Resumo: O presente artigo analisa os fundamentos da atual discussão sobre a regulação das tecnologias emergentes de comunicação, em especial das redes sociais, confrontando as propostas governamentais e legislativas com o debate histórico, doutrinário e filosófico sobre a liberdade de expressão ao longo do tempo.
Palavras-chaves: mídias digitais; regulação; liberdade de expressão; bases históricas, doutrinárias e filosóficas.
Abstract: This article analyzes the foundations of the current discussion on the regulation of emerging communication technologies, especially social networks, confronting governmental and legislative proposals with the historical, doctrinal and philosophical debate on freedom of expression over time.
Keywords: digital media; regulation; freedom of expression; historical, doctrinal and philosophical bases.
Sumário: Introdução; Bases para regulação. Aspectos históricos. História da liberdade de expressão no Brasil. Aspectos doutrinários. Aspectos filosóficos. Conclusão. Referências.
Introdução
O artigo busca situar a discussão sobre a regulação das mídias digitais no contexto da evolução da liberdade de expressão, dissecando as propostas em variadas partes do mundo. Para tanto, propomos uma incursão nas contribuições de autores e estudiosos que se debruçaram sobre a liberdade de expressão em épocas diversas, desde a antiguidade até os dias atuais.
Em outro trabalho, intitulado “O Sigilo Absoluto nas Mídias Digitais”, publicado em 2022, analisamos a possibilidade de quebra do sigilo nas redes sociais em casos de práticas criminosas de grande gravidade. O tema é de fundamental importância diante das perspectivas revolucionárias do futuro surgimento da tecnologia 6G e da criptografia quântica nos próximos anos.
Neste artigo retomamos o assunto, mas com uma abordagem diversa. O foco de análise será o controle sobre o conteúdo do que é propagado nas mídias digitais, ainda que não necessariamente ilegal, e a criação de tipos penais relacionados ao exercício da liberdade de expressão nessas plataformas.
De início, cabe citar uma observação esperta, fruto de uma longa carreira jornalística com larga experiência no tema. Na segunda orelha do livro “Areopagítica - Discurso pela Liberdade de Imprensa ao Parlamento da Inglaterra”, de John Milton, um clássico da liberdade de expressão, escrito em 1644, em edição da Topbooks de 1999, Millôr Fernandes erude na sua 5ª reflexão: “A satisfação de nosso ego (liberdade) só é alcançada em detrimento de algum outro (ou de muitos outros) egos. Portanto a liberdade - mesmo utópica - só poderá ser a média da satisfação de todos os egos.”
De fato, a convivência harmoniosa no ambiente digital não será alcançada com a sobreposição de determinadas opiniões sobre as demais, principalmente diante da propagação de egos inflamados por todo o mundo. Conforme a perspicaz advertência de Millôr, apenas a média de satisfação de todos os egos é capaz de trazer algum equilíbrio.
Sabe-se que mesmo a liberdade de expressão deve ter limites, mas como todo direito fundamental, os próprios limites possuem limites, vinculados ao núcleo essencial desse direito, que é intangível à ação governamental. Na conformação desse núcleo, entram questões relacionadas à honra e à maior ou menor sensibilidade albergadas pela lei, que deve ter contornos objetivos e claros, a fim de que a medida do dano não se altere conforme o caso ou conforme as partes.
Como exemplo da regulação em curso, antes de 2014, os conteúdos ofensivos publicados nas redes sociais eram retirados pelas próprias plataformas, por meio de uma notificação extrajudicial emitida pelos ofendidos. Após a aprovação do Marco Civil da Internet, essa remoção apenas ocorre por meio de ordem judicial. No entanto, o Supremo Tribunal Federal formou maioria para revisar o art. 19 do MCI, a fim de conferir-lhe interpretação conforme a Constituição, no sentido de as próprias plataformas removerem voluntariamente o conteúdo ofensivo.
Já a cooperação jurídica internacional no âmbito das mídias digitais se opera nos casos de não aplicação do marco civil da internet (arts. 10, §3º, e 11), como no caso de um provedor de serviços localizado no exterior e que não presta serviço no Brasil.
Em paralelo, o PL nº 2.630/2020 foi aprovado no Senado em junho de 2020, e atualmente tramita na Câmara dos Deputados. Um dos principais pontos do projeto de lei é a criação de um órgão para decidir o conteúdo que será removido. Uma corrente política defende a vinculação do órgão ao governo, a exemplo da Secretaria de Defesa do Consumidor, vinculada ao Ministério da Justiça, ao passo que outra corrente atribui tal tarefa a órgãos independentes, a exemplo da Agência Nacional de Telecomunicações - Anatel. A maioria concorda, porém, que o órgão não tenha vinculação governamental, sendo integrado por membros da sociedade.
De seu turno, o PL nº 2.338/2023, que tramita no Senado, visa regulamentar chats de inteligência artificial, como o ChatGPT, além de novos modelos de inteligência artificial potencialmente perigosos, proibindo, por exemplo, que eles estimulem as pessoas a se comportarem de forma prejudicial ou perigosa à saúde e à segurança. O projeto de lei também impõe um controle de dados sensíveis dos usuários, a exemplo dos dados genéticos, tal como regulado na LGPD.
Os PLs nºs 2630/2020 e 2.338/2023 somam-se ao Marco Civil da Internet e à LGPD como um grande arcabouço legal de controle, além de outros regramentos específicos, como a Lei Antipiada, leis eleitorais e o Código Penal.
A Lei Antipiada foi aprovada em 2023, e em seu art. 23-C proíbe piadas que causem constrangimento a pessoas ou grupos minoritários. O dispositivo tem servido de fundamento para decisões de bloqueio e remoção de vídeos de comediantes nas plataformas digitais.
Além desse complexo legislativo, as novas mídias são alvo de regulamentações judiciais de caráter amplo, a exemplo da Resolução do TSE nº 23.610/2019, que proíbe propaganda eleitoral que atinja órgãos ou entidades que exerçam autoridade pública.
Essa regulação pode advir ainda de decisões judiciais vinculantes e abrangentes, sejam em julgamentos colegiados ou em despachos monocráticos. Como exemplo, decisões recentes emanadas do STF estipularam que as pessoas naturais e jurídicas que utilizarem “subterfúgios tecnológicos”, como o VPN, para acessar plataformas suspensas podem ser multadas em R$ 100.000,00 por hora.
Contudo, a depender do VPN utilizado, o IP do usuário não pode ser identificado, salvo se houver uma porta dos fundos, a exemplo do que é exigido por alguns governos. Na China, o Grande Firewall exige a instalação de uma backdoor. Em geral, é possível rastrear apenas o fluxo da comunicação no VPN, ficando o usuário no anonimato. O Grande Firewall da China (GFW) também bloqueia conteúdos e dados advindos de países estrangeiros. Trata-se de um subprojeto no âmbito do Projeto Golden Shield, um dentre vários projetos Golden, e é operado pelo Ministério da Segurança Pública (MPS) desde 2003. O projeto também é apontado como fonte de ataques a sites internacionais.
Argumenta-se que o exagero na regulação das mídias digitais pode dinamitar a liberdade de expressão, conferindo um escudo às autoridades para práticas abusivas contra a população, o que flerta perigosamente com estruturas controladoras de países ditatoriais.
O tema da regulação das redes ganhou notoriedade após a constatação da piora na saúde mental dos jovens no período pós-pandêmico, com queixas de que as plataformas estariam realizando um experimento com os jovens no intuito de auferir lucro.
No entanto, as propostas atualmente em discussão em vários países do mundo são apontadas de usarem a proteção de crianças, o combate aos discursos de ódio e à desinformação como pretextos para tentar silenciar vozes dissidentes.
A esse respeito, a regulamentação já aprovada em solo europeus tem uma característica cerrada, sem brechas para abusos de governantes por meio de atos executivos, como decretos e portarias. A experiência de legislações abertas revelou a utilização dessas brechas para perseguições políticas e abusos contra a população.
Por sua vez, os EUA optaram por não regulamentar as redes em âmbito federal, rejeitando diversas propostas de controle de conteúdo. Mas existem algumas poucas experiências legislativas no âmbito estadual, como a aprovada em Utah. Apesar disso, dois projetos de lei estão avançados no senado americano, ambos com foco na proteção das crianças, em especial no combate à incitação ao suicídio e à exploração sexual.
Essas leis em geral exigem o consentimento dos pais para a utilização das redes pelos filhos, não por meio de um click em um link, mas sim por meio de um documento escrito entregue em mãos por um agente da plataforma. Contudo, apesar do cuidado que a medida representa, alguns argumentam que ela pode afetar adolescentes com questões de gênero e que sejam rejeitados pelos pais, impedindo o acesso deles a esse tipo de conteúdo.
Atualmente, a governança das redes sociais é um tema bipartidário nos EUA, havendo amplo consenso no que toca à segurança infantil e à defesa nacional. Neste último caso, a discussão é voltada principalmente às plataformas estrangeiras, como o Tik Tok chinês e o Telegram russo.
Na reflexão de Richard H. Thaler e Cass R. Sunstein:
“Apesar de todas as diferenças, liberais e conservadores estão começando a reconhecer esses pontos fundamentais. Assim como o setor privado, o setor público pode incentivar a população a trilhar um caminho benéfico para suas próprias vidas, mas deixando claro que, em última instância, a escolha é do indivíduo, não do Estado. A enorme complexidade da vida moderna, aliada ao ritmo frenético das mudanças tecnológicas e globais, acaba por solapar todo e qualquer argumento que defenda leis rígidas ou o laissez-faire dogmático. Os avanços nessa seara devem fortalecer, ao mesmo tempo, o comprometimento íntegro com a liberdade de escolha e o argumento em prol de um leve nudge. (Nudge, editora Objetiva, 2019, pág. 262).
A empresa chinesa Bytedance, dona do Tik Tok, armazena dados em servidores chineses. A empresa promove a coleta de dados pessoais, o que levanta suspeitas de manipulação social, com impacto na saúde mental dos jovens no Ocidente.
Yintao Yu foi chefe de engenharia do Tik Tok, e declarou em uma ação judicial na Califórnia que o Partido Comunista Chinês tinha um escritório no interior da sede da empresa em Pequim, com acesso a uma backdoor de todos os usuários do aplicativo no Ocidente, para promover os valores do partido. Ele se contrapôs ao depoimento do CEO da empresa, Shou Chew, ao Congresso americano dois meses antes.
Um exemplo recente dos perigos envolvidos no acesso das crianças às redes sociais é o desafio do apagão, que estimula os jovens a se sufocar até apagarem. Em 2008, 82 jovens morreram nos EUA praticando esse desafio, que havia sido esquecido desde então. No entanto, nos últimos anos o desafio voltou à tona no aplicativo Tik Tok, ocorrendo mortes de crianças tanto nos EUA, como em outros países, a exemplo da Argentina, conforme o levantamento do Centro Jurídico de Vítimas Virtuais, com sede nos EUA.
Na China, o aplicativo Tik Tok possui limitações ao uso por menores de 14 anos, com permissão de apenas 45 min/dia, sendo vetado no período das 22h até às 06h, tendo ainda rígido controle de conteúdo.
Em quase todo o mundo, a necessidade de proteção das crianças e a segurança nacional são assuntos consensuais no tema da regulação das mídias digitais. O mesmo não ocorre com o controle do discurso de ódio e o combate à desinformação. Nestes casos, há uma grande dissensão sobre os critérios objetivos a serem legalmente adotados, estando a mercê de um órgão que dite o que deve ser tido como verdade.
As notícias falsas são chamadas atualmente de “fauxts”, e podem ser melhor gerenciadas por meio de parcerias com checadores, a fim de sinalizar conteúdo amplamente compartilhado, ao invés de sua simples remoção. Cogita-se também na abertura de espaço para os próprios usuários contestarem os checadores, em um sistema similar ao blockchain.
Aliado a isso, podem ser implementados algoritmos de aprendizado de máquina para sinalizar conteúdo, que deve ser supervisionado por moderadores humanos. Essas medidas podem ser complementadas por campanhas de cidadania digital.
Essas medidas se revelam muito mais eficazes que a simples proibição e remoção de conteúdo, ou o estabelecimento de sanções como multa ou prisão. O exemplo das campanhas educativas no trânsito são um bom exemplo. Transpor essa experiência para o tráfego digital pode ser mais eficaz e menos custoso.
