RESUMO: Em resposta à crise instalada pela Pandemia de Covid, foi elaborada a Lei Complementar nº 173/2020. Por meio dessa lei, estabeleceu-se um programa federativo de enfrentamento ao COVID-19. Foi erigido um conjunto de medidas previstas especialmente para o exercício financeiro de 2020, visando ao apoio financeiro aos estados-membro e municípios. Foram determinadas contrapartidas aos entes subnacionais, destacando-se restrições impostas ao funcionarismo público. Houve questionamento em sede de controle concentrado, tendo o STF entendido pela constitucionalidade. Não obstante, o debate acadêmico sobre o tema continua possível, ainda mais para aspectos não abordados pelo STF. Nessa senda, vislumbra-se possível contrariedade à Constituição de 1988, especialmente no que diz respeito ao federalismo. Entende-se que, ao reservar a iniciativa de lei ao chefe do Poder Executivo, a norma constitucional também delimitou a competência legislativa ao correspondente ente federativo. Nesse viés, a matéria atinente aos servidores públicos não estaria disponível ao legislador da União. O STF entendeu tratar-se de matéria de Direito Financeiro, principalmente em razão da provisoriedade das restrições impostas. Contudo, este trabalho nota que existem efeitos perpétuos, indicando aspectos de direito de pessoal, aspectos esses de competência reservada aos entes subnacionais. Desse modo, vislumbra-se inconstitucionalidade na referida lei complementar.
PALAVRAS-CHAVE: Federalismo. Controle de constitucionalidade. Lei Complementar nº 173/2020. Possível inconstitucionalidade não vislumbrada pelo STF. Direito financeiro. Direito de pessoal. Competência privativa. Iniciativa reservada de lei.
1.Introdução
Em alguma medida, o Programa Federativo de Enfrentamento ao Covid-19 contrariou o federalismo brasileiro? Por meio do presente trabalho, busco rascunhar um peculiar caminho na busca de resposta.
Não se desconhece que o STF decidiu acerca da constitucionalidade da Lei Complementar nº 173/2020, entretanto, ainda que exista a chancela de constitucionalidade pelo órgão jurisdicional competente para tanto, a discussão e o debate podem persistir, ao menos no nível acadêmico. Além disso, sem adentrar na dinâmica processual da declaração de constitucionalidade, alguns aspectos de validade constitucional parecem não ter sido abordados nessa decisão. Assim, algumas reflexões deste trabalho podem advir de rediscussão de questões abordadas pelo STF, como podem surgir de ângulos inéditos.
A perspectiva proposta neste trabalho é a que considera a gestão dos respectivos servidores públicos como competência privativa dos entes subnacionais. Tal competência não é explicitada nesses termos na Constituição de 1988. A interpretação da norma de competência privativa para projeto de lei que verse sobre regime jurídico dos servidores do Poder Executivo – prevista no art. 61, §1º, II, c, da Constituição de 1988 – parece indicar uma reserva de competência também no plano da repartição de competências federativas. O raciocínio utilizado para tal conclusão é o de que, ao se restringir a um agente político específico tal papel, reserva-se também à esfera federativa da qual ele integre.
Assim, analisando as restrições impostas pela Lei Complementar nº 173/2020, em especial as previstas no art. 8º, observa-se possível contrariedade à competência privativa dos entes subnacionais.
Dessa maneira, perquire-se se a Lei Complementar nº 173/2020 contrariou o federalismo brasileiro.
2. Programa Federativo de Enfrentamento ao Covid-19
A União, em reação à pandemia que despontava no Brasil, editou a Lei Complementar nº 173/2020, cujo propósito principal foi oferecer apoio financeiro aos entes subnacionais. A norma legal foi oriunda de iniciativa parlamentar (PLP 39/2020, de autoria do senador Antonio Anastasia - PSD/MG).
O Programa Federativo de Enfrentamento ao Covid-19 foi um conjunto de medidas previstas especialmente para o exercício financeiro de 2020, cujo propósito principal foi o apoio financeiro aos estados-membro, Distrito Federal e municípios[1]. A instituição do Programa deu-se por meio de lei complementar, a Lei Complementar nº 173/2020. Em razão de a norma promover modificações impactantes nas finanças públicas dos integrantes da federação, bem como devido a disposições sobre dívidas internas e externas, foi necessária a edição de lei complementar, conforme comando do art. 163 da Constituição de 1988.
