No dia 24 de dezembro 2024, no apagar das luzes foi publicado o Decreto nº 12.341, disciplinando o uso da força e dos instrumentos de menor potencial ofensivo pelos profissionais de segurança pública.
Considerando que o decreto foi publicado no período de recesso parlamentar e, em se tratando de um tema que envolve uma das prioridades para eleitores brasileiros, o assunto que deve ser tratado com seriedade, técnica e diálogo, transformou-se em uma pauta para politicagem, onde o caos é espalhando como meio de angariar votos.
Em que pese o alvoroço, cabe o questionamento: existem grandes alterações no que tange a ação da autoridade pública atuando em legítima defesa? Esse é o ponto que trataremos a seguir.
De antemão, é fundamental ressaltar que esse artigo não visa adentrar em controvérsias doutrinárias sobre elementos da legítima defesa, como por exemplo, se a omissão e a ação culposa configuram ou não agressão para fins de legítima defesa, ou mesmo se a agressão injusta necessita constituir um ilícito penal ou basta ser antijurídica.
Na realidade, o objetivo desse artigo é refletir sobre as diretrizes traçadas no decreto para atuação de agentes de segurança pública em casos de legítima defesa.
Dito isso, o decreto trouxe princípios gerais de uso da força em segurança pública, como a legalidade, precaução, proporcionalidade, necessidade, razoabilidade, a não discriminação, os quais sequer precisariam estar previstos nesse novo decreto, uma vez que são basilares em nada inovam, como pode se concluir a partir da análise Lei nº 13.060/14, a qual o decreto regulamenta.
Além disso, o decreto também é marcado pela obviedade, como pode ser observado nos incisos V e VI do art.2º do decreto, ao trazer a previsão de que a “força deve ser empregada com bom senso”, assim como o fato de que os profissionais vão assumir a responsabilidade pelo uso inadequado da força após o devido processo legal, com ampla defesa e contraditório.
Em verdade, a doutrina e a jurisprudência brasileira sempre pontuaram que a atuação de agentes de segurança pública não se equipara com a de um particular em um Estado Democrático de Direito, assim como também ocorre em outros países democráticos.
Por outro lado, jamais houve tentativa por parte dos doutrinadores, bem como dos Tribunais Superiores, de vedar a reação dos agentes de segurança pública mediantes ataques, momento em que podem e devem se valer de condutas violentas para se proteger. Qualquer discurso contrário, invertendo posições doutrinárias, tem como base “conversas de botequim”, que não devem pautar esse debate, apesar de não raras vezes, pautar o debate político nacional.
Nesse viés, de acordo com o art.144 da CF, os agentes de segurança pública são encarregados da defesa da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio. Com base nesse dever legal, como explica Juarez Tavares, os agentes estatais, ao serem agredidos, devem atuar com maior moderação que um outro cidadão agiria na mesma circunstância.
Isso se deve ao fato de que esse dever legal impõe a proteção de qualquer pessoa, até mesmo do seu agressor. Assim, se o agente de segurança pública atuar em legítima defesa e acertar seu agressor, deve prestar socorro ao sujeito a partir do momento que agressão injusta tenha cessado, o que não é imposto ao particular, justamente por não ter esse dever legal, de forma que não há que se falar em violação do princípio da igualdade.
Para Jacson Zilio, em qualquer contexto de legítima defesa, a resposta amparada pela justificante deve ser menos prejudicial possível ao agressor. Assim, se existem vários meios, deve ser escolhido aquele que é menos agressivo, em virtude do princípio de menor lesividade ao agressor.
De acordo com o autor, o uso de arma de fogo em qualquer circunstância, isto é, por particulares ou por agentes de segurança pública, deve seguir etapas graduais, de forma que primeiro deve o agressor advertir o agredido do perigo do instrumento, tentando contornar a situação, depois, se for preciso, deve efetuar disparos não em direção ao agressor como forma de admoestar; por fim, atirar na direção do agressor em zona não vital.
Sem dúvida que nem sempre será possível seguir essas etapas, pois a necessidade de atirar no agressor pode surgir de forma repentina ou até mesmo desde já estar posta.
Especificamente com relação aos agentes de segurança das agências penais, Zilio entende que, ao atuarem em legítima defesa, deverão ter maior moderação que o particular, considerando que possuem maior relação de cuidado com o bem jurídico protegido, até porque também se submetem as normas de direito policial, que são mais restritivas com relação ao uso da força.