Afinal, a proteção da privacidade e a transparência na coleta e uso de dados era tudo que os criadores da internet tinham aversão. Ela se popularizou nos anos 1990 como uma brincadeira, assim como a miniaturização do transistor. Mas da mesma forma que o transistor revolucionou a microeletrônica, a internet revolucionou a comunicação, e passou a ser utilizada por pessoas e povos com padrões culturais diversos.
Modernamente, cresceram acusações de controle do ativismo político nas redes e a censura no livre mercado de ideias, por meio da filtragem algorítmica de primeiro estágio com viés, segmentando usuários e tipos de conteúdo. Com a popularização da internet das coisas (IoT), os governos e as empresas de mídia digital podem ter controle total sobre o indivíduo, desde um termostato inteligente até o que se assiste na TV.
A regulamentação deve encontrar o equilíbrio entre a autoridade do governo e a autonomia das plataformas, conciliando tanto a proteção quanto a liberdade dos usuários.
É preciso atentar para o fato de essas leis também afetarem a concorrência, inibindo a entrada de novas plataformas no mercado. Os custos da regulamentação podem levar à falência empresas em atividade e desencorajar novos participantes.
Segundo David Sumpter:
“Desinformação e fake news se tornaram um recurso proeminente em todas as eleições. Hunt e Matthew descobriram que, das pessoas estudadas, apenas 8% acreditaram nas histórias das fake news. Além do mais, as pessoas que acreditavam nessas histórias já tendiam a ter convicções políticas alinhadas à posição das notícias falsas. Não há evidência concreta de que a disseminação de fake news mude o curso de eleições nem que o aumento de bots impactou negativamente a forma pela qual as pessoas discutem política. A maior limitação dos algoritmos utilizados hoje pelo Google, Facebook e Twitter é que eles não entendem devidamente o significado da informação que estamos compartilhando uns com os outros. É exatamente nessa questão, de fazer os algoritmos entenderem sobre o que estamos falando, que todas essas empresas estão trabalhando. O objetivo delas é reduzir suas dependências de moderadores humanos.” (Dominados pelos Números, editora Bertrand Brasil, 2019, pág. 185).
Uma das razões básicas e intuitivas para o interesse nas redes é o constante fluxo de novidades que é apresentado: notícias do mundo, do país, da cidade, da família, curiosidades, fotos, vídeos, boatos - tudo que chega e que tem algum aspecto de ineditismo atrai, naturalmente, a atenção das pessoas. E em um ambiente como a internet, no qual múltiplos elementos competem por tempo e atenção, essa é uma vantagem competitiva significativa. O segundo grande motivo da popularidade desses instrumentos é bem menos óbvia, e está ligado a um aspecto do comportamento humano identificado e estudado pelo psicólogo norte-americano B. F. Skinner (1904-1990): o efeito do reforço, seja ele positivo ou negativo. Ações com consequências negativas para determinado indivíduo não são repetidas, ao passo que ações com consequências positivas tipicamente continuam a ser realizadas.
Mesmo com imposições legais de moderação de conteúdo, há um grande desafio de implementação prática vinculado à linguística. O Facebook, Google e Instagram estão sediadas nos EUA, sendo direcionadas ao público americano. Mas ganharam projeção mundial, tendo que lidar com uma miríade cultural. Em geral, a população de outros países democráticos discorda dos padrões legais americanos de uso das plataformas digitais, tanto no México quanto na Coreia do Sul, e até mesmo no Reino Unido. As pesquisas de opinião indicam que os sul-coreanos, por exemplo, possuem maior exigência de controle governamental em casos de conteúdo danoso em comparação com o público norte-americano. Essa diferença impacta nos diversos idiomas.
As plataformas foram projetadas para a língua inglesa, e seu uso em diferentes idiomas e culturas dificulta a identificação de conteúdo prejudicial conforme os padrões locais. Pode-se citar como exemplo o uso do indonésio, que tem base no idioma malaio e influências de diversos outros idiomas, como o português, sânscrito e persa. Além dos aspectos essencialmente linguísticos, o idioma também tem uma vinculação com a cultura nativa, o que dificulta a moderação.
Pensando nisso, foram estabelecidos em 2018 os “Princípios de Santa Clara”, a fim de que sejam levadas em conta a diversidade cultural e os diferentes níveis de moderação de conteúdo exigidos por cada povo. A adaptação à variedade de idiomas e padrões culturais são desafios na moderação de conteúdo que surgiram após a difusão das mídias digitais pelo mundo. E a utilização do metaverso ainda tem o potencial de acirrar o problema, além de trazer mais vulnerabilidade na privacidade dos dados dos usuários.
Atualmente, foram desenvolvidos aplicativos que possibilitam a conversação entre falantes nativos de idiomas distintos. O aplicativo “Speak & Translate”, por exemplo, utiliza algoritmos que traduzem até 54 idiomas em conversas ao vivo, comportando 10 idiomas para uso offline. Ele já vem com a funcionalidade de integrar o aplicativo Apple Watch ao icloud.
Paralelamente, os chats de IA são acusados de viés de algoritmo em suas respostas. Os chatbots de IA generativa baseadas em modelos de linguagem grande (LLM) são utilizados para pesquisa e confecção de ensaios. O ChatGPT plus, que roda o GPT-4 LLM, da OpenIA, e o Google bard retornam respostas diferentes para as mesmas perguntas. Alguns apontam que certas combinações de problemas e prompts retornam respostas ideologicamente enviesadas. Há ainda respostas aparentemente verdadeiras, mas que se revelam falsas sob um maior escrutínio.
Bases para regulação legal
Doutrinariamente, poucas obras abordaram diretamente o tema em discussão. A obra “Direito Digital”, de Patrícia Peck Garrido, editada desde 2002 pela editora Saraiva, atualmente na 7ª edição, de 2021, discorre brevemente sobre as mídias sociais e seus impactos (capítulo 8.51) e sobre as fake news (capítulo 11.1).
No entanto, essa carência pode ser suprida pelo uso da analogia com formas tradicionais de comunicação, a fim de aproveitar as contribuições doutrinárias e jurisprudenciais formadas após décadas de debates.
A esse respeito, Edward H. Levi sentenciou em obra clássica sobre o tema:
“As normas mudam à medida que são aplicadas. Mais importante do que isso, as normas jurídicas originam-se de um processo que as cria para, em seguida, as adequar, ao mesmo tempo que compara situações de fato. Mas este tipo de raciocínio está sujeito a críticas, pois considera iguais coisas que são um tanto diferentes. O raciocínio por comparação de casos, ou seja, por analogia, é uma solução para muitas questões na esfera do direito.” (Uma Introdução ao Raciocínio Jurídico, escrito por originalmente em 1949, editora Martins Fontes, 2005, pág 7).
Por seu turno, LLoyd L. Weinreb adverte em uma obra recente:
“Mesmo aqueles que aprovaram o uso do argumento analógico no direito, como Edward Levi, no seu estudo clássico, An Introduction to Legal Reasoning, consideram-no racionalmente imperfeito. Especialmente o direito - por estar em contato com toda a nossa vida, sendo decisivo na maioria das atividades humanas - tem necessidade de incertezas, inclusive quando aspira a elucidar o seu ponto de vista sobre o bem. A confiança na capacidade humana de refletir e deliberar sobre os fins humanos e sobre como alcançá-los não produz as verdades da razão abstrata ou da ciência empírica. Não oferece nenhum refúgio contra a dúvida e exige de nós a contínua reavaliação e reconsideração de nossas conclusões, bem como a perpétua atenção à possibilidade de erro. Justamente por tais razões, é essa confiança o caminho mais seguro e menos traiçoeiro para uma ordem social justa.” (A Razão Jurídica, editora Martins Fontes, 2008, pág. 135).
Percebe-se que o uso da analogia nem sempre é eficaz, devendo ser conformada à realidade das novas tecnologias. Existe uma ampla gama doutrinária e jurisprudencial sobre a liberdade de expressão na radiodifusão, na TV a cabo por satélite e na internet, consolidada após intensos debates nas últimas décadas. Sua adaptação para Chatbots de IA, redes sociais e metaverso deve levar em conta seus aspectos intrínsecos, para que o recurso à analogia seja cientificamente adequado.
No âmbito da imprensa escrita, ainda prepondera nos EUA o entendimento externado no caso New York Times v. Sullivan, julgado pela Suprema Corte em 1964, entendendo-se que figuras públicas devem provar que houve malícia real do veículo de imprensa em casos de difamação, o que não ocorre no caso de mero erro honesto. Esse entendimento ainda é adotado no exercício da liberdade de imprensa no âmbito das redes sociais.
A Suprema Corte dos EUA também analisou recentemente a liberdade de expressão no contexto de conteúdo ofensivo nos casos Brow v. Associação de Comerciantes de Entretenimento em 2011, Estados Unidos v. Stevens em 2010 e Snyder v. Phelps em 2011. Em todos os casos há uma forte inclinação pela liberdade de expressão.
Alexander Meiklejohn também advoga a vinculação entre a liberdade de expressão e a democracia, em uma relação visceral de dependência entre ambas. Por sua vez, Thomas Emerson entende que a liberdade de expressão é uma válvula de segurança para o desabafo da população, evitando atos violentos de revolução.
A despeito disso, a partir do 11/09, muitas leis passaram a controlar o discurso político em diversos países, como EUA, Reino Unido e Austrália. Em 2006 foi aprovada a Lei do Ódio Racial e Religioso do Reino Unido, proibindo a islamofobia. Também a Escócia aprovou a Lei de Crimes de Ódio. Essa vigilância é feita pela Ofcom, a autoridade reguladora e de concorrência nas comunicações do Reino Unido.
A partir daí iniciou-se um debate acerca dos limites da liberdade religiosa, principalmente para saber se ela incluiria críticas a outras religiões ou a condutas humanas específicas. Decorreram então diversas amarras ao discurso público, apesar de uma relativa liberdade no discurso privado.
No âmbito do discurso público, haveria um controle legal, impondo sanções diversas, como multas e prisão. Já no âmbito privado, haveria um controle social, com sanções não institucionalizadas, como o vexame.
O objetivo velado dessa interdição do debate público é impedir as pessoas de terem acesso a opiniões que as deixem desconfortáveis, bloqueando assuntos tidos como politicamente incorretos.
Esse patrulhamento alcança o ambiente estudantil, por meio do controle do discurso nos campi universitários, à semelhança do que ocorria no regime totalitário soviético, tão bem narrado por Hannah Arendt na obra As Origens do Totalitarismo (Parte III, Capítulo 4 - Ideologia e Terror: uma nova forma de governo).
Esse movimento pode atingir as sátiras atuais, representadas por memes políticos, que substituíram as tirinhas e as charges dos cartunistas, além das apresentações de stand up comedy.
Além da censura tradicional, há formas de censura velada na internet, como o disparo de exércitos de trolls e a inundação (censura reversa), com a disseminação de notícias falsas, pagamento por comentaristas falsos e a implantação de robôs com propaganda contrária.
Algumas organizações listaram discursos que foram censurados pelas empresas de tecnologia, mesmo tendo um conteúdo preciso e útil, tal como a lista feita pela Electronic Frontier Foundation - EFF.
Em 2023, o Twitter aboliu os algoritmos de filtragem de conteúdo, além de demitir 80% de seu quadro de pessoal vinculado à moderação. Em substituição, predominam atualmente propostas de auto-monitoramento na internet, realizadas pelos próprios usuários.
Histórico da liberdade de expressão
A liberdade de expressão no decurso da história acompanha o desenvolvimento das tecnologias de transmissão das ideias e do pensamento. Inicialmente, a fala era o principal veículo de comunicação, como na Roma e Grécia clássicas. O acesso ao discurso público estava essencialmente ligado à condição do falante, a exemplo de ser ou não escravo. Até o século XIV, os livros eram escassos, já que eram escritos à mão. A partir da invenção da imprensa, e a ampla difusão das ideias expostas nos livros, o debate sobre a liberdade de expressão ganhou profundidade.
No ano 364 d.C, tomou posse em Roma os imperadores Valentiniano I e seu irmão. Neste mesmo ano, ambos estavam na capital oriental do império, Constantinopla, para ajustar a divisão do império entre eles. No entanto, os dois adoeceram na cidade. A principal suspeita era de feitiçaria. Assim, aprovaram rapidamente uma lei proibindo rituais religiosos noturnos em todo o império. Nesta época, quem invocasse demônios com encantamentos seria punido com a pena de morte. Segundo o historiador grego Zósimo, um procônsul falou pessoalmente com o imperador alertando que a lei atingiria as práticas religiosas pagãs, tornando insuportável a vida dos helenos. Historiadores modernos dizem que a intervenção do procônsul não foi além de uma breve carta ao imperador, avisando dos efeitos não intencionais da lei. De fato, o imperador cedeu aos apelos, e permitiu uma certa dose de liberdade religiosa aos pagãos.
