RESUMO: O presente trabalho discute a liberdade de atuação conferida às Big Techs, grandes conglomerados de empresas da tecnologia mundial, os desafios decorrentes da imposição de jurisdição a pessoas jurídicas instaladas em diversos territórios e com uma estrutura difusa que não é limitada a um único ordenamento jurídico. O trabalho tem por finalidade precípua analisar soluções de imposição de jurisdição capazes de introduzir, de maneira eficaz, diretrizes gerais de responsabilidade, resguardando direitos fundamentais, a integridade do mercado, do indivíduo e da sociedade.
PALAVRAS-CHAVE: Big Tech. Regulamentação. Imposição Normativa. Jurisdição.
SUMÁRIO: Introdução. 2. O que são as Big Techs e quais as problemáticas que sua atuação representa. 3. Alternativas à regulamentação como meio de restringir a liberdade das BIG TECHS. 3.1. A aplicação da Teoria da Regulação Responsiva. 3.2. A Convenção de Haia de 2019 sobre o projeto de execução de sentenças estrangeiras. 3.3. A aplicação da teoria da Jurisdiction by Necessity. Considerações Finais. Referências Bibliográficas.
ABSTRACT. The present work discusses the freedom of action granted to the Big Techs large conglomerates of global technology companies, and the challenges arising from the enforcement of jurisdiction over legal entities established in multiple territories with a diffuse structure not limited to a single legal system. The primary purpose of this work is to analyze solutions for the enforcement of jurisdiction capable of effectively introducing general guidelines for responsibility, while safeguarding fundamental rights, the integrity of the market, the individual, and society.
KEY WORDS: Big Tech. Regulation. Norm enforcement. Jurisdiction.
INTRODUÇÃO
As Big Techs, grandes conglomerados de empresas de tecnologia que têm atuação global, representam, ao mesmo tempo, a garantia de liberdades coletivas e individuais, igualdade social, desenvolvimento sociocultural e econômico e o exato oposto de tudo isso. A mesma ferramenta utilizada em favor pode ser aplicada contra indivíduos, pequenos ou grandes grupos de pessoas, empresas e até mesmo Estados. Se por um lado a humanidade desfruta de um momento de plena democratização do acesso ao conhecimento e cultura, de encurtamento das distâncias, de incremento da eficácia das cadeias e processos produtivos, de concessão de espaço e voz a minorias, também se observa que mazelas preexistentes permanecem ou são acentuadas com os avanços da tecnologia ou simplesmente ficam relegadas à margem dessa revolução.
A sociedade tecnológica oferece tudo ao mesmo tempo, o bom e o ruim, progresso e retrocesso, liberdade e restrição, luz e trevas. Reputações são construídas e destruídas em segundos, julgamentos e condenações sumárias ocorrem constantemente, insurgências e levantes são organizados e resistências coordenadas, integração e alienação social, tudo isso com um punhado de toques na tela de aparelhos conectados através de uma mesma plataforma, compartilhando um mesmo servidor local ou outros, há milhares de quilômetros de distância.
Não se ignora que grande parte do conteúdo disponível nas plataformas das Big Techs depende do elemento humano responsável pela sua produção, o que, em tese, poderia servir como fundamento para eximir a responsabilidade das empresas. Essa afirmativa não resiste à mais superficial análise sobre a forma como funcionam as plataformas digitais. Os algoritmos computando infinitos dados por segundo, o exponencial crescimento das ferramentas e inteligência artificial, a aplicação de conceitos enviesados durante a programação dos códigos aplicados, a influência dos interesses de terceiros ou da própria gestora da plataforma, sistemas de segurança ineficazes, a doutrinação subliminar ou mesmo às escancaras, entre outros elementos são evidência de que essas operações atuam em diversos níveis e camadas, alguns, inclusive, absolutamente independentes da atuação humana.
A profusão de ferramentas tecnológicas disponíveis e às quais a sociedade está involuntariamente submetida torna sempre pertinente um dos ditados mais difundidos da era da informação: “se algo é grátis então você é o produto”[1]. De fato, sucessivos escândalos envolvendo plataformas online, a comercialização e utilização de dados sem permissão do proprietário, a utilização de informações com vistas a produzir propaganda direta e individualizada, a intervenção – legítima ou não – nos processos regulatórios entre outros, tornou claro que o produto é o usuário, seus dados pessoais, informações sobre sua saúde, condições econômicas, preferências culturais, de relacionamento, políticas...As Big Techs detém mais conhecimento a respeito do usuário que o próprio, o que pode e é utilizado indiscriminadamente sem o correspondente consentimento e sem lhe reverter qualquer benefício. A riqueza da era da informação é o usuário e o seu potencial de consumo.
A liberdade usufruída pelas empresas de tecnologia vem encontrando crescente contestação social e estatal. Pesquisa realizada em março de 2021 em dezessete países pela plataforma norte americana YouGov.com[2] aponta que 66% dos entrevistados “sentem que as empresas de tecnologia têm muito controle sobre seus dados pessoais”. Portanto, dois de cada três entrevistados admite incômodo com a liberdade usufruída pelas empresas de tecnologia. Estudo conduzido pela Comissão Europeia em dezembro de 2019[3] indicou que 74% dos cidadãos europeus, três em cada quatro entrevistados, têm interesse em saber como seus dados são utilizados por plataformas de mídias sociais.
Diante do crescente interesse social e da difusão de escândalos – em menor e maior gravidade – Estados têm buscado normatizar o mercado digital, é o caso, entre outros, do Brasil (Marco Civil da Internet e Lei Geral de Proteção de Dados), Reino Unido (Lei de proteção de dados), Korea do Sul (Lei de proteção de informação pessoal), União Europeia (Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados), Argentina (Lei de proteção de dados pessoais) e Japão (Lei de proteção de informação pessoal).
A despeito da inegável tendência de regulamentação da atuação das empresas de tecnologia, há consideráveis desafios para a efetiva aplicação de eventual sanção em caso de descumprimento dessas normas por parte das Big Techs. O fato dessas empresas não estarem, necessariamente, fisicamente nos países em que prestam seus serviços, a aparente inexistência de um indivíduo responsável legal pelas operações, a impossibilidade de impor limitações a um ente despersonalizado que não tem qualquer relação material com o local são alguns dos elementos que causam dificuldades de se conceber e executar eficazmente a regulamentação.
