INTRODUÇÃO
O Estado Democrático de Direito foi um conquista do cidadão contra a barbárie do sistema absolutista. A necessidade de submissão do Estado à lei e o respeito a direitos mínimos, levaram a adoção de uma Carta de Direitos, chamada de Constituição.
Desde então, a formação do Estado através de uma Constituição tem sido regra adotada por quase a totalidade dos países no mundo, tendo sido a salvaguarda de direitos contra a força arbitrária do poder. Por isso, desde a sua concepção, esse conceito de Estado constitucional vem sofrendo mudanças que podem ser acompanhadas segundo a evolução das dimensões dos direitos fundamentais.
Por ter a função de ser limitadora do poder, as Constituições acabam por refletir o momento histórico pelo qual passa determinado país. Após os absurdos advindos da segunda guerra mundial, os países que passaram por fortes sistemas totalitários, refletiram em suas Constituições uma resposta a tal regime, o que resultou no excesso de previsão de atividades para o povo realizada pelo próprio Estado.
Foi o que aconteceu no Brasil, a Constituição de 1988, populista, quis ser uma resposta e um castigo ao Estado que se desfazia de um regime militar. A resposta para isso foi uma Carta que previu welfare state (Estado de bem-estar social), que traz a previsão de um super Estado, o maior provedor da sociedade, assumindo de maneira quase irresponsável tarefas as quais já não podia desempenhar.
O Estado que se desenhou nesse quadro estava legitimado pela sociedade, através da luta contra o regime ditatorial e pela revitalização de direitos inerentes à democracia, e é claro, o Estado que se quis em 1988 extremamente paternalista e provedor, encontraria facilmente aceitação na sociedade. Porém, esse Estado foi mais um argumento retórico do que possível.
Logo após a promulgação da Carta da República de 1988, veio a constatação de que os governos não teriam como cumprir muita das coisas às quais a Constituição os havia obrigado. A crise fiscal que existia até mesmo antes da promulgação da Constituição de 1988 (e por isso nos referimos mais acima quase irresponsabilidade pela adoção do Estado de bem-estar social), impedia que o Estado cumprisse as metas desejadas.
Daí então porque se iniciou no Brasil um movimento de reforma, partindo da premissa de que o Estado não podia ser tão grande e tão burocratizado, reconhecendo-se a necessidade de se delegar ou transferir à sociedade civil organizada a execução de algumas tarefas. O povo é chamado a contribuir com a melhoria do país, a custo do reconhecimento do Estado em fazê-lo.
Impulsionado pela globalização que exige postura clara, precisa e firma da atuação, o Estado deve sair o mero discurso retórico, para buscar de maneira eficiente o desenvolvimento de sua sociedade que deve estar preparada para enfrentar a competitividade de um mundo globalizado.
Assumindo tantas funções e tarefas como quis o constituinte de 1988, o Estado brasileiro não teria como evoluir. A assunção de um Estado tão grande sem ter condições para tal, fez com que o povo fosse prejudicado na medida em que esse Estado não conseguia nem cumprir com o mínimo que se espera dele.
A reforma do Estado parte da premissa de que é melhor um Estado menor, mas eficiente do que um Estado grande, mas que não consegue sair do papel. Mas então, a partir do momento em que o Estado abdica de algumas tarefas, ele perde a credibilidade de seu povo e assim, a legitimidade? Não há dúvidas de que o Estado tão grande previsto pela Constituição de 1988, nas tão numerosas tarefas que assumiu, tinha na sua previsão calcada a sua legitimidade.
Se esse referencial muda, muda também a legitimidade? Como poderá ser demonstrado a seguir (pela definição do que é legitimidade), a legitimidade é o elo de ligação entre o Estado e seu povo, é o fator que leva este a cumprir as ordens emanadas do Poder. A crença no Estado Constitucional é o fator de legitimação do mesmo, e ainda que se façam críticas a esta forma de Estado, o bem da verdade é que outra forma melhor ainda não se avistou.
Por isso, superadas estão as discussões filosóficas acerca da necessidade de existência do Estado ou não. Ele é uma necessidade, basta vermos a experiência da tentativa frustrada de implantação de um Estado mínimo (tema que será discorrido mais a frente).
Desde já se adianta a idéia de que se a reforma tem por fim a melhoria dos serviços prestados pelo Estado, ficando este apenas com aqueles que só por ele podem ser executados, esse Estado-gerencial gozará de legitimidade se conseguir atingir as metas de sua reforma. Assim, se o povo for o maior beneficiário das mudanças, como teoricamente o é, este modelo de Estado gozará de aceitação e aprovação de seu povo.
1. O PODER DO ESTADO: A LEGITIMIDADE
1.1. Evolução Histórica
As primeiras expressões de legitimidade como sustentáculo e justificativa de uma ordem jurídica, remontam a Platão e Aristóteles e suas idéias de governo bom e justo. A palavra legitimidade surge a primeira vez entre os romanos, desde esta época havia a procura explicações e sustentações transcendentais (teocêntricas) para afirmar que alguém detinha a legitimus que implicava na conformidade com a lei e o costume, permanecendo assim até a idade média.(DINIZ, 2006, p. 36)
A primeira formulação do conceito de legitimidade governamental vem no século XIV, Guilherme Occan a exprime como um consentimento fundado em leis naturais divinas. Em Thomas Hobbes, é que se tem a primeira tentativa de ruptura das justificativas transcendentais, através da concepção de que a legitimidade (ou validade) das instituições jurídicas e políticas está na conformidade com os princípios morais ou leis naturais da razão. Com isso durante algum tempo até princípio do século XIX, o jusnaturalismo foi o fundamento para o poder do Rei, do Estado e das leis.
No princípio do século XIX, Bejamin Constant e Antoine Fabre, desenvolveram os primeiros estudos representativos para a teoria da legitimidade. Este será importante por conseguir fazer a distinção entre legitimidade e legalidade [1] e àquele destacará a contraposição entre absolutismo e usurpação.
Após, já como Estado Liberal, as revoluções burguesas mostraram a necessidade de limitar os poderes do Rei, e com isso, a noção de Poder ficou adstrita em decorrência da sua limitação à lei e aos direitos. Essa evolução faz nascer a necessidade de uma nova concepção de validade do poder, uma vez que os argumentos transcendentais se tornam inócuos diante da era de conhecimento em que se encontrava o homem.
Hans Kelsen fez uma estrita e unívoca associação de legitimidade com validade jurídica, em decorrência do movimento positivista, no entanto, é no início do século XX que surge a grande teoria sobre o conceito de legitimidade. É a “fórmula de obediência” desenvolvida por Max Weber que dividiu, sob um prisma sociológico, a noção de legitimidade em seu aspecto tradicional, carismático e racional-legal. Essa teoria desenvolvida por Max Weber, influenciou todas as formulações posteriores. Já nos tempos contemporâneos, a legitimidade se insere como um poder contido na Constituição do país que deve ser exercido de conformidade com as crenças, valores e os princípios da ideologia dominante, no caso brasileiro a ideologia constitucionalista democrática. (BONAVIDES, 2006, p. 121)
1.2. Fundamentos e conceito de legitimidade
O Homem, desde os mais primórdios tempos, sentiu a necessidade de depositar em algo ou alguém uma inestimável confiança a fim de regular o meio em que vive no sentido de reger a sua convivência social e estabilizar suas relações sociais. Foi assim que nasceu a noção de autoridade revestida de certo poder, sendo esta até hoje a mola propulsora de todas as sociedades.
O poder tem uma faceta dúplice, na medida em que existem aqueles que detêm o poder e aqueles a que ele se destina. Por isso, alguns autores tratam essa faceta dúplice como a face jânica do poder. Jânica que se refere a Janus, antiga divindade cuja efígie possuía dupla face olhando para direções opostas, faz nascer a metáfora de que de um lado se tem o poder puramente fático, tornado efetivo pelo fato da força, ou seja, o que o poder é, partindo de uma premissa empírica; e do outro o poder legítimo ou aspirante à legitimação, sob um prisma axiológico, o que ele deve ser, enquanto instância apta a se legitimar perante seus destinatários. (DINIZ, 2006, p. 53)
A legitimidade tem como fundamento maior, assim pode ser dito, na busca do equilíbrio e ligação dessas duas dimensões, porém raro é acontecer a convergência entre as mesmas. Isso porque, partindo da visão daquele que detém o poder, necessário se faz primeiro a efetividade do mesmo, vindo só após a busca pela legitimação. Enquanto que, partindo do lado dos destinatários, a legitimidade é pressuposto para a efetividade do poder.
A legitimidade não é uma palavra que comporta entendimento unívoco, mas tem como uma de suas finalidades, e a que realmente aqui importa, a de justificar um regime políticio-jurídico. Sua gênese está diretamente ligada à idéia de obrigação política, no sentido de que “a obediência é devida apenas ao comando emanado do poder legítimo.” (BOBBIO, 1999, p. 91) Para Norberto Bobbio, a obrigação política é posta como parâmetro de obediência a determinados comandos emanados daqueles detêm o poder, referindo aos casos em que se deve obedecer e as vezes em que a desobediência será lícita. (idem, p. 87)
A obrigação política é em linhas gerais, o direito de mandar advindo daquele que tem o poder e o dever de obediência daqueles sujeitos ao domínio. A legitimidade é justamente o liame de ligação entre estes dois parâmetros, se mostrando flexível no conceito a depender do tipo de legitimação auferida por uma sociedade. Devendo-se ainda levar em conta uma conjuntura de fatores, tais como os costumes, a cultura, ciência, religião, econômicos, sociais, dentre outros.
O grau de eficácia do direito será determinado pelo conceito de legitimidade adotado por dada sociedade. Pois, como dito anteriormente, o seu conceito varia e está intrinsecamente ligado a questões cruciais de determinada sociedade. Etimologicamente, legitimidade deriva do latim legitimus, e quer dizer “o que é estabelecido por lei”, o que está em conformidade com a lei, porém não se confundindo com legalidade. “A legitimidade é a legalidade acrescida de sua valoração.” (BONAVIDES, 2006, p. 121) A legalidade é apenas a simples submissão à lei, enquanto a legitimidade está ligada a questões materiais, a consonância da questão suscitada e o meio em que está posta.
Marcus Cláudio Acquaviva, em seu dicionário, traz uma compreensão da diferença que existe entre legalidade e legitimidade, ao definir este último como sendo:
atributo daquilo que se mostra conforme a razão e a natureza. Legalidade é termo de significado muito mais estrito, tem mais particular uso na jurisprudência positiva e parece referir-se a tudo que se faz ou obra segundo o que está determinado nas leis humanas, isto é, guardando as solenidades, formalidades ou condições que elas prescrevem. Em física é legítimo ouro, legítima prata, legítimo diamante o que tem a própria natureza destas substâncias, o que não é contra-feito nem adulterado. Em lógica, é legítimo o raciocínio quando os princípios são verdadeiros e a conseqüência é deduzida segundo as regras. Em moral, são legítimas as ações que conformam com a razão, a equidade e a justiça universal. E finalmente, em jurisprudência são legítimas todas as ações ou omissões que as leis ordenam, etc. Um título é legítimo quando está autenticamente na forma da lei: um testamento é legal quando foi feito com as solenidades da lei, uma prova é legal quando nela se acham verificadas todas as condições que a lei requer, etc. (2004, p. 768)
Esta confusão de conceitos entre legalidade e legitimidade encontra arrimo na concepção positivista, pois a legitimidade resta calcada nas normas componentes do ordenamento jurídico, preponderantemente nas normas constitucionais. Apesar de ofertar uma unicidade ao termo e trazer certa segurança jurídica, o prejuízo desta teoria está no fato de se afastar inteiramente de fatores sociais, pois ela ensina que ao aferir a legitimidade de um ato, devem ser observados apenas os parâmetros legais, sem nenhuma interferência de fatores metadogmáticos. Foi, usando a imaginária e oportunista interseção entre legalidade e legitimidade que se deu lugar aos absurdos causados por regimes totalitários, tal como o nazismo.
Segundo Walber de Moura Agra “a busca pela legitimidade significa aprimorar a justificação dos postulados normativos, com a formação de níveis de consenso na sociedade.” (2005, p. 149) O autor adverte que as normas jurídicas por si só não detém legitimidade, seu conteúdo deve estar em sincronia com os anseios da coletividade, sob pena serem legais, porém por não restarem em consenso com a sociedade, serem ilegítimos.
A idéia de legitimidade guarda íntima feição com elementos axiológicos, capazes de gerar consenso em uma sociedade, ou ao menos em sua maioria, a fim de assegurar a obediência e adesão a um poder, sem que este tenha que se valer da força sem necessidade. A maior ou menor legitimidade se dará em decorrência direta do exercício desse poder em conformidade com os anseios sociais.
Em síntese, legitimidade significa qualidade de um poder, governo ou autoridade, que exercendo funções de acordo com os anseios da sociedade, tem desta aceitação e obediência, devido ao fato de que seus atos se coadunam com os anseios da comunidade os tornando eficazes, gerando assim um consenso. A ligação entre a qualidade de um poder e adequação dos seus atos aos anseios sociais, é justamente a crença que o ser humano depositou no Estado Constitucional regido através de uma lei fundamental. A Constituição é trazida para o homem como um escudo de defesa contra as arbitrariedades do poder, através da repartição do mesmo entre três esferas de poder e previsão dos direitos fundamentais.
Joaquim José Gomes Canotilho ao falar para quem ou a que se refere à Constituição diz, com base no art. 16º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 [2], que: “A sociedade ‘tem’ uma Constituição; a Constituição é a constituição da sociedade. Isto significava que nos esquemas políticos oitocentristas a Constituição aspirava a ser um ‘corpo jurídico’ de regras aplicáveis ao ‘corpo social’” (1997, p. 88)
Por isso, pelo fato do Estado existir em função e para a sociedade, para servi-la, só se justificam e só gozarão de legitimidade os atos que tenham por fim servir aos seus legítimos interesses ou no mínimo defendê-la. Este é o caminho pelo qual os governantes devem se guiar, a fim de que seus atos gozem de aceitação e obediência por parte da sociedade.
