INTRODUÇÃO
Este ensaio jurídico tem como premissa a análise das excludentes de ilicitude, baseando-se numa perspectiva de análise axiológica.
Dentro desse ensaio, serão verificadas as modalidades das excludentes de ilicitude previstas no Código Penal, bem como seus requisitos. Há de se ressaltar que existe uma variação de requisitos de acordo com a doutrina acolhida, sendo trazida à baila a corrente majoritária.
Em uma linha tênue, será também analisado o conceito de crime, por ser um tema intimamente ligado ao elemento da ilicitude do delito.
O presente ensaio jurídico é composto por 3 capítulos que analisam o mérito, sendo eles: 1) Do crime – Busca conceituar os elementos que fazem parte desse instituto jurídico, bem como as situações previstas em lei que excluem essa conduta; 3-Causas excludentes de ilicitude (justificantes ou descriminantes) – Traz a análise de cada requisito para a sua aplicabilidade ou não; 3) Conclusão – com todo o exposto, faz-se uma observação panorâmica de todo o conteúdo produzido sobre as diversas perspectivas expostas no ensaio, fazendo comparação de caso concreto para uma melhor assimilação.
2 DO CRIME
Para Cunha (2014, p. 149), no Brasil, o crime é tido como espécie de infração penal, onde este também abrange as contravenções penais. Essa distinção entre contravenções penais e crime é por questão de política criminal.
O artigo 1º da Lei de Introdução ao Código Penal (decreto-lei 3.914/1941) conceitua crime da seguinte forma:
Art. 1º - Considera-se crime a infração penal que a lei comina pena de reclusão ou de detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa; contravenção, a infração penal a que a lei comina, isoladamente, pena de prisão simples ou de multa, ou ambas. Alternativa ou cumulativamente. (BRASIL, 1941, grifos nossos)
O conceito de crime poderá se repassado por vários enfoques (aspectos), como: o enfoque formal, enfoque material e enfoque analítico:
2.1 Enfoque formal e material
Na visão de Zaffaroni e Pierangeli (2015, p. 349), o enfoque formal é o conceito unitário de infração penal que não consegue estratificar a sua análise. Ou seja, é aquilo que está previsto em norma penal incriminadora, com sua respectiva pena caso a descumpra.
Já o enfoque material é a concepção da sociedade pelo que pode e deve ser crime, que verifica a relevância do bem jurídico tutelado. De forma sucinta e harmônica é a descrição realizada por Cunha (2014, p.150): “Num conceito material, infração penal é o comportamento humano causador de relevante e intolerável lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico tutelado, passível de sanção penal”.
2.2 Enfoque analítico
Sob esse prisma, verifica-se sua estrutura, estratificando seus pressupostos de forma sequencial, sendo o fato típico, antijurídico e culpável.
Com ótima simetria (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2015, p.353):
Esta definição do delito como conduta típica, antijurídica e culpável nos dá a ordem em que devemos formular as perguntas que nos servirão para determinar, em cada caso concreto, se houve ou não delito. Em primeiro lugar, devemos perguntar se houve conduta, porque, se falta o caráter genérico do delito, então nos encontramos diante de uma hipótese de ausência de conduta e não se deve formular qualquer outra pergunta. Em seguida, devemos indagar pelos caracteres específicos, mas também aqui devemos seguir a ordem indicada, porque, se concluímos que a conduta não está individualizada em um tipo penal, não faz sentido averiguar se está permitida ou se é contrária a ordem jurídica e menos ainda se é reprovável, posto que jamais será delito, mesmo que ambas as respostas sejam afirmativas.estaremos diante de um caso de falta de tipicidade, que se denomina atipicidade (a conduta é atípica).
Se estamos lidando com uma conduta típica, caberá então indagarmos se esta conduta é antijurídica, porque, em caso negativo, não tem sentido perguntar-se pela culpabilidade, visto que o direito não se ocupa da reprovabilidade das condutas que não são contrárias a ele ( que estão justificadas). Somente quando temos uma conduta típica e antijurídica (um injusto), é que tem sentido perguntar-se se esta conduta é reprovável ao autor, isto é, se é culpável.