A característica de transnacionalidade das Big Techs e a sua predominância no ambiente digital ainda admite práticas como “forum shopping”, a ocultação dos responsáveis legais e representantes através da criação de uma cadeia intrincada de múltiplas pessoas jurídicas sob o mesmo guarda-chuva, a promoção de lobbying político contra a regulamentação, resistência ao cumprimento de ordens e decisões, manobras jurídicas, sonegação de informações, impostos e recursos, manipulação da opinião pública etc. Em vista da miríade de meios utilizados por companhias digitais e considerando-se sua capacidade econômica e política, sua relevância internacional entre outros fatores, uma solução razoável seria a criação de norma supranacional que imponha obrigações claras sobre a necessidade de se resguardar os direitos fundamentais dos usuários e dos princípios gerais do livre e justo comércio e a correspondente sanção em caso de descumprimento, garantindo-se, assim, que condutas absolutamente reprováveis sejam suprimidas.
Uma vez que os Estados compartilham o interesse comum de desenvolvimento de uma regulamentação das empresas de tecnologia, avançar numa norma única transnacional robusta para salvaguardar os direitos individuais, coletivos, e a própria soberania nacional deveria ser o objetivo da atualidade e para tanto, mecanismos de regulamentação vêm sendo desenvolvidos com o objetivo de tornar o ambiente tecnológico mais seguro. A despeito do inexorável avanço legislativo, decorrente das crescentes interferências tecnológicas negativas que acompanham os louváveis avanços observados nos últimos meses, também há que se reconhecer que a extraterritorialidade das empresas envolvidas vai demandar soluções menos ortodoxas e que, em alguma escala, exigirá a atuação conjunta de estados diversos.
Este trabalho pretende expor algumas das soluções que poderão ser aplicadas pelos Estados além da mera codificação de regras locais, solução que não se afigura suficiente à solução dos conflitos introduzidos em um ordenamento jurídico plural, extraterritorial e que sofre a influência de distintos atores.
2. O QUE SÃO AS BIG TECHS E QUAIS AS PROBLEMÁTICAS QUE SUA ATUAÇÃO REPRESENTA
As Big Tech são grandes empresas do ramo da tecnologia que compõem grandes conglomerados e têm atuação difusa em todos ou quase todos os países, não se submetendo às restrições impostas por fronteiras físicas e cuja atuação se dá, basicamente, no ambiente digital. Essas empresas desempenham um papel central no mundo digital contemporâneo, prestando serviços a vários interessados ao mesmo tempo. Exploram uma variedade considerável de serviços tais como comércio eletrônico, redes sociais, buscas e publicidade na internet, telecomunicações, serviços de transporte por aplicativo, serviços de pagamento, concessão de crédito, gestão de patrimônio e serviços de armazenamento de dados e computação em nuvem, tendo como resultado considerável concentração de riqueza e poder em poucas corporações.
Os problemas de maior complexidade decorrentes da atividade das Big Techs são a) a perda da privacidade e interferência no sossego, b) a desinformação, c) o ambiente favorável à disseminação do ódio, d) práticas comerciais abusivas e e) intervenção injusta na soberania das nações.
Alguns países constataram a necessidade de regulamentação das atividades dessas corporações em razão de constantes e recorrentes casos de abusos de direitos da personalidade, direitos humanos, interferência nos processos democráticos, legislativos, econômicos entre outros aspectos socialmente relevantes, sobretudo quanto aos direitos fundamentais. Os indivíduos também atentaram para a facilidade com que as plataformas digitais evitam punições por desrespeitos flagrantes a direitos estabelecidos, coro engrossado por organismos independentes que conduzem estudos constantes sobre o tema.
Em razão disso, diferentes jurisdições estão lidando com os riscos apresentados pelas Big Techs por meio de vários ajustes em seus ordenamentos jurídicos domésticos, revisando ou introduzindo novas normas para garantir que as atividades desenvolvidas por essas companhias estejam sujeitas a regras suficientemente eficazes, a bem da integridade do mercado, do consumidor, da privacidade dos indivíduos, da soberania dos próprios Estados, da garantia dos direitos humanos e outros objetivos político-sociais.
É óbvia, contudo, a dificuldade de se impor uma jurisdição local a uma empresa que sequer dispõe de sede física, que não dispõe de um centro de tomada de decisões local, cujo serviço prestado não exige um elemento físico que admita a intervenção física ou que não existe dentro do ambiente físico., circunstâncias que permitem que condutas que afrontam princípios e direitos universalmente reconhecidos sejam perpetradas impunemente no ambiente digital.
Diversos escândalos recentes destacaram a vulnerabilidade dos dados pessoais dos usuários frente às Big Tech. O caso mais emblemático é aquele que envolve a empresa estadunidense Cambridge Analytica, no qual milhões de dados de usuários do Facebook foram utilizados sem consentimento para fins exclusivamente políticos. Além disso, violações de privacidade ocorreram em outras plataformas, como vazamentos de dados das empresas Sony Entertainment (2011), Twitter (2018) e, no Brasil, C&A (2018), expondo informações pessoais sensíveis de milhões de pessoas. A despeito de que as empresas mencionadas acima disporem de um local físico e gestores conhecidos, é inegável que muitos players do mercado digital não funcionam da mesma forma.
Exemplo disso foi a situação envolvendo a empresa Telegram, que às vésperas das Eleições Gerais de 2022 esteve próxima de ter seus serviços suspensos no território brasileiro por decisão do ministro do STF Alexandre de Moraes (PET 9935)[4]. Ao fundamentar a decisão que determinou a cessação dos serviços, o ministro esclareceu que a plataforma se recusava a atender às determinações do Poder Judiciário, citando, inclusive, que se tratava de conduta contumaz não apenas no Brasil. Na decisão Sua Excelência consignou:
Conforme consta do relatório policial, a decisão do grupo que controla o TELEGRAM em não se submeter a diretrizes governamentais a partir de princípios que regem a sua Política de Privacidade resultou em sanções impostas por 11 (onze) países:
(...)
O desprezo à Justiça e a falta total de cooperação da plataforma Telegram com os órgãos judiciais é fato que desrespeita a soberania de diversos países, não sendo circunstância que se verifica exclusivamente no Brasil e vem permitindo que essa plataforma venha sendo reiteradamente utilizada para a prática de inúmeras infrações penais.
