RESUMO: O estudo aborda alguns dos problemas encontrados pelo direito internacional privado ao verificar qual a legislação aplicável e a jurisdição competente nos casos de controvérsias envolvendo um contrato eletrônico celebrado em um país para ser executado em outro. São ainda analisadas algumas particularidades dos contratos internacionais de compra e venda pela internet e o papel da OMC, percebida como principal entidade do sistema multilateral de comércio, na uniformização das regras ligadas a esse tipo de atividade e quais as consequências de sua atuação no desenvolvimento e na organização dessa área do comércio internacional. Tratamos brevemente do papel da arbitragem - instituto que vem se tornando o procedimento padrão nessas situações em virtude da falta de especialização da justiça estatal e em alguns casos de sua morosidade - como mecanismo para solução de contendas comerciais internacionais. Dessa forma, discutimos a relação entre o desenvolvimento de normas internacionais que abarcam a nova situação de cooperação e de volumosas trocas comercias entre os diferentes países do globo, procurando evidenciar o imperativo de uma “globalização jurídica”, da normatização dessa relação, já existente entre os Estados, para fortalecer o direito internacional.
Palavras – chave: Comércio eletrônico; OMC; Globalização; Comércio Internacional; Direito Internacional.
ABSTRACT: The study addresses some of the problems found within the scope of private international law to verify which applicable legislation and competent jurisdiction for cases involving e-commerce contracts celebrated in one country to be executed in another country. Some particularities around international purchase and sale contracts through the internet have yet to be scrutinized and the role of the WTO, perceived as the principle entity of the multilateral commercial system, in the uniformization of laws linked to that type of activity and the consequences of its actuation in the development and in the organization of that area of international commerce. We treat briefly with the role of arbitration - an institution that has overturned the standard procedure in those situations by virtue of a lack of specialization in state justice and in certain cases by virtue of its slowness - as a mechanism for the solution of international commercial disputes. In that vein, we discuss the relationship between the development of international norms that encompass the new situation of cooperation and of voluminous commercial exchanges between the different nations of the globe, finding evidence for the imperative of developing a "juridical globalization" and for the normatization of the relationship, already existing between the nations in order to strengthen international law.
Keywords: E-commerce; WTO; Globalization; International trade; International law.
1 INTRODUÇÃO
Com a intensificação da globalização durante o século XX, houve uma expansão acelerada de intercâmbios comerciais internacionais, em virtude da liberalização do comércio de mercadorias, que teve início no final da Segunda Guerra Mundial, devido às transações estruturadas no Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT), e que tem se estendido até os dias atuais, na Organização Mundial do Comércio (OMC).
Criam-se então relações jurídicas multilaterais e junto com elas vêm a preocupação da comunidade internacional em regulamentá-las no intuito de trazer maior segurança para os envolvidos.
No que concerne ao comércio eletrônico, temos que uma das principais dificuldades em seu regramento se deve ao fato do sistema jurídico não estar preparado para uma atividade que envolve uma dimensão territorial tão grande, posto que os ordenamentos jurídicos são criados para tutelar situações que acontecem em um ambiente determinado.
Esse artigo abordará alguns dos problemas encontrados pelo direito internacional privado ao verificar qual a legislação aplicável e a jurisdição competente nos casos de controvérsias envolvendo um contrato eletrônico celebrado em um país para ser executado em outro. Assim como a Lei Modelo de Comércio Eletrônico (Model Law on Electronic Commerce), editada em 14 de julho de 1996.
Serão ainda analisadas algumas particularidades dos contratos internacionais de compra e venda através da internet, e o papel da OMC, percebida como principal entidade do sistema multilateral de comércio, na uniformização das regras ligadas a esse tipo de atividade, e quais as consequências de sua atuação no desenvolvimento e na organização dessa área do comércio internacional.
É possível observar dois importantes resultados para o mundo do direito e da política, ambos advindos do aumento da interdependência dos Estados. Um deles se trata do crescimento das regras internacionais que objetivam regular essa situação de interdependência, a qual a doutrina denomina “globalização jurídica”. A outra consequência é a ampliação do número e do campo de atuação das organizações internacionais devido aos processos de cooperação internacional e de integração regional.