O apoio deu-se de várias formas, destacam-se a entrega de recursos e a suspensão do pagamento de dívidas assumidas por estados-membros, Distrito Federal e municípios.
Foram iniciativas do Programa: a suspensão do pagamento de determinadas dívidas contratadas entre a União e entes subnacionais (art. 1º, §1º, I); a reestruturação de operações de crédito interno e externo realizadas por estados-membros, Distrito Federal e municípios junto ao sistema financeiro e instituições multilaterais de crédito (art. 1º, §1º, II); e a entrega de recursos da União, na forma de auxílio financeiro, aos estados-membros e aos municípios (art. 1º, §1º, III).
Além dessas iniciativas, a União ficou impedida de executar, de 1º de março de 2020 a 31 de dezembro de 2021, garantias das dívidas decorrentes dos contratos de refinanciamento de dívidas celebrados com os entes subnacionais e dos contratos de abertura de crédito firmados com os estados-membros e Distrito Federal. Restou também impedida de executar o parcelamento de débito previdenciário de que trata a Lei nº 13.485/2017.
Destacam-se as alterações na LRF, que se concentraram no art. 65, possibilitando uma flexibilização temporária das amarras fiscais (expressão utilizada pelo STF, no julgamento das ações constitucionais ajuizadas contra a Lei Complementar nº 173/2020).
Por meio desse programa, a União articulou uma rede de apoio com efeitos financeiros para os entes subnacionais.
Além disso, a Lei Complementar nº 173/2020 modificou o regime fiscal de calamidade pública existente na LRF e criou um regime específico para o enfrentamento da pandemia, com enfoque no exercício de 2020. Registra-se que, posteriormente, foi promulgada a Emenda Constitucional nº 109/2021, que desenvolveu novas regras para o estado de calamidade pública, incorporando algumas ao texto constitucional.
Com o objetivo de garantir o equilíbrio fiscal, a Lei Complementar nº 173/2020 impôs algumas restrições e proibições aos entes subnacionais.
O programa de enfrentamento, erigido pela referida lei, deu-se no âmbito federativo. Reflexão que proponho é analisar se, de alguma forma, houve contrariedade ao federalismo brasileiro, tal como exigido na Constituição de 1988.
3.Federalismo brasileiro – breve leitura
Por ser federação, o estado brasileiro é composto por entes políticos autônomos, que exercem o poder estatal, de acordo com a divisão proposta na Constituição de 1988. A divisão de poder dá-se em termos espaciais.
As classificações de federalismo podem ser várias e nem sempre representar as conformações estatais existentes com precisão. A concentração ou descentralização do exercício do poder soberano no espaço geográfico pode se dar em diversas intensidades (HORBACH, 2013, p. 3), de modo que parece seguro afirmar que, sob o ponto de vista federativo, as categorias de estado elaboradas não são em número suficiente para comportar as gradações dessa intensidade. De todo modo, tem-se aceitado, com certa tranquilidade, a classificação em determinados tipos de estado: estados regionais, autonômicos, federais ou confederados e estado unitário – esse último, mais como um modelo ideal do que representativo da realidade (HORBACH, 2013, p. 3).
A categoria de estados federais pode ainda ser subdividida em federalismo de cooperação e federalismos dualista. A existência de competências concorrentes é característica do federalismo de cooperação (HORBACH, 2013, p. 8), a execução em conjunto dessas competências viabiliza a concretização da cooperação. Por outro lado, a nota do federalismo dual é a distribuição estanque de competências, sem previsão de cooperação (SILVA. V., 2021, p. 353).
No Brasil, a Constituição de 1988 definiu a opção pelo federalismo de cooperação. Esse texto constitucional foi o primeiro a compartilhar dezenas de competências entre os integrantes da federação, competências essas nos campos legislativo, político-administrativo e tributário (SILVA. V., 2021, p. 354). Essas competências, por outro lado, também podem ser divididas em competências privativas, residuais, comuns e concorrentes (SILVA. V., 2021, pp. 362-363).