Oito séculos antes, em 431 a.C, o poeta grego Eurípedes escreveu a peça Medéia. Segundo Mário da Gama Kury (Medéia, editora Martin Claret, 2004, pág. 13):
“A peça evolui de uma Medéia abatida pelo repúdio do marido, esposa traída que definhava no leito e nem sequer levantava os olhos, aparentemente conformada com a sorte, para uma mulher animada por um terrível desejo de vingança e extermínio, que não se detinha sequer no infanticídio, como vindita extrema para aniquilamento total do marido perjuro. Esses sentimentos primitivos eram naturais em uma criatura também primitiva, vinda de uma região bárbara onde imperava a feitiçaria”.
Medéia era colquidiana. Percebe-se dos excertos acima que a prática de feitiçaria impactou a liberdade de expressão durante séculos.
De uma maneira geral, a liberdade de expressão em Roma foi permitida no período republicano. Não se tratava de um direito humano, na concepção moderna, mas uma prerrogativa política, que deveria ser conquistada. No entanto, a exemplo da configuração atual, a importância da liberdade de expressão não se destinava apenas ao emissor, alcançando todo o sistema político. Era permitida até mesmo no interior do exército romano, estendendo-se ao Foro e às associações privadas e artísticas. Nem mesmo no período imperial houve a completa abolição da liberdade de expressão, sendo ela tolerada em alguma medida.
Mary Beard adverte sobre os efeitos que a falta de liberdade de expressão podem ocasionar em uma sociedade explorada, como a romana:
“Tendo em vista o imenso fosso entre os que tinham e os que não tinham no mundo romano, por que não ocorriam mais conflitos? Uma resposta é que talvez grande parte dos conflitos não fossem registrados, mesmo que na maioria das vezes se tratasse de atos de guerrilha e não de revolta generalizada: ovos pobres atirados contra as cortinas das leteiras que passavam, mais do que ataques coordenados aos portões do palácio imperial. Os escritores romanos não tinham muitos olhos para os níveis moderados de agitação.” (SPQR - Uma História da Roma Antiga, editora Crítica, 2ª edição, 2020, pág. 461).
Na Grécia, a liberdade de expressão era mais desenvolvida. Na introdução do livro “Atenas: Cidade da Sabedoria”, (traduzido do inglês, editora Apolo, 2021), Bruce Clarck discorre:
“As estruturas de mármore cintilantes que coroam a acrópole são admiradas como a sobrevivência mais tangível de uma sociedade onde a humanidade, por assim dizer, ficou de pé. Na compreensão de hoje, a antiga Atenas obriga a respeito como um berço do humanismo. Uma comunidade em que as questões pesadas de guerra e paz, bem como a administração diária de rotina, foram abordadas através da interação de intelectos bem treinados que sabiam avaliar argumentos e tirar conclusões. Com a aprovação, os historiadores modernos observam o que parece ser uma sofisticação emergente e secular na compreensão dos atenienses de sua própria história coletiva: não como um jogo caprichoso atuado por poderes divinos, mas sim como uma interação de motivos humanos que podem ser complexos, mas podem em última análise, ser dissecado e descrito. Os admiradores contemporâneos também amam o fato de Atenas ter leis e instituições bem elaboradas cujo próprio objetivo era transcender as vicissitudes pessoais de indivíduos inteligentes e ambiciosos e os caprichos de divindades ciumentos e, em vez disso, servem ao amplo interesse público de uma maneira consistente.”
De seu turno, Anthony Everitt pondera:
“De fato, havia uma dissensão aguda na cidade, mas não entre os sexos. A briga era entre classes. Os aristocratas da cidade haviam tolerado a democracia, porém não gostavam dela, apesar de muitos terem sido eleitos generais e funcionários do governo. Ainda acreditavam em sua primazia hereditária, o que Píndaro chamava de ‘esplendor que corre no sangue’”. (A Ascensão de Atenas, editora Crítica, 2016, pág. 340).
A esse respeito, o testemunho de Tucídides é esclarecedor:
“Os quatrocentos mandaram também dez homens a Samos para tranquilizar as tropas estacionadas lá, e explicar que a oligarquia havia sido instaurada não para prejudicar a cidade ou os cidadãos, mas para a salvação geral; deveriam explicar igualmente que o poder estava nas mãos de cinco mil pessoas, e não de apenas quatrocentas, e que os atenienses, incorporados aos exércitos e em atividade além de suas fronteiras, jamais haviam podido reunir-se em assembleia com a presença de cinco mil cidadãos para deliberar sobre qualquer assunto, por mais importante que fosse. (História da Guerra do Peloponeso, editora Universidade de Brasília, 1987, pág. 517).
Mais à frente, ele relata:
“De qualquer modo, após a notícia da derrota, os atenienses, apesar de suas dificuldades, mandaram tripular doze naus e convocaram reuniões da assembleia. Nessa reunião foram depostos os Quatrocentos, foi decidida a entrega do governo aos Cinco Mil e resolveu-se que ninguém receberia salários pelo exercício de qualquer cargo público, sob pena de maldição para os transgressores. A assembleia voltou a realizar reuniões frequentes, nas quais foi aprovada a nomeação de supervisores das leis e foram votadas outras medidas de caráter político. Nos primeiros tempos desse período os atenienses parecem ter sido melhor governados do que em qualquer outra época, pelo menos no meu tempo; com efeito, houve um equilíbrio razoável entre a aristocracia e o povo, e isto foi um fato preponderante na recuperação da cidade. (História da Guerra do Peloponeso, editora Universidade de Brasília, 1987, pág. 535).
Como visto, até o século XIV os escribas não tinham censura, já que suas obras possuíam pouco alcance. Com o surgimento da imprensa, começaram a surgir as listas de livros proibidos, como o Index Librorum Prohibitorum, que vigoraram nos séculos XV e XVI.
Em paralelo, os governos europeus controlavam as impressoras, que necessitavam de uma licença oficial para imprimir livros e jornais.
A reação à censura iniciou no século XVI, com o surgimento de reivindicações por maior liberdade de expressão, como a realizada por Edward Coke em 1590. Antes dele, o teólogo holandês Dirck Coornhert, que viveu entre 1522 e 1590, defendeu arduamente a liberdade de expressão e de imprensa.
Na Inglaterra, a Declaração de Direitos de 1689 previu o privilégio parlamentar, com liberdade de expressão a seus membros. Mas só em 1766 adveio o primeiro regulamento da liberdade de imprensa, na Suécia. Seguiu-se o art. 11 da declaração francesa de 1789 e a primeira emenda à Constituição dos EUA de 1791.
Modernamente, a liberdade de expressão foi prevista no art. 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que utilizou a expressão “independentemente de fronteiras”, a fim de lhe conferir um caráter universal. O art. 19 do PIDCP de 1967 tornou cogente a liberdade de expressão, mas com uma redação distinta, que ressalta a responsabilidade pelos danos causados. Idêntico direito foi previsto nos tratados regionais, como o art. 16 da Convenção Europeia de Direitos Humanos, art. 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos e o art. 9º da Carta Africana de Direitos Humanos e dos Povos.
No meio desse processo histórico destacam-se os seguintes acontecimentos: as 95 teses de Lutero, em 1517, a Revolta Holandesa, em 1568, a Guerra Civil Inglesa, em 1642, e as revoluções inglesa, americana e francesa em 1688, 1776 e 1789, respectivamente.
A Guerra Civil Inglesa durou um total de sete anos, sendo dividida em dois conflitos. Na época, o poder do rei era absolutista, e contestá-lo era um sacrilégio punido com a pena de morte. Após as duas guerras, o governo foi repartido com o parlamento, que indicava o primeiro-ministro, tendo sido conferida maior liberdade de expressão a seus membros. O comandante da guerra civil do lado do parlamento, Oliver Cromwell, é atualmente visto tanto como um herói da liberdade por alguns, quanto um genocida de católicos por outros.
Por sua vez, a Revolução Holandesa durou oitenta anos, e teve reflexos na América. Com a União Ibérica e o enfraquecimento espanhol, as possessões portuguesas ficaram desprotegidas aos ataques holandeses, o que resultou na invasão do nordeste do Brasil em 1624.
Em 1689, John Locke escreveu:
“Uma tal liberdade em relação ao poder absoluto e arbitrário é tão necessária à preservação do homem e lhe é tão intimamente ligada, que não é dado ao homem dela se desfazer a não ser que perca juntamente a preservação e a própria vida.” (Segundo Tratado Sobre o Governo, editora Martin Claret, 2002, pág. 35).
Discorrendo sobre a Subordinação dos Poderes da Comunidade (capítulo XIII), Locke ponderou:
“Por isso, a comunidade sempre conserva o poder supremo de se salvaguardar contra os maus propósitos e atentados de quem quer que seja, até dos legisladores, quando se mostrarem levianos ou maldosos para tramar contra a liberdade e propriedades dos cidadãos. (Segundo Tratado Sobre o Governo, editora Martin Claret, 2002, pág. 109).
Já na visão moderna do historiador Martin Gilbert:
“Quando começou o ano de 1999, último ano do século, havia lugares onde o verniz da civilização se mostrava muito tênue. A expansão da internet na China deu esperança à primeira oposição do país por mais de meio século, o Partido Democrático da China. Mas, em 26 de fevereiro, as autoridades comunistas prenderam seu jovem fundador, Wang Yingzheng, de 19 anos, enquanto tirava uma fotocópia de um artigo que escrevera sobre a corrupção no Partido Comunista. Ele foi acusado de tentar subverter o poder do Estado. Em 10 de junho um ex-funcionário público, Fang Jue, que distribuiu um manifesto pró-democracia, foi sentenciado a quatro anos de prisão. No Irã, assim como na China, um regime repressivo se confrontou com o desafio da internet, da televisão por satélite e do aparelho de fax. No governo do presidente Khatami, a conciliação com o ocidente havia começado. Em entrevista com John Simpson, da BBC, Esmail Khoi, poeta iraniano que vivia exilado em Londres, apontou para o aparelho de fax que usava ao enviar seus poemas para o Irã e comentou: ‘É dessa forma que o Irã vai acabar mudando’”. (A História do Século XX, editora Crítica, 2016, pp. 710-714).
Na análise do tema à luz da antropologia jurídica, Norbert Rouland pondera:
“O pensamento tradicional chinês não conhece o conceito de minoria étnica. Pertencer ao gênero humano dos não-han é impossível, mas o critério de diferenciação, como na antiguidade greco-romana, é mais cultural do que étnico. Aliás, em 1949, os comunistas fundam não uma União das Repúblicas Soviéticas da China, mas um Estado unificado, sob a direção da nação han. O regime comunista sempre buscou assimilar as outras etnias.A partir de 1958 e do Grande Salto para frente, o poder decide acelerar o ritmo. Os hans vão conduzir o resto da população ao socialismo fazendo as minorias renunciar às suas tradições e religiões, que constituem um obstáculo ao progresso. Em 22 de agosto de 1958, o Diário do Povo troveja: Não há mais Deus no céu do que fadas na terra. São os povos em pé que são os deuses e as fadas. Temos a direção do Partido. Podemos sustentar os céus com uma única mão. Os cereais cultivados pelas mulheres não serão comidos por budas”. Os sucessores de Mao mostrarão menos pressa, e a Constituição de 1982 concede garantias às minorias. Mas o objetivo de assimilação permanece, como bem sabem os tibetanos. (Nos Confins do Direito, Norbert Rouland, editora Martins Fontes, 2008, pág. 309).
Discorrendo sobre a dificuldade de processar dados, armazená-los e descartá-los com o tempo, Vaclav Smil sentencia: “A biblioteca de senadores ricos na Roma imperial abrigava centenas de rolos, e um acervo grande continha pelo menos 100 megabytes. No ano 2000, todos os livros da biblioteca do Congresso americano continham mais de 10 terabytes. Em 2016, a taxa anual de criação de dados ultrapassou os 16 zettabytes, e, em 2025, espera-se que esse valor suba mais uma ordem de grandeza, na casa de yottabytes”. (Os Números Não Mentem, editora Intríseca, 2020, pág. 155). O autor lembra, contudo, que há uma grande diferença entre esse excesso de informação e o conhecimento que pode ser dele extraído.
