para fins de interrogatório incompatível com a Constituição Federal de 1988.
Desse modo, serão expostas as teses arguidas em favor da manutenção do emprego da medida perante a atual ordem constitucional, e posteriormente, a exposição dos posicionamentos contrários, de acordo com a conformidade dos argumentos proferidos durante o julgamento.
O Min. Alexandre de Moraes votou no sentido da procedência parcial das ações, “com a declaração parcial de inconstitucionalidade, sem redução de texto, do art. 260 do CPP, para excluir a decretação direta da condução coercitiva, sem prévia intimação, baseada no poder geral de cautela conferido ao magistrado” (STF, 2018).
No voto, ele afirmou ser possível o uso da condução coercitiva, desde que assegurado o devido processo legal, garantido o direito ao silêncio e a não autoincriminação, devendo a medida ser aplicável somente nas hipóteses em que o investigado seja intimado e, injustificadamente, deixar de comparecer ao ato.
O Min. Edson Fachin, considerou a condução coercitiva compatível com a ordem constitucional, desde que decretada de acordo com os requisitos previstos art. 260 do CPP, quais sejam, intimação prévia e descumprimento injustificado, bem como quando com a utilização da medida se pretender beneficiar o investigado ou acusado, neste caso, ainda que não haja intimação (STF, 2018).
Nesta esteira, o ministro julgou improcedentes os pedidos da ADPF nº 395 (PT) e acolheu o pedido subsidiário da ADPF nº 444 (CFOAB), declarando a interpretação conforme ao artigo 260 do CPP, ressalvando a possibilidade de decretação judicial e fundamentada da condução coercitiva, em caso de decretação substitutiva por medidas cautelares mais graves como a prisão preventiva e a prisão temporária, e assim, declarar a inconstitucionalidade de sua interpretação extensiva.
O Min. Luis Roberto Barroso se manifestou favoravelmente a possibilidade de decretação da condução coercitiva, desde que o indivíduo seja previamente notificação para o ato, e posteriormente descumpra, bem como nas hipóteses em que o instituto seja empregado em favor do investigado ou acusado (BARROSO, 2018).
O Min. Luiz Fux, considerou o art. 260 do CPP compatível com a CRFB/88. De acordo com ele, a condução coercitiva pode ser determinada desde que seja assegurado o direito ao silêncio, o direito ao acompanhamento por advogado, direito à preservação da integridade física e psíquica (STF, 2018).
Por fim, a Min. Cármen Lúcia também manifestou seu entendimento no sentido de que condução coercitiva é compatível com a carta constitucional, e que os abusos praticados em investigação têm de ser resolvidos nos termos da legislação, mas não aniquilam o instituto (STF, 2018).
No mais, a Ministra acompanhou o voto do Ministro Fachin, sendo favorável à utilização da medida após a prévia intimação para o ato e o descumprimento pelo acusado ou investigado, bem como quando for utilizada como alternativa a imposição de medidas cautelares mais gravosas.
Sob outra perspectiva, o Min. Gilmar Mendes, relator das duas ADPF’s, encabeçou os votos pela inconstitucionalidade da condução coercitiva para o interrogatório, asseverando que o modo como as autoridades vem realizando as conduções coercitivas vem representando restrição à liberdade de locomoção, bem como violação ao direito à presunção de não culpabilidade (STF, 2018).
A Min. Rosa Weber, seguiu o voto do relator Min. Gilmar Mendes, segundo a qual o interrogatório apresenta a oportunidade de o investigado expor a sua versão dos fatos, enquanto faculdade, só ao investigado ou réu cabe exercê-la ou não, pois a garantia constitucional de permanecer em silêncio impede qualquer imposição legal ou judicial, ao investigado ou réu para efeito de interrogatório perante qualquer autoridade. Razão pela qual nenhuma consequência desfavorável a ele pode advir dessa opção (STF, 2018).
O Ministro Ricardo Lewandowski, na mesma esteira, declarou que ausentes os requisitos da custódia cautelar, não se pode impor a condução coercitiva como medida alternativa a decretação da prisão preventiva. Ressaltou que no CPP não há medidas cautelares inominadas, tampouco o juiz criminal possui um poder geral de cautela, e que o processo penal se trata de um instrumento limitador do poder punitivo estatal, devendo ser conduzido na estrita observância à lei (STF, 2018).