O federalismo brasileiro pode ser caracterizado como federalismo de cooperação. Nessa perspectiva, há competências compartilhadas pelos integrantes da federação, bem como existe o dever de mútuo apoio. Essa nota não afasta a existência de competências próprias de cada ente, indicadoras da própria autonomia. Para Virgílio Afonso da Silva (2021, p. 355), “[s]er autônomo [...] significa poder tomar as decisões que entender corretas e convenientes na sua área de competência e ter a garantia de que essa área de competência não será alterada”. Assim, o respeito à federação implica a preservação da autonomia do outro ente federado, observando a respectiva área de competência.
Como afirmado no voto do Ministro Relator, no julgamento das ações ajuizadas contra a Lei Complementar nº 173/2020, “o Federalismo, desde seu nascimento, preserva a necessidade de um poder central, com competências suficientes para manter a união e a coesão do próprio País”[2]. Porém, esse poder central, representado pela União, não deve ir muito além do necessário para manter a união e a coesão do próprio país, sob pena de se descaracterizar a própria federação, pela invasão de competência alheia. Esse cenário de centralização exacerbada evidenciaria uma federação de fachada.
A atuação da União, manifestada por meio de seu Poder Legislativo – que editou a Lei Complementar nº 173/2020 – não deixa de ser, em alguma medida, uma centralização necessária em face da crise da pandemia de Covid-19. De acordo com HORBACH (2013, p. 6), na crise pós-quebra da Bolsa de Nova Iorque, de 1929, houve movimento de centralização, com expansão das competências da União, para implementação do New Deal.
Ordinariamente, no Brasil, a centralização de poderes ocorre como uma opção para momentos de crise. Quando instigado, o STF adotou uma linha mais acentuada nesse sentido, de modo a permitir uma coordenação por parte da União (VASCONCELOS, 2021, p. 196). Curiosamente, durante a Pandemia de Covid-19, o Tribunal deu sinais em orientação oposta, decidindo pela descentralização, que pode indicar alguma mudança de orientação (Idem, pp. 204-205).
A despeito de ser exigida, em momentos de crise, atuação mais centralizadora, ou, menos centralizadora, do ente central a autonomia dos entes periféricos deve ser garantida, dado que esse fator é decisivo para a verdadeira caracterização do estado federado.
4.Questionamentos sobre a constitucionalidade da Lei Complementar nº 173/2020 no Supremo Tribunal Federal
Contra as limitações previstas na Lei Complementar nº 173/2020, alguns partidos políticos ingressaram com ação no STF suscitando inconstitucionalidades em seu texto.
Sobre o tema, foram ajuizadas, no Supremo Tribunal Federal, as ações diretas de inconstitucionalidades 6.442, 6.447, 6.450 e 6.523. As ações foram reunidas em julgamento conjunto, no qual o Plenário, conhecendo parcialmente da ADI 6.442, julgou improcedente os respectivos pedidos.
Conforme consta no inteiro teor do acórdão, foram suscitadas violações nos seguintes termos:
Trecho da petição inicial da ADI 6442, com argumento apresentado pelo Partido dos Trabalhadores:
Em relação à inconstitucionalidade material, sustenta-se (a) a violação à separação dos poderes (arts. 1º e 2º da CF) e à autonomia federativa (art. 18 da CF), ao argumento de que a lei impugnada avança sobre o regime dos servidores públicos de todos os poderes, uma vez que as alterações promovidas na LRF “atrela[m] os entes federativos a uma decisão exarada pela própria União, reduzindo a sua capacidade de autogoverno e autogestão, num ataque particularmente severo à sua autonomia financeira e administrativa”
Trecho da petição inicial da ADI 6525, com argumento apresentado pelo Partido PODEMOS:
[...] invade a gestão pública de pessoal dos demais entes federativos e, consequentemente, viola o pacto federativo e a separação dos poderes.
Em suma, nas citadas ações, houve impugnação da Lei Complementar nº 173/2020, por alegação de inconstitucionalidade em diversos ângulos. Os requerentes suscitaram inconstitucionalidades de ordem formal – como, p. ex., a votação à distância no processo legislativo – e material – p. ex., extrapolação da competência atribuída ao legislador complementar (violação ao art. 169), ofensa ao princípio da eficiência, da irredutibilidade remuneratória e desrespeito aos princípios e às regras do federalismo brasileiro. De especial interesse ao presente trabalho, apenas o último tópico.