(...)
O desrespeito à legislação brasileira e o reiterado descumprimento de inúmeras decisões judiciais pelo TELEGRAM, – empresa que opera no território brasileiro, sem indicar seu representante – inclusive emanadas do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL – é circunstância completamente incompatível com a ordem constitucional vigente, além de contrariar expressamente dispositivo legal (art. 10, § 1º, da Lei 12.965/14).
A dificuldade, como ficou explícito no caso acima narrado, reside não na falta de regulamentação, mas na aplicação eficaz do conjunto normativo. A despeito das dificuldades que se apresentam, os estados e órgãos nacionais e internacionais vêm se debruçando sobre o tema com o objetivo de estabelecer regras mínimas de limitação da liberdade atualmente desfrutada pelas Big Techs com vistas à se garantir um mínimo controle e permitir que eventuais infrações aos ordenamentos jurídicos sejam passíveis de sanção.
Não são poucos os exemplos de dificuldades enfrentadas pelos países na busca de responsabilização das big techs por falhas ou abusos que causam prejuízos não apenas a indivíduos, mas, também, à coletividade. Eventos recentes destacaram a vulnerabilidade dos usuários em relação às Big Tech. O caso mais emblemático é aquele que envolve a empresa estadunidense Cambridge Analytica, no qual milhões de dados de usuários do Facebook foram utilizados sem consentimento para fins exclusivamente políticos. Outros exemplos de violação de privacidade ocorreram em outras plataformas, como vazamentos de dados das empresas Sony Entertainment (2011), Twitter (2018) e, no Brasil, C&A (2018), expondo informações pessoais sensíveis de milhões de pessoas.
Situação diversa, mas igualmente pertinente envolve flagrantes atos de concorrência desleal por parte das big techs. Órgãos reguladores federais e estaduais nos Estados Unidos iniciaram uma série de investigações contra o Google e o Facebook por suposto comportamento anticompetitivo. Quanto ao Google, as queixas se concentram no absoluto domínio da empresa no mercado de publicidade em buscas, bem como em práticas para garantir que seja a opção padrão em muitos smartphones, navegadores e dispositivos em geral. O Facebook recebeu críticas devido às agressivas táticas de aquisição de empresas, tendo como principais expoentes o Instagram em 2012 e o WhatsApp em 2014. Essa prática gerou preocupações de que a empresa possui poder de mercado substancial e consolidado em razão do alcance e da preponderância de suas plataformas na sociedade. O Facebook, atualmente Meta, também é acusado de, quando não é capaz de adquirir determinada empresa, simplesmente copiá-la, quando da tentativa frustrada de aquisição da empresa SnapChat no ano de 2013[5].
Outro exemplo de conduta danosa perpetrada por big techs é a disponibilização de conteúdo ilegal e/ou ofensivo. Em reportagem de 14 de dezembro de 2022, Elizabeth Germino[6] expos:
TikTok recomenda conteúdo sobre automutilação e transtornos alimentares para alguns usuários minutos após o ingresso na plataforma, de acordo com novo relatório publicado pela ONG Center for Countering Digital Hate (CCDH).
O novo estudo consistiu em pesquisadores criando contas no TikTok fingindo serem usuários de 13 anos interessados em conteúdo sobre imagem corporal e saúde mental. O estudo descobriu que, em apenas 2,6 minutos após entrar no aplicativo, o algoritmo do TikTok recomendou conteúdo sobre suicídio. O relatório também mostrou que o conteúdo sobre transtornos alimentares foi recomendado em apenas 8 minutos. (Tradução livre).
Segundo John Brandon[7], especialista em mídias sociais, não há como contornar esse tipo de exposição na plataforma uma vez que seu algoritmo continua a servir conteúdo, quer seja positivo ou negativo. O lado negativo das interações sociais é justamente esse: os utentes são indivíduos que produzem e distribuem livremente o conteúdo, que permanecerá disponível eternamente, eventualmente encontrando simpatizantes que o reverberarão.
Além disso, o TikTok, assim como o X (atual Twitter), Instagram e outros são responsáveis pela disseminação de “trends” que levam os utentes a se comportar de maneira igual em busca de engajamento. Essas “trends” podem representar comportamentos prejudiciais e focam sobretudo indivíduos vulneráveis, como ocorreu no ano de 2017 com o fenômeno da “baleia azul”, um sombrio desafio surgido na rede social russa VK, mas que rapidamente se disseminou pelo mundo. As vítimas, geralmente adolescentes, eram incitadas a cometerem automutilação e, como estágio final, o suicídio[8].
Os exemplos aqui apresentados servem para demonstrar a vastidão da atuação das redes sociais e seu impacto na sociedade atual. Os Estados buscam, através da regulamentação da atuação das big techs não o poder de interferir nas liberdades dos indivíduos, no livre mercado e na soberania, mas principalmente o direito de supervisionar e, eventualmente, submeter as empresas de tecnologia às mesmas regras que regem o ambiente físico. O objetivo é transportar para o mundo digital as mesmas regras atinentes ao mundo real, mesmos direitos e deveres, o que, à toda a evidência, não vem sendo possível.
3. ALTERNATIVAS À REGULAMENTAÇÃO COMO MEIO DE RESTRINGIR A LIBERDADE DAS BIG TECHS
Há inegável e crescente interesse dos estados em formular e implementar normas que regulamentem as atividades e interações decorrentes do novo ambiente virtual que permeia as relações atualmente. A tarefa, como já exposto, apresenta desafios que ainda não são bem conhecidos e assim, ante a impossibilidade de previsão ou em razão da flexibilidade das inovações tecnológicas, os ordenamentos jurídicos são incapazes de oferecer solução aos conflitos emergentes.
Tomemos o seguinte exemplo: O usuário UM Enterprises atua como empresa de venda de mochilas, contudo não dispõe de registro de constituição formal ou fiscal em nenhum estado nacional, não dispõe de um representante legal conhecido e nem de um endereço fixo disponível. Esse usuário, contudo, opera diariamente em um “marketplace”, um “mercado virtual” no qual diversos vendedores e compradores realizam operações comerciais. O marketplace em que a UM Enterprises atua é denominado BABILONIA Inc. e é disponibilizado por uma empresa de tecnologia criada no Irã, mas com escritório de representação em Malta e Singapura, com servidores espalhados por Bangladesh, Índia, Bielorússia, Nicarágua e República Centro Africana. A UM Enterprises tampouco dispõe de uma fábrica ou galpão, contratando como fornecedora uma indústria sediada na China que remete suas mercadorias para o centro de distribuição da BABILONIA Inc. na Indonésia. As compras são, então, despachadas diretamente dali para qualquer lugar no mundo, inclusive, digamos, o Brasil.