Além disso, frisou que ainda na hipótese de não atendimento à prévia intimação, não soa razoável conduzir coercitivamente o individuo, por que ele possui o direito ao silêncio. Assim, se o indivíduo deixa de comparecer ao ato, deve-se entender que ele exerceu esse direito.
O Min. Dias Tóffoli seguiu o voto do relator para declarar a procedência de ambas ações, afirmando que o magistrado deve estar vinculado às hipóteses legais de restrição de liberdade, razão pela qual não pode impor medida cautelar diversa daquelas previstas expressamente na lei. Para o Ministro, não se pode interpretar de forma extensiva o artigo 260 do CPP (STF, 2018).
O Min. Marco Aurélio, também arguiu a incompatibilidade do instituto com a CRFB/88, haja vista que a medida configura uma forma de prisão, pois suprime, mesmo que por breve espaço de tempo, a liberdade de ir e vir do cidadão. Com efeito, disse que a medida não atende a sua finalidade, já que o investigado tem o direito de nada declarar. Desse modo, manifestou-se pela não recepção do instituto pela CRFB/88 (STF, 2018).
Ao final, o decano Ministro Celso de Mello, seguiu, de forma integral, o voto do relator, asseverando que “o direito ao silêncio – e o de não produzir provas contra si próprio – constitui prerrogativa individual que não pode ser desconsiderada por qualquer dos Poderes da República” (STF, 2018).
Para o magistrado a impossibilidade de constranger o indivíduo a comparecer, através da condução coercitiva, diante da autoridade policial ou judiciária, para fins de interrogatório, resulta não só do sistema de proteção das liberdades fundamentais, mas também, da própria natureza jurídica do ato de interrogatório, que é considerado como meio de defesa do acusado, especialmente a partir do novo tratamento normativo que a Lei 10.792/03 o conferiu (STF, 2018).
Por todo o exposto, o plenário do STF julgou procedentes as referidas Arguições, para declarar a incompatibilidade da previsão legal de condução coercitiva de investigados ou de réus para interrogatório à luz da Constituição Federal, tendo em vista que o imputado não é legalmente obrigado a participar do ato, pelo que foi pronunciada a não recepção da expressão “para o interrogatório”, constante do art. 260 do CPP.
2.2 Direitos manifestamente violados
Não obstante a peça preambular das ADPF’s 395 e 444 terem pleiteado a declaração de inconstitucionalidade da condução, por violar o princípio da dignidade da pessoa humana, e os direitos ao silêncio, ao sistema penal acusatório, ao devido processo legal, à ampla defesa e ao contraditório, o STF declarou que a medida viola apenas os direitos à liberdade de locomoção e da presunção de inocência. (BARBAGALO, 2015).
Diante disso, passa-seei a análise dos supramencionados direitos fundamentais que o STF, através do pleito das referidas ADPF’s, respectivamente, ajuizadas pela legenda do PT e pelo CFOAB, declarou violados, com fito de embasar a análise acerca da (in)constitucionalidade do instituto da condução coercitiva.
2.2.1 Princípio da presunção de não culpabilidade
O princípio da não culpabilidade, também denominado princípio da presunção de inocência, segundo Barbagalo (2015, p. 11) “é uma garantia concebida a partir do princípio da dignidade da pessoa humana e desenvolvida a partir do devido processo legal que se encontra abrigada nos principais diplomas internacionais e nas constituições de praticamente todo mundo”.
A origem deste princípio é identificada no século XVII, durante a Revolução Francesa. Sua previsão legal foi estampada no art. 9º, da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, diploma emblemático que garantiu internacionalmente direitos fundamentais ao homem (BARBAGALO, 2015). Registra-se que à época vigorava o sistema processual inquisitório, no qual o indivíduo não gozava de garantias de proteção contra o arbítrio do estado.
No direito brasileiro, sua incorporação se deu a partir da Carta Republicana de 1988, e nossa Constituição Federal trata a presunção de não culpabilidade, como valor normativo a ser considerada em todas as fases da persecução penal, seja na fase investigativa, denominada como fase policial, seja na fase judicial, quando propriamente já existe uma ação penal (PACELLI, 2017).
O direito a presunção de inocência está expressamente previsto no art. 5º, LVII, da Constituição, e prevê que: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”; sendo um dos princípios basilares do processo penal (BRASIL, 1988).