Apesar de Zaffaroni e Pierangeli estratificarem juntamente com os três elementos acima citados (fato típico, antijurídico e culpável) a conduta, para eles, o delito contém dois aspectos: o genérico e o específico. O aspecto genérico contém a conduta; já o aspecto específico abrange a tipicidade, a antijuridicidade e a culpabilidade. Sendo que, para eles, a tipicidade e a antijuridicidade formam o injusto penal.
2.2.1 Antijuridicidade (ilicitude)
Sob o prisma de Cunha (2014, p. 231), a antijuridicidade Trata-se do segundo elemento do crime. Para chegar nesse elemento, antes deverá ser realizada uma análise da tipicidade (subsunção do fato à norma), posteriormente analisar uma causa permissiva da norma jurídica (não só apenas no âmbito penal), pois só assim será possível observar a antijuridicidade da conduta. A ilicitude é uma conduta típica não permitida e contrária à ordem jurídica, que se comprova com a ausência de permissões.
O Brasil adotou a teoria da indiciariedade ou da “ratio cognoscendi”, que foi idealizada por Mayer em 1915. Consubstancia que a partir do momento que um uma conduta é típica ela será presumivelmente antijurídica, mesmo que depois exclua a ilicitude (por uma causa de justificação), permanecerá a tipicidade da conduta. Não obstante, deve-se observar que esta presunção é relativa. Significa dizer que onde há fumaça (fato típico), presume-se haver fogo (antijuridicidade).
Porém, a “ratio cognoscendi” deverá ser analisada de acordo com a presunção de inocência preconizada na Constituição Federal, onde qualquer probabilidade de exclusão da ilicitude deverá ser aplicada o “in dúbio pro reo”, devendo ser ônus da acusação mostrar um juízo de certeza de que não houve uma causa de excludente de ilicitude.
Destarte, se um juízo de probabilidade servirá para o réu (“in dúbio pro reo”), quiçá um juízo manifesto de excludente de ilicitude.
33-Causas excludentes de ilicitude (justificantes ou descriminantes)
Com efeito, deve-se observar o art. 23 e seus incisos do Código Penal Brasileiro, que estão elencadas as excludentes de ilicitude:
Art. 23 – não há crime quando o agente pratica o fato:
I – em estado de necessidade;
II – em legítima defesa;
III – em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito. (BRASIL, 1940)
Conforme o artigo supracitado, Alves (2010, p. 341) cita que não há crime quando o sujeito pratica o fato diante de uma das situações elencadas no artigo. Como citado anteriormente, o aspecto analítico do crime se estratifica em tipicidade, ilicitude e culpabilidade (teoria adotada pelo Brasil). Essas causas de justificação excluem o segundo elemento (ilicitude), que porventura, acarretam a exclusão do crime.
As excludentes não estão restritas apenas no art. 23 do CP (parte geral), mas também na parte especial. Como se verifica no art.128 do código Penal, que trata do aborto justificado realizado pelo médico (é típico, pois há a consunção do fato à norma. Porém não é antijurídico). Outrossim, verifica-se a existência dos tipos permissivos fora do contexto penal, conforme se verifica no art. 1.470 do Código Civil:
Art. 1470 - Os credores, compreendidos no art. 1.467, podem fazer efetivo o penhor, antes de recorrerem à autoridade judiciária, sempre que haja perigo na demora, dando aos devedores comprovantes dos bens de que se apossarem. (BRASIL, 2002).
3.1 Estado de necessidade
Esta justificativa penal está estabelecida no art. 24 do CP da seguinte forma:
Art. 24 – Considera-se em estado de necessidade quem pratica o fato para salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se. (BRASIL, 1940).
Da leitura do artigo, percebe-se que exige alguns requisitos para a configuração do estado de necessidade, são eles:
a) Perigo atual;
b) Situação não provocada de forma voluntária pelo agente;
c) Salvar Direito próprio ou alheio; e
d) Inexigibilidade de sacrifício do interesse ameaçado.
Já o § 1º diz que não pode alegar estado de necessidade quem tinha o dever legal de enfrentar o perigo.
Assim, percebe-se que o estado de necessidade procura fazer um balanceamento de direitos, tutelando aquele de maior ou igual relevância, pois as circunstâncias do caso concreto não permite que ambos (ou mais direitos) sejam protegidos.