Em relação ao tema federalismo brasileiro, o relator, Min. Alexandre de Moraes, em seu voto, afirmou que o exame da constitucionalidade material da Lei Complementar nº 173/2020, quanto ao equilíbrio federativo e ao respeito à repartição constitucional de competências, deve ser feito considerando o “contexto macroeconômico e de estabilização monetária, além da consideração a respeito dos impactos negativos causados pela pandemia”.
Quanto aos dispositivos apontados como inconstitucionais, as alegações foram afastadas pelo Plenário, em acompanhamento unânime do voto do relator. Em outras palavras, O STF considerou a norma constitucional.
Especificamente e resumidamente, foram analisadas as alegações contra os dispositivos do §6º do art. 2º, o art. 7º e o art. 8º.
O §6º do art. 2º contempla uma faculdade, a de os entes subnacionais renunciarem a direitos sobre os quais fundem ações ajuizadas (valores de dívidas anteriores a 1º/03/2020). Nesse caso, a ausência de imposição foi considerada como fundamento para o entendimento de inexistência de ofensa à autonomia dos entes subnacionais.
O art. 7º cuidou, precipuamente, de promover alterações na LRF, nos artigos 21 e 65. Passou a determinar a pecha de nulidade aos atos que prevejam parcelas salariais a serem implementadas em períodos posteriores ao final do mandato do titular do Poder ou órgão, além de detalhar a nulidade para atos que produzam semelhantes efeitos nos 180 dias anteriores.
Por seu turno, o art. 8º versou sobre proibição de aumento de despesas com pessoal em período delimitado de tempo (até 31/12/2021), considerando os efeitos da Pandemia. Nesse ponto, vale dizer que a norma legal foi publicada em 28/05/2020, não havendo, naquele momento, segurança em se estimar o momento do arrefecimento ou o final da Pandemia.
Sem grande aprofundamento, os artigos 7º e 8º foram considerados constitucionais por “traduzem em verdadeira alternativa tendente, a um só tempo, alcançar o equilíbrio fiscal e combater a crise gerada pela pandemia.”.
Como afirmado no julgamento, reconheceu-se “a magnitude dos efeitos da pandemia e a necessidade extrema de coordenação entre todos os níveis de governo na destinação prioritária de recursos e esforços para a saúde pública, no sentido de minimizar seus reflexos nefastos.”.
Tal panorama, de acordo com o STF, não viabilizaria desrespeito ao federalismo brasileiro, como disposto na Constituição de 1988.
Posteriormente, em decisão no RE 1.311.742-SP – caso concreto, portanto –, o STF reafirmou a constitucionalidade da norma legal, com base na mesma argumentação utilizada no julgamento conjunto. Foi proposta a seguinte tese de repercussão geral: “É constitucional o artigo 8º da Lei Complementar 173/2020, editado no âmbito do Programa Federativo de Enfrentamento ao Coronavírus SARS-CoV-2 (Covid-19).”.
Não obstante essas decisões, entendo válida a opção de escrever sobre o tema. Além de existir aspectos não abordados pelo STF, a existência de decisão judicial – ainda que oriunda da instância máxima – não impede a reflexão acadêmica.
5.As imposições previstas no art. 8º da Lei Complementar nº 173/2020
O art. 8º da Lei Complementar nº 173/2020 contém determinação de alto teor de intervenção na autonomia dos entes subnacionais.
No dispositivo, foram previstas a suspensão de concursos públicos, a vedação a concessão de aumentos remuneratórios, a proibição de contagem de tempo de serviço público para fins de progressão na carreira.
Em suma, foram impostas vedações e restrições à concessão de direitos ao corpo de servidores públicos. Essa intervenção despertou o interesse da presente análise, porque foi promovida pelo ente central, no âmbito dos demais entes periféricos.
O STF decidiu pela constitucionalidade dessa norma, com base, dentre alguns fundamentos, na ideia de que as regras cuidariam de disposições de direito financeiro e não de regimento de pessoal. Esse último ponto foi utilizado para afastar a tese de violação ao princípio da separação dos poderes.
