Sumário: 1. As bases dessa arbitragem – 2. O direito aplicável – 3. Natureza jurídica da questão 4. Prazo para o julgamento – 5. Decisão modelo – 6. Paralelo com a Justiça Pública.
1. As bases dessa arbitragem
Entre os grandes problemas que a economia mundial exigiu solução está o da economia petrolífera, em que se avultou o caso ARAMCO, resolvido por arbitragem. Dizemos o maior problema, devido à relevância das partes envolvidas, aos valores tratados, à estratégia das operações econômicas e à complexidade jurídica da questão. Foi chamado caso ARAMCO graças ao nome da parte envolvida, a Arabian American Oil Company-ARAMCO, uma empresa sediada nos EUA e formada pelas Sete Irmãs, ou Seven Sisters, um grupo de empresas petrolíferas, como a Esso, Texaco, Gulf, Shell, Chevron, assim denominada pelo magnata italiano do petróleo Enrico Mattei. Houve um choque de interesses entre as várias partes, e, se não houvesse solução pronta e satisfatória, os prejuízos de todos seriam incontáveis, fato que provocou a colaboração delas para que a arbitragem se realizasse e chegasse a bom termo.
Para se fazer idéia da relevância desse evento, vamos qualificar um pouco as partes envolvidas:
O maior país produtor de petróleo do mundo: a Arábia Saudita;
A maior empresa importadora de petróleo do mundo: a ARAMCO;
O maior transportador de petróleo do mundo: Aristóteles Onassis.
Os problemas entre as duas partes, vale dizer, entre a Arábia Saudita e a ARAMCO tornaram-se ainda complexos porque elas haviam celebrado contrato de transporte, envolvendo o transporte do ouro negro, que era também assunto envolvido na questão a ser solucionada. Por isso, teve que ser arrolado no procedimento arbitral o transportador do petróleo escolhido por elas no contrato de concessão, Aristóteles Onassis.
O contrato dizia que eventuais divergências entre as partes deveriam ser resolvidas por arbitragem, mas não estabeleceu um regulamento para ela. O primeiro passo foi colocar em prática essa cláusula contratual, constituindo o tribunal arbitral, escolhida como sede a cidade de Genebra, na Suíça, considerada como a capital do Direito Internacional. Assim é considerada por estarem lá sediadas várias agências da ONU e outros organismos internacionais, e também alguns cursos de diplomacia e negociações internacionais.
Dois professores de Direito Internacional da Universidade do Cairo foram escolhidos como árbitros, um de cada parte. Seguindo a praxe arbitral, os dois árbitros escolheram o terceiro, para presidir o tribunal, o professor Sausser Hall, da Universidade de Genebra. Estava constituído o tribunal. Tempos depois essa arbitragem foi examinada pelo diplomata Guido Fernando da Silva Soares, da legação brasileira em Genebra, que foi autorizado a divulgá-la parcialmente; graças a esse ilustre mestre de direito, ficamos sabendo dessa arbitragem, fato que o transformou no precursor da arbitragem no Brasil.
2. O direito aplicável
Importante passo inicial foi o de escolher o direito aplicável no julgamento da questão. Não poderia ser o direito norteamericano por ser a ARAMCO sediado nos EUA, ainda mais que estava localizada em Delaware, onde prevalece um direito especial. Não seria possível aplicar o direito da Arábia Saudita, por ser um direito muçulmano, não muito aplicável à questão. Poderia ser o direito suíço, visto que Genebra era a sede da arbitragem.
Os árbitros, em comum acordo com as partes, invocaram o princípio básico da arbitragem: vigora nela a autonomia da vontade, e, dentro desse princípio, as partes tem a faculdade de escolher qual será o direito aplicável no julgamento da questão, da mesma forma como tiveram a faculdade de escolher os aplicadores desse direito. Adotaram então as normas básicas do Direito Internacional, conjugadas com os PGD - Princípios Gerais do Direito, aplicados, porém, ao objeto específico do petróleo: foi criada a LEX PETROLEA, que passou a ser aplicada nas outras arbitragens que tivessem por objetivo as relações referentes ao petróleo. A relevância desse novo direito se nota no fato de ele ter penetrado na legislação interna de vários países.