Para Keohane (1989 apud MATIAS, 2014), o conceito de dependência é a possibilidade de estar subordinado ou ser significativamente afetado por influencias externas, se tratando interdependência, por sua vez, de uma dependência mútua. Dessa forma, qualquer alteração entre unidades interdependentes trará para a outra uma mudança previsível.
Quando no campo das relações internacionais se faz menção ao fato de que o mundo está se tornando cada vez mais interdependente, está se afirmando que os fatos ocorridos em um Estado têm cada vez mais a possibilidade de interferir em outro. A globalização corresponde à intensificação da interdependência dos Estados, e o crescimento de atividades transnacionais finda por conectar cada vez mais a história dessas nações.
Soma-se a essa situação, o fato de que está cada vez mais complicado para um governo de determinado país implementar suas políticas sem considerar a opinião de outros governos, assim como a do mercado.
Dessa forma, a metáfora utilizada no estudo das relações internacionais que considera os países como “bolas de bilhar”, pode ser inapropriada para diversos casos.
Nesse modelo, cada país seria uma unidade autônoma, e da forma como acontece com as bolas de bilhar, apenas a parte exterior entraria em contato com as outras, além disso, as bolas mais fortes e rápidas removeriam as outras de sua trajetória. Assim, haveria um convívio direto apenas entre governos, e o que acontecesse dentro dos limites de cada Estado não seria problema dos demais.
Com o aumento das relações transnacionais, tem-se observado uma tendência à institucionalização dos vínculos entre os Estados. Embora os Estados soberanos sempre tenham mantido ligações, maiores ou menores, entre si, chegamos a um momento em que a competição está sendo substituída pela cooperação.
Matias explica que o aumento dos vínculos entre Estados pós Segunda Guerra deve-se aos seguintes fatores:
O primeiro é a consciência por parte dos Estados de que eles não são auto-suficientes, de que o isolamento representa um retrocesso e de que o crescimento está vinculado à cooperação. O segundo fator é a coexistência de múltiplos Estados independentes. A combinação desses dois fatores ensejou a criação de um número inédito de tratados internacionais com a finalidade de disciplinar a vida dos Estados. Desse modo, ainda que a interdependência tenha sempre existido, com o tempo deixou de ser vista como um conceito simplesmente econômico, sociológico ou político, excessivamente genérico para ser levado em consideração pelo Direito. Ao contrário, a interdependência passou por um processo de cristalização, tornando-se uma noção essencial para o direito internacional contemporâneo. A interdependência confrontou os Estados com problemas que eles não conseguiriam resolver sozinhos, ou resolveriam melhor pela cooperação – o Estado não poderia mais ser visto como o instrumento único de regulação da vida internacional, já que, no contexto de uma ordem global altamente interconectada, haveria uma série de políticas públicas que não poderiam ser implementadas sem a cooperação com outros Estados, e várias funções públicas tradicionais dos Estados não poderiam ser cumpridas sem se recorrer a formas internacionais de colaboração (MATIAS, 2014, p.206).
Os benefícios que a cooperação internacional gera podem ser exemplificados com base na teoria dos jogos quando aplicada às relações econômicas internacionais.
Essa teoria demonstra como os atores se comportam em situações estratégicas, nas quais precisam escolher entre determinadas alternativas e, nesses momentos, devem considerar a reação dos outros Estados à decisão tomada. Os países sabem que a “saúde” dos mercados não depende somente de suas ações, posto que interagem entre si, logo, devem prever como suas decisões podem afetar as decisões alheias (MANKIW, 2014).
Uma situação a ser estudada fundamentada nessa teoria é, por exemplo, a das reduções tarifárias, que podem ser arranjadas unilateralmente ou por intermédio de um acordo internacional e, nesse último caso, seria mais vantajoso por mobilizar o apoio ao livre comércio e impedir que os Estados tomem parte em conflitos comerciais que trarão prejuízos ao seu bem-estar econômico e social.