Segundo Jane Burbank e Frederick Cooper:
“O crescimento da imprensa aliado à defesa dos direitos civis e a maiores índices de alfabetização permitiu que diversos ativistas conquistassem eleitores fora do âmbito do Estado ou das elites cosmopolitas. O antissemitismo que se desenvolveu em diferentes partes da Europa no século XIX não refletia a força do nacionalismo excludente, mas sim suas inseguranças. A imagem difundida no livro ‘Os Protocolos dos Sábios de Sião’, uma falsificação produzida na Rússia no início do século XX, era caracteristicamente imperial: judeus pretendiam governar o mundo”. (Impérios: Uma Nova Versão da História Universal, editora Crítica, 2019, pág. 469).
Mais à frente os autores arrematam:
“O mundo dos impérios não foi substituído por um mundo estável e de bom funcionamento de Estados-nações. Muitos conflitos sangrentos e desestabilizadores em Ruanda, no Iraque, em Israel, na Palestina, no Afeganistão, na ex-Iugoslávia, no Sri Lanka, no Congo, no Cáucaso e em outros lugares foram causados pela ausência de alternativas viáveis aos regimes imperiais. Os Estados criados nos territórios das antigas colônias não conseguiram alcançar muitos dos objetivos estipulados no momento de sua independência.” (Impérios: Uma Nova Versão da História Universal, editora Crítica, 2019, pág. 567).
Com base nos escritos de John Stuart Mill, e mais modernamente, de Joel Feinberg, operou-se uma distinção entre os princípios da ofensa e do dano, para fundamentar restrições à liberdade de expressão. Vários critérios foram elaborados para essa distinção, como a intensidade da ofensa e interesse geral da comunidade pela informação. Atualmente, essa distinção caiu em desuso, havendo um consenso de que a restrição deve ser a mínima possível para uma convivência harmoniosa.
Não obstante, há grandes diferenças de tratamento entre regiões distintas do globo, e mesmo dentro de uma mesma região. No tocante à blasfêmia, por exemplo, a Áustria proíbe críticas a Maomé, ao passo que essas críticas são livres na França. Leis que proíbem a negação do holocausto foram aprovadas em países como Portugal, Polônia e Rússia. Leis idênticas de outros países também proíbem a negação do genocídio armênio.
No histórico dessa distinção de tratamento, é emblemático o caso do romance “O Amante de Lady Chatterley”, de 1928. A obra foi proibida em quase todo o mundo, tanto nos EUA e Canadá, quanto no Reino Unido, Índia e Austrália. A impressão do livro só foi autorizada na década de 1960, após históricas decisões judiciais que a liberaram. No entanto, na França, que exibia uma tradição de liberdade literária, o livro circulava livremente desde seu lançamento. Até mesmo a obra “Ulysses”, de James Joyce, já circulava no país desde 1920.
Nos tempos atuais, a censura como um instituto regular existe em países de todas as regiões do mundo, desde Cuba, na América Latina, Arábia Saudita, na península arábica, e Vietnã, no sudeste asiático.
No entanto, a censura em casos pontuais tem despontado em vários países nos últimos anos, tanto na América do Sul, a exemplo de Venezuela, Colômbia, Argentina e Brasil, como na América do Norte, a exemplo do Canadá, além de países europeus antes vistos como baluartes da liberdade e democracia, a exemplo da Inglaterra e Alemanha.
Segundo Ian Bremer:
“Em geral, aqueles que dirigem um Estado autoritário têm mais medo de seu próprio povo do que de outros governos ou seus militares. A primeira preocupação desses Estados é com a ordem interna, e sua meta básica é reforçar o poder do Estado. As preocupações com as relações com outros Estados são importantes, mas secundárias. Além disso, esses governos têm mais condições de utilizar o protecionismo porque estão menos dispostos a enfrentar partidos políticos rivais, tribunais ou uma imprensa independente que possa impedi-los de fazer o que querem.” (O Fim do Livre Mercado, editora Saraiva, 2011, pág. 157).
China e EUA são casos especiais de análise, uma vez que se diferem bastante no tratamento do tema, estando ambos em lados opostos no espectro da liberdade de expressão.
A Suprema Corte Americana decidiu no caso Brandenburg v. Ohio, de 1969, que a liberdade de expressão da primeira emenda alberga a defesa do uso da força ou da violação da lei, desde que não incite uma ação ilegal iminente, descartando assim a doutrina do “perigo claro e presente” formada no julgamento do caso Whitney v. Califórnia. A corte também liberou o discurso de ódio no caso R.A.V v. City of St. Paul, julgado em 1992, com a condição de que não incite a violência iminente. Por fim, no julgamento do caso Reno v. ACLU, de 1997, a Suprema Corte anulou partes da Lei de Comunicação Decente, de 1996, que proibia a pornografia na internet.
Conforme constou no julgamento do caso Reno v. ACLU, o sucesso da internet se deve ao caos que ela é. Seus idealizadores tinham em mente justamente um ambiente livre de regras. Nos últimos anos, a internet passou por um profundo processo de mercantilização da informação, com dados monetizados. Em 2003, foi aprovada a Declaração de Princípios da Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação (CMSI), ressaltando a liberdade de expressão na rede.
História da liberdade de expressão no Brasil
Mapas medievais do século XIV, como um planisfério de 1324, contém a “Ilha Brasil”, localizada a oeste da Irlanda. O termo “Brasil” deriva da língua celta, com a raiz “bres”, que significa sortudo. No imaginário do povo celta, a “Ilha Brasil” seria um ilha da felicidade, que se distanciava no horizonte à medida que os navegadores se aproximavam dela, à semelhança de um arco-íris.
No entanto, havia uma confusão com o termo “brasileiro”, utilizado pelos portugueses para designar o comerciante de pau-brasil, tal como “baleeiro” designava o comerciante de óleo de baleia. A origem celta do termo Brasil ainda é a mais aceita entre os historiadores.
A liberdade de expressão no Brasil começou no movimento quinhentista. O jesuíta Manoel da Nóbrega foi o mais destacado bandeirante de Deus no Brasil, segundo o declarou o Papa João XXIII. Ele escreveu o livro “Caso de Consciência Para a Liberdade dos Índios” em 1567, além de muitas cartas. Ele defendeu a liberdade dos nativos numa época em que predominava a escravidão dos índios, apesar de ter diminuído o ímpeto pela causa com o passar dos anos.
No âmbito das grandes navegações, surgiu o mito da “Escola de Sagres”, que teria funcionado na região de Algarve, em Portugal, uma escola náutica que ensinava cartografia, geografia e astronomia. Sua existência é defendida principalmente por historiadores ingleses.
Na época do barroco, destacou-se o poeta Gregório de Matos. Ele foi perseguido por suas poesias satíricas e eróticas. Tinha como alvo as diversas classes sociais da Bahia, tanto populares quanto nobres. Em 1685, o promotor eclesiástico de Salvador o denunciou ao tribunal da inquisição por não tirar o barrete da cabeça ao passar por procissões. Também o denunciou pelo conteúdo de seus escritos. Essas denúncias, contudo, não tiveram seguimento. No entanto, por conta de sua poesia satírica ele foi expulso da Bahia para Portugal. Suas sátiras contra os governantes portugueses também lhe renderam nova expulsão daquele país. Ele foi degredado para Angola, na África. Por fim, foi aceito em Recife, onde faleceu de uma febre adquirida em terras africanas.
No âmbito da América do Sul, Marie Arana arremata:
“Em Washington, no dia de Ano-Novo de 1825, Henry Clay pôs-se de pé em uma jantar em homenagem a Lafayette com as presenças do presidente Monroe, de John Quincy Adams e do senador Andrew Jackson e propôs um brinde ao general Simón Bolívar, o George Washington da América do Sul. Era justamente o tipo de saudação pelo qual Bolívar esperava do mundo anglófono. As proezas os justificavam. Nem Alexandre, nem Aníbal, nem mesmo Júlio César haviam combatido ao longo de um território tão vasto e inóspito. As vitórias de Carlos Magno teriam de ter dobrado para igualar as dele. Em seu empenho para constituir um império, Napoleão percorrera menos terreno do que Bolívar em sua luta para conquistar a liberdade. A libertação da América do Sul geraria uma nova ordem mundial. Ao banir a Espanha das terras americanas, os revolucionários comprovaram a incompatibilidade fundamental entre a América e a Europa, traçando uma indelével divisória entre a visão de mundo conservadora da Europa e seu oposto radical: entre monarquias antigas e um viçoso ideal democrático.” (Bolívar: O libertador da América, editora Três Estrelas, 2015, pág. 347).
No Brasil, a liberdade de pensamento foi prevista desde a Constituição Imperial de 1824, perdurando até a Constituição de 1937, que implantou o Estado Novo. No entanto, durante o reinado de Dom Pedro I, a imprensa foi duramente atacada, ainda em fins da década de 1820. Já durante o reinado de Dom Pedro II, que perdurou por 60 anos, a liberdade de imprensa ganhou novo impulso. Segundo Joaquim Nabuco, um ex-monarquista, a liberdade de imprensa no Brasil neste período causava estranheza aos diplomatas europeus, acostumados a ver seus conterrâneos processados por alta traição em virtude de críticas bem menos ácidas aos seus governantes.
Mesmo antes da implantação do Estado Novo, no governo de Washigton Luís, em 1927, foi instituída a Lei Celerada, que permitia o fechamento de jornais por “delitos ideológicos”.
De seu turno, no início do século XX, Anita Malfatti, recém-chegada ao Brasil após seus estudos na Europa, tentou desconstruir o que se pensava por arte até o momento no país, trazendo movimentos modernos, como expressionismo, surrealismo, cubismo, dadaísmo e fauvismo, buscando suplantar os movimentos classicistas, como parnasianismo e simbolismo. A reação conservadora não tardou. Em 1917, Monteiro Lobato escreveu um artigo no jornal O Estado de São Paulo, na seção Artes e Artistas, com o título “A Propósito da Exposição de Malfatti”, também conhecido como “Paranóia ou Mistificação?”, onde ele divide os artistas em duas espécies: os que fazem “arte pura”, como Rembrandt, e os modernistas, que ele compara a estrelas cadentes, que brilham um instante, as mais das vezes com a luz do escândalo, e somem-se logo nas trevas do esquecimento. O artigo de Lobato causou grande repercussão, tendo resultado na Semana de Arte Moderna de 1922, como uma reação dos modernistas Mário de Andrade e Oswaldo de Andrade. Monteiro Lobato também foi expulso do movimento. Por conta das críticas, Anita Malfatti sofreu de depressão e tornou-se próxima a Tarsila do Amaral.
Durante o período da última ditadura militar, vigorou a chamada prosa política, a fim de driblar a censura, por meio de romances-reportagem e do realismo fantástico, albergando denúncias diretas e indiretas.
Doutrina sobre a liberdade de expressão
No âmbito da doutrina estrangeira, Erwin Chemerinsky discorreu sobre a regulação da liberdade de expressão, apontando a distinção entre leis baseadas em conteúdo e leis neutras em conteúdo (in Constitucional Law, Aspen Publishing, 7ª edição, 2023, Capítulo 11.2.1).
De seu turno, Dennis Baron é um especialista em Direito Linguístico. Dentre os objetos de estudo desse ramo do saber está a Linguística Forense, com análise da estrutura linguística de interrogatórios policiais e judiciais. No Livro “Você Nem Sempre Pode Dizer o Que Quer: O Paradoxo da Liberdade de Expressão” (na tradução do inglês, editora Cambridge University Press, 2023), o autor discorre sobre o paradoxo da liberdade de expressão, tendo em conta o fato de oradores poderosos estarem usando a lei para silenciar oradores menores que a eles se opõe. Neste livro o autor aborda o controle legal da linguagem. O autor também discorre sobre o controle social da linguagem em outras obras. Ele cita a declaração do juiz Wendell Holmes Jr. proferida em um julgamento da Suprema Corte em 1919, segundo o qual a primeira emenda não funcionaria para alguém que enganosamente gritasse fogo em um teatro lotado, com o único intuito de causar tumulto. No livro o autor também alude à Lei de Sedição de 1918, que criminaliza as críticas à participação dos EUA na Primeira Guerra Mundial, tendo havido condenações de ativistas com base nessa lei a penas de até 10 anos de prisão.