3. Natureza jurídica da questão
O segundo passo do Tribunal Arbitral de Genebra, como ficou conhecido, foi o de estabelecer com segurança a natureza jurídica da questão, ou seja, do contrato de concessão celebrado entre um Estado e uma empresa privada, e, quando se fala em natureza jurídica, fala-se no sistema jurídico a que estiver vinculado o contrato. A mesma dificuldade surgiu, devido ao confronto entre vários sistemas jurídicos. Na Arábia Saudita os problemas petrolíferos estão previstos na Constituição do país como contratos administrativos. Todavia, o Tribunal Arbitral de Genebra não julgou assim, por ser contrato celebrado entre Estado e empresa privada, isto é, sem poderes estatais, situando-se a questão no âmbito do Direito Obrigacional, de caráter privado e internacional. Assim sendo, o contrato considerado pelo tribunal foi considerado como contrato de desenvolvimento econômico.
Outro problema se inseriu no relacionamento entre as partes. A Arábia Saudita havia celebrado contrato de transporte com o armador grego Aristóteles Onassis, para transportar o petróleo dela até a ARAMCO; esta, por sua vez, também celebrou contrato idêntico com o mesmo transportador para o transporte que resultasse com a concessão referente ao petróleo que adquiria diretamente na Arábia Saudita. Qualquer resolução surgida da arbitragem implicaria os interesses do transportador, razão pela qual ele foi incluído no processo.
4. Prazo para o julgamento
Não houve prazo dado ao tribunal para a resolução do problema, mas a exigência feita foi para que a arbitragem se realizasse de imediato. Justificava-se essa urgência porquanto o valor da causa atingia patamares astronômicos e cada dia de atraso significaria prejuízos para todos os envolvidos. Destarte, o julgamento foi quase momentâneo e ocorreu de forma satisfatória para todos, que receberam a solução em silêncio. Tempos depois, o ilustre diplomata brasileiro serviu na legação do Brasil em Genebra e se aprofundou nessa questão, e, com a concordância das partes deu divulgação ao evento, exceto a sentença arbitral. O julgamento tinha se realizado de forma sigilosa e a sentença teve só as vias entregues às partes; os documentos juntados foram devolvidos e as peças do processo foram destruídas na presença das partes, a fim de que não ficassem elementos identificadores do litígio.
5. Decisão modelo
O modelo da arbitragem do caso ARAMCO foi seguido por várias outras arbitragens relacionadas ao petróleo. O mais famoso desses casos envolvem a Líbia com a TEXACO e a CAOC-Californian Asiatic Oil Company. A Líbia desapropriou os bens dessas duas empresas, cancelando o contrato de concessão que lhes fora concedida. Embora o contrato de concessão previsse a solução arbitral para possíveis divergências, as empresas requereram a solução pela Corte Internacional de Justiça, mas esta declinou, alegando que o contrato estava na órbita do direito privado, indicando, porém, um árbitro para julgar a questão, o professor de Direito Internacional René Jean Dupuy, que solucionou o impasse, à revelia da Líbia.
Predominaram neste julgamento os mesmos princípios adotados no caso ARAMCO, que marcou história: a autonomia da vontade, o contrato do tipo acordo de desenvolvimento econômico. A cláusula arbitral apontando árbitro neutro transforma automaticamente o contrato em internacional, uma vez que o árbitro não poderia ser da nacionalidade de uma das partes. Não poderia ser julgado pela Justiça líbia, pois seria parcial, ainda mais que a Justiça líbia pertencia a uma das partes envolvida no litígio. O direito aplicável seria unilateral, por ser o direito de uma das partes.