O enquadramento enquanto norma de direito financeiro não levou em conta como as vedações impactariam na vida dos servidores públicos atingidos. As considerações para essa categorização foram traçadas somente a partir das consequências esperadas das restrições, de repercussão predominantemente financeira. Não foram analisadas as vedações a partir das perspectivas dos servidores públicos atingidos. Por exemplo, ao se vedar o cômputo de tempo para aquisição de anuênio (art. 8º, IX), o consequente “aumento de despesa” seria evitado, contudo esse não foi o objeto vedado pela norma; a proibição incidiu sobre a contagem do tempo e não sobre seus efeitos financeiros. Existe uma diferença entre proibir-se a constituição de uma situação jurídica (o cômputo do tempo de serviço) e afastar temporariamente alguns de seus efeitos (os efeitos financeiros dessa contagem).
A norma, se fosse integralmente de Direito Financeiro, poderia se limitar a proibir o aumento de gastos com pessoal, tornando essa proibição propriamente o objeto vedado pela norma (como o fez no inciso III, no qual a vedação centrou-se na alteração de carreira que implicasse aumento de despesa). Nessa linha, dada a vedação de Direito Financeiro, as decisões mais concretas, que tangeriam ao regime jurídicos dos servidores públicos, poderiam ser reservadas aos entes subnacionais.
Remetendo aos entes subnacionais a decisão sobre quais modificações poderiam ser efetuadas nos respectivos regimes jurídicos, vislumbra-se, com maior clareza, uma distinção entre a norma financeira e a norma de pessoal. Além disso, haveria maior respeito à autonomia dos integrantes da Federação. Essa separação, contudo, entre aspectos de pessoal e aspectos de finanças não consta na hipótese do inciso IX do art. 8º.
Um outro ângulo possível de observar essa proibição é o das competências privativas. Na repartição de competências da federação, as competências privativas “são aquelas atribuídas a apenas um ente, que a exerce com exclusividade” (SILVA. V., 2021, p. 363) – ressalva-se que a possibilidade de delegação legal não desnatura essa exclusividade. A competência para gerir o corpo de servidores públicos não está descrita, expressamente, nas listas de competências privativas (arts. 22, 25, §2º, e 30, I, da Constituição de 1988). Contudo, a proposta deste trabalho é indagar se a previsão de iniciativa legislativa exclusiva do Chefe do Executivo (art. 61, §1º, II, c, da Constituição de 1988) representaria, além do comando de separação de poderes, também uma competência privativa do ente federativo. Reforça esse entendimento a constatação de que, nos sistema de execução de serviços adotado na repartição de competências delineada pela Constituição de 1988, cada integrante da Federação conta com “seu corpo de servidores públicos, destinados a executar os serviços das respectivas administrações” (SILVA, J., 2006, p. 482).
Destaque-se que a Constituição de 1988 contempla a norma somente para o âmbito da União, contudo o entendimento dominante é que se cuida de norma de observância obrigatória para os demais entes federativos, em razão do princípio da simetria[3] - além disso, por ser “aspecto relevante do desenho da tripartição de poderes, os Estados-membros não podem dela apartar-se” (MENDES, 2019, p. 910).
Não se olvida que existem outros corpos de servidores públicos que não se submetem ao Chefe do Poder Executivo, como, por exemplo, os servidores do Poder Judiciário, cuja competência privativa de lei cabe ao chefe do respectivo poder. Entretanto, tal competência distinta não afasta o raciocínio apresentado, de indicação de competência privativa para o ente da Federação. Isso porque se aplica a mesma lógica de delimitação federativa, o Chefe do Poder Judiciário detém a mencionada competência privativa de lei no seu âmbito federativo, não sendo possível que o chefe do Poder Judiciário de outra esfera da federação apresente projeto de lei para servidores de tribunal de outro estado-membro, por exemplo.
Vale destacar que as inovações ao texto constitucional, promovidas pela Emenda Constitucional nº 109/2021, para enfrentamento de situações de descompasso entre despesas correntes e receita corrente líquida não reproduziram a hipótese do inciso IX do art. 8º da Lei Complementar nº 173/2020. Desse modo, os apontamentos lançados aqui ainda desafiam a norma constitucional, ainda que, como dito amiúde, o STF tenha entendido pela constitucionalidade da lei.