O cliente brasileiro, então, interessado em revender os produtos oferecidos pela UM Enterprises no país resolve encomendar um lote de mochilas pagando o equivalente a R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais), promovendo o pagamento via cartão de crédito emitido por um banco virtual sediado no Panamá. Quando a mercadoria já estava em trânsito, piratas somalianos interceptam o navio de bandeira japonesa que a transportava e subtraem metade do carregamento quando o navio passava por águas internacionais. O cliente brasileiro, então, aciona o seguro contratado junto ao banco virtual, contudo, recebe como resposta que a apólice não cobre atos de terrorismo, além disso, o contrato previa que negociações pagas com o cartão em compras realizadas no BABILONIA Inc. não seriam cobertas em razão de constantes fraudes constatadas em compras realizadas no site daquele marketplace. A transportadora apresenta documentos que demonstram que a forma de frete contratada não previa seguro.
Quem poderá o cliente brasileiro acionar para obter reparação pelo prejuízo suportado? O perfil UM Enterprises? O BABILONIA Inc? O banco virtual sediado em um paraíso fiscal? Os piratas? O transportador japonês? Qual o foro de jurisdição? Como encontrar o(s) réu(s) que não disponibilizam endereço físico para contato e não detém rigorosamente nenhum relacionamento no Brasil? Como compelir uma empresa estrangeira a admitir o ordenamento jurídico brasileiro?
O exemplo acima é uma representação exacerbada de relações ordinárias e que cotidianamente são levadas a cabo em ambiente única e exclusivamente virtual. Assim ocorrem diversas operações mercantis diariamente, na base da confiança de que os contratantes cumprirão o acordado.
A submissão de grandes empresas de tecnologia a ordenamentos jurídicos de estados com os quais não há relacionamento formal é justamente a problemática que se busca abordar. Não havendo um consenso da comunidade internacional sobre uma construção normativa que vincule os estados nacionais ou blocos econômicos a problemática apresentada acima não contará com uma solução.
Embora se discuta a criação de normatização supra territorial, o pensamento é utópico, ao menos sob o prisma dos esforços atuais da comunidade internacional, restando, então, a persecução de solução alternativas, algumas das quais são expostas nos capítulos seguintes.
3.1. A APLICAÇÃO DA TEORIA DA REGULAÇÃO RESPONSIVA
A teoria da regulação responsiva, proposta por Ayres e Braithwaite[9], é uma abordagem emanada do estudo de diversas formas de aplicação, com maior ou menor grau de intensidade, de autorregulação e normas formais. O objetivo era aperfeiçoar a eficácia da normatização por meio da propositura de uma abordagem intermediária entre a intervenção normativa excessiva e a desregulação. A premissa é de que reguladores permitissem aos regulados certa liberdade na sua atuação, intervindo apenas em situações extremas ou após evidenciada a ineficácia da autorregulação.
A regulação responsiva se baseia na premissa de que a normatização deve ser flexível e adaptável à conduta dos agentes regulados, oferecendo um equilíbrio entre persuasão e punição, prevendo uma escalada na força sancionatória na medida em que as reprimendas até então aplicadas não apresentem o efeito desejado. Assim, os reguladores devem iniciar a intervenção com estratégias de persuasão, como diálogo, colaboração e incentivos e estímulos a condutas positivas. Embora o objetivo seja permitir que os regulados organizem o seu próprio meio e o regulador se apresente como uma figura mais educativo, não há um abandono do poder coercitivo ou sancionatório.
Nesse cenário, a punição surge como último e poderoso recurso, uma sempre presente lembrança, de que a intervenção pode se dar através de ato de considerável gravidade para o infrator. Para Ayres e Braithwaite[10] , a existência da sanção tem uma finalidade mais pedagógica, mas ela precisa existir. Segundo os autores, há um paradoxo decorrente da constatação de que quanto mais gravosa a pena, menor é a necessidade de aplicá-la. A partir dessa constatação, surgiu o termo “benign big gun”, ou a grande arma benigna, sendo a grande arma a sanção grave, cuja finalidade é mais intimidar do que, de fato, ser acionada. Trata-se de uma lembrança aos regulados para que se abstenham de descumprir suas obrigações.
A teoria prevê uma pirâmide de estratégias regulatórias, na qual a persuasão, hipótese mais branda e que confere aos agentes maior discricionariedade e responsabilidade, ocupa a base e as previsões de rigidez e magnitude se encontram no topo. Outra premissa adotada é a da pirâmide da virtuosidade, na qual existem diferentes motivações para o comportamento positivo. Alguns agentes cumprem as normas por razões econômicas, outros por razões morais e outros por vaidade ou como forma de demonstrar sua virtude. Na visão de Ayres e Braithwaite, cabe ao regulador iniciar sua intervenção através da persuasão, uma vez que o processo regulatório deve partir da presunção de que o regulado é um ator virtuoso que, consequentemente, se submeterá às regras, por estratégias de diálogo (persuasão/orientação), sempre que detiver a capacidade de fazê-lo.
A teoria da regulação responsiva oferece uma série de vantagens em relação aos modelos tradicionais de regulação. É mais eficaz na aderência dos regulados, uma vez que as premissas são formuladas em conjunto, e a participação do regulado enriquece a discussão por ser ele o detentor do conhecimento específico do objeto da normatização, é quem é capaz de garantir se um padrão pode ser alcançado, se determinada prática é tecnicamente possível e, sobretudo, permite o diálogo sobre as pretensões do regulador e as do regulado. Ao se remover a expertise dos regulados da equação em favor do poder do Estado, corre-se o risco de se impor de padrões inatingíveis, em uma ponta, inviabilizando ou a atividade, na outra a eficácia da regra.
