RESUMO
Com o presente artigo, busca-se verificar a essência da Justiça enquanto prática de autopreservação, desprovida de valores morais ou moralizantes e perquirir se, para averiguar de forma racional o justo ou injusto, bastante buscar atuação que preserve ou deteriore a essência, a dignidade da natureza humana, bem como se este princípio se constitui ordem cogente a determinar a operacionalização dos institutos jurídicos, principalmente no que tange às questões de Direito de Família.
EXPRESSÕES-CHAVE
Dignidade humana. Ética. Justiça.
SUMÁRIO
Introdução. 1 Ética enquanto forma de controle. 2 Ética, constitucionalização do Direito de Família, dignidade e Justiça. Considerações Finais. Referências.
INTRODUÇÃO
Ética é um termo advindo do grego ethos e se refere ao conjunto de valores e princípios morais construídos com base em valores históricos e culturais, os quais direcionam a conduta humana numa sociedade. Relaciona-se, diretamente, com o sentimento de justiça social, colimando estabelecer um padrão de conduta que melhor atenda à boa convivência em sociedade.
A ética é, sobremaneira, uma forma de normatização e também forma de controle social. Neste ponto, verifica-se que a Justiça como prática de autopreservação, a ética e o controle são conceitos densamente atrelados, que ambicionam um único objetivo, qual seja, a coesão e harmonia do corpo social e demandam, por este motivo, exame conjunto.
1 Ética enquanto forma de controle
No que concerne ao controle social, tem-se este como medidas, valores aceitos pela maioria dos integrantes da sociedade e que objetivam a manutenção da ordem e a coesão do corpo social mediante o estabelecimento de condutas-modelo, atribuindo sanções de ordem moral, física ou econômica (por exemplo, ridicularização, rejeição, prisão, multa, dentre outras) àqueles que se desviem do padrão estabelecido pela maioria, a bem da convivência pacífica.
Para o sociólogo norte americano Edward Ross, o controle social emerge como um conjunto de esforços para a adequação das aspirações e sentimentos individuais às necessidades do grupo (ROSS, 1901 apud COSER, 1982, p. 13), fazendo referência tanto às estruturas políticas e coercitivas quanto às culturais. Edward Ross anuncia, com sua teoria, que há uma construção intencional de mecanismos de controle pelo Estado, instituições ou grupos sociais.
Em contrapartida, o sociólogo alemão Émile Durkheim formula uma teoria social sobre controle em que o define como sendo um complexo sistema de mecanismos inconscientes cujo escopo é rejeitar comportamentos desviantes. ara ele, o controle é tido como um processo internalizado mediante padrões de respostas e condutas condicionadas a normas sociais. Inexiste, por conseguinte, intencionalidade.
Há ainda um terceiro grupo de teóricos que, a exemplo do americano George Orwel, autor da obra “1984”, entende que toda forma de controle é nefasta e que a sociedade é artificial e intencionalmente concebida para o controle de alguns sobre os demais.
Hodiernamente, porém, tem-se tentado, mediante a análise crítica dessas teorias, a formulação de um conceito que revele a essência do controle, prevalecendo o entendimento que este refere-se tanto ao enquadramento do comportamento da pessoa em sociedade quanto à comunhão de valores e percepções com relação ao indivíduo inserido na coletividade.
O controle se realiza de forma indireta, por meio das pessoas e instituições sociais que propalam valores e paradigmas de comportamento. É, portanto, intencional e manipulativo, abrangendo recursos dos mais diversos, sejam eles materiais ou de representação, com o objetivo de garantir que as pessoas se portem de maneira previsível e em consonância com os valores coletivos prevalecentes.
A ética é, em verdade, uma forma muito específica de funcionamento da moral. (...) O dever ético é aquele dever moral reconhecido como válido, como racional pelo agente” (PEREIRA, 2004, p. 58) é, portanto, uma das formas mais eficazes de controle.
2 Ética, constitucionalização do Direito de Família, dignidade e Justiça.