Segundo Varian (2006, p. 543),
Os agentes econômicos podem interagir estrategicamente numa variedade de formas, e várias delas têm sido estudadas utilizando-se o instrumental da teoria dos jogos. A teoria dos jogos lida com análise geral de interação estratégica. Pode ser utilizada para estudar jogos de salão, negociações políticas e comportamento econômico.
Com base na teoria dos jogos, percebe-se então a necessidade dos Estados de gerir as políticas comerciais por meio de acordos internacionais, evitando assim uma guerra comercial. Os países podem em conjunto celebrar acordos de livre comercio ou assinar tratados regulamentando suas atividades comerciais, as vantagens abarcarão todos na medida em que cada um limita sua liberdade de ação.
Para auxiliar as questões de coordenação de interesses entre esses Estados, temos as instituições internacionais, que garantem a interação e a troca de informações, conduzindo os atores às conclusões mais próximas do ideal.
As instituições também asseguram a coordenação de políticas econômicas dos Estados e, raciocinando de acordo com a teoria dos jogos, temos que cada nação é um jogador com determinadas metas para atingir (por exemplo: produto interno bruto, inflação e balanço de pagamentos). Alcançar ou não as metas estipuladas, significa um ganho ou uma perda em bem-estar para cada país. Deliberações feitas de maneira independente tendem a resultados menos eficientes, por isso os países costumam coordenar suas políticas econômicas a fim de obter benefícios coletivos.
No que concerne à troca de dados, essa é parte fundamental do processo de coordenação. Quanto maior é o número de políticas estudadas em conjunto, melhores serão os resultados para futuras decisões que serão tomadas com base no intercâmbio de informações.
Podemos juntar a isso o fato de que a adoção de consultas prévias alertaria os governos sobre prováveis desordens em sua estabilidade econômica, como, por exemplo, incompatibilidade em taxas de câmbio ou inconsistências em programas fiscais.
As consultas ainda poderiam ajudar os Estados na prevenção de perdas, as quais poderiam ter origem em decisões tomadas com base em informações errôneas sobre os intentos de outras nações no que se refere às políticas econômicas e à situação econômica delas.
Dentro da comunidade internacional existem diferentes instituições por meio das quais as trocas de informações entre nações, assim como a coordenação de suas políticas econômicas, podem ser realizadas. São alguns dos foros internacionais de debates sobre política macroeconômica: reuniões periódicas da diretoria executiva do FMI; as reuniões ordinárias de representantes dos bancos centrais no Banco de Compensações Internacionais; as reuniões dos representantes do G7 ou do G8.
Por meio desses encontros é promovida uma constante atividade das instituições internacionais, e, em casos de crises que gerem consequências para as políticas macroeconômicas nacionais, estes são os locais para discussão da melhor forma de gerenciamento da crise.
As instituições internacionais são criadas, portanto, em virtude de uma necessidade dos Estados, que objetivam maiores benefícios advindos da atuação coletiva – em blocos econômicos -, quando comparados àqueles que conseguidos ao trabalhar de maneira individual, não abrindo mão de nenhum aspecto de sua soberania.
No que tange ao aumento ou à redução do comércio mundial dentro do processo de globalização, já é de amplo conhecimento as inúmeras vantagens que foram surgindo a partir da internacionalização dessa atividade. A partir do momento em que houve uma maior especialização em áreas de produtividade relativa, cada Estado passou a ter margem maior de consumo do que tinha antes, quando produzia singularmente.
Dessa forma, o resultado positivo do comércio internacional consiste em uma utilização mais eficaz das forças produtivas mundiais, o que acontece devido ao lucro trazido pelas economias de escala, que funciona da seguinte forma: cada país limita sua produção à uma determinada variedade de gêneros, e assim cada um desses produtos pode ser fabricado em uma quantidade maior e com mais eficiência, o que não seria possível se cada país intentasse a produção de todo tipo de mercadoria.
