RESUMO: Critica de modo geral o Sistema Prisional do país, mostrando seus principais pontos falhos. Discute a legalidade e constitucionalidade da atual rede penitenciária nacional. Sugere, como solução para o problema, a terceirização da atividade carcerária, transferindo para a iniciativa privada a administração dos presídios. Aponta casos bem sucedidos na região sul brasileira.
PALAVRAS-CHAVE: Prisão – Pena – Presídio – Ressocialização – Escola de Crimes – Jus Puniendi - Polícia – Administração Pública – Privatização – Terceirização – Iniciativa Privada – Presídio-Indústria – Laborterapia – Segurança – Prevenção.
Qualquer estudo atual sobre o Sistema de Justiça Criminal ou sobre Segurança Pública, para usar expressão mais comum, tem passagem obrigatória pelo Sistema Penitenciário, apontado em qualquer diagnóstico como um dos pontos vulneráveis que fragilizam ou inviabilizam a aplicação do jus puniendi estatal. De fato, se tornam inócuos o trabalho da Polícia, do Ministério Público e da Justiça se as pessoas que são investigadas, acusadas, processadas e condenadas não podem, efetivamente, ser presas por falta de local para seu acautelamento ou, se esse lugar existe, não tem as condições mínimas de dignidade necessárias para ressocialização do apenado. A pena deixa de ser executada ou o é de maneira inconveniente, incoerentemente com os comezinhos princípios da prevenção especial, restando-lhe apenas e exclusivamente o seu caráter retributivo.
É patente a necessidade de mudança, não se podendo mais fechar os olhos à dantesca realidade carcerária que chega às raias da ilegalidade e inconstitucionalidade, posto que a Magna Carta, em seu artigo 1º, inciso III, garante a Dignidade da Pessoa Humana e, se não o fizesse, a Moral o faria. A Lei de Execução Penal estabelece todos os contornos de um Sistema Penal eficiente em linhas teóricas que a Administração Pública não tem conseguido transferir para o plano material. A humanização tem que fazer parte da aplicação da pena para que, punido o delito, o desejo de reincidir venha a ser exaurido com o tratamento ressocializador do sentenciado. Na realidade atual a punição do deliquente tem servido unicamente para fazer nele crescer sentimento de revolta, de frustração, de embrutecimento de potencialização de sua capacidade delitiva, garantindo de forma inexorável, no seu retorno à sociedade, a reincidência múltipla e cruel, desconfigurando, completamente, a função preventiva da pena.
Nos dicionários, a pena é definida como retribuição imposta pelo Estado ao contraventor ou delinqüente por infração cometida. Suas funções variam de conformidade com o papel desempenhado pelo Estado na estrutura social. Criada, nos primórdios da civilização, como simples Vingança Pública ou Vingança Social, seu foco foi modificado, no século XVIII, com movimentos pela humanização na administração da Justiça, tendo como expoente, entre outros, o pensamento do Marquês de Beccaria[1]. Ao invés de apenas retribuição, a pena deveria obrigatoriamente ter função preventiva, onde se inclui o tratamento para recuperação do punido.
Passados quase que trezentos anos das idéias iluministas de Beccaria, ainda se vê, infelizmente, um modelo carcerário arcaico, com superlotação dos presídios, falta de investimento na educação do detento, de sua profissionalização, de funcionários especializados, de assistência ao egresso, corrupção, ausência de separação dos internos por grau de periculosidade, rebeliões, precariedade das instalações, fugas recorrentes e, muito freqüentemente, estabelecimentos prisionais sob administração da própria Polícia, numa inversão ilegal da lógica de que quem prende e investiga não deve acautelar.
Dados do Ministério da Justiça[2] apontam déficit de mais de 70 mil vagas e que quase 40% dos detentos são provisórios, ou seja, não receberam condenação definitiva e podem ser inocentados após julgamento de última instância. A Lei de Execuções Penais[3] e o próprio Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária estabelecem que os presos devem ser alojados de modo individual e que os provisórios devem ser mantidos em locais distintos dos condenados. Essas regras mínimas não são obedecidas reforçando, no Brasil, um sistema carcerário defasado e falido. Acresça-se a esse ambiente a falta de higiene, de leitos, alimentação precária, ausência de serviço médico, consumo de drogas, abusos sexuais, condições propícias à violência de todo gênero, inexistência de perspectiva de reintegração e de política ampla e inteligente para o setor, numa privação dos meios primários constitucionalmente garantidos à Dignidade da Pessoa Humana.