Por sua vez, o livro “Independentemente de Fronteiras: Liberdade de Expressão Global em um Mundo Conturbado” (traduzido do inglês, editora Columbia University Press, 2021) editado por Lee C. Bollinger e Agnès Callamard, inclui ensaios para uma doutrina internacional sobre a liberdade de expressão, bem como o impacto da globalização no exercício desse direito. No ensaio de Frederico Schauer, há uma extensão do tema, antes centrado exclusivamente na jurisdição americana, para o plano internacional. Segundo sua visão, um viés comparativo da liberdade de expressão em âmbito global deve situar a questão no contexto histórico de cada nação, como a experiência totalitária na Alemanha, o apartheid na África do Sul, e os contextos específicos de Singapura, Hong Kong e França, por exemplo.
Já no âmbito da doutrina pátria, destacam-se visões tradicionais, vinculadas ao exercício da liberdade de imprensa. Segundo o Ministro Ayres Brito, no julgamento da ADPF 130 em 2009:
“Não há liberdade de imprensa pela metade ou sob a tenazes da censura prévia, inclusive a procedente do Poder Judiciário, pena de se resvalar para o espaço inconstitucional da prestidigitação jurídica. Silenciando a Constituição quanto ao regime da internet, não há como se lhe recusar a qualificação de território virtual livremente veiculador de ideias e opiniões, debates, notícias e tudo o mais que signifique plenitude de comunicação.” (A Constituição e o Supremo, 4ª edição, 2011, pág. 1.945).
Discorrendo sobre a liberdade de expressão, Paulo Gustavo Gonet Branco sintetiza os principais pontos sobre a questão:
“A liberdade de expressão é um dos mais relevantes e preciosos direitos fundamentais, correspondendo a uma das mais antigas reivindicações dos homens de todos os tempos.A liberdade de expressão, enquanto direito fundamental, tem, sobretudo, um caráter de pretensão a que o Estado não exerça censura. Não é o Estado que deve estabelecer quais as opiniões que merecem ser tidas como válidas e aceitáveis; essa tarefa cabe, antes, ao público a que essas manifestações se dirigem. A lei que, pretextando um objetivo neutro do ponto de vista ideológico, oculte o propósito dissimulado e primordial de impedir a veiculação de ideias, não estará, obviamente, imune à declaração de inconstitucionalidade. A diferença entre uma discussão robusta e uma diatribe repelida pela Constituição está em que, no primeiro caso, há chance e oportunidade de se corrigirem os erros do discurso, expondo a sua falsidade e as suas falácias, evitando o mal por meio de um processo educativo. Nesses casos, o remédio seria mais liberdade de expressão, mais discurso. Se se cobra responsabilidade do jornalista, traduzida em diligência na apuração da verdade, tal requerimento não pode, decerto, ser levado a extremos, sob pena de se inviabilizar o trabalho noticioso. De toda sorte, a latitude de tolerância para com o erro factual varia conforme a cultura e a história de cada país. Não quer isso dizer que apenas notícias agradáveis sejam lícitas. A informação sobre o personagem de um evento pode-lhe ser ofensiva e não haverá ilicitude, desde que os termos empregados sejam condizentes com o intuito de informar assunto de interesse público. A charge política suscita, por vezes, questões interessantes, em que se há de ponderar a liberdade de expressão com a proteção da honra. Essa modalidade de jornalismo, em geral, não costuma agradar ao retratado. Tem sido, entretanto, admitida, em princípio, como lícita manifestação da liberdade de expressão. Ao intuito de crítica pelo riso, é ínsita a forma jocosa. A latitude de tolerância, aqui, depende, novamente, do sentimento geral da sociedade com relação à crítica, às vezes mordaz, que peculiariza a charge. Num ponto há acordo: não é viável a censura por parte de órgão da Administração Pública. A discussão está, antes, em saber se é dado ao juiz proibir uma matéria jornalística, num caso concreto de conflito entre direitos fundamentais – o de informar em atrito com o da imagem, por exemplo.” (Curso de Direito Constitucional, Saraivajur, 16ª edição, 2021).
De sua parte, Uadi Lammêgo Bulos esclarece:
“A liberdade de expressão, quando exercida nos parâmetros constitucionais, representa uma salvaguarda para o regime democrático. É o caso do direito de crítica jornalística, que está imune a todo tipo de restrição, inclusive por parte dos Poderes Públicos. O Judiciário, por exemplo, não pode impor, segundo convicções próprias do magistrado, cerceamentos a comentários jornalísticos de natureza política, sociológica, filosófica, ideológica ou confessional, nem estabelecer padrões de conduta cuja observância implique restrição aos meios de divulgação do pensamento.” (Curso de Direito Constitucional, 12ª Edição, Saraivajur, 2019, pág. 591).
No magistério de José Afonso da Silva:
“A divisão de poderes fundamenta-se, pois, em dois elementos: especialização funcional, significando que cada órgão é especializado no exercício de uma função; e independência orgânica, significando que, além da especialização funcional, é necessário que cada órgão seja efetivamente independente dos outros. O princípio da separação de poderes já se encontra sugerido em Aristóteles, John Locke e Rousseau, que também conceberam uma doutrina da separação de poderes, que, afinal, em termos diversos, veio a ser definida e divulgada por Montesquieu. Hoje, o princípio não configura mais aquela rigidez de outrora. A ampliação das atividades do Estado contemporâneo impôs nova visão da teoria da separação de poderes e novas formas de relacionamento entre os órgãos legislativo e executivo e destes com o judiciário, tanto que atualmente se prefere falar em colaboração de poderes. (Curso de Direito Constitucional Positivo, editora Malheiros, 30º edição, 2008, pág. 109).
O mesmo autor pondera mais à frente na mesma obra:
“A constituição opta, pois, pela sociedade pluralista que respeita a pessoa humana e sua liberdade, em lugar de uma sociedade monista que mutila os seres e engendra as ortodoxias opressivas. O pluralismo é uma realidade, pois a sociedade se compõe de uma pluralidade de categorias sociais, de classes, grupos sociais, econômicos, culturais e ideológicos. Optar por uma sociedade pluralista significa acolher uma sociedade conflitiva, de interesses contraditórios e antinômicos. O caráter pluralista da sociedade se traduz, no constitucionalismo ocidental, como nota André Hauriou, pelo pluralismo das opiniões entre os cidadãos, a liberdade de reunião onde as opiniões não ortodoxas podem ser publicamente sustentadas (somente a passagem às ações contrárias à ordem pública são vedadas); a liberdade de associação e o pluralismo dos partidos políticos, o pluralismo das candidaturas e o pluralismo dos grupos parlamentares com assento nos bancos das Assembleias. É imprescindível, contudo, notar que uma sociedade pluralista conduz à poliarquia, conforme ressalta Burdeau com as seguintes palavras: Politicamente a realidade do pluralismo de fato conduz à poliarquia, ou seja, a um regime onde a dispersão do Poder numa multiplicidade de grupos é tal que o sistema político não pode funcionar senão por uma negociação constante entre os líderes desses grupos.” (Curso de Direito Constitucional Positivo, editora Malheiros, 30º edição, 2008, pág. 143).
Por fim, discorrendo sobre a liberdade de pensamento e opinião, em confronto com a liberdade de expressão, o autor arremata:
“Nesses termos, ela se caracteriza como a exteriorização do pensamento no seu sentido mais abrangente. É que, no seu sentido interno, como pura consciência, como pura crença, mera opinião, a liberdade de pensamento é plenamente reconhecida, mas não cria problema maior. Pimenta Bueno já dizia que a liberdade de pensamento em si mesmo, enquanto o homem não manifesta exteriormente, enquanto o não comunica, está fora de todo poder social, até então é do domínio somente do próprio homem, de sua inteligência e de Deus. O homem porém não vive concentrado só em seu espírito, não vive isolado, por isso mesmo que por sua natureza é um ente social. Ele a viva tendência e necessidade de expressar e trocar suas ideias e opiniões com os outros homens, de cultivar mútuas relações, seria mesmo impossível vedar, porque fora para isso necessário dissolver e proibir a sociedade. A liberdade de opinião trata-se da liberdade de o indivíduo adotar a atitude intelectual de sua escolha: quer um pensamento íntimo, que seja a tomada de posição pública; liberdade de pensar e dizer o que se crê verdadeiro.” (Curso de Direito Constitucional Positivo, editora Malheiros, 30º edição, 2008, pág. 241).
James Marshall escreveu o clássico livro “Espadas e Símbolos”. Na orelha do livro da edição brasileira consta que a obra passa pelas ditaduras comunista e nazista, quando a igreja católica e os pastores evagélicos se insurgiram contra as pretensões dos ditadores, narrando a matança de milhões de rebanhos na Rússia, que foi a resposta inequívoca dos camponeses à coletivização, bem como o governo de Mao Tse Tung, que foi obrigado a diminuir o ritmo de seu grande salto para frente, também diante da resistência camponesa.
Nas palavras de Marshall:
“As armas políticas são de três espécies e cada uma delas tem usos positivos e negativos. Existe, primeiramente, a força física, a mais primitiva e básica de todas as armas. Depois, há o poder econômico. Em terceiro lugar, existe a propaganda ou uso do poder psicológico. Em algumas fases, esta terceira arma repousa na aplicação potencial da força física ou do poder econômico.” (Espadas e Símbolos, editora Revista dos Tribunais, 2008, pág. 23).
O autor prossegue:
“No campo da ação política, não existe nada de sacrossanto sobre o direito, exceto o que a propaganda faz dele. É antes uma série de pronunciamentos, como a mão no cassetete ou acompanhado pelo ruído das chaves de prisão, pois o direito do soberano é o direito positivo.” (Espadas e Símbolos, editora Revista dos Tribunais, 2008, pág. 48).
Mais à frente na mesma obra ele pontua:
“De qualquer maneira, a liberdade, como foi desenvolvida pelos livre-arbitristas do século XVIII, envolvia o reconhecimento, pelo soberano, de poderes específicos, que armavam a oposição (que deu armas políticas, usadas às revoluções dos comerciantes, artesãos, e pequenos proprietários de terra na Inglaterra, França e América), tais como a liberdade de falar e a de imprensa, o direito de reunião e de petição e outros direitos chamados “direitos civis”. O argumento para tais liberdades é admiravelmente fornecido por James Madison, um dos grandes estadistas revolucionários, em O Federalista: A liberdade está para a facção assim como o ar está para o fogo, alimento sem o qual, este, instantaneamente, expira. Mas não seria loucura menor abolir a liberdade, essencial à vida política, que alimenta a facção, do que seria desejar o aniquilamento do ar, que é essencial à vida animal, porque fornece ao fogo sua capacidade destruidora”. Mas esta liberdade, que era o ar que fazia a classe média e as primeiras fases do industrialismo prosperarem, não conduz ao poder soberano concentrado; assim, ditadores de cada classe e casta preferem abolir o ‘ar’, em troca de aço e armas.” (Espadas e Símbolos, editora Revista dos Tribunais, 2008, pág. 78).
Por fim, o autor arremata:
“É através desse processo de interpretação, de dar sentidos novos a velhas frases, que os conceitos morais são prontamente introduzidos na ideologia do grupo soberano e na tessitura do seu direito. Quando o processo judicial não consegue satisfazer às necessidades de um interesse, suficientemente articulado para ser respeitado, recorre-se à ação mais drástica da legislação para declarar a norma, que o soberano fará cumprir. Não é qualquer conceito a priori do bem ou mal que precipita a inovação legal. A norma moral torna-se norma legal, nas palavras de Duguit, quando a reação social produzida pela violação da norma se torna bastante enérgica e definida para receber, do costume ou da lei escrita, uma concretização mais ou menos completa. A mudança no direito é a resultante de conflito político ou, para citar Berolzheimer, é o resultado de uma luta e a vitória de uma parte da comunidade sobre a outra.” (Espadas e Símbolos, editora Revista dos Tribunais, 2008, pág. 114).
Na arguta visão de H. L. A. Hart:
“Encontram-se exemplos claros de limitações substantivas em constituições federais como as dos Estados Unidos ou da Austrália, onde a divisão de poderes entre o governo central e os estados-membros, e também certos direitos individuais, não podem ser alterados pelos processos legislativos habituais. Nesses casos, a edição de uma lei, tanto do poder legislativo federal quando do local, que vise alterar ou seja incompatível com a divisão federal de poderes ou com os direitos individuais protegidos dessa forma, está sujeita a ser tratada como ultra vires e ser declarada juridicamente nula pelos tribunais na mesma medida em que for contrária às disposições constitucionais.” (O Conceito de Direito, editora Martins Fontes, 2018, pág. 94).