O contrato celebrado entre Estado e empresa privada não é contrato administrativo e não pertence ao direito público; o Estado age como Estado-Empresário e não como Estado-Poder, podendo ser parte em julgamentos, segundo as convenções internacionais. A própria Corte Internacional de Justiça, que só julga questões de direito público, ou seja, relações entre Estados, recusou-se a tratar da questão, com base nesse critério, e indicou o árbitro para que realizasse a arbitragem, que foi aceito pelas duas empresas, mas à revelia da Líbia.
No laudo arbitral o professor Dupuy ressaltou os Princípios Gerais do Direito, realçando de forma especial o princípio da boa-fé. Havia presunção de que a Líbia e as duas petrolíferas agiram de boa-fé na celebração do contrato de concessão por 50 anos para explorar o petróleo no território líbio. Em nome desse princípio da boa fé a rescisão do contrato deveria ter sido realizada dentro dele, ou seja, de leal entendimento entre as partes, e não unilateralmente com o aconteceu. Se havia cláusula arbitral, a Líbia deveria se submeter ao julgamento arbitral, com base no princípio geral do direito: pacta sunt servanda.
6. Paralelo com a Justiça Pública
Ante a presteza e efetividade com que tão sério problema foi resolvido, ressalta-se a excelência do método arbitral na solução de litígios, e a necessidade de um paralelo com a Justiça Pública, que é a outra forma de resoluções. Como seria a resolução dessas divergências pela Justiça Pública, digamos a do Brasil? Naturalmente se trata de questão própria para a solução arbitral, que nem sempre cabe a outras questões, como, por exemplo, demarcação de terras. Há litígios aos quais a arbitragem não é sistema adequado, tornando-se necessário o recurso à Justiça Pública. No caso ARAMCO e outros semelhantes, a arbitragem se aplica de forma ultra eficiente. Vejamos, entretanto, como seria solucionar essa divergência pela Justiça Pública. Se fosse impetrada essa ação, o primeiro impasse seria a imunidade de jurisdição.
A Justiça brasileira não pode processar um Estado estrangeiro e condená-lo ou obrigá-lo a pagar custas e emolumentos. Ainda que fosse possível contornar essa situação, como poderia ser feita a citação da Arábia Saudita, se ela fosse ré? Por carta rogatória, fazendo com que o mandado de citação circulasse pelos intermináveis meios diplomáticos? Se for tentada a citação pela Embaixada em Brasília, o embaixador saudita pode impedir a entrada do Oficial de Justiça, já que ela é considerada território estrangeiro e nele só entra quem tiver autorização do embaixador. Calcule-se quanto tempo demoraria em suprir essa exigência!
O segundo problema processual é a aceitação do instrumento de mandato de cada parte envolvida, um passível de impugnação pelo outro. A procuração da Arábia Saudita poderá exigir a Constituição do País, traduzida por tradutor público juramentado e outras normas que concedam ao assinante do instrumento para representar seu País. A procuração das empresas também estará sujeita a outra burocracia, como a reunião da Diretoria autorizando a empresa a empreender ação. Note-se que esses trâmites demandam tempo, quando as partes estão querendo solução imediata.
Surgirão exigências mais graves, como o direito a ser aplicado, que forçosamente será o direito nacional, tanto quanto o internacional. Quantos volumes irão compor os autos desse processo é difícil ser imaginado. E, enquanto isso, a Arábia Saudita fica sem exportar seu petróleo, sua única fonte de renda.
Bacharel, mestre e doutor em direito pela Universidade de São Paulo - Advogado e professor de direito - Autor das obras de Direito Internacional: DIREITO INTERNACIONAL PÚBLICO e DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO, publicados pela EDITORA ÍCONE. E-mail: [email protected]
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ROQUE, Sebastião José. O caso ARAMCO: a arbitragem maior já realizada ditou regras Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 05 jun 2012, 08:24. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/29401/o-caso-aramco-a-arbitragem-maior-ja-realizada-ditou-regras. Acesso em: 23 dez 2024.
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