No âmbito das big techs, essa ruptura entre a expectativa do Estado e a pretensão do particular apresenta exemplos interessantes que geraram considerável repercussão. Um deles ocorreu em 2018 na Bélgica. Na oportunidade, a Comissão de Jogos belga, após a condução de estudos, considerou que compras realizadas no ambiente de jogos de videogame traziam elementos de jogos de azar. Para a Comissão, a comercialização de “lootboxes”[11] infringia as normas locais que proíbem o jogo de azar, determinando, então, o seu banimento ante a recusa das empresas envolvidas em mudar suas práticas. Big techs como Eletronic Arts, Disney, Activision Blizzard e Apple, foram obrigadas a adequar suas práticas naquele país, o que acabou reverberando em jurisdições diversas, gerando uma onda que acabou por gerar modificações no modelo de negócio.
Outro exemplo da perda da oportunidade ocorreu no Brasil. A inércia das big techs com relação à produção, disponibilização, divulgação, propagação e arquivo de desinformação levou à redação do projeto de Lei 2.630/2020[12] que tem a pretensão de instituir a Lei brasileira de liberdade, responsabilidade e transparência na internet. O projeto, comumente referido como “Lei das Fake News” decorre justamente da incapacidade de autorregulação das empresas de tecnologia, nomeadamente o Google, Meta, X e Telegram.A falta de dedicação das big techs na mitigação de um problema contumaz no país levou à intervenção do Estado.
É nesse ponto, justamente, que residem as críticas à teoria responsiva. A dificuldade de diálogo entre regulador e regulado, a inexistência de elementos que permitam a regressão de uma sanção após a escalada prévia, a insistência no escalonamento, sempre a partir da base, de intervenção muito embora seja claro, por questões diversas, que não haverá evolução positiva na conduta perpetrada.
Além disso, influências externas podem afetar sobremaneira a eficácia da aplicação da teoria responsiva desequilibrando a balança aprumada a duras penas. Uma mudança de paradigma social, decorrente de um único evento, por exemplo, circunstância ordinária no meio tecnológico, pode vir a ser um catalisador de uma desestabilização na relação entre regulador e regulado. Isso ocorreu na sociedade globalizada a partir do atentado às Torres Gêmeas. Após o fato, grande parte da sociedade renunciou voluntariamente à sua privacidade a bem da segurança pública.
Ainda, o exemplo trazido acima do banimento de loot boxes em jogos de videogame na Bélgica gerou uma migração dos cidadãos que queriam permanecer usufruindo do serviço para o serviço fornecido em países vizinhos e que não contavam com qualquer tipo de restrição. É o fracasso de uma política pública impositiva.
Afinal, o surgimento dos “influenciadores digitais” criou um exército de indivíduos que voluntariamente se submetem a quaisquer regras – escritas ou convencionais – das plataformas de mídias sociais em busca de likes e engajamento, para tanto, renunciando às proteções vigentes.
Se por um lado a aplicação da teoria responsiva à atuação das Big Techs encontra resistência justamente no dinamismo da tecnologia, e, sobretudo, na característica transnacional dessas corporações, o que representa a existência não de um, mas de uma miríade de reguladores, cada um impulsionado pelas condições e características específicas locais, por outro, abre-se a oportunidade para que o regulado, diante dessa heterogenia de interlocutores, pretensões e conceitos, ofereça o conjunto normativo, meios e mecanismos a serem razoavelmente empregados a bem de um ambiente harmonioso.
3.2. A CONVENÇÃO DE HAIA DE 2019 SOBRE O PROJETO DE EXECUÇÃO DE SENTENÇAS ESTRANGEIRAS
A crescente interação entre indivíduos, companhias e estados internacionais decorrentes das inovações tecnológicas e a proliferação de relacionamentos formais transnacionais num ambiente virtual demanda um senso de confiança entre as partes envolvidas. Essa confiança se baseia na expectativa geral de que as obrigações assumidas serão cumpridas, mesmo em casos que transcendam as fronteiras nacionais. Da mesma forma, as relações entre indivíduos em diferentes territórios e a responsabilidade civil no âmbito internacional dependem, em grande medida, de soluções heterodoxas e inovadoras que demandará cooperação entre os estados para a resolução de conflitos.
Nesse contexto, o desenvolvimento de normas de cooperação internacional e de direito processual internacional é fundamental para garantir maior segurança jurídica na circulação internacional de decisões judiciais envolvendo relacionamentos civis e comerciais. Essa necessidade se torna ainda mais evidente em um cenário de favorecimento da resolução judicial dos conflitos. O Estado-juiz, entretanto, não acompanha as mudanças sucessivas de paradigma introduzidos pelo exponencial avanço tecnológico, não detendo a agilidade necessária para assimilar a transitoriedade das novas relações e seus desdobramentos. A cooperação entre os Estados se apresenta como uma alternativa à higidez da jurisdição local e é com o objetivo de propor um amplo sistema judicial que foi criada a Comissão Especial sobre o Projeto de Sentenças da Conferência de Haia.
Os debates sobre o desenvolvimento de um sistema de decisões judiciais domésticas cujo cumprimento se dará em jurisdição diversa não fiquem “à mercê das regras do foro em que se pretende executá-la” partiram de uma proposição estadunidense que visava à facilitação da “circulação” de decisões judiciais proferidas por um país e executadas em outro.
Segundo Gustavo Ferreira Ribeiro (et al.)[13], “qual tem por meta viabilizar a celebração de uma convenção internacional visando a facilitar a circulação internacional das sentenças”. E prossegue expondo que “o resultado proposto é a conclusão de uma Convenção do tipo tradicional, ou seja, que seria alvo de adoção na legislação interna dos países membros, ao invés de outra metodologia como regras de soft law”.
O resultado dos estudos da Comissão Especial sobre o Projeto de Sentenças foi debatido na Convenção de 2019, a qual conta com 32 artigos e estabeleceu as diretrizes para a promoção ao acesso efetivo à justiça bem como facilitar o comércio e investimentos multilaterais fincado em regras. É pertinente transcrever uma das conclusões constantes do preâmbulo do texto final da Convenção de 2019[14]:
Acreditando que essa cooperação pode ser reforçada com a criação de um conjunto uniforme de regras fundamentais no que respeita ao reconhecimento e à execução de decisões estrangeiras em matéria civil ou comercial, a fim de facilitar o seu reconhecimento e execução eficazes,
Convictas de que essa cooperação judicial reforçada requer, em particular, um regime jurídico internacional que preveja um maior grau de previsibilidade e de certeza em relação à circulação de decisões estrangeiras a nível mundial, e que seja complementar da Convenção sobre os Acordos de Eleição do Foro, de 30 de junho de 2005,
(...).