Todavia, nem sempre foi assim. Antes da vigência da Constituição Federal de 1988, esse princípio somente existia de forma implícita, como decorrência do devido processo legal (COELHO, 2019) porque o originário Código de Processo Penal de 1941, foi elaborado e construído a partir de uma mentalidade de presunção de culpabilidade (PACELLI, 2017), razão pela qual não existia presunção de inocência, e sim, presunção de culpabilidade.
Desse modo, é vedado ao Estado tratar o suspeito como culpado, pois não são raros os casos em que um indivíduo é processado pelo órgão acusador e após a instrução processual as provas revelam sua inocência. Ou até antes, quando o juiz rejeita a denúncia, por faltar pressupostos que permitam julgar o fato. Se tornar réu, não significa ser culpado. A declaração de culpa prescinde de trânsito em julgado de sentença penal condenatória.
Nesse sentido, (BECCARIA apud (COELHO, 2019, p. 43), em sua magnífica obra Dos delitos e das penas, já asseverava que “um homem não pode ser chamado réu antes da sentença do juiz, e a sociedade só lhe pode retirar a proteção pública após ter decidido que ele violou os pactos por meio dos quais ela lhe foi outorgada”.
Em âmbito internacional, o princípio da não presunção de culpabilidade também está previsto no artigo 11.1 da Declaração Universal de Direitos Humanos, aprovada em 1948, pela Assembleia da Organização da Nações Unidas (ONU), onde prevê que: “Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não se prova sua culpabilidade, de acordo com a lei e em processo público no qual se assegurem todas as garantias necessárias para sua defesa”.
Desse modo, o princípio da presunção de inocência além de representar um direito, também é uma garantia ao acusado, porque através dela se impõe limites ao Estado em face do acusado, de modo a protegê-lo de ilegalidades, que podem ocorrem por meio de medidas restritivas de direitos, e até mesmo de liberdade.
A essência do princípio reside em dever de tratamento. Este dever, segundo Lopes, Jr. (2016, p. 398) se subdivide nas dimensões interna e externa ao processo. Na dimensão interna, significa que dentro do processo o estado-juiz e o órgão acusador devem tratar o individuo como inocente, não abusando de medidas cautelares, por exemplo.
Neste ponto a condução coercitiva para fins de interrogatório se contrapõe ao princípio da presunção de não culpabilidade, pois ao retirar o indivíduo do seu lar, contra a sua vontade, para participar de um ato ao qual não é legalmente obrigado, frente à autoridade policial ou judiciária, que deseja obter informações, ele é tratado como se culpado fosse, sofrendo violações aos seus direitos fundamentais garantidos na Constituição, bem como em tratados e convenções internacionais.
Na dimensão externa, significa imposição de limites frente à exposição abusiva do acusado, a fim de evitar a estigmatização do individuo perante a sociedade. Nesse sentido, Lopes (2016) aduz que, o referido princípio visar proteger o indivíduo dos efeitos provocados pela espetacularização midiática criada pelas operações policiais, que criam uma publicidade abusiva acerca do individuo, de modo a provocar um pré-julgamento do indivíduo perante a sociedade, podendo influenciar até mesmo na formação da convicção do julgador.
Ressalta-se que, tratar o indivíduo como presumivelmente inocente, não significa impedir o Estado de utilizar medidas cautelares contra acusados, porque em certos casos são úteis para a efetividade da investigação criminal e para deslinde do processo criminal.
Nesse sentido, (CANOTILHO apud COELHO, 2019, p. 45) aduz que “se o princípio for visto de uma forma radical, nenhuma medida cautelar poderá ser aplicada ao acusado, o que, sem dúvida, acabará por inviabilizar o processo penal”. Para isso, ideal seria que a medida cautelar fosse decretada em caráter excepcional, cuja utilização instrumental se mostrasse necessária à luz do caso concreto, diferentemente do que se observa ao longo de várias operações de investigação ocorridas no país.
Desse modo, a medida que conduz o individuo sob custódia por forças policiais, não constitui tratamento que normalmente se aplica a pessoas inocentes, pois o conduzido é claramente tratado como culpado (MENDES, 2018). Portanto, o STF considerou a medida incompatível com o princípio da presunção de inocência, previsto no art. 5º, LVII, da CRFB/88.