6.Possível violação à autonomia dos entes subnacionais e a competência privativa dos entes subnacionais – dispor sobre regime dos servidores públicos
A partir de parâmetros constitucionais, enfrenta-se a tarefa de se identificar ofensa à autonomia dos entes subnacionais. Se a restrição à autonomia estiver prevista no texto constitucional, ela não será indevida. Do mesmo modo, se a redução da autonomia advir da aplicação de regras constitucionais, mesmo que não expressas, também haverá aí compatibilidade com a Constituição. Isso porque a norma constitucional conforma o estado como um todo e, consequentemente, o estado federal, traçando os limites de competência para cada integrante da federação.
Ao reservar a iniciativa de lei do regime jurídico dos servidores públicos para a competência privativa do Chefe do Executivo, a norma constitucional indica uma correspondência entre o corpo de servidores públicos e esse chefe, consistente na esfera da federação. Dito de outro modo: Presidente da República e servidores da União, Governador do Estado e servidores estaduais, Prefeito e servidores municipais. Essa correspondência, de lógica simples e clara, revela faceta da autonomia federativa.
A perspectiva proposta neste texto é a de que a reserva de iniciativa a uma autoridade de certa esfera federativa implica a competência privativa dessa mesma esfera federativa. Por exemplo, a iniciativa de lei atribuída ao governador do Estado da Bahia significaria também que a matéria seria privativa ao ente político Estado da Bahia.
Outrossim, como a leitura imediata sinaliza, a competência privativa ao Chefe do Executivo também comporta uma regra no âmbito da separação dos poderes. Ao restringir o papel a um ator político, a Constituição de 1988 afastou a possibilidade de membros do Poder Legislativo e do Poder Executivo proporem projeto de lei que tratasse desse tema.
Nessa linha de raciocínio, a reserva de iniciativa de lei do Chefe do Executivo abarcaria duas dimensões: uma pertinente à federação e outra, à separação de poderes. As duas dimensões estão intrincadas, de modo que ambas devem ser enfrentadas quando se questiona (como foi o caso) a constitucionalidade de norma legal supostamente violadora dessa norma constitucional.
A dimensão federativa da reserva de iniciativa de lei não foi abordada pelo STF, que se limitou, nos julgados comentados, a afastar a alegação de violação da separação dos poderes.
O STF fundamentou a decisão de constitucionalidade do art. 8º
da Lei Complementar nº 173/2020 com a constatação de que se cuidaria de norma de Direito Financeiro e não de regime de pessoal. O ponto não foi sustentado com o enfrentamento argumentativo de cada hipótese de restrição ou de proibição prevista no art. 8º. Abaixo, excertos do referido julgado:
Por seu turno, art. 8º da LC 173/2020 prevê norma diretamente relacionada ao combate da pandemia da COVID-19, instituindo restrições de ordem orçamentária no que diz respeito ao aumento de gastos públicos com pessoal. Trata-se, portanto, de norma de eficácia temporária.
Como foi salientado no tópico anterior, as capacidades fiscais, numa federação cooperativa, devem ser exercidas com visão de conjunto, para que a realização dos projetos de cada nível de governo caminhe para um desfecho harmônico. Esse é o sentido das normas em questão. Elas não têm a pretensão de reduzir a política estadual e a municipal a uma mímica dos projetos estabelecidos pela União, mas de permitir um maior controle das contas públicas, seja impedindo a transferência de novas despesas com pessoal para o sucessor do gestor público (art. 7º) seja possibilitando que os entes subnacionais tenham condições de empregar maiores esforços orçamentários para o combate da pandemia do coronavírus (art. 8º). O traço comum entre os dispositivos resume-se no já mencionado equilíbrio fiscal.
Nesse contexto, os artigos impugnados pretendem, a um só tempo, evitar que a irresponsabilidade fiscal do ente federativo, por incompetência ou populismo, seja sustentada e compensada pela União, em detrimento dos demais entes federativos. Pretende-se, pois, evitar que alguns entes federativos façam “cortesia com chapéu alheio”, causando transtorno ao equilíbrio econômico financeiro nacional.
[...]
Conclui-se que, ao contrário de deteriorar qualquer autonomia, a previsão de contenção de gastos com o aumento de despesas obrigatórias com pessoal, principalmente no cenário de enfrentamento de uma pandemia, é absolutamente consentânea com as normas da Constituição Federal e com o fortalecimento do federalismo fiscal responsável.