Adolfo Sánchez Vázquez concebe a ética como uma abordagem científica de questões morais, afirmando ser ela a teoria ou ciência do comportamento moral dos homens em sociedade (VÁZQUEZ, 1999, p. 45).
A ética como reguladora das condutas humanas apresenta-se, na concepção do jurista Ronaldo Poletti, de duas maneiras: moral social, entendida como costumes e convenções sociais; bem como Direito (POLETTI, 1996, p. 104-105).
Nesse sentido, conforme preleciona George Marmelstein, o Direito e a ética estão intimamente ligados, sendo que, em contraposição ao que muitos pensam, “a ética tem um papel muito maior na regulamentação da conduta humana do que o direito” (MARMELSTEIN, 2009, p. 7).
Quem primeiro considerou o Direito como sendo parte da moral foi o utilitarista inglês Jeremy Bentham, com a teoria dos círculos concêntricos, segundo a qual o Direito está contido em sua integralidade no campo da moral, a ele se subordinando com a finalidade de garantir um bem-estar geral mediante a pacificação social. Para ele, o direito se restringe ao campo de aplicação das penas materiais em que o bem resultante da aplicação das mesmas é maior que o mal que provocam.
Sendo assim, conforme se lê no site do Centro de Estudos do Pensamento Político (CEPP) de Portugal, http://www.iscsp.utl.pt, para o contratualismo benthiniano “é possível a realização do máximo de utilidade com o mínimo de restrições pessoais, numa perspectiva que reduz o direito a uma simples moral do útil coletivo”. Nesse mesmo sentido é a concepção do jusfilósofo alemão Georg Jellinek, que desenvolveu a teoria de Jeremy Bentham, nominando-a de Mínimo Ético.
Georg Jellinek afirma que o Direito seria um conjunto mínimo de regras morais cogentes, cuja finalidade seria o controle social (JELLINEK, 2000 apud NADER, 2002, p. 40). Desta forma, o Direito estaria inserido na moral, constituindo instrumento à garantia da estabilidade social mediante a prevalência de preceitos morais básicos.
Todavia, a exemplo de Ronaldo Poletti, vários juristas criticam essas teorias, afirmando que diversas são as situações fáticas que, embora estejam inseridas em normas de Direito, não se situam no campo da moral. É o caso de normas técnicas ou procedimentais, por exemplo (POLLETI, 1996, p. 106).
Segundo o jurista francês Claude du Pasquier, idealizador da teoria intitulada de círculos secantes, Direito e Moral coexistem, havendo entre eles um campo em que há regras jurídicas de inspiração moral (PASQUIER, 1967 apud NADER, 2002, p. 40).
Para Hans Kelsen, entretanto, há uma total desvinculação entre Direito e Moral, que compõem dois sistemas diferentes. Para ele, a norma é tida como elemento único e essencial ao sistema jurídico e sua validade independe de qualquer juízo de valor (KELSEN, 1998, p. 5).
Mais relevante do que conhecer as várias concepções acerca dos conceitos de ética, porém, é reconhecer que nenhuma delas fornece resposta suficiente a todas as questões éticas, haja vista que, conforme afirma George Marmelstein, “no fundo, todas (as teorias) desembocam na vala comum do ‘respeito ao próximo’, que é uma fórmula que sintetiza o significado de ética em todos os tempos e em todos os lugares”. Todavia, esse jurista pontua que nem mesmo a “vala comum do respeito ao próximo” soluciona a questão, porquanto não resolve os problemas éticos mais complexos, haja vista ser “preciso definir o que se entende por respeito e o que se entende por outro” (MARMELSTEIN, 2009, p. 80).
Consoante preleciona Rodrigo da Cunha Pereira, para que se compreenda a ética transposta ao Direito de família, deve-se atentar para o fato de que a “moral sexual dita civilizatória” não deve “excluir e nem tornar indigno o sujeito de direito”. O jurista aponta, ainda, que o princípio da dignidade humana orienta e interfere em todos os demais, fornecendo-nos um ponto de partida a fim de avaliar o que é “ético, acima dos valores morais” (PEREIRA, 2004, p. 53).