2.2.2 Direito à liberdade de locomoção
A liberdade é um direito inerente ao indivíduo, indissociável desde o seu nascimento, e constitui um dos direitos fundamentais ao ser humano, tal como é o direito de propriedade, os quais constituem um conjunto institucionalizado de direitos e garantias do ser humano, que tem a finalidade de proteger o indivíduo contra o arbítrio estatal e estabelecer condições mínimas de vida e desenvolvimento (MORAES, 2016).
Todavia, no mundo moderno, surgiu formalmente com a Magna Carta de 1215, como reação aos arbítrios e às violações das monarquias absolutistas, que em seu artigo 39 previa: "Nenhum homem livre será preso, aprisionado ou privado de uma propriedade, ou tornado fora-da-lei, ou exilado, ou de maneira alguma destruído, nem agiremos contra ele ou mandaremos alguém contra ele, a não ser por julgamento legal dos seus pares, ou pela lei da terra" (COLAÇO, 2019).
No Brasil, o direito a liberdade de locomoção surgiu primeiramente no artigo 122, da Constituição Federal de 1937, cuja disposição legal previa: “A Constituição assegura aos brasileiros e estrangeiros residentes no País o direito à liberdade, à segurança individual [...] nos termos seguintes: 2º) todos os brasileiros gozam do direito de livre circulação em todo o território nacional [...]” (BRASIL, 1937).
Atualmente, na Constituição Federal de 1988, encontra-se positivada no artigo 5º, caput, que garante a todos os brasileiros e estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à liberdade. Todavia, esta liberdade não é plena, visto que o individuo para viver em sociedade, precisa dispor de sua plenitude, em prol da boa convivência humana.
Dessa forma, a restrição da liberdade, por sua vez, é permitida em casos taxativos, e desde que observado o devido processo legal, previsto no art. 5º, LIV, que assevera que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal” (BRASIL, 1988).
A restrição da liberdade, portanto, está intimamente ligada ao princípio da legalidade. Na CRFB/88 se percebe esta ligação no artigo 5º, II, que assegura ninguém ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei, pelo que só são lícitas as formas de restrição de liberdade quando taxativamente previstas.
A carta constitucional nos incisos LXI, LXV, LXVI, LXVII, do artigo 5º, da Constituição Federal, estabelece expressamente as regras a serem obedecidas em caso de prisão, e o remédio de habeas corpus no inciso LXVIII, do mesmo artigo, a ser utilizado nos casos ilegais, seja de forma preventiva, quando se tem apenas ameaça de lesão ao direito, ou repressiva, quando ocorre a sua efetiva lesão (COLAÇO, 2019).
A condução coercitiva, por sua vez, demonstra-se como uma forma inconstitucional de restrição do status libertatis inerente ao cidadão, porque priva o cidadão do direito de ir e vir, um dos seus maiores bens, sem fundamento legal válido para isso (COLAÇO, 2019).
Portanto, no caso concreto, a Suprema Corte decidiu de forma coerente, porque não há dúvidas de que a condução coercitiva relativiza indevidamente os direitos individuais conferidos ao indivíduo, especialmente, o direito de ir e vir, o que se revela inadmissível num estado democrático de direito.
2.3 O efeito rebote: decretação de prisão temporária como alternativa à impossibilidade de decretação de medida de condução coercitiva para fins de interrogatório.
A declaração de inconstitucionalidade da condução coercitiva para fins de interrogatório representou um grande avanço no âmbito do Processo Penal, pois demonstrou que a Suprema Corte se preocupa cada vez mais com o respeito aos direitos e garantias fundamentais positivados na Constituição Federal (CURY, 2018).
Noutra banda, a decisão que veda a utilização da medida de restrição à liberdade, e de supressão temporária do direito de ir e vir, como forma de conduzir o indivíduo a contra sua vontade, prestar depoimento perante as autoridades públicas provocou um efeito colateral, consistente na declaração de prisão temporária, como substituição à medida de condução coercitiva.
Com isso, as prisões temporárias executadas pela Polícia Federal cresceram 31,75% nos primeiros quatro meses de 2018 em relação ao mesmo período de 2017. Entre janeiro e abril de 2018, foram efetuadas 195 prisões temporárias, enquanto que no mesmo período do ano de 2017, foram efetuadas 148 prisões (CURY, 2018).
Entretanto, a Suprema Corte decidiu pela impossibilidade de coação do indivíduo investigado ou réu para prestar interrogatório, por ocasião da violação do direito à liberdade de locomoção e do princípio da não culpabilidade.