1.3. Teorias sobre legitimidade
1.3.1. Legitimidade segundo Max Weber
Max Weber, como sociólogo que é, propõe uma análise sob o prisma sociológico do que vem a ser legitimidade. Seu trabalho é apontado como um marco no estudo sobre a legitimidade do poder político, servindo ele de influência para as demais teorias. Sua tese é importante, pois ele desloca seu estudo do elemento subjetivo, para uma análise da motivação empírica do dever de obediência aos comandos emanados do poder político. Retira ele o foco da normatividade, baseando seu estudo em elementos fáticos, pois para ele a legitimidade é uma crença ou confiança que o povo deposita em determinada autoridade.
Sobre o pensamento de Weber, destaca Antônio Carlos de Almeida Diniz:
Coerente com sua opção metodológica pela neutralidade valorativa, Weber passa ao largo de considerações de ordem normativo-axiológica quanto aos princípios legitimadores da autoridade. Realmente, o autor de Economia e Sociedade não se ocupa em examinar se a crença na validade de um ordenamento se relaciona com os motivos ‘bons’, ‘justos’ ou ‘virtuosos’, ou seja, em ‘bons fundamentos’, como prefere chamar Habermas. Longe disso, sua sociologia política atribui, de forma conseqüente, à idéia de legitimidade uma leitura estritamente ‘fenomenológica’, desde a facticidade de suas manifestações históricas. (2006, p. 116)
Max Weber prefere adotar o conceito de dominação ao de poder para tentar explicar legitimidade, pois este seria um conceito fluido sendo para os propósitos da sociologia, cientificamente inúteis. Enquanto isso, dominação tem definição unívoca, significando expressão fática e empírica do poder,
[...] em que uma vontade manifesta do dominador ou dos dominadores quer influenciar as ações de outras pessoas, e de fato as influencia de tal modo que estas ações (...) se realizam como se os dominados tivessem feito do próprio conteúdo do mandado a máxima de suas ações. (1998, vol. I, p. 33)
Ao definir o que vem a ser Estado, o compara a uma empresa com caráter de instituição política, que pretende monopolizar a coação física como meio legítimo a assegurar suas ordens dentro de dado território geográfico. O Estado se apresenta para Weber como uma relação de dominação entre homens através de um meio de coação considerada legítima. (idem, p. 34)
Com isso, Max Weber definiu o Estado pelo seu meio específico de asseguração do poder, contrariando as mais conhecidas teorias, como a de Thomas Hobbes e John Locke que preferem defini-lo pelo fim supremo almejado. Segundo ele, os fins perseguidos podem ser os mais variados, a depender da época e do local, ao passo que o meio específico informador do Estado moderno seria um só: o monopólio da coação legítima, estando ausente esta, não haveria Estado e sim anarquia. Ressalta, porém, que a coação legítima não é o único instrumento que o Estado possa se valer para concretizar seus comandos, podendo empregar quaisquer outros recursos postos à sua disposição, sendo a força física o último a ser utilizado na medida em que os demais falhem. (idem, p. 34)
Explica Max Weber que o Estado moderno é uma forma de organização política que se configura como uma organização de domínio, mas destaca que o domínio pressupõe um mínimo de vontade de obedecer. Diz ele: “em toda relação de poder autoritária, certo mínimo de interesse em obedecer, por parte do submetido, continua sendo, na prática, a força motriz normal e indispensável da obediência.” (idem, vol. II, p. 190) A força seria o recurso mais utilizado pelos dominadores, porém o Estado moderno não se conteve apenas com ela, recorrendo à legitimidade.
Observa então o sociólogo alemão: “a subsistência de toda dominação, no sentido técnico que damos à palavra, depende, no mais alto grau, da autojustificação mediante o apelo aos princípios de sua legitimação.” (idem, p. 197) Assim, Max Weber conseguiu perceber que por mais que os detentores do poder (domínio) recorram ao recurso da força no intuito de se perpetuarem no poder, buscam outros meios ainda mais racionais para consolidarem seu império. Assinala que sem o componente legitimatório, o domínio de dada ordem política se torna ameaçado. Por isso, os detentores do poder “tencionam, então, fomentar nos membros do agrupamento político a crença na sua legitimidade, transformando a disciplina em reconhecimento e adesão à vontade nelas representadas.” (DINIZ, 2006, p. 126)
Tentando demonstrar os fundamentos de justificação interna da legitamação, que é justamente a crença do povo no poder, externada através do dever de obediência, Max Weber propõe uma tipologia tríplice das formas de legitimidade, verificadas historicamente nas mais diversas comunidades políticas, sendo elas:
a) Legitimidade racional-legal: nesta concepção, Max Weber apesar de fugir do fundamento exclusivamente legal observa que, em certas sociedades, legítimo está ligado à validade jurídica, destacando que esta categoria é a dominante nos Estados dotados de sistema positivo. A crença está na legitimidade das ordens objetivas e legalmente constituídas.
O paradigma racional formal do direito encontra-se estreitamente vinculado, na reflexão weberiana, com a organização burocrática do poder estatal, ou seja, seu autogerenciamento é materializado num corpo profissional de funcionários especializados e capazes de administrá-lo. (DINIZ, 2006, p. 126)
Por esta análise, o domínio seria legítimo na medida em que se exercesse em conformidade com as regras de direito e não apenas calcada na autoridade de seu titular. A legitimação deriva da competência fixada por regras gerais, racionais e estatuídas.
b) Legitimidade tradicional: esta se baseia exclusivamente na crença costumeira da sacralidade das tradições vigentes desde sempre, podendo advir de convenção, direito consuetudinário ou sagrado. A crença também está na legitimidade daqueles que ostentam seu prestígio e autoridade política, baseados na consecução destas tradições.
c) Legitimidade carismática: esta forma de legitimidade está personalizada na figura do líder e toda a veneração e confiança que o povo deposita nele. A crença está na sua santidade, heroísmo ou personalidade, as ordens emanadas deste líder são veiculadas ou criadas dentro do âmbito da crença nesse carisma. Max Weber observa que os comportamentos carismáticos de alguns líderes, geram demasiado fascínio nos seus liderados que só este elemento encerra a justificação de seu domínio. De maneira que este elemento gera no povo à adesão de seus atos e comandos, tudo isso em prol da realização de uma missão ou predestinação de que ele se considera investido.
Por fim, Max Weber menciona que na maioria das vezes estes tipos de legitimidade não foram encontrados puros e isolados. Geralmente podem ser observadas as mais diversas combinações feitas entre eles a depender do tipo de sociedade e o momento histórico vivido, não sendo elas incompatíveis entre si.
1.3.2. A legitimidade segundo o positivismo jurídico
É bem verdade que poder político é noção anterior ao próprio surgimento do direito, mas durante a evolução da humanidade esses conceitos têm se mostrado cada vez mais próximos, culminando na justificação do poder através da lei defendida pelos positivistas. A doutrina positivista nasce em meados do século XIX, como resposta à arbitrariedade exercida pelo absolutismo monárquico. Nasce como doutrina que prega o direito sendo unicamente aquele previsto em lei, não reconhecendo inclusive o jusnaturalismo, pois segundo os adeptos desta concepção, nenhum outro direito pode coexistir ao lado do direito posto pelo Estado.
Para os positivistas, só o Estado tem o monopólio do direito (que pode se manifestar por via legislativa ou consuetudinária, mas desde que por recursos eficazes) e assim o é porque o Estado é o detentor exclusivo dos mecanismos de coerção, de maneira que só assim se garante a eficácia do sistema. Neste momento, é perceptível até mesmo uma interseção da teoria positivista e o defendido por Max Weber, muito embora seja uma linha de interseção bastante tênue.
Ao austríaco Hans Kelsen, coube a tarefa de sistematizar toda a teoria positivista, e o fez com sagaz brilhantismo, sendo sua Teoria Pura do Direito, obra estudada e citada em todo o mundo. Ao desenvolver sua teoria, Hans Kelsen busca dar autonomia ao direito e também objetividade científica com certo rigor metodológico, querendo elevar o direito ao mesmo patamar de cientificidade alcançado pelas ciências epistemológicas consolidadas.
O positivista austríaco alerta que sua pretensão e seu estudo não se destinam justificar e explicar um dado sistema jurídico, sendo uma teoria geral pretensa a descrever a estrutura formal de qualquer direito positivo. (1998b, p. 1) Para ele o Estado se confunde com a própria idéia de direito, sendo uma redundância a expressão Estado de Direito.
Hans Kelsen concebe a ordem jurídica sob um prisma piramidal, sendo dinâmico na medida em que as normas se escalonam entre si. As normas inferiores retiram sua validade das superiores, havendo choque entre elas o problema estaria solucionado com a aplicação da superior, em virtude de ser ela o argumento de validade para a outra. No vértice da pirâmide estaria a Constituição posta por ato do Poder Constituinte ou pelo costume.
Acima de todas está a norma fundamental que não é uma norma posta, é ela um pressuposto do sistema que determina o que é ou não direito. Ela tem uma função metodológica de limitação das normas à argumentos jurídicos, não se destinando a oferecer justificação ético-político institucional. (1998a, p. 117) Ela não se presta a fornecer o conteúdo das normas, se limitando apenas a ser seu fundamento supremo de validade, ou seja, em sua teoria Hans Kelsen se abstém de utilizar elementos axiológicos para justificar as leis.
Ao tratar da legitimidade, à resume numa dimensão exclusivamente lógico-normativa, esvaziando de seu conceito qualquer conteúdo substancialista axiológico. Ele vincula a noção de legitimidade à validade normativa, assim se referindo a validade destaca o positivista: “a norma de uma ordem jurídica é valida até a sua validade terminar por um modo determinado através desta mesma ordem jurídica, ou até ser substituída pela validade de uma outra norma desta ordem jurídica.” (KELSEN, 1998b, p. 233)
1.3.3. Legitimidade segundo Paulo Bonavides
Paulo Bonavides esclarece a diferença existente entre legalidade e legitimidade, e demonstra que a máxima do positivismo nada mais é do que pura legalidade, não se confundindo com legitimidade. Assim diz ele: “a legalidade nos sistemas políticos exprime basicamente a observância das leis, isto é, o procedimento da autoridade em consonância estrita com o direito estabelecido.” (2006, p. 120) Desta forma, ele define como sendo poder legal aquele que é exercido em harmonia com os princípios jurídico do direito posto.
Ao tratar de legitimidade, mostra que esta tem exigências mais delicadas, tem conteúdo mais substancial, pois busca a justificação em argumentos axiológicos. Para ele “a legitimidade é a legalidade acrescida de sua valoração (...) no conceito de legitimidade entram as crenças de determinada época, que presidem a manifestação do consentimento e da obediência.” (idem, p. 121) A legalidade é o perfeito enquadramento de um dado regime aos moldes contidos em sua Constituição. Já a legitimidade é este enquadramento, acrescido do exercício do poder em conformidade com as crenças, valores e princípios da ideologia dominante naquele local.
Paulo Bonavides cita quatro temas da teoria política, a fim de elucidar considerações acerca dos temas legitimidade e legalidade, quais sejam, o histórico, o filosófico, o sociológico e o jurídico.
Do ponto de vista histórico, ressalta que a primeira cisão entre a legalidade e a legitimidade surge na Europa a partir de 1815. Toma como exemplo o antagonismo em que vivia a França entre a legitimidade de uma dinastia restaurada e a legalidade vigente no Código Napoleônico. Os liberais sustentavam a legalidade monárquica, enquanto que os conservadores o requisito de legitimidade da mesma como forma de poder.
Com a revolução francesa ocorre uma verdadeira transposição de termos, fazendo toda a legitimidade repousar doravante na legalidade e não como antes a legalidade na legitimidade. (BONAVIDES, 2006, p. 123) E assim o foi porque neste momento começa a surgir um embrionário pensamento positivista, onde a lei representava o máximo poder da razão emancipadora.
Cita duas grandes crises como decisivas para a separação dos conceitos de legalidade e legitimidade. A primeira viria com o Manifesto de Karl Marx mostrando que a lei aparece como um reles instrumento de classes dominantes, fazendo com que o hiato entre legitimidade e legalidade ficasse ainda maior. A outra crise chega com o regime totalitarista imposto por Adolf Hitler. Aponta que a tomada de poder nesse caso chegou sem quebra da legalidade, e cuja legalidade, apreciada pelos fundamentos racionais, não encontra qualquer repreensão.
Paulo Bonavides, diz que sob o prisma filosófico:
[...] a legitimidade repousa no plano das convicções pessoais, no terreno das convicções individuais de sabor ideológico, das valorações subjetivas, dos critérios axiológicos variáveis segundo as pessoas, tomando contornos de uma máxima de caráter absoluto, de princípio inabalável, fundado em noção puramente metafísica que se venha a eleger por base do poder. (2006, p. 124)
Sob o prisma sociológico, diz que legitimidade é o fundamento que busca um poder para gerar obediência ou não de seu povo. Tem-se como legítimo o poder advindo de uma teoria dominante, o qual adere a massa dos governados. A legitimidade, como assim o é, se torna um conceito relativo, com conteúdo firmado segundo as crenças efetivamente espalhadas em certo momento e em dado país. Afastando-se com isso as digressões de ordem ideológicas, metafísicas e doutrinárias.