Quando os Estados retiram barreiras e promovem o comércio internacional, cada participante dessa atividade aumenta seu rendimento nacional. Quando um determinado país tem um custo bem menor para produzir um bem comparado a outros países, falamos em vantagem comparativa na produção dessa mercadoria. Logo, há vantagens mutuas quando cada país exporta produtos nos quais tem vantagem comparativa.
Isso descreve o que foi vivido durante a segunda metade do século XX, posteriormente à redução mundial das tarifas de importação. Nesse mesmo momento, observou-se também à formação dos blocos regionais.
Essa integração regional, por sua vez, possui algumas especificidades se comparada à cooperação internacional, como apresenta Celso Albuquerque de Mello (2004, p.736):
O regionalismo, como já vimos (Capítulo VII), se manifestou no DI, que possui poucas normas realmente universais. Ele é o resultado de interesses, de contiguidade geográfica e de cultura semelhante. Para atender a tais interesses é que surgiram as organizações internacionais de âmbito regional. Elas visam atender os problemas que são próprios desta região. Joseph Nye acrescenta, ao lado da organização regional, as organizações quase regionais. Aquelas são as em que os membros apresentam uma contiguidade geográfica e estas serão as restritas a determinada área, mas que na prática admitem membros não regionais (OTAN, OTASE). Karl Deutsch apresenta uma série de condições para o aparecimento do regionalismo e uma integração: a) os países devem ter um código comum para se comunicar; b) a velocidade dos contatos; c) valores básicos compatíveis; d) a previsibilidade do comportamento dos demais; e) uma elite que não se sinta ameaçada pela integração (v. nº256).
Dessa maneira, podemos entender que a integração regional depende de uma verdadeira ligação entre os Estados de uma determinada região, que os torna mais próximos entre si do que quando comparados a outros Estados. Logo, assim como já observamos que o comercio internacional traz benefícios àqueles que dele participam, temos que a eliminação das barreiras regionais também agrega bons resultados para os países regionalmente integrados.
A integração regional resulta no aumento do mercado consumidor, que por sua vez, dá vazão às economias de escala – nas quais é possível ter um aumento nas vendas a preços menores em virtude do baixo custo médio da produção -, assim, temos mercadorias mais competitivas.
É a expansão do mercado, a qual acontece quando há a união dos territórios, a principal razão de ser e consequência dos processos de integração. Além desse crescimento do mercado, pode-se ainda falar nas oportunidades de aplicação de mais recursos em pesquisa e desenvolvimento, hoje pontos importantes para o desenvolvimento da economia de uma região.
Nesse processo, os Estados também se esforçam para fazer a melhor utilização possível da complementaridade de suas economias, levando, por exemplo, cada um deles a focar e dispensar maiores esforços nas áreas em que possui maior eficiência produtiva, enquanto importa de seus vizinhos os produtos nos quais eles apresentam melhores vantagens comparativas.
Outro benefício resultante da integração regional é o aumento da concorrência devido à redução das tarifas entre as nações que fazem parte do bloco econômico. Conjuntamente ao aumento da concorrência sobre a produção e a distribuição de produtos, surgem as conhecidas vantagens para o consumidor, que são a melhor organização e eficácia sobre a produção.
Portanto, a integração regional tem também como finalidade a ampliação do espaço competitivo dos participantes desse processo. Ela permite o aumento da produtividade nos países, estimula a redução nos custos e o aumento na qualidade do que é produzido, e tudo isso alavanca a inserção desses Estados no mercado global.
No que concerne aos resultados oriundos da integração regional é questão recorrente saber se ela tende a prejudicar ou a fortalecer o comércio global. Para que essa dúvida seja solucionada, é necessário entender as concepções, formuladas por Jacob Viner, a partir de 1950, sobre desvio de comércio e de criação de comércio.
A criação de comércio se dá quando ao adotar um acordo de integração regional, um país é levado a substituir sua produção doméstica de alto custo pela importação de mercadorias produzidas por outros participantes do bloco econômico e isso traz vantagens para esse país. O desvio de comércio acontece, por sua vez, quando ao aderir ao acordo há substituição de importações com melhores custos provenientes de países que não compõe o bloco econômico por importações mais caras advindas de países membros, nesse caso trazendo prejuízos ao país importador.