Os conceitos trabalhados pelos países membros e seus representantes na Convenção de 2019 são alvissareiros. A menção a “regras fundamentais”, “cooperação judicial” e “regime jurídico internacional” autorizam a conclusão de que os signatários vislumbram a possibilidade de se admitir, senão uma jurisdição transnacional, uma maior mobilidade das decisões proferidas pelas Cortes locais cuja execução ocorrerá em território diverso. A despeito de a Convenção decorrente do encontro não ter celebrado ainda cinco anos de vida, a evolução tecnológica vivenciada desde então reforça a pretensão dos participantes. Novos players foram adicionados ao tabuleiro, nomeadamente aqueles que desenvolvem as ferramentas mais comuns de inteligência artificial, e o resultado dessa introdução é uma revolução em si mesma.
De fato, a circulação facilitada de decisões judiciais é um mecanismo a ser implementado pelos estados com brevidade. Trata-se de ferramenta com imenso potencial de promoção da paz social e solução de litígios decorrentes da atuação das Big Techs, claro, desde que respeitados a soberania de cada país e estabelecendo-se critérios objetivos entre os Estados-membros.
A plena implementação da Convenção de Haia de 2019 representará relevante evolução no resguardo dos direitos civis e comerciais em disputas transnacionais criando atalhos para o reconhecimento de decisões estrangeiras e abandonando a austeridade usual das disputas de jurisdição em direção à harmonização da proteção aos indivíduos em face de poderosos conglomerados.
3.3. A APLICAÇÃO DA TEORIA DA JURISDICTION BY NECESSITY
Pela teoria da jurisdiction by necessity, em tradução livre jurisdição por necessidade, admite-se que um Estado imponha sua jurisdição sobre uma pessoa ou entidade que não esteja a ela sujeita, na hipótese da inexistência de foro adequado a dirimir a disputa. Ainda, é admitida a jurisdição por necessidade na hipótese de o demandante correr o risco do perecimento do direito vindicado em razão da impossibilidade de se submeter a demanda à jurisdição ordinária. A teoria se baseia na ideia de que, em casos de emergência, um Estado deve ser capaz de agir para proteger seus interesses e os interesses de seus cidadãos.
A importância do acesso à jurisdição é tal que a Declaração Americana dos Direitos do Homem já em 1948 previa, em seu art. 18 que “toda pessoa pode recorrer aos tribunais para fazer respeitar os seus direitos”[15]. Correspondente preponderância é prevista na Convenção Europeia de Direitos Humanos, a qual preconiza, em seu art. 6º que “toda a pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada de uma forma justa e equitativa (...) num tribunal independente e imparcial”[16].
A teoria vem recebendo mais atenção do meio acadêmico e sua admissão e consequente aplicação vem recebendo crescente apoio na sociedade globalizada, sendo apontada como única solução possível em uma variedade de contextos, incluindo casos de alcance supranacionais, poluição transfronteiriça, ofensas a direitos humanos, terrorismo e de tráfico de pessoas. No contexto da regulação das empresas transnacionais, a teoria do jurisdiction by necessity tem sido utilizada para justificar a aplicação de leis e regulamentos locais a pessoas (físicas ou jurídicas) sem sede ou representação formal naquele país.
Segundo Yandria Gaudio Carneiro[17], “A jurisdição da necessidade, que é o forum necessitatis, reconhece uma base local de jurisdição que, embora baseada em uma conexão tangencial, torna-se fundamental para fornecer aos demandantes o acesso ao tribunal”.
Um exemplo de aplicação da teoria do jurisdiction by necessity é o caso Bouzari x Bahremani[18]. Neste caso, o réu é filho do ex-presidente iraniano, Hashemi Rafsanjani. O autor alegou que o réu o torturou no Irã ou instigou sua tortura no Irã. O autor tornou-se cidadão canadense e queria abrir um processo judicial em Ontário. O réu não tinha nenhuma relação com o Canadá; ele nunca esteve no Canadá; na verdade, sua entrada foi negada quando solicitou o visto anteriormente. Não havia nenhuma conexão real ou substancial deste caso com Ontário, porque todas as questões em disputa ocorreram no Irã e o réu não tinha nenhuma conexão com Ontário.
Ao analisar o caso, o tribunal aplicou o primeiro teste, chamado de "conexão real e substancial a Ontário", e concluiu que não havia conexão formal alguma. Em seguida, o tribunal examinou o "Foro de Necessidade" e decidiu que, neste caso específico, o Foro de Necessidade tinha aplicação e concedeu jurisdição ao autor, inclusive concedendo, de fato, o julgamento à revelia em primeira instância.
Outro exemplo de aplicação da teoria, agora às empresas transnacionais é o caso da empresa britânica Shell[19], cuja matriz mundial foi processada na Inglaterra por indivíduos nigerianos afetados na Nigéria por danos ambientais causados pela exploração de petróleo no país. A Shell não tinha sede na Nigéria, e a despeito de argumentar que a Inglaterra não tinha jurisdição para julgar o fato ocorrido com a subsidiária nigeriana no solo nigeriano, foi integralmente responsabilizada.
No Brasil, pode-se citar a já mencionada decisão que determinou a suspensão do funcionamento do Telegram em todo o território nacional[20] no ano de 2022 por descumprimento de comandos judiciais. Já em 2023[21] a plataforma voltou a sofrer ameaça de suspensão de seus serviços em razão de sua atuação ativa contra a PL 2630/2020, a PL das fake News. O que chama a atenção nessa situação é que a empresa não dispõe de sede no país, não tendo, portanto, um endereço para onde são dirigidas as intimações. A decisão do ministro Alexandre de Moraes chega a mencionar o fato, consignando que todas as tentativas de contato ocorreram através de endereços de correio eletrônico ou através de representantes legais no país.
Se não tinha sede ou empresa formalmente constituída no país, o Telegram foi, e ainda é, réu em demanda judicial, sendo que a imposição de eventual sanção enfrentará desafios ainda desconhecidos. A atuação da Suprema Corte, contudo, foi indispensável à manutenção da isonomia entre os candidatos, da normalidade das Eleições, do resguardo à Democracia e, no mais recente episódio, da garantia da soberania nacional e do direito à informação, permitindo a livre formação do pensamento do cidadão. Sem o exercício da jurisdição pelo STF a empresa de tecnologia permaneceria ignorando as diversas citações e notificações que recebia do Poder Judiciário brasileiro.