Desse modo, a utilização de prisão temporária, medida mais gravosa que a condução coercitiva, é um paradoxo. Ademais, além de inconstitucional é completamente desarrazoado alguém ser encarcerado para ser interrogado, por simplesmente ter exercido seu direito de defesa, ao deixar de comparecer ao interrogatório.
Nessa lógica, a prisão temporária não pode substituir o ato de condução coercitiva, pois a prisão só deve ser uma opção quando houver absoluta necessidade dela. Em um estado democrático de direito, a liberdade é a regra, e o cárcere, a exceção. Efetuar a prisão de um indivíduo para que ele forneça informações é absurdamente inconcebível (CURY, 2018).
Desse modo, verifica-se que as autoridades estão se utilizando de outra medida para atingir a mesma finalidade que atingiam com a condução coercitiva, perfazendo uma verdadeira burla à decisão do STF (CUNHA; GRECO,2020).
Se antes da inconstitucionalidade da condução coercitiva as autoridades a empregava sob o argumento de evitar a imposição de uma medida mais gravosa, hoje está sendo feito exatamente o contrário.
Diante disso, percebe-se que as próprias autoridades que deveriam fazer cumprir a lei, através de seu poder de discricionariedade, encontram formas de conseguir os mesmos objetivos, burlando decisões proferidas pela Suprema Corte (CUNHA; GRECO,2020).
Portanto, o atual Processo Penal brasileiro regula insuficientemente a defesa das liberdades individuais, e embora seja um instrumento de controle do poder punitivo do Estado, ainda faz isso de forma precária, porque não possibilita nenhuma segurança jurídica aos cidadãos.
4.4 Novatio legis: crime contra decretação de condução coercitiva ilegal, previsto na nova Lei de Abuso de Autoridade (nº 13.869/2019).
Recentemente foi aprovado pelo Congresso Nacional e sancionada pelo atual Presidente da República, o Projeto de Lei nº 13.869/2019, denominada como Lei de Abuso de Autoridade, cujo objetivo é coibir os excessos e violações praticadas por autoridades públicas em face dos cidadãos e, também, contra advogados no exercício da profissão, notadamente pela criminalização de violação aos direitos e prerrogativas da classe (CUNHA; GRECO,2020).
A referida lei, além de revogar integralmente a Lei nº 4.898/65, antiga Lei de Abuso de Autoridade, o referido diploma promoveu alterações nas seguintes legislações: Lei nº 7.960/1989 (Lei de Prisão Temporária), Lei nº 9.296/96 (Lei de Interceptação Telefônica), Lei nº 8.069/1990 (Estatuo da Criança e do Adolescente), e no Decreto-Lei nº 2.848/40 (Código Penal brasileiro) (CUNHA; GRECO,2020).
Antes de ser sancionado, o Presidente da República vetou 39 dispositivos. O projeto de lei sofreu inúmeras críticas pelas associações de magistrados e do ministério público. Hoje, um pouco mais de dois meses de sancionada, a lei já possui quatro Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI’s), em seu desfavor.
Na ADI 6.238, a Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (CONAMP), a Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho (ANPT) e a Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), sustentam que a lei não poderia criminalizar determinadas condutas, porque fazem parte de atividades-fim dos órgãos públicos (CURY, 2018).
A Associação dos Juízes Federais do Brasil (AJUFE), por sua vez, por meio da ADI 6.239, requer que o STF torne os artigos que, segundo a entidade, coloquem em risco a atividade jurisdicional. Por meio dela, os magistrados questionam seis artigos da norma, sendo eles, os artigos 9º, 10, 20, 25, 36 e 43, entre os quais está o que prevê o crime contra a decretação de medida coercitiva descabida.
Nesse ensaio, objetiva-se discorrer sobre o tema ligado à redação do art. 10 da referida lei, que tipificou como crime o uso indevido da condução coercitiva, instituto já debatido e decidido pelo nosso Pretório Excelso nas ADPF’s 395 e 444, as quais foram objetivamente tratadas neste trabalho (COLAÇO, 2019).
Sendo assim, o dispositivo legal em comento torna penalmente punível a conduta daquele que decreta condução coercitiva de testemunha ou investigado, quando manifestamente descabida, ou sem prévia intimação para o comparecimento perante o juízo, sujeitando a autoridade coatora que assim o fizer à pena de um a quatro anos de detenção, e multa (BRASIL, 2019).