Com relação ao aspecto jurídico, cita os ensinamentos do Francês Carl Schmitt, para quem a legitimidade do poder legal sempre requer uma presunção de juridicidade, de exeqüibilidade e obediência condicional e de preenchimento de cláusulas gerais, pois estes servem como base para o controle de constitucionalidade e como ponto de partida a uma doutrina do direito de resistência. (idem, p. 128)
2. DO WELFARE STATE AO ESTADOR REGULADOR
Esta seção do trabalho está concentrada na apresentação dos motivos que dão ensejo a justificativa e a delimitação do objeto do trabalho. A evolução comportamental do Estado é necessário ser demonstrada, porque quebra a observação aqui feita parte da premissa que o paradigma de legitimidade estatal foi quebrado, uma vez que em 1988 o constituinte optou por um modelo de Estado e hoje tem um comportamento diferente. Assim, a explicitação da evolução do modelo de Estado social se faz necessário porque ele é o objeto de partida do estudo e, ainda, porque as raízes do comportamento atual do Estado acompanharam a evolução do Estado Assistencial, sendo até mesmo o fundamento de sua aparição.
2.1. O Surgimento do Welfare State
A Constituição americana de 1787 e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, foram os documentos que introduziram no mundo o movimento constitucionalista que foi norteado no seu início por ideais liberais. A herança de temor deixada pelas monarquias absolutistas, tese a qual o constitucionalismo se tornou a antítese, fez com que a necessidade de afastamento do povo e o Estado se revelasse como um meio viável à evolução humana.
As primeiras Constituições do mundo (dos Estados Unidos e da Franca) tiveram duas preocupações básicas: divisão do poder, uma vez que a concentração num só corpo se revelou arbitrária; e a limitação do poder de ingerência do Estado sobre as pessoas e seus direitos, reconhecendo um rol de direitos mínimos, basicamente ligados à liberdade, onde o Estado os reconhecia e lhe impunha uma única função, a de não intervir nem atentar arbitrariamente contra esses direitos.
Esse distanciamento entre Estado e seu povo inicialmente era o ideal, diante do quadro que se apresentava o mundo comandado por reis déspotas, o Estado se apresentava como um perigo. Os movimentos que ascendiam no mundo, como o iluminismo e o renascimento, traziam ao homem um conhecimento pelo qual, ele não mais podia aceitar desculpas transcendentais para os desmandos dos reis absolutistas. O homem passava a ser um ser racional e ter a sensação de que podia e devia ser autopoiético, bastando em si mesmo, de maneira que o seu afastamento do Estado era imperioso.
Contudo, além da evolução no conhecimento, e até mesmo por conta dela, os séculos XVIII e XIX também foram marcados pela evolução tecnológica e, por isso, do próprio capitalismo, o que levou o povo a perceber que esse distanciamento do Estado seria prejudicial, até mesmo porque a história evolutiva da sociedade mostra que esta sempre se dividiu em classes escalonadas, onde há aqueles que podem mais, e aqueles que podem menos.
Ainda no século XVIII, em sua última década, o Código Prussiano de 1794 trouxe uma sistema de proteção social que foi, mais a frente, desenvolvido por Otto Von Bismarck. “Esse sistema preconizava a função exclusiva do Estado em garantir políticas que pudessem aliviar o sofrimento dos despossuídos, inclusive com a criação de empregos para os excluídos da máquina econômica.” (GOMES, 2006, p. 205) Em 1883 ele aprovou a Lei de Seguro-saúde, em 1884 a Lei de seguro-acidente e em 1889 a Lei de pensões por velhice e invalidez, e muito embora tenham sido leis que afagavam socialmente os trabalhadores, tinham por fim garantir o desenvolvimento industrial protegendo a classe que tornava isso viável, o proletariado.
Outro exemplo da promoção de atos assistenciais por parte do Estado aos menos favorecidos socialmente, estava na chamada ‘lei dos pobres’ aprovada na Inglaterra em 1834 na qual se obtinha aos auspícios da coletividade a subsistência dos mais pobres. No entanto, num mundo que começava a ser guiado pelo o capitalismo, tais atitudes eram tidas como um desvio moral da própria idéia de capitalismo liberal, onde cada um é responsável pelos seus ganhos, através de seu merecimento. Desta forma, essas políticas assistenciais eram vistas como uma contradição aos direitos civis e políticos, gerando para os que se beneficiaram dela renúncia de tais direitos, em troca dos favores concedidos pelo Estado. (BOBBIO, 2000, vol. I, p. 416)
O liberalismo e a democracia burguesa aspiravam alcançar uma harmonia pré-estabelecida da ordem natural espontânea pelo livre jogo dos egoísmos individuais. Já o socialismo quer estabelecer uma sociedade solidária, colocando no lugar do governo sobre os homens, o governo sobre os bens. Em suma, a democracia liberal consolidou a emancipação da burguesia. A democracia liberal pretende a emancipação do proletariado. (BERCOVICI, 2004, p. 123)
Os séculos XVVIII e XIX apresentaram traços fortes desses dois movimentos políticos, o liberal e o social, sendo que o primeiro conseguiu maior consistência, servindo inclusive de inspiração para as primeiras Constituições do mundo. Já o socialismo, mais fraco, não foi além de acasos pontuais, por isso, mesmo que estes séculos tenham apresentados políticas sociais, não há como apontar desde então o surgimento do Welfare State[3], pois tais políticas, apesar de beneficiar os menos favorecidos, não tinham neste o objeto de sua concentração. Isso porque, um dos fatores basilares para a afirmação do Estado de Bem-estar social é a de que tais políticas, antes vistas como meros favores sociais, neste perfil de Estado elas se tornam um direito do cidadão. O discurso do merecimento no capitalismo-liberal, dará lugar à análise empírica de que a desigualdade está no âmago da sociedade, sendo produto dela, desde os tempos mais remotos.
No início do século XX se torna claro que, para promover uma sociedade habilitada a desfrutar e ter direitos civis e políticos é necessário garantir um mínimo existencial para que tais direitos possam se desenvolver. A idéia contribuição universal para a promoção do bem-estar de todos e, por fim, o desenvolvimento da sociedade passa a ser aceita pelos indivíduos, o que faz defluir disso as bases para o aparecimento real do Welfare State. Os benefícios sociais ganham status de direitos, e assim passam a ser encarados.
A idéia do Estado de Bem-estar social está fincada na constituição de estruturas de seguridade social, principalmente no que diz respeito à assistência social. Por conta disso, esse modelo de Estado tomou diferentes molduras a depender das necessidades das comunidades no qual era inserido. No século XX, o trabalhador não será sua única fonte de inspiração, mas sim a sociedade como um todo, com inspiração direta na própria evolução dos direitos fundamentais que no início do século passado estava concentrada na garantia de igualdade de condições a todos.
O início do século XX ainda estava marcado pela idéia de intervenção mínima no Estado na economia, na idéia de que cada indivíduo deve ser responsável por si mesmo, mas a crise econômica ocorrida nos Estados Unidos em 1929, já mostrou que se tornava cada vez mais difícil evoluir com esses ideais liberais. Em 1933, sob a presidência de Franklin Delano Roosevelt, o país norte-americano lança um programa emergencial destinado à recuperação da economia, era marcado por uma posição mais ativa do Estado diante da economia. A esse programa se deu o nome de New Deal e ele inaugurou nos Estados Unidos a estrutura do Estado de Bem-estar social, baseado na livre-iniciativa, mas com acentuada participação do Estado na promoção de benefícios sociais que tinham por fim conceder padrões mínimos de vida. (FARIAS, 2007, p. 74)
Na Inglaterra, país que mais a frente se tornará um dos maiores expoentes do chamado neoliberalimo, em 1936 lorde John Maynard Keynes revoluciona a economia com sua obra ‘A teoria geral do emprego, do juro e da moeda’. Ele preconizava a intervenção do Estado na economia, através da geração e canalização de investimentos, era contra a máxima liberal de que o mercado com sua lógica própria e contando com a mão invisível do Estado, alcançaria bons resultados a longo prazo. O lorde britânico era temerosa às políticas de longo prazo em detrimento daquelas que priorizavam o momento atual. (idem, 2007, p. 74-75)
Outros dois fatores tornaram insustentável a idéia de distanciamento entre o Estado e o povo, as duas grandes guerras mundiais. Os absurdos causados a direitos fundamentais durante as guerras, bem como os grandes prejuízos econômicos inerentes a qualquer pós-guerra, somados a grande depressão empreendida com a crise nos Estados Unidos em 1929, tornaram impossível a viabilidade de um Estado tipicamente liberal. Ainda durante o intervalo entre a I e a II guerra mundial, o mundo pode ter conhecimento do documento que, muito embora não tenha sido eficiente, representou a ruptura total com o liberalismo, a Constituição de Weimar de 1919.
A Carta de Weimar foi muito mais um instrumento retórico do que eficaz, contra o individualismo liberal, mas com certeza duas contribuições suas foram muito importantes para a concepção do Welfare State: a positivação em categoria constitucional de direitos sociais, relativos à relações de trabalho, educação, cultura, seguridade social; e a organização do Estado voltado para a sociedade e não para o ser individualizado.
Sob a ótica singular de quem foi derrotado numa Guerra Mundial, a Alemanha ao editar sua nova Constituição, se deixar levar por aquele momento instantâneo, assim:
A Constituição de Weimar era um compromisso politicamente aberto de renovação democrática na Alemanha. O difícil em sua análise não é demonstrar suas incoerências, mas definir qual seria a saída satisfatória no contexto complexo e contraditório de uma sociedade industrial moderna nas condições alemãs do pós-Primeira Guerra Mundial. (BERCOVICI, 2004, p 26)
O movimento em prol da sociedade ganha outros contornos, ainda mais fortes após os absurdos patrocinados por regimes totalitários durante a II Guerra Mundial, a dicotomia aparentemente existente entre a consideração do individuo, individualmente e a sociedade, se atenua de maneira que ambos devem ser considerados, tanto no individual, como no coletivo. Após, a II Guerra Mundial, o mundo é presenteado com uma avalanche de diplomas recheados de direitos sociais e direitos fundamentais individuais, principalmente porque as condições sociais, econômicas e políticas do pós-guerra favoreciam à imposição de freios ao capitalismo do tipo libera que diante de situações tão extremadas, presenciadas durante o confronto mundial, não encontrava argumento de sustentação parta prosperar.
Neste quadro, parece que o Estado de Bem-estar começa a se afirmar. Na Inglaterra na década de 1940, é possível encontrar explicitamente o princípio maior do novo modelo de Estado, “independentemente de sua renda, todos os cidadãos, como tais, têm direito de ser protegidos.” (BOBBIO, 2000, vol. I, p. 417) Desta forma, o Welfare State é o modelo de Estado que se apresenta como garantidor, o grande provedor de direitos e subsídios mínimos de sobrevivência e desenvolvimento de seu povo.
Numa acepção bem mais adequada à atualidade, o Welfare State significa:
[...] conjunto de serviços e benefícios sociais de alcance universal promovidos pelo Estado com a finalidade de garantir uma certa ‘harmonia’ entre o avanço das forças de mercado e uma relativa estabilidade social, suprindo a sociedade de benefícios sociais que significam segurança aos indivíduos para manterem uma mínimo de base material e níveis de padrão de vida, que possam enfrentar os efeitos deletérios de uma estrutura de produção capitalista desenvolvida e excludente. (GOMES, 2006, p. 203)
Em texto que analisa o desenvolvimento do Welfare State, Fábio Guedes Gomes traz um quadro em que demonstra que na década de 1960 até meados da década seguinte, países como Estados Unidos, Noruega, Canadá, Japão, Finlândia, Holanda, e Suécia, o gastos com seguridade social nestes países passava dos 9% do total de seus receitas. Outros países como Alemanha, Grã-Bretanha, França, Suíça, também tiveram elevação dos gastos de suas receitas com relação à seguridade social. Segundo o autor, esses dados mostram que, mesmo antes de se desencadearem os movimentos neoliberais pela Europa, o Estado de Bem-estar já estava consolidado. (2006, p. 215-216)
Nas décadas de 1950 e 1960 e, até mesmo, parte da década de 70 o Estado Assistencial prosperou, inclusive, por conta da superação completa da contradição propugnada no século XVIII e XIX entre direitos civis e políticos e os direitos sociais. Agora, eram vistos como um lugar comum, sendo um o determinante para o outro, o equilíbrio social faz com que as pessoas possam exercer melhor seus direitos civis e políticos.
2.1.1. A difícil introdução do Welfare State no Brasil
No Brasil os direitos sociais, base do Estado Provedor, começaram a surgir na Constituição de 1934, sob influência direta da Constituição de Weimar. Contudo, concordando com o que diz Fábio Guedes Gomes, o país nunca construiu um sistema de seguridade social capaz de implementar o Estado Assistencial. E o autor tributa isso ao fato de que no Brasil, a classe operária jamais chegou a um nível de amadurecimento capaz de impulsionar lutas em favor dos benefícios do proletariado (2006, p. 222-223). Talvez esse seja um mal dos países ditos em subdesenvolvimento, que foram flagrados pela globalização e pelo capitalismo industrial um pouco mais tarde.
Nas três primeiras décadas do século XX o Brasil ainda era dominado pelas oligarquias agrárias, e grande parte do proletariado se concentrava no campo, a avalanche de industrialização que acabara por gerar os motivos determinantes para a criação de benefícios aos trabalhadores, ainda não havia alcançado o trabalhador brasileiro. A partir de 1930 a burguesia industrial começa a ganhar campo político no Brasil e então, as disputas de classes que na maioria do mundo, deu impulso à aquisição de benefícios sociais, no Brasil foi feita entre as classes ‘privilegiadas’, ou seja, as classes oligárquicas agrárias querendo manter seu poder, contra a classe burguesa que queria ascender e os trabalhadores apenas como meros espectadores dessa luta.