Embora esteja demonstrada a importância e pertinência do mecanismo, não passa isenta de críticas a teoria. Doutrinadores afirmam que há inequívoca violação ao princípio da soberania dos Estados e um flagrante prejuízo aos réus, que se submetem a um ordenamento jurídico ao qual não está formalmente inserido, o que pode vir a mitigar a possibilidade de amplo acesso à defesa.
A possibilidade de aplicação do Foro por necessidade às empresas transnacionais sem sede no país de jurisdição é uma solução razoável a um problema que precisa ser mais bem debatido pelos estados, órgãos e entidades supranacionais, representando questão complexa que envolve uma variedade de fatores, incluindo os princípios de direito internacional, os interesses dos Estados e os interesses das empresas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os escândalos de violação de privacidade, incitação à comportamento prejudicial, disseminação de discurso de ódio e notícias falsas, ataques à soberania de Estados e de atentados ao livre comércio, alguns dos que envolvem as Big Techs, exigem que os Estados e particulares se empenhem em desenvolver soluções viáveis e eficazes de solução dos conflitos emergentes desse desbalanceado relacionamento.
Não se pode olvidar que não são todos os países que dispõem de um conjunto normativo tão robusto quanto o Brasil ou mesmo com a capacidade de imposição das normas vigentes. As dimensões e, sobretudo, o número de usuários garantem ao país certa autonomia e algum sucesso no relacionamento com as Big Tech, não obstante a existência de percalços como os citados anteriormente.
As soluções supralegais analisadas neste artigo não são ideais, contudo, podem contribuir na pavimentação de um caminho que atualmente esbarra na heterodoxa situação dos grandes conglomerados transnacionais. Convergência e cooperação são as palavras de ordem para integrar os múltiplos atores para, afinal, garantir-se um ambiente virtual minimamente seguro e saudável, capaz de impor a responsabilização por eventuais abusos atualmente permitidos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AYRES, Ian; BRAITHWAITE, John. In. Responsive Regulation: Transcending the Deregulation Debate. Oxford: Oxford University Press, 1992.
BRAITHWAITE, John. In: The essence of responsive regulation. University of British Columbia Law Review, Vol. 44. British Columbia. 2011.
BRASIL. Senado Federal. PL 2.630/2020, Relator: Senador Alessandro Vieira. Brasília.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Petição 9935, Relator. Ministro Alexandre de Moraes. Brasília, 17.03.2022.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Inquérito 4781. Rel. Min. Alexandre de Moraes. Brasília, 10.05.2023
BRUCE, Graeme. Privacy and Big Tech: Gauging atitudes around the world. Para YouGov. Disponível em <https://today.yougov.com/topics/technology/articles-reports/2021/03/31/privacy-and-big-tech-gauging-attitudes-around-worl>. Acesso em 18.11.2023.
CARNEIRO, Yandria Gaudio. Forum necessitatis: uma proposta de efetivação do acesso à justiça. Anais do III Congresso de Processo Civil Internacional, UFES – Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória/ES, 2018. Disponível em: <https://periodicos.ufes.br/processocivilinternacional/article/view/26066/18108#:~:text=A%20jurisdi%C3%A7%C3%A3o%20exorbitante%20possui%20algumas,jurisdi%C3%A7%C3%A3o%20nessas%20bases%2C%20esperando%20aboli%C3%A7%C3%A3o.>. Acesso em 14.01.2024.
COLAÇO, Dayane Nayara Alves; COLAÇO, Hian Silva; CAÚLA, Bleine Queiroz. Inteligência Artificial, Democracia e Fake News: Como equalizar as distorções na era da pós-verdade. O Futuro das Eleições e as Eleições do Futuro. Belo Horizonte: Fórum, p. 97-123, 2023.
DUNKER, Christian Ingo Lenz. Psicologia das massas digitais e análise do sujeito democrático. Democracia em risco?, São Paulo: Companhia das Letras, p. 116-135, 2019.
EUROPEAN COMISSION. Special Eurobarometer 503: Attitudes towards the impact of digitalisation on daily lives. Bruxelas. 2019.
Jogo da Baleia Azul. In: Wikipedia: a enciclopédia livre. São Francisco, CA: Fundação Wikimedia.
Loot Box. In: Wikipedia: a enciclopédia livre. São Francisco, CA: Fundação Wikimedia. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Loot_box>. Acesso em 13.12.2023.
HCCH. Convenção relativa ao reconhecimento e à execução de decisões estrangeiras em matéria civil e comercial. Haia, 02.07.2019. Disponível em: <https://assets.hcch.net/docs/fc14bf5e-e99d-47b3-8d1d-604414835d98.pdf>. Acesso em: 21.01.2024.
MASCINI, Peter. In: Why was the enforcement pyramid so influential? And what price was paid? Rotterdam. 2013. Disponível em: <https://ssrn.com/abstract=2556706>. Acesso em 20.12.2023.
NWAPI, Chilenye. In. Jurisdiction by Necessity and the Regulation of the Transnational Corporate Act. Utrecht Journal of International and European Law, Vol. 30, No. 78, 2014. Disponível em: <https://ssrn.com/abstract=2413595>. Acesso em 20.12.2023.
RIBEIRO, Gustavo Ferreira; DE FARIAS, Inez Lopes Matos Carneiro; DE ARAÚJO, Nadia; DE NARDI, Marcelo. Crônicas de Direito Internacional Privado. Revista de Direito Internacional, Uniceub, Brasília, ano 2016, v. 13, ed. 02.
[1] A frase é atribuída ao artista norte americano Richard Serra, que, ao ser perguntado sobre o mercado televisivo da época, expôs que “o produto da televisão (...) é a plateia. A televisão entrega pessoas a um anunciante” (tradução livre).
[2] BRUCE, Graeme. Privacy and Big Tech: Gauging atitudes around the world. Para YouGov. Disponível em <https://today.yougov.com/topics/technology/articles-reports/2021/03/31/privacy-and-big-tech-gauging-attitudes-around-world>. Acesso em 18.11.2023.