No primeiro caso, o de criação de comércio, quando as barreiras tarifarias são eliminadas, os produtores internos menos competentes são preteridos em favor de produtores mais eficazes de outros países membros do acordo. Na situação de desvio de comércio, as negociações comerciais com países de fora do acordo são reduzidas, tendo em vista que os produtos daquelas nações que não aderiram ao pacto são excluídos em face aos produtos produzidos intrabloco, uma vez que passa a existir uma tarifa externa comum e uma liberalização das tarifas entre os países membros.
Com base nesses conceitos podemos concluir que uma união aduaneira mostra-se benéfica quando cria comércio e não o desvia, entretanto, para que isso aconteça a integração deve ostentar um caráter protecionista e a tarifa externa comum resultante ser inferior as tarifas de cada nação participante do bloco regional.
Ainda no que tange aos resultados benéficos que podem ser esperados após a integração dos países, pode-se afirmar que esses tendem a ser melhores nos casos em que os países que se reuniram já mantinham ou podiam manter entre si grande parte de todo seu comércio, quando comparado às negociações mantidas com países não membros. E ainda pode se esperar menor ocorrência de desvio de comercio quando a integração acontece entre economias que eram bastante interligadas.
Temos, portanto, uma forte ligação entre os fenômenos da globalização e da regionalização, porquanto que a integração econômica regional favorece a integração mundial.
O regionalismo é considerado, dessa forma, um processo complementar do aparelho multilateral de comércio, pois determinadas temáticas, em virtude de sua complexidade e sensibilidade política, podem ser melhor arranjadas num campo associativo menor do que em escala global. Uma quantidade menor de membros, muitas vezes se mostrará mais adequado para obter a cooperação.
A integração regional pode também contribuir significativamente para a integração econômica internacional, pois através dele um número menor de países desenvolve condições relevantes de cooperação quando comparadas as que seriam possíveis em um ajuste entre um número elevado de participantes.
Esses acordos regionais podem também ser utilizados para aprovar regras que respondam à necessidades específicas da região e, em um momento posterior, a análise de suas experiências e resultados poderá ser revista e adaptada para os objetivos multilaterais de cooperação.
A regionalização findou por tornar-se uma etapa da globalização e parece convergir com essa à longo prazo devido à forma como define suas políticas, utilizando instrumentos jurídicos internacionais que abrange princípios como o estimulo à livre competição e a circulação de capitais, pessoas, bens e serviços.
2.1. A normatização do comércio internacional
A interdependência demanda a criação de instituições internacionais para solucionar questões que os Estados não conseguiriam resolver sozinhos. Partindo dessa premissa, começa a serem criados diversos acordos pelos quais os Estados buscam regulamentar matérias que lhe são comuns em diferentes domínios.
A partir daí há o surgimento de normas internacionais que firmam essa cooperação entre nações, fortalecendo o direito internacional e evidenciando a necessidade de uma globalização jurídica, ou seja, da institucionalização dessa interação jurídica entre os Estados.
A globalização jurídica acontece, sobretudo, pela celebração de tratados, os quais podem objetivar a criação de uma organização internacional, de um tribunal internacional, ou simplesmente estabelecer regras que normalizem determinadas questões de interesse internacional. Esses tratados, por sua vez, podem alcançar níveis diferentes de normatização de acordo com a disciplina sobre a qual versam.
Na seara privada também acontece a globalização jurídica que não se resume apenas à ação dos Estados na propagação dos tratados em temas de direito internacional privado, como nos conflitos de jurisdição e os conflitos de leis.
Nesse campo, a interdependência internacional é ainda mais acentuada, pois envolve assuntos ligados à economia, mais especificamente ao ramo do comércio e dos investimentos internacionais. Destarte, a globalização, apesar de implicar a desregulamentação dos mercados e, consequentemente, o afastamento do Estado em benefício de um mercado mais livre, ocasiona também a produção de um corpo de regras jurídicas especificas.
