1. Introdução
A conhecida obra do autor Alfredo de Jesus, “The Prodigious Story of the Lex Petrolea and the Rhinoceros” [1] propõe a realidade da prática legal que se instituiu na indústria transnacional do petróleo no século 21, em seus contratos, e métodos de resolução de conflitos, a denominada Lex Petrolea. No referido texto, que merece leitura por seu conteúdo e originalidade, ordens legais são metaforicamente representadas através de rinocerontes, em analogia aos rinocerontes criados pelo artista Salvador Dalí.
Com essa metáfora, o texto explica que a visão que se possa ter em relação à existência, conteúdo e eficácia da Lex Petrolea depende, em grande medida, da percepção da dinâmica da moderna ordem mundial, sua economia e sua regulação. A visão do autor é de que, na ausência de um Governo Mundial, a regulação transnacional é uma forma autônoma e setorial de governança mundial.
Ainda, na ausência de uma Democracia Mundial, Alfredo de Jesus entende que a legitimidade do sistema e de suas regras deve ser encontrado na sua aceitação por parte dos membros da sociedade transnacional do petróleo. Esta aceitação pode ser observada, por exemplo, pelos esforços da indústria de petróleo e gás para produzir regras através de modelos de contratos, códigos de conduta, orientações e para estabelecer as melhores práticas e padrões internacionais, a serem incorporadas nos contratos e aplicadas pelos tribunais arbitrais.
A idéia de aceitação da existência e eficácia da Lex Petrolea, com a qual compartilho, é um caminho natural da transnacionalização da indústria do petróleo. A teoria será melhor explicada a seguir.
2. Origens
O comércio internacional é regido pelas práticas comerciais internacionais desenvolvidas ao longo do tempo, consolidando-se como uma legislação comercial internacional, conhecida como Lex Mercatoria. Assim, a Lex Mercatoria se consubstancia “(n)o primado dos usos no comércio internacional , se materializando também por meio dos contratos e cláusulas-tipo, jurisprudência arbitral, regulamentação de profissionais elaboradas por suas associações representativas e princípios gerais comuns às legislações dos países” [2].
Segundo José Maria Garcez, a Lex Mercatoria se traduziria pela constante institucionalização das normas disciplinadoras do comércio internacional, originada de um sistema de forças consuetudinárias, convencionais, jurisprudenciais e arbitrais desenvolvidas por uma miríade de organizações desvinculadas das estruturas estatais em geral voltadas para a prestação de serviços de arbitragem internacional[3].
Tratando –se da indústria do petróleo , pode –se dizer que sua internacionalização se deu quando as companhias passaram a exportar o óleo dos países produtores, criando assim um mercado internacional para o produto[4]. As economias dos países avançados industrial e tecnologicamente tornaram-se dependentes do petróleo, tendo em vista a necessidade de fontes de energia e sua escassez. O comércio realizado na indústria do petróleo inclui diversos agentes, nacionais e internacionais, tais como as corporações multinacionais (Internacional Oil Companies – IOC), países hospedeiros (Host Oil Countries – HOC), companhias estatais (National Oil Companies – NOC) e outros participantes como agência governamental (no caso do Brasil, a ANP – Agência Nacional do Petróleo), organizações não-governamentais e o próprio governo, que normalmente tem a propriedade do recurso natural[5].
Assim, o termo Lex Petrolea entrou no léxico legal e na indústria internacional de óleo e gás há mais de um quarto de século, surgindo pela primeira vez em um caso paradigmático de arbitragem, o caso ARAMCO v. Arábia Saudita, de 1958, que concluiu pela existência de uma lei consuetudinária válida para a indústria do petróleo, que seria um ramo da geral e universal Lex Mercatoria[6].
Tim Martin[7] sustenta que a Lex Petrolea se desenvolveu ao longo dos anos, alargando seu escopo e abrangendo outros fóruns, além das disputas decididas na arbitragem internacional e dos casos decididos pelas cortes nacionais. Logo, a Lex Petrolea também passou a envolver, por exemplo, a legislação sobre petróleo, os contratos e as práticas da indústria baseadas nesses modelos contratuais.