A constitucionalização do Direito de Família faz exsurgir a ideia de que o núcleo familiar é tido como lócus de realização da dignidade humana.
A acepção de dignidade humana trazida na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/1988) é aquela kantiana, que coloca a racionalidade como conditio sine qua non da dignidade da natureza humana. Assim, toda pessoa possui dignidade, porquanto racional.
A essência humana é, portanto, a racionalidade, que é de “natureza interior, independente de mudanças físicas e de contingências externas” (PEREIRA, 2004, p. 55). A medida para um valor universal seria, por conseguinte, a razão.
Para Rodrigo da Cunha Pereira, um princípio jurídico deve possuir conteúdo racional de validade universal, haja vista que, caso existam “exceções ao conteúdo, ele não é um princípio, mas sim uma regra concorrente ou subordinada à outra que lhe é incompatível ou contrária” (PEREIRA, 2004, p. 56).
O estudioso menciona, ainda, a importância de se discutir se o conteúdo de determinado princípio geral do direito possui ou não conteúdo ético, chegando à conclusão de que, em determinados casos, não se faz necessária apenas a distinção entre moral e ética, mas a negação de princípios morais em defesa de princípios éticos (PEREIRA, 2004, p. 57). Para ele, a conduta ética é pautada, fundamentalmente, por uma avaliação de questões morais.
Entende-se que a dignidade humana enquanto princípio é uma compreensão ética e ontológica do ser humano, já que perquire sobre sua essência.
O Direito de família, por ser o “mais humano de todos” é também o mais sujeito a “moralismos provocadores de injustiça”. Dessa maneira, escolher a ética em desfavor de juízos morais significa trazer para o sistema jurídico a acepção de família como “grupamento cultural”, conceito desprovido de valor moral e incondicionado pelo tempo ou espaço (PEREIRA, 2003, p. 5-11).
A ideia de Justiça possui valor moral e jurídico. Se concebida, porém, como valor “parece não ser alcançada como fim. O justo por ser relativo e relativizável, depende do ângulo pelo qual é visto, principalmente na clínica do Direito de Família”, sendo a Justiça uma técnica de autoconservação (PEREIRA, 2004, p. 63).
A acepção de Justiça enquanto prática de autopreservação é, por conseguinte, a que melhor atende à visão ética do que seja Justiça, já que desprovida de valores morais ou moralizantes. Desta maneira, para que se verifique racionalmente o que seja justo ou injusto, bastante perquirir se há uma atuação que preserva ou deteriora a essência.
Rodrigo da Cunha Pereira esclarece que a dignidade é um macroprincípio que compreende outros princípios e valores essenciais, tais como “liberdade, autonomia privada, cidadania, igualdade, alteridade e solidariedade, (...) uma coleção de princípios éticos” (PEREIRA, 2004, p. 68).
Para o constitucionalismo contemporâneo, tal qual o firmado pela ministra Carmen Lúcia Rocha, garantir a dignidade passou a ser o norte e o fim do Direito, haja vista que “a dignidade humana independe de merecimento pessoal ou social. Não se há de ser mister ter de fazer por merecê-la, pois ela é inerente à vida e, nessa contingência, é um direito pré-estatal” (ROCHA, 2000, p. 72).
A noção de Direitos Humanos tem como pressuposto a dignidade da natureza humana, sendo certo que os direitos devem ser conferidos às pessoas em razão de uma causa universal e independente da volição humana. A pessoa é um ser corporal, relacional, consciente, dotado de inteligência, memória e vontade, sendo esta a sua natureza.
A dignidade da natureza humana, além de princípio constitucional, é, sobretudo, principio ético incluso nos princípios do Estado Democrático de Direito, sendo, também, princípio geral do Direito.