Essas possibilidades se dão em virtude da celebração de contratos, que são a base das normas globalizadas de origem privada e, hodiernamente, os principais instrumentos de regulação do mercado globalizado. Consta no próprio pacto quais são as regras jurídicas que lhes são aplicáveis e essas regras, em alguns casos, tem origem em um conjunto de regras transnacionais, posto que a liberdade contratual autoriza isso às partes, sendo essas regras assinaladas pela doutrina como lex mercatoria.
A lex mercatoria funda-se nos usos e costumes do comércio internacional. MAGALHÃES (2012, p.175-176) apresenta as seguintes definições para o instituto:
[...] O enfraquecimento do papel do Estado e a atividade das denominadas operadoras de comércio internacional, permitiu o desenvolvimento de regras disciplinadoras do comércio internacional, fruto de reiterado uso e aplicação. Tais regras, nascidas da prática contratual, por vezes codificadas por organismos privados, foram caracterizadas como verdadeira lex mercatoria, um direito dos comerciantes ou de profissionais desvinculado das normas legais dos Estados. Um dos primeiros a detectar a existência desse direito foi Berthold Goldmann que, em artigo publicado em “Archives de Philosophie de Droit”, de 1964, procurou estabelecer as fronteiras entre as normas do direito estatal e a lex mercatoria. Segundo Goldmann, na venda internacional de bens, nas operações de crédito bancário e nos transportes é que se manifesta, com vigor, a autonomia contratual, desenvolvida à margem do processo legislativo dos Estados [...] Diversas são as tentativas de definição da lex mercatoria. Segundo Goldmann, é um conjunto de princípios e regras costumeiras, espontaneamente referidos ou elaborados no quadro do comércio internacional, sem referência a um sistema particular de lei nacional. Schmitthof a considera como princípios comuns de leis relacionados aos negócios comerciais internacionais, ou regras uniformes aceitas por todos os países, Langen a considera como regras do jogo do comércio internacional, enquanto que Goldstajn a identifica como o corpo de normas que regem as relações internacionais de natureza de direito privado, envolvendo diferentes países.
Entre as instituições que se destacam por colaborar com a elaboração dessas regras transnacionais, temos no âmbito privado, a Câmara de Comércio Internacional – CCI, com sede em Paris e, no intergovernamental, o Instituto internacional para a Unificação do Direito Privado – Unidroit, situado em Roma.
A CCI desenvolve os chamados Incoterms – definições padrão de termos relativos ao comércio – além de outros instrumentos. Já o Unidroit produz os princípios referentes aos contratos de comércio internacional, os quais consistem em um importante parâmetro para os Estados e para os operadores comerciais, ao prover preceitos uniformes aplicáveis à formação, ao conteúdo, à validade e à execução dos contratos.
Ao serem continuamente incorporadas aos contratos, as regras transnacionais vão se consolidando e sendo cada vez mais utilizadas pelos árbitros na apreciação dos casos a eles apresentados, por conseguinte, cria-se uma jurisprudência baseada nesse direito transnacional. Logo, seja pela via contratual, seja pela via jurisprudencial, a atividade dos operadores comerciais se converte em fonte do direito do comercio internacional.
2.2. O papel da arbitragem comercial internacional na normatização do comércio internacional
Entretanto, devemos notar que o valor do referido instituto não se encontra somente na possibilidade de consolidar as normas criadas pelos atores privados da globalização. Ela está também na aptidão que esses atores adquiriram em questionar os Estados em instâncias arbitrais.
Atualmente, no campo do comércio e do investimento, o direito internacional confere a alguns atores privados, como as empresas transnacionais, o direito de entrar em litígio diretamente com os Estados e de questioná-los perante jurisdições internacionais. Tendo em vista que a essas pessoas foram conferidos direitos e obrigações, podemos considerá-las, portanto, sujeitos na ordem jurídica.