Na perspectiva de Alves (2010, p. 353), o estado de necessidade não admite que o perigo seja iminente (assim é o que alega a maioria da doutrina, porém existe corrente minoritária que defende a iminência do perigo no estado de necessidade), devendo ser atual.
Ou seja, o risco deve estar presente, gerado por fato humano, fato da natureza ou por ataque de animal (desde que não provocado por alguém com o intuito de ferir direito de alguém, porque se agir dessa forma o animal será apenas um instrumento da vontade do provocador, como “longa manus” da conduta injusta), sem haver pessoa ou objeto determinado. Como também não pode invocar esta justificante quem provocou por sua vontade o perigo, nesse caso, só não pode invocar quem provocou dolosamente o perigo, quem agiu de forma culposa (em sentido estrito) estará acobertado pelo estado de necessidade.
3.2 Legítima defesa
Alves (2010, p. 363) corrobora com a ideia de que a legítima defesa é utilizada pela ausência do Estado, como, sabidamente, os seus representantes não podem estar em todos os lugares, depreende-se o poder ao agente para salvaguardar direito seu ou alheio da injusta agressão.
Por conseguinte, esse poder não tem caráter ilimitado, devendo estar restrita tão somente na iminência ou na atual injusta agressão, obedecendo aos critérios da Proporcionalidade em sentido amplo (adequação, necessidade, proporcionalidade em sentido estrito). Desta forma, qualquer reação desproporcional (excesso) deverá ser punida, seja este excesso na forma dolosa ou na forma culposa.
O excesso na legítima defesa, como citado acima, se verifica na modalidade culposa ou dolosa. Ocorre o excesso culposo quando o agente acredita que a conduta excessiva estar acobertada e pode ir até o fim do seu ato, pois na mente dele, a agressão injusta permite a ele agir dessa forma.
Por exemplo: João, morador de uma pacata cidade e que nunca foi de arrumar confusão, se vê numa situação constrangedora, onde um forasteiro pega um copo cheio de cerveja e joga no seu rosto, vindo a agredi-lo posteriormente. No momento da injusta agressão, João pega um machado que estava próximo e acerta o ombro do forasteiro que vem a cair. Nesse momento, depois de interrompido a situação da injusta agressão (que causou lesão corporal grave), João acredita que pode ficar lesionando o forasteiro para limpar sua honra (causando lesão corporal leve), pois foi o forasteiro que começou a agressão.
Como se percebe, a responsabilização contra João poderá ter dois caminhos:
a) Se João agiu com excesso Doloso: se agiu com dolo, mesmo ciente que a injusta agressão foi cessada e desejando lesionar de forma leve o forasteiro, João será responsabilizado por lesão corporal leve, pois a lesão corporal grave foi absorvida pela legítima defesa.
b) Se João agiu com excesso culposo: aqui o agente age com dolo, mas ele vai além do necessário, porém excede acreditando que está amparado pela legítima defesa, causando lesões leves. Haverá duas formas distintas pelo ato:
I - Se o erro era escusável: Deverá ser isento da pena. Pois, pela figura do homem médio era impossível para o agente prevê o resultado.
II - Se o erro era inescusável: Deverá ser punido pelo crime, na modalidade culposa. Sendo chamado de culpa imprópria porque o agente não agiu sem observar os preceitos de cautela da ação (negligência, imprudência e imperícia), mas conduziu sua ação de forma livre e voluntária. Porém, pela figura do homem médio era possível prevê que aquele excesso não era permitido.
Pela leitura do artigo 25 do Código Penal, depreende-se o seguinte: “Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem”. Assim, verifica-se que há os seguintes requisitos:
a) Uso moderado dos meios;
b) Injusta agressão, atual ou iminente;
c) Proteger direito próprio ou alheio.
Um dos requisitos para a legítima defesa é o da proporcionalidade dos meios utilizados, devendo a ação ser: adequada; necessária por não dispor de outra forma menos lesiva; e proporcional.