A Constituição Brasileira de 1934 veio a piorar ainda mais a situação dos trabalhadores em termos de opinião. Esta Carta apesar de trazer vários benefícios ao trabalhador como a criação do Ministério do Trabalho, obrigatoriedade da carteira profissional e a jornada de trabalho limitada à oito horas diárias, durante sua égide sob o Governo de Getúlio Vargas, houve a estatização da luta de classes. Ao conceder parte da representação da Câmara dos Deputados aos representantes das organizações profissionais (art. 23), a discussão sobre os anseios da classe operária estabeleceu-se em nível estatal, o que por si só já tornou inviável a formulação de opinião contrária ou diferente àquela apresentada, por fim, pelo próprio Estado.
A briga de classes entre as oligarquias agrárias e a burguesia industrial perdurou ainda por um bom tempo, e enquanto elas ocorriam, a classe operária se via sem poder político suficiente para fazer valer o movimento social. Então com a Carta de 1946 e o governo do Presidente Eurico Gaspar Dutra, a idéia de adoção pelo Brasil do Estado de Bem-estar social ficou ainda mais distante. Isso porque, na contramão do que vinha fazendo todo o mundo dando ênfase aos direitos sociais, a nova ordem constitucional brasileira foi lastreada principalmente pelo desenvolvimentismo.
O governo do presidente Eurico Gaspar Dutra, deu bastante ênfase ao investimento em infra-estrutura, foi em seu governo que se iniciou a construção de uma das rodovias mais importantes do país, a Rodovia Presidente Dutra que liga o Rio de Janeiro a São Paulo. Também foi em seu governo que surgiu o Estatuto do Petróleo (mais a frente, no segundo governo de Getúlio Vargas em 1953, foi criada a estatal Petrobrás), teve início a construção das primeiras refinarias e, também, o surgimento da Companhia Hidro Elétrica do São Francisco (CHESF).
Nesse cenário, não havia campo para discussão de criação de um sistema de seguridade social para o trabalhador. A nova Carta não trouxe grandes evoluções no campo social, principalmente no que diz respeito a seguridade social, sistema que ainda se encontra no Brasil bastante negligenciado. A Constituição de 1946 tomou por bases as Constituições de 1891 e 1934, daí porque José Afonso da Silve diz que ela “nasceu de costas para o futuro.” (2005, p. 85)
Mais a frente, no governo do Presidente Juscelino Kubitschek, período reconhecidamente dedicado ao avanço industrial e a obras de infra-estrutura no Brasil, esse período contribuiu sobremaneira para o enfraquecimento da classe operária como voz capaz de empreender conquistas mais substanciais para o campo social e para o aumento da inflação, dois fatores que foram decisivos para a ausência de bases sólidas para a criação do Welfare State.
Logo após, o país viveu um período de instabilidade política com a adoção do parlamentarismo em 1961 e o retorno ao sistema presidencialista. Após, o Brasil vive a ditadura militar, período que conseguiu fazer evoluções no campo social através da definição mais eficaz dos direitos trabalhistas, da dedicação a projetos de habitação popular, da unificação do sistema previdenciário com a criação do Instituto Nacional de Previdência Social (INPS). Contudo, o país não conheceu um sistema de seguridade social de cobertura universal, aos moldes dos países do Estado Assistencial em evolução no mundo.
E mesmo que a República brasileira conseguisse evoluir a ponto de criar um sistema de contribuição universal para a assistencial social, ainda sim o Estado de Bem-estar social não teria campo para prosperar. Isso porque, como fora dito anteriormente, esse modelo de Estado é tido quando o campo social evolui a ponto de permitir a otimização dos direitos civis e políticos, ou seja, há uma convergência entre as dimensões de direitos fundamentais, através de um realce dos direitos sociais.
Num regime ditatorial, muito embora haja avanços em campo social, há desprezo pelos direitos que, em análise última, são a própria razão para o fortalecimento dos direitos sociais, quais sejam, os direitos civis e políticos. Assim, a negação a direitos fundamentais de primeira geração, e a própria centralização política e, por conseqüência, dos direitos políticos, fez com que o Brasil não experimentasse a promoção do Welfare State quando de fato ele prosperou.
2.1.2. A crise do Welfare State e a Constituição de 1988
O Estado de Bem-estar social tentou surgir no mundo, em meio à forte evolução industrial e do capitalismo. Os autores não apresentam uma posição pacífica a respeito da consolidação ou não desse modelo de Estado, o que por si só já demonstra, indiscutivelmente, a sua fragilidade. Vários são os motivos que podem ser apontados como determinantes para a crise do Estado Assistencial, no presente estudo estão elencados àqueles que se mostraram como mais coerentes, são eles: a fragilidade teórica das bases de fundamentação do modelo de Estado; os vícios capitalistas que permearam os motivos que determinaram a conquistas dos direitos sociais, base do Estado Social; e, por fim, a própria inviabilidade de adoção de um Estado como este, diante da crise econômica e fiscal que atravessou o mundo nas décadas de 1970 até 1990.
Os avanços obtidos com a tentativa de implementação do Estado Assistencial no mundo, ofereceram aquela que pode ser a maior conquista contra o Estado Liberal, o fim da separação e distanciamento entre a sociedade e o Estado. Muito embora o pós-II Guerra Mundial tenha marcado a possível consolidação do Welfare State, teorias liberais nunca deixaram de existir nessa trajetória. Assim, em 1944 Friedrich Hayek publicou a primeira obra acadêmica de cunho neoliberal, ‘O caminho da servidão’, discorrendo acerca do limite entre intervenção e controle do Estado sobre a sociedade.
Em 1950 o mundo toma conhecimento do pensamento de Milton Friedmam, apontado como maior expoente neoliberal, teórico da chamada escola monetarista. Mesmo que muito incipiente e concentradas na academias, a própria coexistência da consagração do Estado Provedor com os estudos e evolução das teorias neoliberais, fizeram com que se tornasse difícil a consolidação teórica do Welfare State.
Estudar o Estado de Bem-estar social não é das tarefas mais fáceis. A doutrina apesar de aparentemente vasta, não enfrenta os principais pontos, quais sejam, delimitar um conceito e discorrer sobre os fundamentos que atestem a plena consolidação deste modelo de Estado. Talvez essa ausência de estudos sobre a fundamentação teórica tenha sido um dos principais motivos de seu enfraquecimento, as bases do surgimento são do socialismo, mas após a II Guerra Mundial, ficou claro que a adoção de um socialismo radical poderia levar ao esquecimento dos direitos individuais, quando então o Welfare State surge como a congregação desses dois valores, com uma ênfase maior nos diretos sociais.
José Afonso da Silva aponta a própria variedade hermenêutica da expressão social, como motivo complicador à consolidação do Estado Social. “Todas as ideologias, com sua própria visão do social e do Direito, podem acolher uma concepção do Estado Social de Direito.” Conclui dizendo que o Estado Social é de possível adequação a qualquer forma de regime político, seja democrático, facista ou socialista. (2005, p. 115-116)
Outro ponto de fragilidade, está no vício de motivos que determinaram a agregação de um sistema social em benefício da sociedade. Fábio Guedes Gomes tenta demonstra em texto seu que adoção do Estado de Bem-estar social, se deu não com o intuito de beneficiar o povo carente socialmente e, sim, fortalecer o capitalismo que viu na cessão de benefícios sociais, uma inevitável e viável maneira de prosperar. O autor demonstra dois motivos essenciais para a criação do Estado social: a) a integração das classes trabalhadoras à sua ordem capitalista, o capitalismo cede à concessões sociais com o objetivo maior de legitimar sua hegemonia e continuar no controle do processo produtivo; b) com evolução da produção e do consumo em massa o capitalismo ver nas concessões sociais um meio necessário para não quebrar esse ciclo de produção e acumulação de capital. (2006, p. 211-213)
A esses acordos e acertos deu-se o nome de contrato social fordista e este é
[...] o regime de acumulação intensiva, em que a classe capitalista intenta administrar a reprodução global da força de trabalho assalariada através de relações de produção mercantis, sob as quais os trabalhadores assalariados adquirem seus meios de consumo. (Aglietta apud GOMES, 2006, p. 213)
Tudo isso vai de encontro ao próprio ideário do sistema social que ver no trabalhador o ponto de transformação e evolução de uma comunidade. Com essas perspectivas, o trabalhador sai do papel de agente da transformação, para ser o meio pelo qual o sistema que lhe é oposto, o capitalismo, vai evoluir e conseguir atingir seus objetivos. O trabalhador, foco do Welfare State, seu principal beneficiário, se ver sendo utilizado para a legitimação e afirmação cada vez mais forte do regime capitalista.
Tal regime perdurou até o fim da década de 1970, quando foi quebrado pelos próprios capitalistas, ao sentirem os efeitos colaterais da excessiva acumulação de riqueza. A inflação começou a perturbar os mercados que se viram compelidos a pagar uma alta carga tributária, em decorrência da necessidade de o Estado necessitar desenvolver políticas sociais e, mais, aprimorá-las e direcioná-las cada vez mais ao coletivo.
O Estado de Bem-estar social apesar de ser uma maravilha, trouxe efeitos colaterais e inevitáveis. Para patrocinar um Estado altamente provedor é necessário ter uma reserva financeira bem vultosa, há um dissenso natural entre a idéia de solidariedade social e a acumulação de capital, um prever a divisão e outro a acumulação. A intervenção volumosa e direta do Estado na economia, produziu estagnação e inflação que colaborou para a crise economia pela qual passou o mundo no fim da década de 1970.
O Estado, preso numa administração burocrática, não conseguiu acompanhar a velocidade com que o mercado evoluiu, oferecendo com mais agilidade e com custo baixo, os serviços essenciais ao bem-estar do povo. O mercado começava a enxergar no Estado, um obstáculo a sua evolução, e a sociedade clamava por uma distribuição eficiente dos serviços básicos. Contudo o Estado, como se propôs ser, não apresentava um planejamento viável para a consecução de seus compromissos, por duas razões básicas: pelo volume de compromissos que assumiu e pela deficiência de caixa.
Num cenário de crise como este, não haveria momento melhor do que este para trazer à baila os ideais neoliberais. Essa nova era foi conduzida, essencialmente, pelas políticas aplicadas nos Estados Unidos, durante do governo de Ronald Reagan e na Inglaterra, com a ascensão da Primeira Ministra Margaret Thatcher. Havia um norte bem delineado, qual seja, a diminuição da área de atuação do Estado, notadamente na economia e duas palavras-chaves guiaram as políticas: descentralização e privatização.
Luiz Carlos Bresser Pereira aponta 3 grandes crises no início dos anos 1980: a crise do Welfare State; nos países subdesenvolvidos que não consolidaram de fato o modelo de Estado social, o aumento das importações como cobertura aos esgotamento da industrialização; e o colapso do estatismo nos países comunistas. Somada a tudo isso, o alto custo e a baixa retribuição de uma administração exageradamente burocrática. (2002, p. 36)
No início dos anos 1980 o Brasil, assim como os países da América Latina, enfrentou uma das suas piores crises financeiras, contribuindo para isso o aumento da dívida externa, a inflação, a crise fiscal, a crise do petróleo e problemas com o financiamento externo. Dessa forma, “as políticas públicas se concentravam nas políticas econômicas ficando todas as demais subordinadas aos resultados do ajustamento externo.” (GOMES, 2006, p. 229) Com certeza, a área social era diretamente afetada com isso sendo então, relegada à segundo plano.
Entretanto, mesmo com um quadro claro de crise, o constituinte brasileiro de 1988 foi, mais uma vez, desatento aos acontecimentos mundiais e consagrou um Estado de Bem-estar social. Para Luiz Carlos Bresser Pereira, o país em meados de 1980 e durante a Assembléia Nacional Constituinte, foi dominada por correntes populistas que na ânsia de retomar a democracia no país e ascender ao poder, foi incapaz de reconhecer a crise fiscal que vivia do Estado brasileiro e optar por um Estado mais condizente com a realidade.
Um exemplo claro de ato populista que só fez agravar ainda mais a crise no país, foi a inclusão dos trabalhadores rurais como beneficiários do sistema previdenciário e a adoção de uma sistema único de previdência para os funcionários do Estado. A adoção de um sistema de seguridade social tão amplo foi utópico, porque desde o princípio já se sabia que seria impossível torná-lo viável e o país sofre até hoje os efeitos dessa decisão populista.
Fábio Guedes Gomes, faz uma observação interessante sobre o processo de redemocratização do Brasil ao falar do fracasso do sistema de seguridade social. Segundo ele:
[...] esse fracasso também se deveu porque a sociedade brasileira, mais precisamente as classes trabalhadoras, não tinham, ainda, amadurecido a idéia de que a abertura democrática também poderia servir de trampolim para a luta por reivindicações sociais para além da abertura democrática apenas. (2006, p. 231)
Essa afirmativa do economista se coaduna perfeitamente com o que já fora discutido mais acima, o fato de que as classes operárias no Brasil, não conseguiram empreender uma força capaz de guiar os rumos sociais dos pais. O resultado disso foi uma Constituição recheadas de direitos sociais, no entanto, em grande parte esculpidos como normas de eficácia limitada, muita das quais só vieram a ser reguladas muito tempo após a promulgação da Carta de 1988, já sofrendo influência do modelo de Estado Regulador.
Em 1989 os Estados Unidos lançaram um pacote de medidas que foram vistas como uma nova dimensão do liberalismo, a esse pacote se deu o nome de ‘Consenso de Washington’. Esse termo foi cunhado por John Williamson e tinha por fim reunir as principais medidas de cunho conservador aplicadas nos Estados Unidos e deixadas como herança do governo de Ronald Reagan. O país norte-americano que à esta época já alcançava o patamar de maior influente econômico no mundo, imaginou tais medidas como o caminho de saída para crise que vivia os países da América Latina.
As principais medidas do pacote de Washington e que deveriam ser tomadas pelos países latino-americanos seriam:
- Disciplina fiscal e reforma fiscal: o que significaria, entre outras coisas, a diminuição das despesas com a área social e necessária diminuição do tamanho do Estado.