Esse trágico contexto é que sugere a privatização do sistema penitenciário. Adotado, hodiernamente, em diversos países, tal modelo enseja polêmica na seara jurídica, pois que conclama a iniciativa privada a cooperar com o Estado na incumbência da execução penal.
Entre as várias modalidades de privatização[4] se acha a que nos interessa sobremaneira, chamada de Terceirização. Seu conceito administrativo[5] advém da idéia de que terceira pessoa, em princípio estranha, seja admitida, sob forma de co-gestão, em determinado processo de competência estatal. Nesse modelo o Estado poderia contratar, através de licitação[6], empresa privada para gerenciamento do presídio, impondo, nessa atividade características gerenciais próprias, inclusive podendo se utilizar da mão de obra do encarcerado para as funções do chamado presídio indústria – onde há ganhos para a empresa e para o recluso -, recebendo do Estado o preço estipulado em contrato. A idéia é de que o setor privado eliminaria a burocracia pública e reduziria os custos da atividade, desonerando a Administração Pública e o contribuinte. Haveria um trabalho de co-gestão, ficando a chamada hotelaria por conta da empresa concessionária, ao Estado incumbindo a tarefa da fiscalização.
Pode parecer, inicialmente, que a Empresa Privada não alimenta interesse no combate à criminalidade, objetivo teórico da administração penitenciária, vez que pode auferir lucro da existência da própria criminalidade. Também que o domínio sobre o indivíduo faz parte da natureza da pena e que somente ao Estado será moralmente lícito obter receita do mesmo. O princípio ético está insculpido nas Regras Mínimas para o Tratamento dos Reclusos, da ONU[7]. Porém não deve ser considerado, in casu, de forma absoluta porque a própria LEP, em benefício exclusivo do próprio interno, prevê a remissão da pena, redução do tempo a ser cumprido em relação ao de trabalho efetivado, como também o contexto pode ensejar a dita laborterapia, consistente na recuperação da pessoa através da dedicação ao trabalho lícito e remunerado.
Se no ambiente capitalista a Iniciativa Privada administra bem o seu dinheiro, por força contratual viria a gerenciar o seu e o interesse estatal na mesma empreitada. O preso não ficaria em perversa ociosidade, mas ocuparia o seu tempo livre em trabalho que lhe seria educativo e rentável financeiramente.
Mais um obstáculo à terceirização se coloca em decorrência de que a execução penal é atividade jurisdicional, sendo esta indelegável, de exercício exclusivo do Estado. Este é o maior óbice político à privatização ou à terceirização carcerária, considerado o uso legítimo da força como prerrogativa estatal correr-se-ia o risco de relativizar a soberania do Estado. Há que se ver, entretanto, que as chamadas APACs – Associação de Proteção e Assistência ao Condenado – são Organizações Não Governamentais que gerenciam, com a aprovação dos poderes constituídos, um já grande número de presídios em todo o Brasil, estando a se afigurar como uma das prováveis soluções para o sistema penitenciário, no seu formato e doutrina próprios. Ainda, D’URSO[8] assevera que não se está transferindo função jurisdicional para o particular, mas tão somente a responsabilidade pela comida, limpeza, vestuário, hotelaria, enfim função material da execução da pena, permanecendo com o Estado o poder de dizer quem será preso, por quanto tempo e qual a forma de punição. Fica certo, assim, que da mesma forma que é permitida a delegação, através de licitação, para construção de obra pública, também as atividades administrativas extrajurisdicionais poderiam ser repassadas a empresas privadas sem prejuízo nem relativização do jus puniendi estatal.
Já existem, no Brasil, exemplos pioneiros do que aqui se defende, tratando-se de parceria entre a Segurança Pública e a Segurança Privada, na qual o presídio é administrado pelo Governo Estadual, com serviços de segurança interna, assistência médica, psicológica, jurídica e social prestados por empresa particular. Só no Estado do Paraná existem quatro dessa espécie: Casa de Custódia de Curitiba, Casa de Custódia de Londrina, Presídio Estadual de Piraquara e Presídio Estadual de Foz do Iguaçu[9].
Por essa razão o Paraná figura como o Estado onde há maior número de encarcerados desempenhando alguma atividade laborativa. Lá, 72 % dos presos trabalham, sendo que o benefício para eles é evidente, posto que para cada três dias de trabalho, um é reduzido no tempo da pena e a remuneração pode chegar a 75% do salário mínimo, tudo em conformidade com o que dispõe a LEP. A Casa de Custódia de Curitiba possui sistema de segurança exemplar, com painéis eletrônicos de controle automatizado. A segurança externa é feita por empresa terceirizada e a interna por agentes de disciplina, contando com portões eletrônicos, monitoramento com câmeras de vídeo, alarmes sonoros, detectores, fixos e móveis, de metais, rádiotransceptores etc[10].