Diferente do estado de necessidade, que não cita de modo expresso em seu artigo 24 do CP a agressão iminente, a legítima defesa, na visão de Cunha (2014, p. 240), permite as duas formas, tanto na atual, como também na iminência. Outro ponto distinto entre os dois institutos trata-se da injusta agressão, pois só é admissível na legítima defesa a agressão que o agente pratica a ação vinculada com a vontade e consciência, não há o que se falar em legítima defesa de uma ação culposa ou de uma agressão de um inimputável (corrente majoritária), pois assim não há uma injusta agressão por não conter a consciência e a voluntariedade da conduta.
Como ocorre também no estado de necessidade, a legítima defesa poderá ser utilizada para salvaguardar direito seu e de outrem, obedecendo aos requisitos anteriores.
3.3 Estrito cumprimento de dever legal e exercício regular de Direito
Com redação no inciso III, 1ª parte do artigo 23 do CP, o estrito cumprimento de dever legal não possui um conceito definido em lei como o estado de necessidade e a legítima defesa, ficando tal cargo para a doutrina e para jurisprudência. Bem explica Bitencourt (2010, p. 379):
Quem pratica uma ação em estrito cumprimento de um dever imposto por lei não comete crime. Ocorrem situações em que a lei impõe determinada conduta e, em face da qual, embora típica, não será ilícita, ainda que cause lesão a um bem juridicamente tutelado. Nessas circunstâncias, isto é, no estrito cumprimento de dever legal, não constituem crimes a ação do carrasco que executa a sentença de morte, do carcereiro que encarcera o criminoso, do policial que prende o infrator em flagrante delito etc.
[...] Apesar de os destinatários naturais dessa excludente de criminalidade serem os agentes públicos, nada impede que possa ser aplicada ao cidadão comum, quando atuar, claro, sob a imposição de um dever legal. Lembra-se com frequência, como exemplo, o dever que têm os pais de guarda, vigilância e educação dos filhos (art. 231, IV, do CC de 1916). Algum constrangimento praticado no exercício do pátrio poder estaria justificado pelo estrito cumprimento do dever legal, desde que não haja excesso, logicamente.
O exercício regular de direito está previsto no art. 23, inciso III, 2ª parte, do Código Penal. Esta causa de excludente de ilicitude compreende em conduta que o agente não pratica crime por estar acobertado pelo próprio ordenamento jurídico, diante de qualquer de seus ramos.
Na ótica de Cunha (2014, p. 246), esta excludente prevê uma harmonização do Direito Penal com os outros ramos, porém não admitindo os excessos diante dos bens jurídicos tutelados. Pois quem exerce seu direito, mas de forma irregular, responderá pelo excesso praticado. Exemplo é o caso do esbulho possessório, onde o próprio Código Civil permite que o agente esbulhado utilize da “força” para expelir a injusta agressão. Por conseguinte, o agente não terá praticado uma conduta criminosa, ante o fato ser previsto no ordenamento Civil de forma que permita a força utilizada.
Porém, se o mesmo agente tentando proteger sua propriedade do esbulho possessório vem a matar o agressor da posse, restará consubstanciado que a conduta utilizada não foi proporcional ao ato praticado pelo agressor. Devendo responder de acordo com a forma utilizada (se escusável ou inescusável).
Um ponto relevante sobre essas duas excludentes está relacionada na teoria da tipicidade conglobante, idealizada por Eugênio Raúl Zaffaroni, que transfere o estrito cumprimento de dever legal e o exercício regular de direito para a tipicidade. Ou seja, se o agente agiu de acordo com uma dessas excludentes, excluirá a tipicidade, ficando a conduta como um fato atípico.
4 Conclusão
Com todo o exposto, nota-se que o crime possui vários aspectos a serem analisados, tendo um aprofundamento em cada análise do seu conceito.
Verifica-se assim, que a análise das excludentes de ilicitude devem ser observadas sob uma perspectiva ampla, não apenas limitada ao conteúdo da lei, e sim, perfazendo uma análise dos institutos penais trazidos pela doutrina.
Nesse diapasão, as excludentes possuem requisitos que a letra da lei simplesmente não consegue conceituá-los, sendo de suma importância esse estudo integrado.
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Bacharel em Direito pela Uninassau. Funcionário Público
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: COSTA, Severino Gilson da. A análise das excludentes de ilicitude Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 10 set 2024, 04:29. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/66404/a-anlise-das-excludentes-de-ilicitude. Acesso em: 21 nov 2024.
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