A classificação dessas medidas como de direito financeiro fundou-se no aspecto pecuniário, de repercussão financeira, das restrições. A ideia aparentemente simples foi a de que se evitar a concessão de direitos que resultem em aumento dos gastos poderia ser vista não como direito de pessoal. Em suporte à tese, os ministros do STF ressaltaram a provisoriedade das restrições. Dessa forma, não haveria ofensa à competência privativa do Chefe do Poder Executivo, considerando que o caso seria de edição de normas de Direito Financeiro.
Embora, aparentemente razoável a tese de que o art. 8º constituiria norma de Direito Financeiro, não houve enfrentamento do tema de intervenção da União em competência privativa de outros entes subnacionais.
Uma razão apresentada para a interpretação da norma legal enquanto de direito financeiro foi a temporalidade de suas restrições. Destaca-se que uma das restrições comporta efeitos perpétuos, descolando-se desse argumento. Cuida-se do congelamento da contagem do serviço público no período de 1º/03/2020 a 31/12/2021. Observo que, em razão da Lei Complementar nº 191/2022, a disposição não se aplica aos servidores públicos civis e militares da área de saúde e da segurança pública. A vedação, incidente para as demais categorias, está disposta no inciso IX:
Art. 8º Na hipótese de que trata o art. 65 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios afetados pela calamidade pública decorrente da pandemia da Covid-19 ficam proibidos, até 31 de dezembro de 2021, de:
[...]
IX - contar esse tempo como de período aquisitivo necessário exclusivamente para a concessão de anuênios, triênios, quinquênios, licenças-prêmio e demais mecanismos equivalentes que aumentem a despesa com pessoal em decorrência da aquisição de determinado tempo de serviço, sem qualquer prejuízo para o tempo de efetivo exercício, aposentadoria, e quaisquer outros fins.
O tempo demarcado para a proibição da contagem foi provisório, menos de dois anos, mas os efeitos são inegavelmente definitivos. Isso porque existe também, nessa vedação, efeitos permanentes, consistentes na retirada definitiva desse lapso temporal da ficha funcional dos servidores públicos, para os referidos fins. Por exemplo, em 2030, um servidor que laborasse desde 2010, não poderia contar com 20 anos de serviço público para obtenção de qualquer um desses direitos; em vez disso, seriam reconhecidos pouco mais de 18 anos. Parece válido questionar se esse efeito perene não transcenderia o aspecto financeiro da questão, passando a constituir-se o ponto de natureza regimental (de direito de pessoal), e, por consequência, da competência privativa do ente da federação.
Num breve exercício de imaginação, se o dispositivo em questão contivesse previsão de retomada do cômputo após findo o prazo nela estipulado, sem incidência de efeitos financeiros retroativos, poder-se-ia afirmar mais seguramente que se cuidaria de norma de direito financeiro, por provisória. Entretanto, a existência de efeitos perpétuos pode evidenciar um outro aspecto da vedação, que interfere na dimensão dos interesses do funcionarismo público.
Essa hipótese desafia sobremaneira o fundamento de que se cuida de norma de direito financeiro e não de regime de pessoal.
Destarte, a Lei Complementar nº 173/2020 pode ter violado o federalismo brasileiro ao promover intervenção da União em competência privativa dos entes subnacionais. A tese de que o art. 8º contempla norma de direito financeiro não afastou a existência, no mínimo, simultânea de norma de regime de pessoal, de modo que seria necessário também abordar a possível violação à competência privativa do ente federativo (sinalizada na iniciativa privativa do Chefe do Poder Executivo). Além disso, parece existir hipótese não abarcada pelos argumentos em prol da ideia de norma de direito financeiro, como o caso do congelamento do tempo de serviço público.
7.Conclusão
Sob a ótica de federação, a previsão de inciativa de lei, reservada para o Chefe do Poder Executivo, para dispor sobre regime dos correspondentes servidores públicos (art. 61, §1º, II, c, da Constituição de 1988) pode ser vista como indicativo de competência privativa do respectivo ente político. Conforme argumentado neste texto, a reserva a determinado agente político não deixa de ser reserva também ao respectivo ente federativo. Considerando o princípio da simetria, a norma da Constituição de 1988 deve ser observada pelos entes subnacionais. Assim, conjugando essas noções, vislumbra-se competência privativa de natureza similar às previstas expressamente nos arts. 22, 25, §2º, e 30, I, da Constituição de 1988.