Desse modo, por meio da análise do tipo penal, é possível inferir que o sujeito ativo do delito é autoridade que indevidamente, leia-se, em desacordo com a lei, decreta medida de condução coercitiva. Já o sujeito passivo do delito, isto é, contra quem recai a conduta, é o indivíduo indevidamente conduzido.
Quanto à terminologia “manifestamente descabida” utilizada pela a lei, Colaço (2019) argumenta que, ao analisá-la sob as vertentes gramatical, filológica e teleológica, trata-se de um conceito jurídico indeterminado que, no caso concreto, pode permitir uma interpretação extensiva.
O crime permite o oferecimento de proposta de suspensão condicional do processo, que é um benefício legal despenalizador, previsto no artigo 89 da Lei nº 9.099/95, bem como o acordo de não persecução penal (art. 18, da Resolução 181 do CNMP).
A competência para o processo e julgamento é, em regra, da Justiça estadual, salvo se presente alguma das hipóteses do art. 109 da CRFB/88, quando, a competência será da Justiça Federal (BRASIL, 2019).
Portanto, arremata-se que a novatio legis em referência, trouxe a previsão legal de novo crime, em consonância com que decidiu a suprema corte no julgado objeto deste trabalho. Este fato revela um avanço em matéria de proteção de direitos e garantias e fundamentais do indivíduo. Todavia ainda há muito que se fazer, haja vista este mecanismo não ter sido suficiente para coibir as manobras feitas por autoridades descumpridoras da lei.
O estudo revelou que a condução coercitiva para fins de interrogatório, guarda relação com o sistema inquisitivo, cuja característica é ausência de direito à ampla defesa e mitigação do devido processo legal, diferente do sistema acusatório, que é adotado pelo ordenamento jurídico brasileiro.
Desse modo, a condução coercitiva se revelou incompatível, a natureza jurídica do interrogatório é de meio de defesa, e em razão disso, cabe ao suspeito ou réu, o direito de optar por participar ou não, do ato, sem que isso gere nenhum prejuízo à sua culpabilidade, como um desdobramento do princípio da presunção de inocência.
Dessarte, conduzir o indivíduo contra a sua vontade para, diante de uma autoridade pública, ser interrogado, transgride os direitos constitucionais à liberdade de locomoção, e o princípio da não culpabilidade, ou presunção de inocência, previstos respectivamente no artigo 5º, caput e LVII, da Constituição Federal de 1988.
Nesse sentido, apresentou-se a consequência advinda da decisão que por meio da declaração de inconstitucionalidade proibiu a utilização da medida, a qual consistiu na utilização de instituto mais gravoso, consistente no aumento do número de decretação de prisões temporárias, como alternativa encontrada pelas autoridades para conseguir a mesma finalidade da condução coercitiva, ante a proibição de sua utilização.
Além disso, também se analisou a recente inovação legislativa trazida pela Lei nº 13.869/19, denominada como Lei de Abuso de Autoridade, cujo artigo 10 prevê o crime contra decretação de condução coercitiva ilegal de testemunhas ou de investigado ou réu, reforçando o entendimento que foi consolidado pela Suprema Corte.
Concluiu-se, portanto, que o Supremo Tribunal Federal decidiu de forma acertada pela incompatibilidade da condução coercitiva do investigado ou acusado, com a ordem constitucional, apontando de forma contundente os direitos fundamentais do indivíduo que foram violados.
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Advogado. Graduado pela Instituição de Ensino Superior do Sul do Maranhão - IESMA. Pós-graduado em Direito Civil e Processo Civil. Pós-graduado em Direito do Agronegócio. Pós-graduado em Direito Tributário. Pós-graduado em Direito Previdenciário. Aprovado em concurso para Procurador. Aprovado em concurso para Advogado Público. Aprovado para Técnico Judiciário do TRF-1 l Convocado para Técnico Judiciário do TRE/MA.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: COELHO, LUCAS LEMOS. A (in)constitucionalidade da condução coercitiva do suspeito para o interrogatório no processo penal: um estudo à luz da Constituição Federal de 1988 e da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 07 ago 2024, 04:48. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/66083/a-in-constitucionalidade-da-conduo-coercitiva-do-suspeito-para-o-interrogatrio-no-processo-penal-um-estudo-luz-da-constituio-federal-de-1988-e-da-jurisprudncia-do-supremo-tribunal-federal. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Gabrielle Malaquias Rocha
Por: BRUNA RAFAELI ARMANDO
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