3. Aplicação
A Lex Petrolea se revela principalmente nos contratos-tipo e na jurisprudência arbitral[8].
Contratos- modelo ou contratos- tipo pretendem padronizar as expressões utilizadas comumente em contratos e são utilizados por diversas indústrias, com ênfase no mercado de commodities. Assim tem-se, por exemplo, no caso de grãos e fibras, os contratos GAFTA (Grain and Feed Trade Association), no caso do algodão, os contratos ICA (International Cotton Association) e, no Brasil, no caso específico da soja, os contratos ANEC (Associação Nacional dos Exportadores de Cereais)[9]. Da mesma forma na indústria do petróleo fortaleceu-se o uso de contratos modelos ou contratos- tipo, que são reconhecidos internacionalmente, tais como o contrato de concessão, o contrato de partilha, o acordo de participação e o contrato de serviço.
Ademais, a Lex Petrolea é comumente estabelecida através das decisões sobre disputas internacionais nos setores de óleo e gás, já que é aí que os contratos, as legislações e os tratados que afetam a indústria do petróleo são testados e interpretados[10]. A arbitragem adotada na indústria do petróleo segue o modelo da cláusula compromissória da AIPN (Association of International Petroleum Negotiators) e possui ampla tradição jurisprudencial. A Lex Petrolea teria aplicação nos contratos internacionais, notadamente, quando estes admitirem sua submissão aos princípios gerais do direito e às boas práticas da indústria do petróleo.
Diferentemente da maioria de cortes nacionais, o mundo da arbitragem internacional não está vinculada a precedentes, apesar de os árbitros tomarem suas decisões em um contexto, e não no vácuo. Uma vez que os advogados usam casos precedentes para construir seus argumentos e defender suas causas e os árbitros referem-se aos casos precedentes para fundamentar suas decisões, a Lex Petrolea foi se desenvolvendo com base nas práticas dos tribunais[11].
A Lex Petrolea não é feita de decisões unanimemente aceitas pela comunidade internacional e estão longe de ser algo semelhante ao que ao sistema da Common Law chama de ´blackletter law rule´, ou seja, normas genericamente bem estabelecidas e não mais sujeitas a discussão. Porém, deve-se reconhecer que um imenso progresso foi feito nos últimos 25 anos, de forma que normas claras se desenvolveram sobre algumas questões, enquanto sobre outras, ao menos alguns parâmetros e limites foram fixados.
A construção da Lex Petrolea serve para instruir e, de certa forma, regular a indústria internacional do petróleo[12]. Portanto, mesmo quando um acordo arbitral opta por aplicar a lei nacional para resolver as questões de mérito, os princípios da Lex Petrolea devem ser considerados. No caso ARAMCO v. Arábia Saudita, de 1958, entendeu-se que a lei nacional aplicável ao caso deveria ser interpretada e complementada pelos princípios gerais do direito, pelos costumes e pelas boas práticas da indústria do petróleo.
Mais tarde, em 1982, no caso Kwait v. AMINOIL, o governo apresentou como argumento um conjunto de decisões arbitrais proferidas em litígios da indústria petrolífera que teria originado a Lex Petrolea, como uma especialização da Lex Mercatoria. Os laudos arbitrais são importante fonte da Lex Petrolea, bem como seu principal campo de incidência. Diversos são os precedentes onde ela foi reconhecida como aplicável ao mérito da controvérsia, tanto de forma exclusiva, como subsidiária.
No caso Sapphire International Petroleum v. NIOC, os árbitros fundamentaram sua decisão de aplicação da Lex Petrolea à composição do litígio com base nos princípios da boa-fé e da cooperação entre as partes para identificar o conjunto de regras a reger o contrato em questão, afastando a lei nacional do Estado hospedeiro. No caso British Petroleum (BP) v. Líbia, os árbitros aplicaram a Lex Petrolea subsidiariamente para preencher as lacunas do direito líbio[13].