A Penitenciária de Londrina trata-se de estabelecimento para cumprimento de pena em regime fechado, de segurança máxima, com capacidade para 504 internos. Só a segurança externa é feita pela Polícia Militar. Possui sofisticado sistema eletrônico de segurança, mas investe na reintegração do preso, zela pelo seu bem-estar através da profissionalização e educação, assistência jurídica, psicológica, social, médica, odontológica, religiosa e material, além da assistência social aos familiares do recluso. Investe na área cultural e atividades artísticas como teatro e música, estimulando a criatividade.
A Penitenciária de Piraquara, também de segurança máxima, tem capacidade para 543 presos. Possui além de requisitos modernos de vigilância, área para cultivo de horta numa área de 7.500m2 e canteiros de trabalho. Tem blocos exclusivos para visitas de familiares, visitas íntimas, espaço exclusivo para banho de sol, quadras poliesportivas. No quadro funcional constam agentes de disciplina, advogados, médicos, dentistas, psicólogos, psiquiatras, terapeutas ocupacionais, assistentes sociais, pedagogos, técnicos em enfermagem e farmácia. Todo o corpo funcional como os familiares dos presos são submetidos a sofisticado sistema de identificação ótica que registra dados pessoais, impressões digitais e imagem de cada pessoa. A administração é levada a efeito pela empresa de segurança Montesinos, de Santa Catarina.
Ainda no Paraná tem-se belo exemplo de presídio indústria: Guarapuava. Destinada a presos em regime fechado, comporta 240 internos. Seu funcionamento está assentado no tripé formado pelo Estado, a quem compete a administração e a custódia do preso; pela empresa contratada, responsável pela operacionalização da Unidade e pela iniciativa privada – fábrica de sofás e fábrica de palitos– responsável pela disponibilização do trabalho para os sentenciados.
Por fim registre-se que a realidade carcerária brasileira é, no mínimo, preocupante. Superlotação, falta de estrutura básica e de tratamento digno para o interno. Os presídios perdem sua função de ressocializar e assumem a postura nefasta de se constituírem em “Faculdade do Crime”, com a pedagogia da revolta, da desilusão e do desespero de quem, ao se ver fisicamente liberto, continuará manietado pelos grilhões da violência, da exclusão social, intelectual e do apego ao triste passado de exclusivas perdas.
Diante deste cenário, torna-se forçoso advogar em favor da Terceirização dos Serviços Carcerários como proposta de enfrentamento da indiscutível crise do sistema. Há consciência de que a modificação não se poderá implementar de forma simples nem com modestos remendos. Mas a necessidade de mudança é pacífica e este tímido estudo pretende, tão somente, mostrar trilhas que podem ser percorridas no campo jurídico ou mesmo no plano administrativo de experiências inovadoras já em curso no país. É preciso, para isso, vontade política com a consciência de que os gastos com a rede prisional são, além de compromisso humanitário com a dignidade da pessoa presa, investimentos estratégicos na prevenção criminal.
[1] BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas- Martin Claret – SP- 2000.
[2] www.mj.gov.br - acesso em 10 mar 2006
[3] Lei nº 7210/84
[4] Maurício Kuene relaciona 04 espécies: administração total pela empresa privada; construção do presídio pela empresa privada; utilização do trabalho dos presos pela empresa privada(prisão indústria) e terceirização- in www.cjf.gov.br, acesso em 13 jun 2006.
[5] Dicionário Jurídico – Academia Brasileira de Letras Jurídicas/JM Othon Sidou – 7ª edição – Forense-RJ
[6] Código de Licitação – Lei nº 8.666/93
[7] I Congresso das Nações Unidas sobre Prevenção do Crime e Tratamento de Delinqüentes – Genebra/1.955
[8] D’URSO, Luis Flávio Borges. Privatização de Presídios...
[9] Disponível em www.mj.gov.br/depen - acesso em 14 jun 2006
[10] Todos os dados extraídos do site do Ministério da Justiça/Departamento Penitenciário Nacional.
Delegado de Polícia (apos). Mestre em Administração Pública/FJP - Especialista em Criminologia, Direito Penal e Processual Penal - Professor do Centro Universitário Metodista de Minas - Assessor Jurídico da Polícia Civil. Auditor do TJD/MG
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LOPES, João. Privatização Penitenciária: Legalidade e Conveniência Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 26 jan 2011, 06:58. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/23364/privatizacao-penitenciaria-legalidade-e-conveniencia. Acesso em: 28 nov 2024.
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