- Direcionamento das políticas públicas para setores com alto grau de retorno do investimento, ou seja, educação, saúde e infra-estrutura;
- liberalização das taxas de juros e taxa de câmbio competitiva, outra falha do constituinte brasileiro de 1988, que ao tratar do sistema financeiro estipulou como limite para taxa de juros o percentual de 12%, quando tinha orientação e bases para saber que não haveria condições de praticar tal taxa;
- Liberalização do comércio e abertura para a entrada de investimento estrangeiro direto: um efeito inevitável da globalização e do próprio processo de industrialização, os países subdesenvolvidos viam seu campo industrial se esgotar por falta de bases econômicas para sustentá-lo, assim a abertura do comércio e a ajuda financeira direta dos países mais ricos, seria uma saída prática. Além disso, já se desenvolvia no mundo as bases teóricas para a formação de grandes blocos econômicos, blocos esse que só teriam sentido com a abertura de mercados.
- Privatização: no Brasil esse processo só veio se iniciar no final de 1991 com da USIMINAS;
- Desregulamentação: como primado das ideais neoliberais, era necessário a diminuição da intervenção do Estado na economia e na promessa e imposição de uma legislação trabalhista tão benéfica.
- Garantia dos direitos de propriedade industrial: no Brasil a lei que regula essa proteção só veio surgir em 1996.
Quanto a serem boas ou ruins essas medidas, se elas escondiam um óbvio interesse dos países desenvolvidos em lucrar com a fragilidade dos países subdesenvolvidos, isso é uma discussão que não é pertinente aos propósitos deste trabalho. Conquanto, todas essas informações foram utilizadas para demonstrar que, mesmo que não seguisse a risca a tendência liberal mundial, até porque impossível num país tão fraco socialmente como o Brasil, o constituinte de 1988 tinha plena consciência da inviabilidade do Estado que estava se propondo a assumir.
A adoção do Welfare State, é indiscutivelmente uma maravilha, porém muito falaciosa a afirmação de que ele poderá prosperar e será mais forte do que o capitalismo. É uma utopia acreditar que um país pode se desenvolver e prosperar cuidando apenas da parte social, esquecendo totalmente da parte econômica e financeira, até porque esta última determinará qual a intensidade e o volume de políticas sociais que poderão ser adotadas.
No entanto é preciso ter cuidado para que o capital não anule o social, com isso se espera que os donos do poder político e a sociedade aprendam com a lição mais forte deixada pelo Welfare State: que direitos civis, políticos e sociais devem estar em equilíbrio. Um povo só pode prosperar no exercício de suas liberdades e de seus direitos políticos, se tiver uma base mínima que o qualifique para isso e antes mesmo de apontar o Estado como grande garantidor disso é preciso ter em mente outra lição do Estado Social: que não deve haver uma separação entre Estado e sociedade e que esses dois devem trabalhar em cooperação em prol do bem-estar de todos.
Diante de tudo aquilo que já foi dito o Estado brasileiro não teve outra saída, a não ser empreender um processo de reformas, mas é preciso ter cuidado com a afirmação coerente de que “ as reformas tendem a fortalecer as relações capitalistas”. (Navarro apud GOMES, 2006, p. 212) Tal posição é totalmente coerente e lógica se colocada em um cenário político como o brasileiro no qual os políticos, em sua grande parte, são os condutores diretos do processo de econômico do país. Por isso, por mais que se queira ter um país voltado para o social, não há como negar a vertente capitalista que diretamente o guiará.
2.2. A reformulação do Estado: o Estado Regulador
2.2.1. A necessária reforma do Estado
O Estado Democrático de direito aparece para o homem como resposta aos grandes entraves da humanidade. Tem-se a limitação do poder, através da idéia de repartição do mesmo e, ainda, a previsão inicialmente de liberdades negativas que impunham ao Estado o dever de abstnência e obediência à direitos mínimos. Com o passar do tempo, a própria necessidade humana e acontecimentos que ocorreram pelo mundo, acabaram por dar ao Estado uma tarefa não só de abstenção, como também o dever de promover o bem estar de seu povo. Como foi demonstrado, após os absurdos ocorridos na segunda guerra mundial, mais precisamente na Alemanha nazista, se viu a necessidade de reformulação da idéia de Estado, pois mesmo sob a égide de uma Constituição Social como a de Weimar, não houve como se evitar tais afrontas a direitos fundamentais.
Eis que então surge no mundo Constituições que traziam verdadeiras imposições ao Estado, no sentido de que ele viesse a garantir e concretizar direitos dos cidadãos. Esta abertura para um Estado-Provedor foi também uma resposta, em alguns Estados, para ditadura fechada que sofriam, à exemplo do Brasil. A Carta da República do Brasil de 1988, trouxe à baila um super Estado, um verdadeiro Estado-mãe, onde este tem a obrigação de prover muitos direitos e atividades, muitos dos quais não tem como fazer ou até mesmo não tem necessidade de fazer.
A previsão de tantas obrigações, cumulado com o quadro de crise econômica, fiscal e institucional apresentado anteriormente, fez com que o Estado e a administração pública não conseguisse realizar tarefas mínimas, não conseguiu dar ao povo brasileiro direitos mínimos e acabou por tornar a máquina estatal, um equipamento sem qualidade e altamente burocratizado. Vários fatores levaram à crise estatal que justificou a recente onda de reformas em nosso país. Manoel Gonçalves Ferreira Filho aponta 3 principais temas que levaram à eclosão da crise: a adoção de um federalismo demasiadamente rígido, a adoção do do Estado de bem-estar social e a existência de uma Constituição extensa e dirigente. (1995, p. 1-3)
O autor traz a idéia de que a crise começou com o nascimento da República no Brasil e a adoção do federalismo que, ao contrario do que ocorreu no mundo, se deu por uma segregação, numa tentativa de acentuar a descentralização. Isso porque o Brasil, antes de se transformar numa federação, teve sua história cercada por movimentos separativistas e a federação, muito emobora tenha conseguido a união, nunca ficou isenta de sofrer as influênias dessa história.
O maior erro teria sido a adoção da estrita igualdade entre os Estados, independentemente do desenvolvimento da região, mostrando que o Brasil não soube lidar com o federalismo assimétrico. Já advertia Montesquieu, que as leis de um país para serem elaboras, devem observar diversos fatores como condições geográficas, econômicas, territoriais. O Brasil, um país tão grande e cheio de diferenças regionais e de tão vasta cultura, cometeu um erro ao querer tomar por igual todos os seus entes federativos e o resultado disso, foi o aumento das disparidades regionais.
Isso acarretou um déficit social enorme, fazendo existir no Brasil diversas comunidades extremamente à margem de quaisquer direitos básicos, tais como, saneamento básico, educação, saúde, etc. A partir de 1930 é possível observar esta deficiência brasileira, o Estado começa a combater as desigualdades, o que levou a uma enorme centralização do poder na esfera federal. Essa preocupação, acabou por culminar com a adoção do Estado de bem-estar social com a Constituição Federal de 1988.
Na contramão do que os outros países já reconheciam sem eficiência, a opção do legislador Constituite de 1988 foi pelo Estado de Bem-estar social, onde se pretende um Estado super-provedor, que quer resolver todos os problemas, que quer ser o maior fornecedor de bens e serviços da sociedade, que aceita para si a missão de criar e sustentar todo o seu povo. Porém, para sustentar um Estado como este, é preciso que o mesmo esteja em plenitude com suas finanças e que estas sejam vultuosas, sendo que para tanto, necessário se faz a arrecadação ainda maior de tributos, o que é impossível em termos de povo brasileiro, pois este já suporta uma alta carga tributária. Some-se a isso o fato de que as crises ocorridas durante a década de 1980 sinalaram um período intenso de crise fiscal e o aumento da dívida externa, fatos que clamavam uma imperiora necessidade de mudanças na forma de agir do Estado brasileiro, mas que ainda não acontece em 1988.
Por fim, Manoel Gonçalves Ferreira Filho aponta como um outro erro do Constituinte de 1988, a adoção de uma Constituição-dirigente (com inspiração na Constituição portuguesa) que visa a previsão de vários programas que deverão ser observados pelos governantes. Segundo o autor a dificuldade maior de conviver com uma Constituição desse tipo está no fato dela permitir governos de esquerda e de direita, (1995, p. 2) que têm programas e prioridades diferentes, e a cada ascenção ao poder de um dos dois lados, há a adoção de programas que atendam uma parte dos previstos na Constituição, esquecendo da outra, já que a Constituição acabou por abarcar todo tipo de programa e metas, fazendo promessas desejáveis, mas muito difícil de serem cumpridas.
Fato inegável é que a necessidade de reformulação do Estado guarda estrita ligação com os anseios do povo diante da globalização. Esta que foi produto da Revolução das comunicações que possibilitou uma nova etapa civilizatória: a Era do conhecimento. (MOREIRA NETO, 1998, p. 1) Esta evolução leva à população maior informação, o que acaba por gerar maior conhecimento e consciência do seu papel querendo, desse modo, participar mais ativamente da vida do Estado e da própria sociedade e, com isso tudo, se tornam mais exigentes, “as pessoas querem ver seus interesses satisfeitos, pouco importando quem o faça.” (idem, 1998, p. 2) O que o cidadão espera é a eficiência e qualidade na prestação dos serviços, não precisando mais que apenas o Estado o faça, pois o excesso de nacionalismo não justifica mais a adoção de qualquer tipo de monopólio pelo Estado, só porque o é, e mesmo que seja exercido de forma ineficiente.
Luiz Carlos Bresser Pereira define a reforma como “resposta ao processo de globalização” (1998, p. 31). O processo que culmina com a reforma gerencial contemporânea, se inicia nos anos 1980. Inicialmente o processo caminhou para a consecução de um Estado Mínimo, porque naquela década os governos pouco fizeram para compreender a crise que estava ocorrendo, chegando até mesmo a negar que existia qualquer crise fiscal. Negando a existência da mesma, o regime militar iniciou um política expansionista que foi referendada pelos governos populistas que comandaram o Brasil na década de 1980, piorando a situação dos cofres públicos brasileiros.
Esta crise diminui a capacidade de intervenção do Estado. O referido autor aponta três formas pelas quais se externaram a crise no modo de intervenção estatal: a crise do Estado de bem-estar social no primeiro mundo, a substituição da industrialização pela a importação, na maioria das vezes de produtos e serviços dos países desenvolvidos e o colapso do estatismo comunista. (Idem, 1998, p. 36)
A contradição veio com a Constituição de 1988, enquano o mundo pendia mais para a adoção do Estado Mínimo, a República brasileira adota o Estado Provedor, mesmo sem ter condições para tal opção. A conclusão pela não possibilidade do Estado Mínimo decorre da consciência da necessidade de intervenção do Estado, como foi dita anteriormente, entre o mínimo (Estado Liberal) e o máximo (Estado do Bem-estar), deve haver o equilíbrio. Pois, mesmo falhando algumas vezes em seu mister, não poderia a sociedade ficar totalmente ao arbítrio do mercado, pois este está preocupado em lucrar e ignora a distribuição de renda, sendo então, o Estado o grande condutor do devido equilíbrio entre as conquistas sociais e o desejo do capitalismo.
A globalização estava cada vez mais em expansão, a competitividade mundial aumentava e a necessidade dos Estados em desenvolvimento de participarem da globalização, obrigava os mesmos a assumirem novas funções e redefinir seu modo de intervenção. Vê-se que a necessidade não está em fazer quase desaperacer o Estado (como seria no Estado mínimo) e sim reconstruí-lo.
O que se quer é dotar o Estado de mecanismos eficazes para combater as falhas do mercado, garantir maior governabilidade e acima de tudo, torná-lo mais efeciente e mais capaz de atender aos anseios mínimos de seu povo. O Estado desenhado em 1988 parece ter essa finalidade, mas acabou querendo ir muito além do que devia. Não se restringiu a atribuir ao Estado a tarefa de garantir direitos básicos do cidadão, se somam a estes outros tantos que acabaram por sobrecarregar o Estado. O resultado foi a sua falha constante em garantir aos cidadãos direitos mínimos, como saúde, educação, segurança.
Luiz Carlos Bresser Peireira observa que depois do Plano Cruzado “ a sociedade brasileira se dá conta, ainda que de forma imprecisa, de que estava vivendo fora do tempo, que a volta ao nacionalismo e ao populismo do anos 50 era algo espúrio além de inviável.” (2002, p. 178) Muito embora a observação do autor e mais a frente, autor do Plano de Reforma do Estado, a pressão populista parece ter sido mais forte, conseguindo com que a Constutuição de 1988 fosse aprovada aos moldes de um Estado-Provedor, mesmo sem que o Estado brasileiro tivesse condições de mantê-lo.
Após o episódio da hiperinflação em 1990, no final do governo Sarney, a sociedade brasileira toma dimensão da crise e falência do Estado. No governo seguinte, do Presidente Fernando Collor, muito embora marco de um dos piores episódios críticos institucionais brasileiro, é em seu governo que se dá início a reforma da economia. Empreende uma processo de abertura comercial e de privatizações seguidas, mas esse processo de remodelação do Estado sofre um pequeno freio, uma vez que, o presidente que lhe sucede e em virtude da corrupção ocorrida em seu governo, é obrigado a concentrar suas atenções num outro ponto, na administração pública.
No Governo Itamar Franco há a centralização das atenções na administração pública, e em decorrência dos absurdos de corrupção ocorrido no governo anterior, na tentativa de protegar ainda mais o patromônio público, há um específico retrocesso no processo de reforma, com a elevação da burocracia do serviço público. Contudo é no final de seu governo que surgirá um dos grandes impulsonadores da reforma econômica do país, o Plano Real. A partir então do governo do presidente Fernando Henrique Cardoso, se inicia um processo sistêmico de reforma do Estado, em setembro de 1995 com o Plano diretor da reforma do aparelho do Estado, há o início das mudanças constitucionais que visam a implantação do Estado-Gerencial[4].