Na mesma obra, mas no pós-escrito mais recente, ele pondera:
“É importante observar que o poder de criar o direito que atribuo aos juízes, para habilitá-los a regulamentar os casos que o direito deixa parcialmente não regulamentados, é diferente daquele de um poder legislativo: não só os poderes do juiz estão sujeitos a muitas limitações que restringem sua escolha, limitações das quais o poder legislativo pode ser totalmente isento, mas também, com são exercidos apenas para decidir casos específicos, o juiz não pode utilizá-los para introduzir reformas amplas ou novos códigos legais. Assim, seus poderes são intersticiais, além de sujeitos a muitas restrições substantivas.” (O Conceito de Direito, editora Martins Fontes, 2018, pág. 352).
O debate sobre a regulação das mídias digitais não pode estar apartado das consequências para a livre concorrência na difusão de ideias e pensamentos. Afinal, a liberdade de expressão como um direito abstrato possui pouca valia, se não forem dados os meios para o seu exercício. Daí decorre que a liberdade de expressão é dependente da livre iniciativa e da livre concorrência no setor de comunicação. A livre iniciativa também pode ser duramente atingida por uma regulação intensa. A esse respeito, a Constituição Federal, no art. 220, § 5º, proíbe que os meios de comunicação social sejam controlados, direta ou indiretamente, por monopólio ou por oligopólio.
Em reforço, segundo destaca Márcio Iorio Aranha:
“Ao constitucionalizar o rol de princípios de caráter social do art. 221, o constituinte de 1988 reconheceu que a clássica afirmação do mercado de ideias é igualmente vítima do mau uso do bem público por empresas monopolísticas e oligopolísticas. (Comentários à Constituição do Brasil, Saraiva, 2014, pág. 2.051).
O livro “Ensaios em Law & Economics”, organizado por Luiz Nelson Porto Araújo e Rodrigo V. Dufloth, conta com texto de Luciana Yeung sobre o consequencialismo. Nas conclusões de seu ensaio, ela arremata:
“Concluímos por reafirmar que as decisões judiciais e as normas jurídicas importam e geram fortes consequências e externalidades. Isso quer dizer que elas geram impactos incomensuráveis, e muitas vezes, não previstas: aqueles que a lei e o magistrado intencionou proteger acaba por ser o mais prejudicado, sem contar com os efeitos lesivos para toda a sociedade. Não basta que as normas jurídicas e as decisões judiciais sejam baseadas em princípios nobres; é mister que seus efeitos de longo prazo e amplitude geral sejam efetivamente positivos em sua integralidade. A pergunta que se coloca é: afinal o que se deseja de fato para o Brasil? Optar por olhar somente para a beleza das normas jurídicas? Ou avaliar os impactos reais para nossos trabalhadores, nossos cidadãos e nossa sociedade como um todo em busca de melhores resultados sociais para todos?” (Ensaios em Law & Economics, editora LiberArs, 2019, pág. 190).
Uma legislação que regule a intervenção do estado nas mídias digitais deve obedecer a todos os parâmetros modernos elencados pela doutrina. Acerca da moderna concepção de intervenção do estado por meio do poder de polícia, José Vicente Santos de Mendonça discorre:
“O ‘princípio’ do pragmatismo jurídico opera ao impor à autoridade administrativa a obrigação da adoção de medidas de polícia fundadas na realização de propósitos de interesse público justificáveis à luz de todos os seus standards de incidência, isto é, à luz (1) de sua inclusão nos sentidos textuais possíveis da Constituição, (2) de sua compatibilidade material com a Constituição, (3) de tais propósitos serem os mais eficientes (entre opções semelhantes) para a obtenção de maior bem-estar social geral, (4) de a produção de tais consequências mais eficientes ser certa ou, no mínimo, bastante provável (do contrário não se justificaria a restrição aos direitos fundamentais), (5) de tais consequências positivas justificadoras da polícia ocorrerem simultaneamente a seu exercício ou, no máximo, num futuro próximo, (6) do fato de as alegadas razões de interesse público para o exercício da polícia estarem baseadas em razoável base empírica, (7) de tais razões de interesse público não se basearem em alegações fundacionais (dogmas, pressuposições acríticas, ‘verdades’), (8) de as justificativas para o exercício da polícia serem contextuais às circunstâncias de seu exercício.” (Direito Constitucional Econômico, editora Fórum, 2ª edição, 2018).
No seu repertório jurisprudencial, o Supremo Tribunal Federal possui julgados que servem de guia para trilhar o tortuoso caminho da ponderação de interesses. Como exemplo, a Corte realizou um balanceamento entre a proteção dos infantes e a liberdade de comunicação e de expressão, decidindo que a classificação dos programas seja indicativa, com o controle realizado pelos próprios pais, e não pelo Estado de forma coercitiva.
Os aportes acima sustentam que a sociedade não pode abrir mão de um direito conquistado a duras penas no decorrer de muitas lutas históricas. A esse respeito, Rudolf Von Ilhering expunha sua inquietação nestes termos:
“Foi com essa concepção sobre a origem do direito que saí da universidade, e por muitos anos fiquei sujeito às suas influências. Não podemos deixar de reconhecer que, tal qual a língua, também o direito realiza uma evolução involuntária e inconsciente, ou, para usar uma expressão tradicional, uma evolução orgânica, que se processa de dentro para fora. No entanto, o poder desses dois fatores, ou seja, dos atos jurídicos e da ciência, é limitado. Sempre que o direito existente esteja defendido pelo direito novo terá de travar uma luta para impor-se, uma luta que muitas vezes dura séculos e cuja intensidade se torna maior quando os interesses constituídos se tenham corporificado em forma de direitos adquiridos. Sempre que isso acontece, cada uma das partes que se defrontam ostenta em seus estandartes a divisa da majestade do direito. Uma invoca o direito histórico, o direito do passado, e a outra, o direito sempre em formação e constantemente rejuvenescido, o direito inato da humanidade à contínua renovação. Encontramo-nos diante de um conflito intrínseco, contido na própria ideia do direito. E esse conflito assume proporções trágicas para aqueles que, depois de ter empenhado todas as suas forças e todo o seu ser em prol de uma convicção, veem-se condenados pelo julgamento supremo da história. Todas as grandes conquistas da história do direito, como a abolição da escravatura e da servidão, a livre aquisição da propriedade territorial, a liberdade de profissão e de consciência, só puderam ser alcançadas através de séculos de lutas intensas e ininterruptas. O caminho percorrido pelo direito em busca de tais conquistas muitas vezes está assinalado por torrentes de sangue, sempre pelos direitos subjetivos pisoteados. (A Luta pelo Direito, editora Martin Claret, 2002, pág. 31).
Da mesma forma, Humberto Ávila faz uma observação cirúrgica:
“É indispensável, nesse tocante, que o Direito seja igual para todos. Mas não basta que seja substancialmente igual para todos se aquilo que prevê em abstrato não é aplicado de maneira uniforme a todos que se encontrem na mesma situação concreta. Desse modo, além de igual em seu conteúdo, deve o Direito ser também igual em sua aplicação. Por isso é que a Constituição preconiza igualdade tanto na lei quanto perante a lei. É também por isso que ela determina seja sua aplicação executada com isenção, imparcialidade e objetividade pelo intérprete. É por isso, ainda, que ela cuida não apenas de garantir a todos o devido processo legal, mas de estabelecer garantias individuais e estruturas institucionais a fim de que os julgadores possam exercer suas funções sem procurar nem poder atingir seus interesses pessoais, nem preservar os interesses de uma das partes ou da instituição de que são integrantes.” (Constituição, Liberdade e Interpretação, editora Malheiros, 2019, pág. 16).
Na visão de Pietro Perlingieri, que discorreu sobre o direito à correta informação:
“É preciso prever técnicas, regulamentos e controle para que a informação de per si útil, seja respeitosa da dignidade da pessoa e realmente pluralista. E seria de auspício que isso se realizasse também no âmbito de cada cabeçalho para que, sem perder a sua fisionomia, garantam no seu interno a confrontação com os outros e, em particular, com aqueles dos quais tenham diretamente ou indiretamente falado. Somente desse modo o poder de informação, não funcionalizado a razões de Estado ou de grupos de pressão, pode encontrar a sua profunda justificação histórica, favorecendo a exigência primária da promoção humana.” (Perfis do Direito Civil: Introdução ao Direito Civil Constitucional, editora Renovar, 2002, pág. 192).
De seu turno, Vicente Ráo discorreu sobre a diferença entre os sistemas jurídicos ocidentais e os sistemas totalitários, como o soviético. Na sua visão:
“De fato, os três sistemas, romano, germânico e anglo-americano, partem do pressuposto do respeito à personalidade humana e sua consequente liberdade, dentro dos limites impostos pela comunhão social; nesses sistemas, nem a sociedade, nem o Estado, isolados do homem, constituem o fim supremo do direito. O Estado intervém, pois, nas relações jurídicas particulares, mas não o deve fazer substituindo-se aos indivíduos, ou escravizando-os ao seu poderio. Nisso se distinguem os sistemas jurídicos positivos de cunho ocidental, do direito soviético, bem como de todos os sistemas totalitários, que, desconhecendo os direitos inerentes à personalidade humana, erigem o Estado em fim supremo do direito e do próprio homem.” (O Direito e a Vida dos Direitos, Vol. 1, editora RT, 3º edição, 1991, pág. 151).
Já Eduardo Felipe Matias compara:
“Em outro caso conhecido, o empresário australiano Rupert Murdoch, dono da News Corp., teve de se curvar à vontade do governo chinês, que só admitiu que sua televisão por satélite entrasse naquele país quando ele assegurasse que essa não transmitiria as imagens da rede britânica BBC. Johnson e Post fazem uma observação interessante a respeito desse fenômeno: Por ser tão difícil controlar o fluxo de elétrons através das fronteiras físicas, uma jurisdição local que procura impedir seus cidadãos de ter acesso a um material específico deve ou proibir todo o acesso a rede ou procurar impor sua vontade na rede como um todo. Este seria o equivalente moderno a um senhor feudal nos tempos medievais tentando evitar que o comércio de seda atravessasse as suas fronteiras. Ou seja, o controle do fluxo de informações na rede é praticamente impossível. E, se fosse possível, seria em muitos casos indesejável.” (A Humanidade e Suas Fronteiras, editora Paz e Terra, 2014. pág. 166).
A regulação das redes pode atingir não só direitos fundamentais dos usuários, mas também dos próprios empreendedores. Nesse sentir, as plataformas também possuem a liberdade de se expressar sobre temas que lhe digam respeito no discurso público.
A esse respeito, Ingo Wolfgang Sarlet, citando André Ramos Tavares, leciona:
“Convém não esquecer, nesta perspectiva, que a extensão da titularidade de direitos fundamentais às pessoas jurídicas tem por finalidade maior a de proteger os direitos das pessoas físicas, além do que em muitos casos é mediante a tutela da pessoa jurídica que se alcança uma melhor proteção dos indivíduos. Ainda no que diz com a fundamentação jurídico-constitucional do reconhecimento, por parte das pessoas jurídicas, da titularidade de direitos fundamentais, vale agregar, aos argumentos colacionados, a lição de Benito Aláez Corral, no sentido de que, em larga medida, os próprios grupos sociais (os entes coletivos) são o resultado do exercício, por parte do indivíduo, de determinados direitos fundamentais, como é o caso dos direitos de reunião e associação, cujo objeto somente pode ser assegurado de forma adequada se aos entes coletivos correspondentes for atribuída a titularidade de direitos fundamentais. (A Eficácia dos Direitos Fundamentais, editora Livraria do Advogado, 2009, pág. 223).
Mais à frente na mesma obra, o autor pondera:
“O reconhecimento de deveres fundamentais diz com a participação ativa dos cidadãos na vida pública e implica, na acepção de José Carlos Vieira de Andrade, um empenho solidário de todos na transformação das estruturas sociais.” (A Eficácia dos Direitos Fundamentais, editora Livraria do Advogado, 2009, pág. 227).
A liberdade de expressão é classificada tradicionalmente como um direito civil, de cunho individual. No entanto, cresce na doutrina uma visão ampla desse direito, dada a necessidade moderna de suprir a sociedade com informações e opiniões diversas, transmudando-o em um direito difuso. Nesse sentido, Emerson Penha Malheiro e Guilherme Ferreira Rosseto publicaram o artigo “A liberdade de expressão como direito difuso” (RT, 2018). De seu turno, Fabrício Bastos aponta os vínculos subjetivos nos direitos difusos. Na sua visão, não se deve confundir uma mera circunstância de fato com a existência de um fato comum, pois naquela não existe uma coesão entre os membros da coletividade, já que não decorre de um vínculo precedente. (Curso de Processo Coletivo, 3ª edição, 2022, editora foco, pág. 71). Conclui-se que a definição atual de direito difuso comporta perfeitamente a liberdade de expressão na sociedade da informação.