Importante ainda frisar que enquanto Jacson Zilio trabalha essa restrição como uma restrição ético-social, Juarez Tavares sustenta que se trata de uma restrição normativa que advém da interpretação do art.144 do CF.
No direito comparado, como na Alemanha, há leis de polícia dos estados federados regulando a atividade policial, existindo previsões que apenas permitem o uso de arma de fogo por parte do policial para repelir crimes ou delitos em sentido técnico praticados com arma.
Em decorrência disso, como aponta Roxin, não parece plausível que, ao avistar uma pessoa ser espancada por 10 motoqueiros, o policial não possa fazer uso da arma para disparar tiros de alerta ou até mesmo atirar em regiões não vitais, caso seja necessário.
Em contrassenso, as leis de polícia têm reservas os direitos de necessidade, nas quais devem permanecer intactos o direito de legítima defesa e estado de necessidade, de forma que o agente de segurança pública pode invocar o §32 StGB (dispositivo legal da legítima defesa no CP Alemão) e atuar em legítima defesa.
Nesse contexto, algumas teorias foram criadas para solucionar a referida contradição. Para Claus Roxin, as regras especiais das leis de polícia seriam instruções de ordem prática para que atuem dentro do que for necessário e requerido para reprimir a agressão injusta com menor lesividade possível ao agressor. Isto é, o policial possui formação para agir em situações de extremo estresse e perigo, de forma que deve agir com mais cuidado e técnica que o particular.
Assim, quando um criminoso desarmado foge com uma bolsa, o policial tem mais capacidade que o particular para recuperar o objeto sem efetuar disparos, muito embora, obviamente que em situações excepcionais, poderia utilizar. Por outro lado, no exemplo do sujeito espancado por 10 motoqueiros desarmados, poderia o policial utilizar de sua arma para repelir a agressão injusta.
Nessa mesma perspectiva é o art.3º do Decreto nº 12.341/24, que além de não trazer nenhuma inovação, não proíbe que o policial venha a utilizar de condutas mais violentas quando necessário for.
Outrossim, o art.234 do CPP Militar sempre definiu os limites para emprego de força em casos de desobediência, resistência ou fuga. Da mesma forma que o referido Decreto repete dispositivos da Lei que se destina a regulamentar, qual seja, Lei 13.060/14.
Além do mais, nem o referido decreto em análise veda o uso de arma para pessoas em fuga que estejam desarmadas, pois o dispositivo é cristalino ao definir que, caso essa fuga represente um risco imediato aos bens jurídicos de terceiros ou dos próprios agentes de segurança pública, poderão utilizá-la, pois nessa circunstância, haverá necessidade. Da mesma forma é o caso de não observância do bloqueio policial.
Portanto, ao contrário do uso político do Decreto nº 12.341/24, com escopo de propagar o caos, não há nada que prejudique a atuação dos agentes de segurança pública, ou até mesmo que vá contra o que a doutrina sempre pontuou consistente na necessidade de haver uso proporcional da força e de combate à discriminação, para que legítima defesa não seja escudo para prática delitos.
Referências:
Decreto nº12.341, de 23 de dezembro de 2024. Disponível em:<https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2024/decreto/d12341.htm>. Acesso em:25 dez. 2024.
Lei nº 13.060, de 22 de dezembro de 2024. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l13060.htm>. Acesso em 24 dez. 2024.
Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 - Código de Processo Penal. Redação do artigo alterada pela Lei 12.403, de 2011, inciso IV alterado e V e VI incluídos pela Lei 13.257, de 2016. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decretolei/Del3689Compilado.htm>. Acesso em: 22 mar. 2019.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 02 abr. 2019.
TAVARES, Juarez. Fundamentos de Teoria do Delito, 1ª ed. Florianópolis: Tirant lo Blanch, 2018
ZILIO, Jacson. Legitima defensa: las restricciones etico-sociales a partir de los fines preventivos y garantisticos, 1ª ed. Argentina, Didot Ediciones, 2012
ROXIN, Claus; GRECO, Luis. DIREITO PENAL PARTE GERAL TOMO I. FUNDAMENTOS – A ESTRUTURA DA TEORIA DO CRIME, 1ª ed, Marcial Pons, 2024.
Advogado. Especialista em Direito Penal e Criminologia pelo Introcrim.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GUTTERRES, Vitor Barros. Atuação dos agentes de segurança pública em casos de legítima defesa e Decreto nº 12.341/24 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 20 jan 2025, 04:47. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/67609/atuao-dos-agentes-de-segurana-pblica-em-casos-de-legtima-defesa-e-decreto-n-12-341-24. Acesso em: 21 jan 2025.
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