Arnoldo Wald resume com muita precisão a nova ideologia que deve marcar esta reforma, que tem início em 1995 e que até hoje está em andamento:
A reforma constitucional, o reajuste fiscal, a revisão da legislação em vigor não devem nem podem revigorar o Estado do passado, o dos donos do poder, cabendo aproveitar o momento histórico para, simultaneamente, retirar-lhe o excesso de atribuições e dar-lhe maior eficiência, submetê-lo aos interesses superiores da sociedade e criar uma contexto institucional econômico, financeiro e social e um quadro jurídico adequado para essa reforma que a Nação aguarda, há longo tempo, e que não mais pode tardar. (1996, p. 30)
2.2.2. O Estado Regulador
Este novo modelo de Estado está inspirado na administração das empresas privadas, onde se tem a busca da qualidade e da eficiência, através da oferta de condições para que o gestor público possa melhor atender o cidadão brasileiro, com um serviço bom, eficiente e, de preferência, de custo baixo. Esssas são as práticas que o Estado precisa adotar para que possa evoluir num mundo capitalista. Todo este movimento parte da premissa em que o Estado admite a impossibilidade de ser o Welfare State, reconhece a insuficiência de recursos e se preocupa agora como vai atender melhor seu povo. Chega a conclusão então que é melhor que ele fique com as atividades principais e as demais delege ou transfira à sociedade civil, mas não ficando totalmente de fora, acompanhando os resultados como se um gerente fosse.
Eis então uma das mais importantes características do Estado-Regulador, a nítida separação entre o Estado prestador e o Estado regulador. (PAULA, 2006, p. 1351) Neste novo modelo de Estado, o aspecto social emerge dentro do Estado prestador, ele se concentra nas áreas mais importantes e essenciais, por exemplo: previdência social, educação, saúde. Por outro lado, a vertente liberal, de um Estado que só participa diretamente da atividade econômica quando necessário aos imperativos da segurança nacional e relevante ao interesse econômico (art. 173 da Constituição Federal de 1988). No entanto, um Estado que não se afasta completamente da economia fiscalizando, incentivando e planejando-a, por ser seu agente normartivo e regulador. (art. 174 do mesmo diploma)
O afastamento total da economia, não é uma tendência a ser acompanhada pelos Estados. No Brasil a Constituição Federal oferece uma título inteiro sobre a ordem econômica e financeira, disciplinando em seu art. 170 define os princípios que devem nortear a atuação do Estado. As alterações por Emendas que sofreram alguns dos incisos do referido artigo (VI e IX) e o próprio aprimoramente legal , judicial e doutrinário que tais princípios vêm sofrendo, demonstram que esses preceitos são os cerne da conduta estatal. É como diz Francisco de Queiroz Bezerra Cavalcanti, ao tratar do papel do Estado frente à economia:
Esse papel, em verdade, não tende a sofrer sensível redução com a nova postura do Estado. Se por um lado há reduções das áreas objeto de disciplina estatal, por outro lado deve haver aprimoramento das áreas sob regulamentação, mormente para a proteção dos princípios básicos que pauta a ordem econômica. (1997, p. 72)
O Estado que ora se desenha está longe de ser o Estado Liberal minimalista (como muitos acham que o seja) e nem perto de ser o Estado Provedor que quis o constituinte de 1988, ele quer buscar este meio termo. Quer para si as atividades essenciais, reconhece a impossibilidade de executar outras, transferindo-as, mas supervisionando-as através de uma atividade gerencial e reguladora. Reforçando o que já foi mencionado, a maior contribuição do antaginismo existente entre Estado Liberal e Estado Assistencial é que a versão moderada dos dois pode resultar num Estado muito mais eficiente.
Inicialmente o Estado Social contrapõe ao Liberal, no que diz respeito ao individualismo deste, para aquele o coletivo deve sobressair sobre o individual, a sociedade deve ser vista pura e simplesmente como um conjunto de indivíduos. Após a II Guerra Mundial ficou claro que essa contradição não podia existir, o social não pode ser colocado como um valor supremo em detrimento do individual, os dois devem ser considerados.
No Brasil, o grande impulso para a reforma do Estado se deu a partir da eleboração do chamado Plano Diretor de Reforma do Aparelho Estatal eleborado em 1995, durante o governo do presidente Fernando Henrique Cardoso. Tinham como metas essenciais:
[...] reforma da Constituição no capítulo da administração pública, a elaboração de projetos de leis complementares à reforma constitucional, programa de organizações sociais, programa de agências executivas, sistema de contabilidade gerencial, sistema de informações gerenciais da administração pública, fortalecimento do núcleo estratágico por meio da política de carreiras, reformulação do sistema de remuneração dos cargos em comissão do Governo Federal, plano nacional de capacitação, programa de redução de custos de pessoal e eliminação de privilégios, principalmente os contidos na lei do Regime Jurídico Único, revisão e desburocratização da lei de licitações, aperfeiçoamento do sistema de serviços gerais do Governo Federal, estabelecimento da rede do governo (intranet do Governo Federal), integração dos sistemas administrativos informatizados do Governo Federal, projeto de lei sobre o processo administrativo, fortalecimento da internet como canal de comunicação do governo com os cidadãos, reestruturação e qualidade interna do MARE.[5] (BRESSER PEREIRA, 2002, p. 205-206)
Todas essas medidas podem ser resumidas em quatro postulados que serviram e servem de bússula condutora para a reformulação do Estado, apresentados por Felipe de Paula em texto seu sobre o desenho jurídico-institucional do Estado-Regulador: constitucionalmente, necessidade de acomodação das novas formas institucionais e funções estatais no acordo jurídico-político fundamental; legalmente, era capital a produção de instrumentos legislativos adequados aos novos contornos; criação de novas figuras administrativas; e doutrinariamente, era necessário a revisão de conceitos e axiomas fundantes do direito público. (2006, p. 1351)
No que diz respeito à mundaça constitucional, no Estado brasileiro isso era fundamental, exatamente porque o constituinte de 1988 optou por um Estado Social, super-provedor e a justificativa principal para a reforma do Estado, estava na inviabilidade de os poderes constituídos o implementarem. Assim, a partir de 1995 algumas reformas constitucionais foram feitas trazendo alterações pontuais, contudo, é na Emenda Constitucional n.º 19/1998 que há uma alteração profunda e sistêmica, capaz de imprimir volume ao novo perfil estatal.
Dentre algumas medidas trazidas pela Emenda Constitucional supramencionada estão: a inclusão no rol de princípios regentes da administração pública, a eficiência; a flexibilização da taxativa estabilidade funcional; o fim do regime jurídico únicos para os agentes públicos; e grandes alterações no sistema de previdência social que há muito estava em colapso, tendo sua situação piorada com a inclusão de diversos tipos de trabalhadores e adoção do regime único pelo constituinte originário. O novo sistema prima por uma técnica de contribuição e benefício mais proporcional.
No que diz respeito a produção legislativa capaz de adequar o Estado aos novos contornos, há inúmero exemplos. Destaca-se além das diversas leis de criação e regulamentação das agências reguladoras: a lei que disciplina o art. 175 da Constituição que trata da concessão e permissão de serviços públicos (lei n.º 8.987/1995); a lei que dispõe sobre a implementação do Conselho Administrativo de Defesa do Consumidor (lei n.º 9.021/1995); a lei de propriedade industrial (lei n.º 9.279/1996); a lei do processo administrativo (lei n.º 9.784/1999); a lei da modalidade licitatória pregão (lei n.º 10.520/2002), dentre tantas outras.
No que diz respeito a criação de figuras administrativas, há uma grande destaque para essa medida dentro da nova forma de Estado. As principais figuras intriduzidas com a reforma são: as entidades paraestatais, as agências executivas, e num destaque especial, as autarquias sob regime especial: as agências reguladoras. Foram incluídas no Brasil como importação das Independent Regulatory Commission, dos Estados Unidos, entidades criadas com o objetivo de regular as atividades econômicas, dotadas de autonomia, descentralização, com estrutura colegiada, tendo seus membros nomeados pelo presidente da República e aprovados pelo Senado Federal, para cumprirem mandato fixo, com restrições a sua exoneração. (GOMES, 2005, p. 43) E ainda, com capacidade de produção normativa reguladora, poderes discricionários e com mecanismos de controle sobre elas mais limitados. (CAVALCANTI, 1999, p. 122)
As agências reguladoras no modelo americano não estão sujeitas ao controle pelo Poder Judiciário, havendo exceção quando se trate da proteção dos direitos e liberdades previstos na Constituição. Isso porque os valores ali empreeendidos devem ser impostos a qualquer ente que esteja sob sua égide. Elas surgiram nos Estados Unidos para proteger valores como: saúde, consumo, meio ambiente, trabalho, concorrência (idem, p. 120) e tem sido a forma pela qual, desde então, o governo americano intervém na economia regulando-a, para fins de proteger e promover o bem estar social.
Contudo, ao contrário do motivo que levou ao surgimento dessas agências nos Estados Unidos, ou seja, um Estado ausente de participação na economia e a necessidade de que este intervenha, no Brasil e assim nos país da América Latina, elas aparecem ligadas ao fenômeno de desestatização, ou seja, nascem em um cenário em que o Estado participa ativamente da atividade econômica, mas se ver obrigado pelas contigências de recursos, a deixar de participar diretamente, para se manter equidistante.
Marcos Augusto Perez define agências reguladoras como sendo entidades que tem por fim
[...] dotar o Estado de órgãos que possuíssem agilidade, especialidade de conhecimento técnico suficientes para o direcionamento de determinados setores da atividade econômica, seguimentos estes que potencialmente representariam uma fonte de constantes problemas sociais. (Apud GOMES, 2005, p. 45)
Assim, agências reguladoras seriam entidades independentes e autônomas criadas com o objetivo de regular setores, notadamente da área econômica, através de um corpo de agentes especializados na área, com poder normativo secundário para tal e garantindo-se a seus dirigentes estabilidade necessária para o bom exercício de seu cargo, pretensamente livre de ingerências do capital.
Importante notar que A atividade de regulação pelo Estado brasileiro não é nova, nem coincide com a promulgação da Carta de 1988, antes deste marco já existiam órgãos internos ao Poder Executivo que tinham a incumbência regulatória, são exemplos o Conselho Nacional de Telecomunicações (CONTEL) e o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE). No entanto, dar à atividade de regulação a conotação pretendida com a reforma, era imperiosa a sua independência e autonomia. Muito embora as diversas características que pretendem dar a essa nova entidade administrativa melhor gestão e qualificação do trabalho de regulação.
Em trabalho conduzido pela autora[6] deste estudo, foi analisado que num país como o Brasil, onde o sistema político ainda emerge interesses bem diferentes daqueles que se espera, as agências reguladoras tem sido vítima dessa distorção. No trabalho se tentou demonstrar os efeitos maléficos da democracia representativa na condução de uma entidade que, muito embora seja administrativa, tem um viés técnico bastante forte, já que sua função é regular especificamente determinador setor.
No trabalho citado, foi concluído que a atividade de regulação é uma das mais importantes do Estado Regulador, daí até porque incorporou o nome. Sua criação não está alheia às mudanças, nem foi criada isoladamente, está ligada diretamente a uma das principais mudanças de concepção de Estado. Nascem da resultante da impossibilidade de subsistência do Estado Liberal e da insuficiência do Estado de bem-estar social, mas como imperativo de que o Estado não poderia se afastar por completo da atividade econômica.
Assim, o Estado consegue a distância necessária e suficiente da economia, através da atividade de regulação da mesma. Em países como o Brasil, o afastamento do Estado da economia não se dá por ser ela uma atividade privada e, portanto, deva receber liberdade, há a necessidade de afastamento porque o capital consegue influir e corromper a máquina estatal, necessitando então que elas se afastem para o melhor e mais limpo exercício do serviço público.
Passadas muitas décadas após a adoção das primeiras formas de regulação no Brasil, mesmo que tenha dotado as agências de autonomia e independência, a ingerência do mercado na política tem refletido negativamente na atividade das agências. É necessário repensar talvez, alguns pontos do funcionamento e gestão das agências para fins de adequação do modelo (que não é ruim e sim muito útil) a um país arraigado pela corrupção como o Brasil.
O importante é que o Estado é o detentor do Poder Político, então só quem tem a prerrogativa de impor limitações é ele. É fato que o capitalismo livre pode gerar, cada vez mais, concentração de renda, desigualdade social, aumentando a pobreza, a violência, a deficiência na saúde, dentre outras mazelas. Imposições precisam ser feitas, limites precisam ser colocados, pois senão grande parcela do povo se verá à margem dos direitos mínimos.
Afastar-se do exercício direto de alguma atividade econômica é essencial para uma administração da coisa pública isenta. Porém, necessário se faz que o Estado intervenha na atividade econômica para lhe impor limitações e requisitos para um bom funcionamento, evitando que ele possa se desfazer de pessoas, excluir cidadãos e abusar do consumidor. Essa tarefa do Estado é, com certeza, muito bem desenvolvida através de órgãos dotados de autonomia, independência e com caráter predominantemente técnico, ou seja, através do ente chamado Agência Reguladora.
Outro fator determinante para a possibilidade de reforma do Estado seria a revisão de alguns postulados, a exemplo do que vem ocorrendo com um princípio basilar do regime jurídico-administrativo, o da supremacia do interesse público sobre o privado. Então, ao contrário do que dizem alguns doutrinadores, não há relativização do mencionado princípio e, sim, sua reformulação. Nesse novo estado das coisas, o princípio ainda norteia e fundamenta a atividade do Estado, no entanto, ele ganha uma visão muito mais empírica e ponderada.