Por fim, o jurista e professor da Universidade de Hamburgo Jan-Christoph Bublitz publicou um artigo em 2014 sobre a liberdade de pensamento na era da neurociência. O autor propõe quatro princípios para a interpretação da liberdade de pensamento e seus direitos irmãos, a liberdade religiosa e a liberdade de consciência. Segundo ele, a liberdade de pensamento é um direito que caiu no esquecimento, por tradicionalmente não haver meios de violá-la. No entanto, nos últimos anos, as intervenções da neurociência resgataram a relevância prática desse direito.
Sete anos depois da publicação do artigo, o autor retomou o assunto na obra “O Direito e a Ética da Liberdade de Pensamento - V. 1”, (na tradução do inglês, editora Palgrave Macmillan, 2021), publicada em coautoria com Marc Jonathan, onde discorrem sobre a liberdade de pensamento de forma aprofundada, destacando desde aspectos históricos (Sócrates) até os desenvolvimento tecnológicos mais recentes, como os chips neurais da Neuralink.
No livro os autores citam o juiz da Suprema Corte Americana Frank Murphy, o qual declarou que mesmo o governo mais tirânico é impotente para controlar o funcionamento interno da mente. Este entendimento está de acordo com o antigo adágio romano cogitationis poenam nemo patitur (nenhuma punição para o pensamento), que igualmente alicerça o direito penal moderno. Assim, a liberdade de pensamento, prevista no art. 18 da DUDH, prescindiria de proteção, ao passo que a liberdade de expressão, prevista no art. 19 da mesma declaração, necessitaria de uma forte estrutura protetiva.
Contudo, segundo os autores, essa realidade estaria se modificando, dado que os governos e corporações teriam meios de controlar os pensamentos em certa medida, por meio de avanços em drogas psicotrópicas e exames de ressonância magnética funcional (fMRI), tal como praticado extensivamente em estabelecimentos de custódia e detenção.
Em meio a essa nova realidade, os autores sustentam a necessidade de se criar um novo direito, chamado por eles de “liberdade cognitiva”, com um conteúdo mais abrangente que as tradicionais liberdades de pensamento, crença, consciência e expressão.
O tema desperta interesse por conta da atual prática de governos autoritários, como o da Coreia do Norte. Pesquisas indicam que praticamente toda a população do país acredita que o governo norte-coreano realmente descobriu a cura da AIDS. Muitos cidadãos norte-coreanos acham que o governo é capaz de decodificar de alguma forma seus pensamentos. Toda a mídia do país é estritamente controlada pelas autoridades, que obrigam a população a seguir a filosofia “junche”, surgida na resistência à colonização japonesa, que mescla elementos do marxismo e do confucionismo. Essa filosofia prega a autossuficiência do país, impondo sua separação e isolamento do resto do mundo.
O último relatório do HRW de 2022 acerca da situação das liberdades civis da população da Coreia do Norte mostrou os atos bárbaros praticados durante a pandemia. Segundo o relatório, o governo usou o pretexto de proteger a população contra a propagação da Covid-19 para impor um controle massivo sobre o pensamento, a locomoção e até a distribuição de alimentos no país, com práticas frequentes de execuções em massa e o envio de opositores políticos para campos de detenção secretos, chamados de “Kwanlliso”, o pior dos três tipos que existem no país.
Liberdade de expressão no contexto filosófico
A filosofia da linguagem está ligada à filosofia analítica. Neste campo, existem teorias tradicionais, como a Teoria dos Usos e dos Atos de Fala, e teorias atuais, como as teorias de Significado Condicional à Verdade. Segundo os estudos de Frege, conhecemos o significado de uma palavra quando conhecemos o papel que ela desempenha em uma frase, e sabemos o significado de uma frase quando conhecemos as condições sob as quais ela seria verdadeira. Já os conexionistas veem uma interação dinâmica entre conjuntos de nódulos interconectados. Modernamente, o assunto é estudado por cientistas cognitivos.
As pesquisas atuais focam na sensibilidade ao contexto de expressões e sentenças, bem como no minimalismo semântico, que envolve o estudo dos pronomes. O tema é objeto de disputa entre contextualistas e minimalistas.
De outro lado, a prosódia de idiomas é estudada pela fonética e fonologia, para classificar aspectos sonoros, relacionados à forma de pronúncia e à entoação das palavras no discurso. A prosódia confere emoção à fala, distinguindo a comunicação escrita e falada, como o acento de insistência e a entoação expressiva. Fred Cummins, Félix Gers e Jürgen Schmidhuber publicaram um estudo em 1999 comparando a prosódia de dez idiomas, identificando similaridades que destacam o mandarim e o japonês dos demais idiomas, incluindo o coreano, bem como aspectos distintivos do francês, que se difere dos demais, como o vietnamita, o inglês e o espanhol.
Na lição de Plínio A. Barbosa:
“Os exemplos apresentados na seção precedente evidenciam contrastes de estruturas sintáticas que têm direta implicação semântica, como no caso das duas interpretações possíveis da sentença ‘A ovelha de raça brasileira’. Essa ambiguidade se dá apenas na escrita, pois, quando a frase é enunciada conforme o contexto, não há margem de dúvida quanto a sua interpretação, como visto acima: a prosódia guia a interpretação correta da frase”. (Prosódia, editora Parábola, 2019, pág. 84).
Mais à frente o autor discorre:
“Lesões nas áreas encefálicas responsáveis pelo processamento prosódico geral déficits tanto na produção quanto na percepção dos componentes melódicos e rítmicos da fala. O termo disprosódia refere-se às consequências, para a prosódia, de problemas no controle e na execução dos sistemas responsáveis pela produção da fala: respiratório, laríngeo e supralaríngeo, além da percepção da prosódia. Há autores que mencionam também problemas com a prosódia afetiva”. (Prosódia, editora Parábola, 2019, pág. 93).
Na visão de Ulrich Beck, escrevendo em 1986:
“A seguir, o seguinte raciocínio será de saída crucial: se antigamente importavam os perigos definidos externamente (deuses, natureza), o caráter historicamente inédito dos riscos funda-se atualmente em sua simultânea construção científica e social, e isto num sentido triplo: a ciência se converte em causa (entre outras causas concorrentes), expediente definidor e fonte de soluções em relação aos riscos e, precisamente, desse modo, conquista novos mercados de cientificização. No revezamento entre riscos coproduzidos e codefinidos e sua crítica pública e social, o desenvolvimento científico-tecnológico se torna contraditório. (Sociedade de Risco, editora 34, 2010, pág. 235).
Em entrevista realizada em 2010, o sociólogo comenta sobre o uso que fez do termo brasilianização do ocidente em suas obras mais recentes:
“Invertendo o julgamento de Marx, poderíamos dizer (com Shalini Randeria) que muitas partes do mundo em desenvolvimento hoje em dia são capazes de mostrar à Europa a imagem do seu próprio futuro. Isso é verdade se levarmos em conta aspectos como o desenvolvimento de sociedades multirreligiosas, multiétnicas e multiculturais; os modelos interculturais e a tolerância à diferença cultural; o pluralismo jurídico; e a multiplicação de soberanias. (Sociedade de Risco, editora 34, 2010, pág. 372)
Os dezenove fragmentos do livro "Da Natureza", de Parmênides, ordenados por H. Diels, cobrem as três partes em que o poema se divide: proêmio, que descreve a viagem do jovem ao encontro da deusa, de quem lhe vêm os ensinamentos, e fixa as palavras de acolhimento que esta lhe dirige; a “Via da Verdade”, que desenrola a argumentação da deusa em torno do ser; a “via da opinião”, que estabelece as condições de transmissão das opiniões dos mortais.
No início de sua obra, Parmênides escreveu os seguintes versos:
“Ó jovem, acompanhante de aurigas imortais, tu que chegas até nós transportado por corcéis, Salve! Não foi um mau destino que te induziu a viajar por este caminho - tão fora do trilho dos homens -, mas o Direito e a Justiça”. (Da Natureza, Edições Loyola, 2013, pág. 49).
Na peculiar análise de Andrei Gabriel Pleșu:
“Uma primeira observação quanto à situação do Wissenschaftskolleg seria que vivemos num mundo de globalização, em que as distâncias espaciais e culturais diminuem visivelmente, mas isto não exclui a ignorância dos fundamentos intelectuais e sociais do outro; ao contrário, amplia o aspecto irracional desta ignorância. Podes chegar relativamente rápido a Bangkok, podes ter relações políticas ou comerciais com Bangkok, mas podes fazê-lo sem passares além do pitoresco turístico. Entre a globalização e a cultura geral instala-se, de maneira paradoxal, uma relação de proporcionalidade inversa. Quanto mais facilmente nos encontramos, tanto menos nos conhecemos. Assistimos a uma mudança substancial de sentido do conceito de tolerância. Ele já não designa aceitação do outro, da opinião diferente, mas pura e simplesmente ignorância da opinião diferente. Disso resulta que não tenho necessidade de te entender para te aceitar e que não tenho necessidade de discutir contigo para te dar razão. O senhor tem direito à opinião do senhor. Respeito-a. Eu tenho direito a minha opinião e espero que ela seja respeitada. É inútil a dialética. A tolerância recíproca termina numa mudez universal, sorridente, pacífica, uma mudez porque o diálogo é uma interferência radiofônica indesejável. Nessas condições a tolerância tem efeitos mais que discutíveis: ela amputa o apetite por conhecimento, de compreensão real da alteridade, e dinamita a necessidade de debater. Num mundo governado por tais regras, Sócrates ficaria desempregado. Não se encontra nenhuma verdade, não se faz nenhum raciocínio. Não se exige senão que respeitemos, educados, as convicções do interlocutor.(Da Alegria no Leste Europeu e na Europa Ocidental e Outros Ensaios, Realizações Editora, 2013, pág. 71).
Segundo Francis Bacon, citado por Hilton Japiassu:
“Os ídolos e as noções falsas que ora ocupam o intelecto humano e nele se encontram implantados, não somente o obstruem, a ponto de tornar-se difícil o acesso à verdade, mas podem aparecer como obstáculos à própria instauração das ciências; a não ser que os homens, já prevenidos contra eles, tomem o maior cuidado. São quatro os tipos de ídolos que bloqueiam a mente humana. Há também os ídolos provenientes do intercurso e da associação recíproca dos indivíduos do gênero humano entre si, a que chamamos de Ídolos do foro, devido ao comércio ou consórcio entre os homens. Com efeito, os homens se associam graças ao discurso, e as palavras são cunhadas pelo vulgo. E as palavras, impostas de modo inadequado e inepto, bloqueiam espontaneamente o intelecto. As palavras forçam o intelecto e o perturbam por completo. E os homens são, assim, arrastados a inúmeras e inúteis controvérsias e fantasias. (Francis Bacon: O profeta da Ciência Moderna, editora Letras & Letras, 1995, pág. 126).
Na visão de Max Weber:
“Pouco sucesso pode ser obtido por meio da ameaça de coação que apoia a ordem jurídica. Isso se aplica especialmente à esfera econômica devido a um número de circunstâncias externas e a sua própria natureza peculiar. O poder do direito sobre a conduta econômica vem, em vários aspectos, diminuindo se comparado com as condições do passado. A eficácia de regulamentações de preço máximo, por exemplo, sempre foi precária; mas sob as condições presentes, há uma chance ainda menor de sucesso. (O Direito na Economia e na Sociedade, Ícone Editora, 2011, pág. 51).
Discorrendo sobre os tipos puros de dominação, o mesmo autor arremata:
“A validade de um poder de mando pode se expressar, em primeiro lugar, em um sistema de regras racionais feitas de modo consciente (que pode tanto ser aceito quanto imposto a todos) que resulta na obediência como normas geralmente obrigatórias sempre que tal obediência for reivindicada por quem designa as regras. No entanto, a validação de um poder de mando também pode repousar sobre a autoridade pessoal. Tal autoridade pode, por suas vez, se fundamentar na sacralidade da tradição, isto é, no que é habitual e prescreve obediência a determinados tipos de pessoas. Ou, ainda, pode se fundamentar em um argumento completamente oposto, ou seja, render-se ao extraordinário, à crença no carisma, isto é, na real revelação ou na graça repousante sobre tal pessoa que é então considerada um salvador, profeta ou heroi. (O Direito na Economia e na Sociedade, Ícone Editora, 2011, pág. 311).