O teor do art. 8º da Lei Complementar nº
173/2020 parece desafiar a competência privativa do ente político decorrente do citado art. 61, §1º, II, c, da Constituição de 1988.
O STF julgou constitucional a Lei Complementar nº
173/2020, sustentando que, dentre outros, não houve ofensa à autonomia dos entes federativos. No que se refere ao art. 8º, entendeu que não havia ofensa à autonomia, com base em leitura simplificada do federalismo fiscal. Quanto à alegação de violação à separação dos poderes por parte desse dispositivo, o fundamento foi de que se trataria de norma de direito financeiro.
A argumentação a respeito da importância da saúde fiscal não parece ser suficiente para afastar uma possível violação à autonomia federativa, ainda mais quando não enfrentada a questão de competência privativa decorrente da iniciativa legislativa do Chefe do Poder Executivo de cada um dos entes federativos.
No que se refere ao argumento de a norma contida no art. 8º caracterizar norma de direito financeiro, houve digressão apenas sobre as consequências previstas no aspecto financeiro. Não se enfrentou a imposição de mudanças concretas no regime dos servidores afetados, sendo estes, em boa parte, integrantes do funcionarismo público de outros entes federativos.
O outro argumento adotado, de provisoriedade das restrições impostas, não alcança todas as consequências da aplicação do dispositivo. O congelamento do tempo de serviço realizado entre 1º/03/2020 e 31/12/2021 (inciso IX) possui efeitos perpétuos, já que, ultrapassado esse interregno, não se previu a possibilidade de aproveitamento ulterior desse tempo. Assim, no que toca à provisoriedade, essa hipótese não estaria abarcada enquanto norma de direito financeiro, sendo, mais provavelmente, norma de direito de pessoal.
Assim, vislumbra-se violações ao federalismo brasileiro, decorrentes da Lei Complementar nº 173/2020, que escapariam – em termos acadêmicos – do escrutínio realizado pelo STF.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
HORBACH, Carlos Bastide. Forma de Estado: federalismo e repartição de competências. Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasília, v. 3, n. 2, 2013.
MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 14 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva. 2019.
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VASCONCELOS, Natalia; ARGUELHES, Diego Werneck. Covid-19, federalismo e descentralização no STF: reorientação ou ajuste pontual? in Legado de uma pandemia: 26 vozes discutem o aprendizado para política pública. Org. Laura Muller Machado. – Rio de Janeiro, RJ: Autografia, 2021.
[1] A LC nº 173/2020 contempla uma série de interessantes disposições que vão além dos apoios financeiros direto e indireto. Por exemplo, a norma do art. 3º afasta e dispensa disposições da LRF e, sob determinadas condições, de um rol indeterminado de normas – que vão de leis complementares (de igual hierarquia) a portarias, ou seja, há uma suspensão de efeitos normativos determinada por uma lei complementar. Outro exemplo de curiosa disposição é a do §2º do art. 1º, que prevê a imediata suspensão do pagamento das dívidas contratadas antes mesmo da formalização de aditivos, havendo assim a intervenção legal direta em relações contratuais.
[2] Ações diretas de inconstitucionalidades 6.442, 6.447, 6.450 e 6.523.
[3] STF. Plenário. ADI 3627/AP, Rel. Min. Teori Zavascki, julgado em 6/11/2014 e STF. Plenário. ADI 3920/MT, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 5/2/2015.
Procurador do Estado de São Paulo. Pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho, pela Faculdade Baiana de Direito (2015). Atualmente cursando a Especialização em Direito Público pela Escola Nacional da Advocacia Pública e pela Faculdade de Direito da USP.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CORDEIRO, WESLEY DE CASTRO DOURADO. Possível contrariedade da Lei Complementar nº 173/2020 ao federalismo brasileiro. Perspectiva não analisada pelo Supremo Tribunal Federal. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 16 dez 2022, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/60614/possvel-contrariedade-da-lei-complementar-n-173-2020-ao-federalismo-brasileiro-perspectiva-no-analisada-pelo-supremo-tribunal-federal. Acesso em: 24 nov 2024.
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