Para Maria Celina de Morais, são consequências da dignidade da natureza humana os princípios jurídicos da igualdade, da integridade psicofísica, da liberdade e da solidariedade. Para ela, somente estes podem ser relativizados, já que sua condição é de subprincípios em relação ao princípio maior e absoluto, qual seja o da dignidade da natureza humana. Desta maneira, o macroprincípio da dignidade da natureza humana, em nenhuma circunstância, poderá ser relativizado (MORAIS, 2003, p. 85).
Entretanto, poderá haver, quando da análise do caso concreto, uma ponderação de princípios de maneira a identificar de que forma será obtida a dignidade, já que seu conteúdo varia com a situação, havendo uma interferência fatal da subjetividade no conteúdo de cada princípio, considerando-se o paradigma hermenêutico estabelecido pelo ordenamento jurídico nacional.
Cumpre observar que o princípio da dignidade tem o objetivo precípuo de proteger e promover a pessoa humana, constituindo-se como fundamento da República inscrito no art. 1º, III da CRFB/1988, informando todo o sistema jurídico nacional, o que significa dizer que este princípio é o norte para avaliar toda e qualquer relação jurídica, devendo ser considerado antes de se ater a qualquer outro valor.
Considerações Finais
A dignidade da natureza humana é o substrato, o alicerce do Estado Democrático de Direito, constituindo-se ordem cogente a determinar a operacionalização dos institutos jurídicos, convidando àqueles que atuam com e no Direito ao abandono de moralismos e preconceitos, sobremaneira em âmbito do Direito de Família, combatendo o tratamento indigno de quem quer seja, constituindo-se, por conseguinte, conteúdo ético da Justiça.
Contudo, quando se verificar conflito entre um direito fundamental e a dignidade da natureza humana, por meio da ponderação dos princípios constitucionais aplicáveis ao caso concreto, devem-se observar critérios de aplicação racionais, pautados na proporcionalidade e razoabilidade, a fim de que não haja uma banalização do principio da dignidade da natureza humana.
Não deve haver, deste modo, arbitrariedade na aplicação do princípio da dignidade com o objetivo de que este prevaleça sobre qualquer outro e de qualquer modo sem que haja uma real, sensível e plausível justificativa de Direito a embasar sua prevalência, sob pena de se perpetrar decisão injusta e contrária à ética.
REFERÊNCIAS
COSER, Lewis. The notion of control in sociological theory. In: Social control: views from the social sciences. Beverly Hills: Sage, 1982, p.13.
KELSEN, Hans. O problema da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
MARMELSTEIN, GEORGE. Transformar Ética em Direito. (Trabalho elaborado no âmbito do Curso de Doutoramento “Direito, Justiça e Cidadania no Século XXI”) – Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra – FDUC. Coimbra- PT, 2009.
MORAES, Maria Celina Bodin. Danos à pessoa humana: uma leitura civil-constitucional dos danos morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.
NADER, Paulo. Introdução ao Estudo do Direito. 22. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002.
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios fundamentais e norteadores para a organização jurídica da família. (Tese de Doutorado em Direito) – Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná. Curitiba-PR, 2004.
_______. Família, direitos humanos, psicanálise e inclusão social. In: Revista Brasileira de Direito de Família. Porto Alegre: Síntese/IBDFAM, n. 16, p. 5-11, jan./fev./mar. 2003.
POLETTI, Ronaldo. Introdução ao Direito. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1996.
ROCHA, Carmem Lúcia Antunes. O princípio da dignidade humana e a exclusão social. In: CONFERÊNCIA NACIONAL DOS ADVOGADOS – JUSTIÇA: REALIDADE E UTOPIA. Brasília: OAB, Conselho Federal, p. 72, v. I, 2000.
VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Ética. 20. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
Advogada. Especialista em Direito. Graduada em Direito pela Universidade Estadual de Montes Claros - UNIMONTES.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: VERSIANI, Tátilla Gomes. Dignidade humana no direito de família como conteúdo ético de justiça Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 09 abr 2011, 07:34. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/coluna/885/dignidade-humana-no-direito-de-familia-como-conteudo-etico-de-justica. Acesso em: 26 nov 2024.
Por: Benigno Núñez Novo
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