Para David Hume:
“Não há método mais comum de raciocinar - e não obstante nenhum mais censurável - do que refutar as hipóteses nas discussões filosóficas sob o pretexto de conterem perigosas consequências para a religião e a moral. Quando uma opinião conduz ao absurdo, é certamente falsa, mas não é evidente que uma opinião seja falsa porque suas consequências são perigosas. Devem-se evitar totalmente tais lugares-comuns, pois eles em nada auxiliam na descoberta da verdade, servindo apenas para tornar odiosa a pessoa de um adversário. (Investigação Sobre o Entendimento Humano, editora Escala, pág 109).
Segundo John Stuart Mill, defensor histórico da liberdade de expressão:
“Se toda a humanidade, menos um, fosse de uma determinada opinião, e apenas uma pessoa fosse de opinião contrária, a humanidade não teria mais justificativas para silenciar aquela pessoa do que ela, se tivesse o poder de silenciar a humanidade. Se uma opinião fosse uma posse pessoal de nenhum valor, exceto para seu dono; se impedir seu desfrute fosse simplesmente um dano privado, faria alguma diferença quer o dano fosse infligido a apenas algumas pessoas ou a muitas. Mas o mal peculiar de silenciar a expressão de uma opinião é do que se está pilhando a raça humana; a posteridade assim como a geração existente; aqueles que discordam da opinião, ainda mais do que aqueles que a detêm. Se a opinião está correta, eles são privados da oportunidade de se trocar o erro pela verdade; se errada, eles perdem, o que é quase como um grande benefício, a percepção mais clara e a mais vívida expressão da verdade produzida por seu choque com o erro. (Ensaio Sobre a Liberdade, editora Escala, pág. 36).
Em “Uma Introdução aos Princípios da Moral e da Legislação”, no “capítulo XIII: Casos em que não cabe punir”, Jeremy Bentham pontua:
“O objetivo geral que caracteriza todas as leis - ou que deveria caracterizá-las - consiste em aumentar a felicidade global da coletividade; portanto, visam elas em primeiro lugar a excluir, na medida do possível, tudo o que tende a diminuir tal felicidade, ou seja, tudo o que é pernicioso. Acontece, porém, que toda punição constitui um ato pernicioso; toda punição constitui, em si mesma, um mal. Por conseguinte, com base no princípio da utilidade - se tal princípio tiver que ser admitido -, uma punição só pode ser admitida na medida em que abre chances no sentido de evitar um mal maior. É evidente, portanto, que não se deve infligir punição nos casos a seguir enumerados: Quando não houver motivo para a punição, ou seja, quando não houver nenhum prejuízo a evitar, pelo fato de o ato em seu conjunto não ser pernicioso; Quando a punição só pode ineficaz, ou seja, quando a mesma não pode agir de maneira a evitar o prejuízo; Quando a punição foi inútil ou excessivamente dispendiosa, no caso de o prejuízo produzido por ela ser maior do que o prejuízo que se quer evitar; Quando a punição foi supérflua, o que acontece quando o prejuízo pode ser evitado - ou pode cessar por si mesmo - sem a punição, ou seja, por um preço menor.” (Jeremy Bentham e John Stuart Mill: Os Pensadores, editora Abril Cultural, 1979, pág. 59).
Além da Inglaterra, também na Europa continental houvera valiosos contributos para a liberdade dos cidadãos, como França, Itália e Alemanha, em diferentes períodos históricos.
Como declarou Rousseau em “O Contrato Social”, Maquiavel, fingindo dar lições aos príncipes, deu grandes lições ao povo. De fato, em sua obra O Príncipe, constam numerosos ensinamentos para defesa do povo ao arbítrio estatal, cujas lições podem ser transpostas aos dias de hoje, a exemplo do Capítulo IX: Do Principado Civil; Capítulo XV: Das razões por que os príncipes são censurados; e capítulo XIX: Como o príncipe deve evitar ser odiado. Da mesma forma, as reflexões de Montesquieu em mais de duas décadas de viagens e pesquisas, compiladas na obra O Espírito das Leis, fornece uma referência atemporal para a liberdade da população, incluindo a liberdade de expressão na sua concepção atual, a exemplo do Livro II, capítulo V: Das leis relativas à natureza do estado despótico; Livro V, capítulo V: Como as leis estabelecem a igualdade na democracia; Livro VI, capítulo I: Da simplicidade das leis civis nos diferentes governos; Livro XI, capítulo III: O que é liberdade; e, destacadamente, o Livro XII, capítulo XX: Das leis favoráveis à liberdade dos cidadãos na república.
Hegel viveu sob o autoritarismo do governo prussiano, que albergava porções da Alemanha e Áustria. No livro “Filosofia do Direito” (§ 319), ele discorre sobre a liberdade de expressão. Para ele, um estado moderno requer essa liberdade. No entanto, ele enxerga que as opiniões genuínas baseadas nas verdadeiras necessidades da sociedade podem ser distorcidas por opiniões baseadas em sentimentos, e não na razão. Assim, a opinião pública merece ser respeitada tanto quanto ser desprezada. Percebe-se que ele não defendia uma liberdade de expressão ilimitada, justificando leis que proibissem tanto a incitação à rebelião e à violência, quanto as difamações ao soberano. Conclui, no entanto, que se o estado não fosse censurável, tendo uma constituição, um governo estável e reuniões públicas da Assembleia, poder-se-ia permitir aos cidadãos se manifestarem livremente. Nestas circunstâncias, os censores não precisariam interferir com frequência.
Segundo o raciocínio de Hegel:
“Cada um deve falar a verdade. Nesse dever que se enuncia como incondicionado vai-se logo admitir a condição: se souber a verdade. O mandamento, pois, será agora assim enunciado: cada um deve falar a verdade, sempre segundo seu conhecimento e convicção a respeito dela. A sã razão, justamente essa consciência ética que sabe imediatamente o que é justo e bom, explicará também que essa condição já estava de tal modo unida à sua máxima universal que ela sempre assim entendeu aquele mandamento. Mas dessa maneira admite que, de fato, ao enunciar a máxima já a infringe, imediantamente. Dizia: cada um deve falar a verdade; mas entendia: de acordo com seu conhecimento e convicção sobre ela. Isto é, falava uma coisa e entendia outra; ora, falar diversamente do que se entende, significa não falar a verdade. Uma vez corrigida a inverdade ou a inabilidade, a máxima agora assim se exprime: Cada um deve falar a verdade conforme o conhecimento e a convicção que dela tenha em cada caso. Com efeito: que a verdade deva ser dita, depende de uma contigência: se é que eu conheço; se é que estou convencido a respeito. Assim não se enuncia nada mais do que isto: que se deve dizer o verdadeiro e o falso misturados, conforme suceda que alguém os conheça, entenda ou conceba.” (Fenomelogia do Espírito, Editora Vozes, 9ª edição, 2014, pág. 289).
De seu turno, falar de liberdade em Heidegger contém um paradoxo intrínseco, já que ele exerceu o cargo de reitor da Universidade de Friburgo entre 1933 e 1934, tendo endossado o regime hitlerista.
A própria ontologia da liberdade implica um paradoxo, uma vez que aquela implica uma negação da livre escolha humana.
Heidegger tinha uma grande aversão à condição caótica que havia se tornado a república de Weimar em seu período final. No entanto, ele revelou uma grande ingenuidade política. Muitos alegam, porém, que sua obra transcende sua biografia, apesar de ele não ter elaborado nenhuma teoria política.
Na visão de Heidegger:
“A comunicação de enunciados, por exemplo, a reportagem, é um caso especial de comunicação, apreendida fundamentalmente como existencial. Nela se constitui a articulação da convivência que compreende. É ela que cumpre a partilha da disposição comum e da compreensão do ser-com. Comunicação nunca é a transposição de vivências, por exemplo, de opiniões e desejos, do interior de um sujeito para o interior de outro sujeito. A copresença já se revelou essencialmente na disposição e compreender comuns. (Ser e Tempo, Editora Vozes, 10ª edição, 2006. Pág. 225).
Para Hannah Arendt:
“É um dado histórico o de que a moderna tecnologia tem suas origens não na evolução daquelas ferramentas que o homem sempre havia inventado para o duplo propósito de facilitar seu trabalho e de erigir o artifício humano, mas exclusivamente na busca completamente não prática de conhecimento inútil. Se tivéssemos de confiar somente nos chamados instintos práticos dos homens, jamais teria havido qualquer tecnologia digna de nota.” (A Condição Humana, 11º edição, editora Forense Universitária, 2011, pág. 361).
Na observação de Arendt se encaixam as principais tecnologias aqui tratadas, que advieram após seus escritos, como o microprocessador, o computador pessoal, a internet e as mídias digitais.
Modernamente, Peter Sloterdijk arremata:
“Para teóricos liberais da era industrial a revelação de que a aliança entre sociedade industrial e democracia não é absolutamente tão indissociável quanto querem os ideólogos ocidentais, há algum tempo oferece motivo para irritação e preocupação. Gostaria de expressar a suposição de que a separação dos pseudogêmeos democracia e capitalismo é algo completamente diferente da mera introdução de parlamentos e eleições livres em certos Estados africanos, asiáticos e sul-americanos. Constituem obstáculo para uma democratização no sentido ocidental, em muitos países não europeus em vias de industrialização ou industrializados, as maciças relíquias de culturas que, de acordo com sua característica básica, obedecem a princípios da era agrária ou ainda mais antigos.” (No Mesmo Barco: Ensaio sobre a Hiperpolítica, editora Estação Liberdade, 2ª edição, 1999, pág. 83).
Certamente, incluem-se entre as relíquias de culturas agrárias, de que fala Sloterdijk, a procura por silenciar opositores nas mídias digitais por meio da lei e suas punições, em tudo similar ao que ocorria no período do coronelismo no Brasil. Só mudaram as evasivas: o que antes era justificado pela manutenção da ordem pública, hoje é respaldado pela proteção das crianças, desinformação e discurso de ódio.
Conclusão
A liberdade de expressão sem limites pode ser trágica. O genocídio em Ruanda em 1994 foi insulflado em grande medida pelo rádio, em decorrência da completa falta de controle dos que os rebeldes propagavam.
Essa liberdade sem limite pode desencadear lavagens cerebrais e levar a ações irracionais. Como exemplo, em 2023 foram encontrados 201 corpos na floresta de Shokahola, no Quênia. Todas essas pessoas foram levadas ao suicídio por asfixia e inanição, seduzidas por uma crença apocalíptica de uma seita liderada por Paul Mackenzie, que foi preso.
No entanto, ações altruístas visando a proteção de vulneráveis podem esconder objetivos escusos. A regulação das novas tecnologias, que possibilitam uma ampla liberdade de pensamento e expressão, geram desconfiança, tendo em vista que propagam objetivos de combate à desinformação e ao discurso de ódio, além da proteção de crianças, como subterfúgios para silenciar opositores políticos.
Para acomodar o interesse consensual de proteção da criança ou defesa nacional, sem dar margem a perseguições políticas, a regulação deve ser construída de forma inteligente, sem brechas legais para a prática de abusos contra a liberdade de expressão no seio da sociedade.
O argumento de que a regulação da liberdade de expressão nas redes sociais é necessária para garantir o próprio exercício da liberdade de expressão, equivale a uma cobra engolindo o próprio rabo. Não passa de um artifício retórico para silenciar vozes contrárias.
Aos olhos da Constituição não existem direitos abstratamente absolutos. Todos os direitos devem acomodar pressões de outros direitos de mesma fundamentalidade, tornando-os circundados por restrições. No entanto, o núcleo da liberdade de expressão como direito fundamental é intangível, não podendo ser atacado pela regulação das redes.
Afinal, uma restrição a um buzinaço como manifestação política nas proximidades de um hospital em funcionamento é plenamente justificável, à luz da proporcionalidade. Contudo, uma lei que conceda carta branca ao governo pode fazê-lo proibir um tuitaço, por causar tumulto nas redes, sob o argumento de que estaria prejudicando sua utilização pelos demais usuários.
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Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: COELHO, LEONARDO RODRIGUES ARRUDA. A liberdade de expressão nas novas tecnologias comunicativas: bases para regulação. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 26 jul 2023, 04:57. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/62202/a-liberdade-de-expresso-nas-novas-tecnologias-comunicativas-bases-para-regulao. Acesso em: 21 nov 2024.
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