A defesa do interesse público não pode partir do dogma de sempre haver a dita supremacia, devendo agora haver juízos de ponderação entre os direitos fundamentais e outros interesses metaindividuais envolvidos. Segundo ele, a norma de prevalência não é suficiente nem traz parâmetros que definam qual a justa medida de prevalência do interesse público e, mais, problema este que se coaduna com o perigo de uma concepção unitária de interesse público. (BINENBOJM, 2005, p. 86)
A principal crítica a aplicação do princípio da supremacia do interesse público sobre o privado, está na sua ordenação de prevalência absoluta e abstrata o que para ele acaba por excluir a análise do caso concreto e a suprimir espaços para ponderações. No mundo atual tão multicultural e multidisciplinar não há como aceitar uma postulados que ignore as nuances do caso concreto e preestabeleça como melhor solução sempre a prevalência do interesse público. No mais, a aplicação radical implica uma falsa idéia de que o interesse público e os interesses individuais são sempre contrapostos.
O interesse público nem sempre coincidirá com o interesse do Estado e, por vezes, poderá ser representado por um direito individual. Observe-se, porém, que como a administração pública tem por princípio e limite a lei, “será de interesse público a solução que haja sido adotado pela Constituição ou pelas leis quando editadas em consonância com as diretrizes da Lei Maior.” (BANDEIRA DE MELLO, 2007, p. 65-66)
Ainda, outra forma de se controlar essa escolha de valores, através do manejo dos interesses envolvidos em determinada lide, é apontado por Alexandre Santos de Aragão. Ele propõe um verdadeiro controle dos argumentos, isto porque, a administração ao praticar determinado ato é obrigada a esclarecer quais os motivos que a levaram a agir de determinada forma. Afirma que numa escala de argumentos, terão sempre prioridade os argumentos que guardam respaldo diretamente em texto de lei, em detrimento aos argumentos de índole genérica e metajurídicos. Observa também que, só diante da ausência de regra expressa específica, pode a administração realmente sopesar os valores, se já houver regra que opte pela prevalência de determinada interesse, não há espaço para a ponderação. (ARAGÃO, 2006, p. 28)
Feitas todas essas considerações afirmações taxativas parecem não ter lugar, mas uma não tem encontrado qualquer discordância na doutrina, a de que o Estado que ora se desenha está baseado na idéia de Estado Mínimo. Há autores que ainda afirmam que a forma estatal atual quer sustentar o neoliberalismo, no entanto, não estão condizentes com a realidade analisada a fundo. O Estado Liberal tem como uma de suas premissas a intervenção quase inexistente do Estado atuando na esfera privada e na economia. No modelo atual, o Estado até pode atuar na economia, mas sua função essencial não está em se distanciar completamente da economia, mas sim, acompanhá-la através de sua regulação, fiscalização e planejamento.
Além do mais, a tentativa de implementação no sistema brasileiro do Welfare State, muito embora tenha sido desastrosa, produziu um efeito retórico que já ecoava há muito pelo mundo. Talvez o constituinte tenha errado no destino que deu à sociedade brasileira, mas a alertou para os direitos sociais, lhe presenteou com um poema muito bonito cheio de direitos, que hoje não há como prosperar qualquer forma de comportamento estatal alheia e isenta. Como já foi dito anteriormente neste trabalho, a contribuição maior do Estado de Bem-estar foi a idéia de que Estado e sociedade são elementos harmônicos e assim sempre devem ser considerados.
3. A LEGITIMIDADE DO ESTATO-REGULADOR
Ao caminhar para a conclusão, esta seção está dedicada a apresentação de duas premissas que foram eleitas como fortes argumentos a legitimar o poder do Estado-Regulador, em ambas, há a participação direta do povo. Na primeira, o cidadão passa a se conscientizar do papel que tem como partícipe de um processo que tem por fim a construção de uma sociedade e um Estado melhor. Na segunda, o cidadão e sua satisfação são vistos como um fim último a ser alcançado e, sendo assim, o Estado tem que trabalhar para propiciar uma atuação mais eficiente em prol de seu povo.
3.1. A administração do Estado com a contribuição do povo
A idéia de autoridade vem acompanhando o homem, desde os mais remotos tempos, o homem a criou para si com o intuito de bem conviver em sociedade, pois nela estava depositada a prerrogativa de estabelecer regras e limites para os componentes de determinada comunidade. Várias foram as formas de representação da autoridade e, a partir do século XV, ela foi confiada ao Estado. Primeiro na noção de Estado Nacional, onde a autoridade e o Estado estavam personificados na figura do monarca, as chamadas monarquias absolutistas. Depois foi confiada abstratamente a um ente, o Estado, representado e guiado pela vontade maior de seu povo, a Constituição.
A Carta de 1988 é bastante explícita ao afirma no parágrafo único do art. 1º que “todo o poder emana do povo”, ou seja, o povo na mais clara, objetiva e redundante definição é, o titular do poder do Estado. Esse pode pode ser exercido por meio de seus representantes ou de maneira direta, porém o Brasil é um país que tem uma cultura de representabilidade muito grande e isso tem sido, com certeza, um dos maiores obstáculos á participação mais ativa da sociedade na gestão da coisa pública. Não há como negar que a democracia exercida por um Estado regido pela vontade de seu povo, ou seja, pela Constituição, ainda é (e parece permanecer por muito tempo), a forma de governo mais adequada e que permite a condução dos rumos da nação pelo seu povo. Como diz Simone Goyard-Fabre “o bom uso da democracia torna possível, sob as Constituições e por meio de leis justas, a emancipação do homem.” (2003, p. 345)
Contudo, o mundo se depara hoje como uma mudança no eixo democrático, assinalado pelo fato de que a democracia representativa se encontra em profunda crise. Sem pugnar pelo seu fim, o mundo tem caminhado para promover a democracia participativa como ator principal, do qual a representação seria um mero coadjuvante. A principal falha e que tem sido fator fundamental na crise do sistema representativo, é choque entre os anseios da sociedade e os atos de seus representantes, estes sendo guiados pelos desejos do mercado. Isso tem gerado cada vez mais concentração de renda e pobreza, com certeza, os principais entraves à aplicação de uma perfeita democracia.
Roberto Amaral, em texto que tem o título “A democracia representativa está morta. Viva a democracia participativa”, ao tratar dos motivos pelos quais a democracia representativa está enfraquecendo, enumera como principais fatores os seguintes: limitação da participação do povo à escolha de seu mandatário e a forte influência dos meios de comunicação e do mercado na formação da opinião pública. Para ele, o grande condutor do sistema representativo é o capital que trata a política como um produto de mercado e o povo, o seu consumidor. Numa cultura como a brasileira em que os cidadãos não estão acostumados a votar pela legenda, e ao invés disso, preferem o voto individualizado, a margem para a influência negativa do capital através da corrupção e manipulação, é bem maior.
O autor conclui que a insistência por esse modelo afastará, cada vez mais, a vida política da vida real, aumentando as discrepâncias entre os atos daqueles que são os depositários do voto e de quem os depositou, porque àqueles têm cada vez mais atendido os interesses do capital, em detrimento do cidadão. Ciente da impossibilidade de se negar a globalização, Roberto Amaral diz que Estado e mercado devem conciliar seus ideais e objetivos e uma das formas é, cada vez mais, contar com a ajuda do povo nas principais escolhas do Estado. E por isso, a democracia representativa deve ceder lugar para a democracia participativa, direito de quarta dimensão.
O autor cita como exemplo a ser seguido a sistemática adotada pela Constituição Venezuelana que, explicitamente, sobrepõe a democracia participativa à democracia representativa. Ele traz, in verbis e com tradução, o disposto no art. 5º daquele diploma legal:
[...] a soberania reside intransferivelmente no povo, que exerce diretamente na forma prevista nesta Constituição e na lei, e, indiretamente, mediante o sufrágio, pelos órgãos que exercem o Poder Público. Os órgãos do Estado emanan da soberania popular e a ela estão submetidos. (2001, p. 19-56)
A administração pública é criada com o fim maior de administrar e proteger o patrimônio público, o regime democrático é o meio pelo qual isso é possível. Nessa nova dimensão democrática o povo precisa atuar mais diretamente caminhos do Estado, para tanto, necessário se faz um nível de esclarecimento mais aguçado do povo. Tudo isso remete a um dos objetivos essenciais do surgimento e desenvolvimento dos direitos sociais, a de que para que o cidadão possa exercer seus poderes, ele necessita de uma estrutura base, de uma sustentação social que o habilite ao exercício de seus direitos.
Luiz Carlos Bresser Pereira acrescenta aos direitos civis, direitos políticos e direitos sociais, uma quarta modalidade: os direitos republicanos. Nesse contexto está inserido a máxima pela qual, o cidadão tem o direito de ver o patrimônio público sendo utilizado para fins públicos em prol de todos. O autor subdivide os direitos republicanos em três categorias: o direito ao patrimônio ambiental, o direito ao patrimônio histórico-cultural; e o direito ao patrimônio público. É mister para a consecução de uma administração pública mais participativa que o cidadão tenha plena consciência disso.
O autor observa com propriedade que na medida em que os bens públicos pertencem a todos, acabam por ser mal defendidos porque, ao final, ninguém se sente real proprietário deles. “Os cidadãos serão tanto mais cidadãos quanto menor forem espectadores e maior for seu compromisso com o bem comum ou com o interesse público.” (2002, p. 88) A própria idéia de um país sob a égide de uma República remete a idéia de que o que é público é do povo e para o povo e com auxílio do povo deve ser conduzido.
Mesmo que ainda muito incipiente, a verdade é que o povo brasileiro começa a se dar conta de que é necessária sua participação mais ativa na gestão e no controle da coisa pública. Norberto Bobbio afirma “a República é um Estado ideal que não existe em lugar nenhum. É um ideal retórico.” (2007, p. 3) A sua afirmação por mais que seja pessimista, não é de um todo incoerente, mas o importante é que, mesmo que essa idéia nata de república e de direitos republicanos não esteja ainda amadurecida, é preciso que o Estado caminhe suas ações para que o povo se conscientize do importantíssimo papel que tem de maior e mais importante colaborador do Estado.
Um postulado será fundamental na condução de um Estado mais participativo, a consensualidade. Numa administração que prima por atender aos reais interesses da sociedade a qual ela serve, a busca por certa concordância coletiva ajudará no desenvolvimento e influirá, definitivamente, na legitimidade e aceitação do poder estatal. Quanto maior for o envolvimento dos indivíduos dos grupos e comunidades, maior será o benefício posto a todos e, ainda, terá maior liberdade e legitimidade de atuar o Estado, uma vez que atua de conformidade com a vontade de seu povo.
[...] a participação e a consensualidade tornaram-se decisivas para as democracias contemporâneas, pois contribuem para aprimorar a governabilidade (eficiência); propiciam mais freios contra o abuso (legalidade); garantem a atenção de todos os interesses (justiça); proporcionam decisão mais sábia e prudente (legitimidade); desenvolvem a responsabilidade das pessoas ); e tornam os comando estatais mais aceitáveis e facilmente obedecidos (ordem). (Diogo de Figueiredo Moreira Neto apud GONÇALVES, 2003, p. 109)
Para empreender uma administração mais participativa, o Estado brasileiro deve criar cada vez mais instrumentos que viabilizem isso. O referendo e o plebiscito são fortes instrumentos de construção dessa forma de administração e ainda é quase inexistente sua utilização. O Poder Executivo precisa diminuir a governabilidade por meio de medidas provisórias, pois elas põem no lugar e momento errado as discussões sobre matérias importantes para o país. As audiências públicas precisam ser mais utilizadas, nas três esferas de poder. O Poder Judiciário precisa se utilizar cada vez mais de instrumentos que permitam a participação da sociedade nas lides que as interessa, como a participação cada vez mais do amicus curie.
3.2. Em busca de um Estado Eficiente
Como foi demonstrado em diversas partes do trabalho, um dos objetivos mais importantes a ser alcançado com a reforma do aparelho estatal está na busca aprimoramento do Estado enquanto provedor de determinados serviços. O Estado precisou superar administração burocrática que tanto se preocupou com o resguardo da coisa pública, mas que culminou numa administração ineficiente. A nova forma da administração pública é a gerencial e não pretende ignorar por completo a burocrática, porque
A grande qualidade da administração pública burocrática é a sua segurança e efetividade. Por isso, no núcleo estratégico, no qual essas características são muito importantes, ela deverá está ainda presente, em conjunto com administração pública gerencial. (BRESSER PEREIRA, 2002, p. 107)
A administração gerencial tem a característica de estar muito mais preocupada com os resultados do que com o processo, não que este seja esquecido, mas com o fim de desburocratizar, se concentra mais no controle dos resultados. Norteado por esse fundamento, eis que a Emenda Constitucional n.º 19/1998 emerge à categoria de princípio fundamental da administração pública o postulado da eficiência.
O Presidente Fernando Henrique Cardoso na apresentação do Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, assim se pronunciou:
É preciso, agora, dar um salto adiante, no sentido de uma administração pública que chamaria de "gerencial", baseada em conceitos atuais de administração e eficiência, voltada para o controle dos resultados e descentralizada para poder chegar ao cidadão, que, numa sociedade democrática, é quem dá legitimidade às instituições e que, portanto, se torna "cliente privilegiado" dos serviços prestados pelo Estado. (1995, p. 7)
A eficiência administrativa é um dever do administrador público e que já vem sendo perseguido há muito no sistema brasileiro. Espera-se que com a forma de administração gerencial a devida e ponderada eficiência seja alcançada, até mesmo porque ela é um dos maiores postulados da reforma estatal. Maria Sylvia Zanella Di Pietro discorre sobre as vertentes desse tão importante princípio
O princípio da eficiência apresenta, na realidade dois aspectos: pode ser considerado em relação ao modo de atuação do agente público, do qual se espero o melhor desempenho possível de suas atribuições, para lograr os melhores resultados; e em relação ao modo de organizar, estruturar, disciplinar a administração pública, também com o mesmo objetivo de alcançar os melhores resultados na prestação do serviço público. (2005, p. 84)
O princípio da eficiência “exige que a atividade administrativa seja exercida com presteza, perfeição e rendimento funcional” (MEIRELLES, 2005, p. 96) Assim, a nova administração estatal deve pautar suas atividade pela eficiência, sem esquecer claro d eficácia. Devem ser constituídos instrumentos que viabilizem esse postulado, são exemplos eloqüentes da implementação deste princípio: concessão e permissão para que determinados serviços públicos possam ser exercidos pelos particulares, com a qualidade de uma empresa privada que sempre demonstrou ser melhor do que a estatal; a criação da modalidade licitatória pregão, prevendo que a fase burocrática da análise da habilitação seja feita somente após a os lances dados; a previsão trazida pela Emenda Constitucional n.º 45/2004 do princípio da razoável duração do processo judicial ou administrativo; aferição da eficiência como critério de promoção por merecimento de magistrados, etc.