[3] European Comission. Special Eurobarometer 503: Attitudes towards the impact of digitalisation on daily lives. Disponível em: <https://data.europa.eu/data/datasets/s2228_92_4_503_eng?locale=en>. Acesso em 11.11.2023
[4] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Petição 9935, Relator. Ministro Alexandre de Moraes. Brasília, 17 de março de 2022.
[5] SAVVIDES, Lexi. Snapchat rejects US$3 billion Facebook offer. Disponível em: <Snapchat rejects US$3 billion Facebook offer - CNET>. Acesso em 12.12.2023.
[6] GERMINO, Elizabeth. TikTok pushes potentially harmful contento to users as often as every 39 seconds, study says. Disponível em: <>. Acesso em 12.12.2023.
[7] BRANDON, John. Is TikTok Targeting Teenagers With Harmful Content?. Disponível em: <https://www.forbes.com/sites/johnbbrandon/2022/12/16/is-tiktok-targeting-teenagers-with-harmful-content/?sh=afdb78973fdb>. Acesso em 12.12.2023.
[8] Baleia azul (jogo). In: WikipediaÇ a enciclopédia livre. São Francisco, CA: Fundação Wikimedia. Disponível em: < https://pt.wikipedia.org/wiki/Baleia_Azul_(jogo)>. Acesso em 12.12.2023.
[9] AYRES, I.; BRAITHWAITE, J. In. Responsive Regulation: Transcending the Deregulation Debate. Oxford: Oxford University Press, 1992.
[10] BRAITHWAITE. John. In. The essence of responsive regulation. University of British Columbia Law Review, Vol. 44. British Columbia. 2011.
[11] Segundo o Wikipedia, loot box é um termo criado na indústria dos jogos eletrônicos para designar um item virtual consumível que pode ser resgatado para receber uma seleção aleatória de itens virtuais adicionais, variando desde opções de personalização simples ao avatar ou personagem de um jogador, até um upgrade em equipamentos como armas e/ou armaduras. Um loot box é tipicamente uma forma de monetização, com os jogadores comprando as caixas diretamente ou recebendo as caixas durante o jogo e depois comprando "chaves" para resgatá-las.
[12] BRASIL. Senado Federal. PL 2.630/2020, Relator: Senador Alessandro Vieira. Brasília. Disponível em: <https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/141944>. Acesso em 18.12.2023.
[13] RIBEIRO, Gustavo Ferreira; DE FARIAS, Inez Lopes Matos Carneiro; DE ARAÚJO, Nadia; DE NARDI, Marcelo. Crônicas de Direito Internacional Privado. Revista de Direito Internacional, Uniceub, Brasília, ano 2016, v. 13, ed. 02. 19 p.
[14] CONVENÇÃO DE HAIA SOBRE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO. Haia, 02 de julho de 2019. Disponível em: <https://assets.hcch.net/docs/fc14bf5e-e99d-47b3-8d1d-604414835d98.pdf>. Acesso em 21.01.2024.
[15] DECLARAÇÃO AMERICANA DOS DIREITOS DO HOMEM. Disponível em: <https://www.oas.org/pt/cidh/mandato/Basicos/declaracion.asp#:~:text=Declara%C3%A7%C3%A3o%20Americana%20dos%20Direitos%20e%20Deveres%20do%20Homem&text=Todos%20os%20homens%20nascem%20livres,exig%C3%AAncia%20do%20direito%20de%20todos>. Disponível em 16.01.2024.
[16] CONVENÇÃO EUROPEIA DE DIREITOS HUMANOS. Disponível em: <https://www.echr.coe.int/web/echr/d/convention_instrument_por?p_l_back_url=https%3A%2F%2Fwww.echr.coe.int%2Fsearch>. Acesso em: 16.01.2024.
[17] CARNEIRO, Yandria Gaudio. Forum necessitatis: uma proposta de efetivação do acesso à justiça. Anais do III Congresso de Processo Civil Internacional, UFES – Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória/ES, 2018. Disponível em: <https://periodicos.ufes.br/processocivilinternacional/article/view/26066/18108#:~:text=A%20jurisdi%C3%A7%C3%A3o%20exorbitante%20possui%20algumas,jurisdi%C3%A7%C3%A3o%20nessas%20bases%2C%20esperando%20aboli%C3%A7%C3%A3o.>. Acesso em 14.01.2024.
[18] MUSHTAQ, Amer. In The Doctrine of Forum of Necessity – A Jurisdictional Matter<https://www.formativelaw.ca/2020/07/the-doctrine-of-forum-of-necessity-a-jurisdictional-matter/> . Acesso em 20.12.2023.
[19] PAYNE, Julia. RIDLEY, Kirstin. Nigerians win UK court OK to sue Shell over oil spills. Reuters. 2021. Disponível em: <https://www.reuters.com/article/idUSKBN2AC169/>. Acesso em 20.12.2023.
[20] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Pet 9.935. Relator: Ministro Alexandre de Moraes. Brasília, 17.03.2022.
[21] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Inq. 4781. Rel. Min. Alexandre de Moraes. Brasília, 10.05.2023.
Advogado. Especialista em Direito Eleitoral e Político pela CERS, Mestrando em Função Social do Direito pela Faculdade Autônoma de Direito – FADISP, ex-juiz do Tribunal Regional Eleitoral do Estado do Amazonas, membro do COPEJE – Colégio Permanente de Juristas da Justiça Eleitoral, membro da ABRADEP – Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político, Conselheiro Seccional Substituto da Ordem dos Advogados do Brasil Seccional Amazonas, membro da comissão de Direito Eleitoral da Seccional do Amazonas da Ordem dos Advogados do Brasil.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MEDINA, Luis Felipe Avelino. A liberdade de atuação das Big Techs e a inevitável regulamentação de suas atividades: uma breve análise das soluções disponíveis para a imposição de normas e jurisdição às empresas de tecnologia Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 28 mar 2025, 04:47. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/68185/a-liberdade-de-atuao-das-big-techs-e-a-inevitvel-regulamentao-de-suas-atividades-uma-breve-anlise-das-solues-disponveis-para-a-imposio-de-normas-e-jurisdio-s-empresas-de-tecnologia. Acesso em: 31 mar 2025.
Por: Benigno Núñez Novo
Por: MARCO ANTONIO DA COSTA E SOUZA JUNIOR
Por: BRUNO DA SILVA AMORIM
Por: Benigno Núñez Novo
Por: Benigno Núñez Novo
Precisa estar logado para fazer comentários.