Portanto, o fato de a Lex Petrolea possuir um caráter transnacional, não se vinculando a nenhum ordenamento jurídico nacional e constituindo em práticas internacionalmente aceitas, o que justifica sua aceitação geral, tanto por Estados hospedeiros, como das empresas transnacionais atuantes no setor[14].
4. Conclusão
Retornando ao texto de Alfredo de Jesus, a Lex Petrolea, a ordem legal da sociedade transnacional do petróleo, pode ser representada por um rinoceronte similar ao rinoceronte que representa a Lex Mercatoria, pois passaram pelos mesmos caminhos, ultrapassando antigos paradigmas que não mais serviam às necessidade e interesses de seu tempo e reconhecendo a validade de suas próprias normas, específicas e autônomas.
Por fim, a Lex Petrolea a é uma ordem legal espontânea, criada pelos próprios players da indústria transnacional do petróleo, sob a crença do interesse comum de tornar a exploração e produção do petróleo viável e lucrativa, o que cria um solidarismo entre eles e encoraja a criação de um conjunto de normas especialmente designado para governar não apenas seus próprios contratos, mas também servem ao interesse da sociedade transnacional do petróleo[15]. Na autonomia dessas normas, tanto em razão sua origem consensual quanto em razão de seu conteúdo, repousa, portanto, sua legitimidade.
[1] A. DE JESÚS O. “The Prodigious story of the Lex Petrolea and the Rhinoceros. Philosophical Aspects of the Transnational Legal Order of the Petroleum Society”, in TPLI Series on Transnational Petroleum Law, Vol. 1, n°1, 2012.
[2]ALVES, C.M.B.B de C.C; MARINHO, C.A.M; VASSALLO, J.G de H. LEX PETROLEA: O DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO NA INDÚSTRIA DO PETRÓLEO. 4° PDPETRO, Campinas, 21-24 de Outubro de 2007. P.3. Disponível em http://www.portalabpg.org.br/PDPetro/4/resumos/4PDPETRO_8_2_0143-3.pdf. Data de Acesso: 24.11.2015
[3] GARCEZ, José Maria Rossani. Contratos Internacionais Comerciais. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 20.
[4]ALVES, Clarissa Maria Beatriz Brandão de C.C., op cit., loc cit.
[5] Ibid p.4
[6] Tim Martin ‘Lex petrol ea in international law’ in Ronnie King, Dispute Resolution in the Energy Sector: A Practitioner’s Handbook (Globe Law and Business 2012) p. 95.
[7] Idem
[8] ALVES, Clarissa Maria Beatriz Brandão de C.C ., op cit. p.4
[9]FAVACHO, Frederico. A gestão de conflitos em contratos internacionais do petróleo. Revista Brasileira de Direito Constitucional – RBDC n. 18 – jul./dez. 2011. P.255. Disponível em http://www.esdc.com.br/RBDC/RBDC-18/RBDC-18-243 Artigo_Frederico_Favacho_(A_Gestao_de_Conflitos_em_Contratos_Internacionais_do_Petroleo).pdf
[10] Ibid. p. 96
[11] Tim Martin., loc. cit., op cit.
[12] Albert Jan Van den Berg, Yearbook Commercial Arbitration 1994 Vol. XIX Vol. XIX (Kluwer Law International 1994).
[13] FAVACHO, Frederico.,op.cit., p.261
[14] ALVES, Clarissa Maria Beatriz Brandão de C.C ., op. cit., p.4
[15] A. DE JESÚS O., op. cit., p.49
Procuradora Federal. Formada em Direito pela Faculdade de Direito da UERJ. Pós Graduada em Direito Previdenciário pela Universidade Anhanguera - UNIDERP. Mestre em Direito de Energia e Recursos Naturais (Energy and Natural Resources Law) na Queen Mary Universitity of London
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LINS, Carolina Barreira. Considerações sobre a existência e aplicação da lex petrolea Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 15 dez 2015, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/45697/consideracoes-sobre-a-existencia-e-aplicacao-da-lex-petrolea. Acesso em: 23 dez 2024.
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