A atuação dos poderes do Estado deve se pautar por uma conduta mais eficiente, não se justificando o socorro a argumentos formais pelo simples fato de estarem positivados. Exemplo disso e até mesmo exemplo de reformulação de postulados com o intuito de adequá-los aos moldes do novo modelo de Estado, está o princípio da separação dos poderes. A primeira impropriedade está na própria expressão ‘separação dos poderes’, pois o poder estatal é uno e indivisível. Ele representa o Poder político da sociedade, por ser o responsável pela imposição dos limites, regras e atribuição de direitos. Deve ele estar acima de qualquer outro tipo de poder que figure na sociedade. (SILVA, 2005, p. 107) Na verdade, a expressão mais correta a ser utilizada é funções, pois o Estado, dono do poder político, para melhor exercer suas atribuições e exercê-las em certos limites, deve especializar seus órgãos, atribuindo aos mesmos o exercício de derteminada função.
Foi na Inglaterra do século XVII, guiada pela idéia de monarquia mista, que se pôde observar claramente o movimento de divisão de poder, porque inviável seria para o bem da nação, a concentração de poder em uma só autoridade. A divisão de poder nasce com a preocupação de imposição de limites e submissão de todos ao rule of law (governo/império da lei), e, muito embora o princípio da separação dos poderes tenha ganhado outros contornos e esteja em fase de remodelação, a idéia de servir como forma de limitação do poder, é o conteúdo mais estável e imutável do princípio. (TAVARES, 2003, p. 861 e FREIRE JÚNIOR, 2004, p. 38)
Então a idéia de imposição de limites, advinda desde a noção embrionária inglesa, foi somada à de melhor exercício das atribuições, estas que devem ser executadas em favor do elemento principal de uma nação, o povo. Todas as funções estão subordinadas às imposições do Poder político e no modelo constitucional, a maior expressão desse Poder é a Constituição. Dessa forma, todas as funções e exercício de poder devem convergir para dar a maior eficácia possível a decisão maior de seu povo. E através da idéia de consensualidade o Estado deve trabalhar para fornecer quanto mais especificamente possível for, uma serviço adequado, qualitativo e eficaz conforme os anseis daqueles que se beneficiarão dele.
O problema é que, durante muito tempo, o princípio da separação dos poderes foi visto de maneira exclusivamente formal e estanque, gerando um distanciamento entre os poderes, uma rivalidade e como consequência, um distanciamento da sua tarefa principal, qual seja, a realização de suas funções de maneira eficiente em prol da sociedade. A improtância dada aos princípios e a necessidade de defesa dos direitos fundamentais, tem sido os principais impulsionadores do repensar do princípio da tripartição dos poderes.
Na nova fase estatal, o cidadão-beneficiário não aceita como desculpas à imprestabilidade dos serviços públicos, o apego a postulados formais e que distanciam o Estado de seu principal mister, servir a seu povo. Adverte Américo Bedê Freire Júnior que o Estado como ente maior de uma sociedade, só se justifica e se qualifica como tal, se trabalhar em prol da mesma (2004, p. 38) Por isso, os poderes devem trabalhar em regime de cooperação, procurando otimizar suas atividades para a melhoria na atividade legiferante, executiva e uma rápida e eficienta prestação jurisdicional.
O cidadão agora não é encarado apenas desta maneira (que por si só jé lhe confere um grande poder), o cidadão é visto como um cliente um usuário, assim como é visto por uma empresa privada. A intenção disso estar em “prestigiar o usuário do serviço público, o cliente do serviço público, como se prestigia o consumidor.” (MELO, 1999, p. 25) Aqui cabe o reforço do que foi dito pouco antes, para que o cidadão-consumidor assim se sinte, é necessário que ele tenha imbuído em si a idéia de que é titular de um direito republicano sublime, o de que o patrimônio público deve ser utilizado em prol da observância do interesse público.
Outro componente importante para a consagração da eficiência está na concentração em áreas específicas e estratégicas, não adianta quer fazer tudo e fazer mal. Com isso, o Estado deve remodelar o princípio da indisponibilidade do interesse público para que, a partir de então, possa averiguar o que de fato expressa interesse público e exige uma atuação direta do Estado. A forte dedicação a áreas mais importantes como saúde, educação e segurança, áreas que produzem a base sustentável de um crescimento, produzirá inevitavelmente uma administração mais eficiente e, por conseqüência, um país melhor.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Partindo na noção de obrigação política que justifica em linhas gerais a legitimidade do Estado, a obrigação pressupõe um “com quem?” que siginifica a relação de poder e obediência entre Estado e o povo. Porém, para que não tenha que se socorrer à força, e aí não se poderia falar em legitimidade, o Estado deve pautar suas ações em prol do povo.
Tomando como verdade a afirmação de Luiz Carlos Bresser Pereira, para quem
[...] a reforma gerencial da administração pública é essencial, a curto prazo, para reduzir os custos do Estado e completar o ajuste fiscal, e, a médio prazo, para tornar o Estado mais eficiente, mais efetivo, melhor capacitado para defender o patrimônio público, mais capaz de atender às demandas dos cidadãos. (1998, p. 45)
Chega-se então a conclusão que é pensando no povo e para agir em favor deste que a administração pública gerencial trabalha. A crise fiscal é um fato e a ousadia em ignorá-la anos atrás, levou a piora da situação econômica do país. Diante deste fato e admitindo que não se pode excluir o Estado de tudo, este tem que buscar métodos que visem ao ajuste de suas contas, para que possa atender aos anseios da sociedade. Um passo grande já foi dado, com a admissão de que o Estado brasileiro não pode prover seu povo, assim como se comprometeu em 1988, mas que busca mecanismos auxiliares para conduzir a sua melhoria.
É necessário um ajuste fiscal e que, enquanto ele ocorra, o Estado escolha estrategicamente as áreas em que vai atuar diretamente, devendo ser aquelas mais essenciais, principalmente aquelas ligadas segurança nacional e social. Abidicando de umas e se dedicando mais a outras, poderá o Estado trabalhar mais e melhor em favor do cidadão, podendo estar mais atenado aos seus reclames. A administração pública confecciona uma aliança com a iniciativa privada, num esforço de melhorar os serviços públicos ou os serviços de interesse público, passando a administração pública à qualidade de gerente e fiscalizadora dos resultados que claro, sempre têm que aproveitar ao cidadão brasileiro.
Para tanto, é necessário que os cidadãos tenha plena consciência de que ele é o motor e o fio condutor deste processo, devendo exigir cada vez mais a participação na gestão do patrimônio público e, por outro lado, controlando ainda mais as atividades estatais, porque por traz há aquilo que também é seu, a coisa pública. Muito embora ainda não haja instrumentos vastos e tão eficientes de controle, a evolução nas telecomunicações tem levado maior conhecimento ao povo que cada vez mais sabe de seus direitos e tem consciência da importância de sua atuação.
Desta forma, estará ainda mais legitimado o Estado-Gerancial se democratizar cada vez mais os mecanismos de controle pelo povo da atividade estatal, e também da atividade que, embora não exercida pelo Estado é por este regulada. É necessário que se dê ao povo a chance de participar mais ativamente das decisões políticas, a reforma trouxe a idéia de que para dar maior govvernabilidade é necessário trabalho com o povo, numa idéia de consenso.
O princípo da consensualidade se mostra como forte fator a legitimar a atividade o Estado-gerencial. Isso porque o sistema representativo tem cada vez mais sofrido deformações. O sistema representativo brasileiro, acabou por resumir a atividade do cidadão ao voto, e, na maioria das vezes, um voto sem muito ou quase nenhum conhecimento em quem ou no que se está votando. Por isso é importante se dedicar parte da reforma ao estudo da implantação de mecanismos que visem à participação do povo. Isso passa, principalmente, pela democratização dos procedimentos para a tomada das principais decisões do país (GONÇALVES, 2003,p. 108). A consequência direta disso é o maior respaldo nas ações do Estado, maior aceitação pelo seu povo e, assim, maior densificação de sua legitimidade.
Essa aproximação entre Estado e povo, na idéia de uma administração pública participativa, conscientizará o cidadão de que o patrimônio que está ajudando administrar é seu e, por isso, ele pode exigir o cumprimento das atividade de maneira eficiente e qualitativa. Agindo desta forma, indubitavelmente o Estado será visto com o carisma necessário a empreender sua atividade de maneira pacífica, sem maiores esforços.
Todas essas medidas com certeza abrem e abrirão espaço para que o cidadão seja chamado a participar ativamente na condução do país. Um passo eficiente e forte para iniciar essa chamada já foi dado, a publicidade que vem sendo dada a todos os atos governamentais. O Estado já conta com o chamado ‘Portal da transparência”, meio eletrônico onde o cidadão pode acompanhar todo o uso do dinheiro público e, ainda, os canais de televisão TV Câmara, TV Senado e TV Justiça, que já atingem um público bastante amplo, podendo ser aprimorado para que se chegue à casa de todos os brasileiros.
O Estado só se justifica por meio da aceitação do povo e da consecução do do bem comum, não se estiver atendendo a interesses estranhos à sociedade ou particulares. Assim, por estar tão detido ao povo, em nome de quem o Estado age e existe, a nova forma de Estado encontra legitimidade na medida em que quer exercer suas atividades melhor para ele, com ajuda dele e com ele e eis onde está a maior base de legitimidade de seu poder.
No entanto, é necessário ter cuidado para que a falha ocorrida em 1988 não se repita, assumir compromissos sem base e fundamento de viabilidade como aconteceu com a adoção, na Carta Constitucional vigente, do Estado Assistencial. Com isso quer se chamar a atenção para as práticas assistencialistas das chamadas bolsas-auxílio. A fome é um problema que deve sempre ser pensando de maneira emergencial, isso é fato inconteste, o fato de o Estado brasileiro ofertar aos mais necessitados um auxílio para as necessidades extremamente básicas, não é de um todo mal. O problema é não viabilizar uma saída para isso.
O dinheiro público não pode ser empregado como moeda eleitoreira a beneficiar pequenos grupos de ascendem ao poder. O processo de reforma do Estado é lento e está distante ainda de terminar, tem sido bem sucedido, mas se o Estado continuar a se comportar como o grande solucionador dos males da probreza através de simples benefícios, inevitavelmente surgirá a pergunta: o Estado Social não pôde ser implementado, mas o erário brasileiro consegue sustentar um Estado Assistencialista? Essa dúvida colocaria em crise toda a restruturação do novo modelo de Estado que tem sido lenta, mas com resultados, até certo ponto, positivos.
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[1] Durante muito tempo, a noção de legitimidade fora confundida com a de legalidade. Isto é notável quando da ascensão do absolutismo, o rei tinha o fundamento da legitimidade de seu poder na inspiração divina, e com isso estava acima de todos, podendo inclusive e principalmente legislar da maneira e sobre o que quisesse, não estando sujeito a qualquer tipo de controle, pois “o rei não erra”. Mais tarde, notadamente com a evolução dos movimentos constitucionalistas, a necessidade de limitação ao poder do monarca faz nascer a submissão do monarca a lei, ocasionando uma transposição dos termos onde a legitimidade deve repousar doravante na legalidade e não como antes se propunha pelo absolutismo, a legalidade na legitimidade.
[2] Diz o art. 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789: “A sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos nem estabelecida a separação dos poderes não tem Constituição”.
[3] A partir deste ponto serão utilizados, indistintamente, como sinônimos deste modelo de Estado: Estado de Bem-estar, Estado Social, Estado Assistencial e Estado Provedor. Todas essas designações encontradas em bibliografia utilizada para a produção do presente trabalho.
[4] A partir deste ponto serão utilizadas como expressões sinônimas: Estado-Gerencial, Estado-Gerente, Estado-Regulador. Opta-se pelo não uso da expressão Estado Neoliberal porque a corrente adotada neste trabalho está baseada pelo fato de que, apesar de o novo modelo de Estado sofrer influências do Estado Liberal, não é uma nova face do mesmo.
[5] Sigla para o Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado, responsável pela conduta e andamento do Plano Diretor de Reforma do Aparelho Estatal, sob o comando do Ministro Luiz Carlos Bresser Pereira. Em 1998 com a extinção do referido ministérios, a continuação da gestão reformadora ficou a cargo do Ministério do Planejamento e Gestão.
[6] ‘Crise da democracria representativa e sua influência nas agências rguladoras’ - trabalho apresentado como requisito de aprovação na disciplina ‘Estado Regulador: as agências reguladoras’, em janeiro de 2008, ministrada pelo Professor Doutor Francisco de Queiroz Bezerra Cavalcanti, na Pós-Graduação latu sensu em Direito Administrativo da Universidade Federal de Pernambuco.
Advogada, mestranda em direito constitucional e especialista em direito administrativo ambos pela UFPE
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LIMA, Renata Dayanne Peixoto de. Premissas legitimatórias do Estado Regulador Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 12 out 2009, 09:05. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/18495/premissas-legitimatorias-do-estado-regulador. Acesso em: 28 nov 2024.
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