No cotidiano dos negócios internacionais essas empresas celebram contratos com os Estados, os quais são denominados pela doutrina com “contratos de Estado”, designação que abrange os contratos realizados entre Estados e pessoas privadas estrangeiras. Nesses pactos, as empresas procuram se salvaguardar da capacidade do Estado de utilizar poderes oriundos não da sua posição de parte no contrato, mas da sua condição de Estado soberano, em meio ao cumprimento do acordo.
Um exemplo do que foi citado acima poderia ser um Estado modificando algumas das particularidades do ambiente jurídico no qual as atividades alusivas ao contrato se desenrolam, por meio de aumento dos impostos para a absorver a totalidade dos ganhos da empresa contratada, ou da imposição de proibição completa de repatriação de lucros.
Diante de tais possibilidades e a fim de evitá-las, as empresas passaram a procurar garantias de segurança jurídica, e para que isso seja alcançado procuram neutralizar o poder normativo do Estado, que se acha coibido de aplicar ao seu co-contratante toda nova legislação que vier a ser adotada.
As formas de garantir essa segurança na celebração dos contratos são as seguintes: acrescentar uma cláusula de estabilização no contrato, pela da qual a legislação nacional não poderá ser modificada para as partes, estando sempre na situação em que se encontrava no momento da assinatura do contrato; ou dispor no contrato a chamada cláusula de intangibilidade ou de inoponibilidade, que protege a empresa de possíveis mudanças na legislação estipulando que os direitos e as obrigações das partes não poderão ser alterados sem seu consentimento mútuo.
O Estado não pode ser proibido de alterar sua legislação, mas caso uma alteração venha a afetar um contrato que contém uma cláusula de estabilização, o Estado deverá responder por isso. Podemos ainda acrescentar a possibilidade das empresas, em observância ao princípio da liberdade contratual, adotarem como lei aplicável ao contrato um conjunto de normas diferentes da lei do Estado contratante.
Todavia, a internacionalização do contrato só será eficaz se a ele for adicionada uma cláusula compromissória, no intento de evitar que o Estado faça uso de sua soberania por meio de sua imunidade, a qual iria obstruir seu julgamento pela jurisdição de outro Estado e levaria o litígio a ser obrigatoriamente analisado pelos tribunais do próprio Estado contratante.
Com a complementação dada pela cláusula compromissória, o contrato poderá ser avaliado com base no direito internacional, caso este tenha sido escolhido como lei aplicável. Além disso, ao compreender no contrato uma cláusula que preveja arbitragem como forma de resolução de conflitos e permita que o Estado seja questionado perante uma jurisdição exterior a ele, a empresa aumenta suas chances de, caso se faça necessário, auferir uma indenização por violação do contrato pelo Estado.
As cláusulas compromissórias, além de obrigatórias, são intangíveis, não podendo, dessa maneira, ser afetadas por mudanças ocorridas no restante do contrato. Ou seja, os Estados não podem invocar sua imunidade de jurisdição no que se refere a um acordo arbitral.
É importante que hoje os atores privados possam utilizar esse tipo de arbitragem “mista” ou “transnacional” de caráter ad hoc para salvaguardar seus direitos. Em outros tempos, as empresas estavam sujeitas a proteção diplomática para questionar seus direitos, tal instituto do direito internacional permite a um Estado defender as reivindicações de seus nacionais para obter a reparação de danos que lhes tenham sido causados por um Estado estrangeiro. Esse instituto, assim sendo, transforma a contenda entre as partes contratantes em litígio entre Estados, uma vez que o Estado protetor substitui o ator privado.
Em conjunto com as arbitragens de caráter ad hoc, existem hoje outras instituições permanentes destinadas à arbitragem com as quais os atores privados podem contar, são elas: a Câmara de Comércio Internacional e a Associação Americana de Arbitragem (American Arbitration Association). Ambas as instituições não só apreciam diversos casos, mas possuem regulamentos adotados como modelo por árbitros em todo mundo. Uma outra instituição que possui grande relevância no contexto dos contratos celebrados entre Estados e particulares é o Centro Internacional para a Resolução de Disputas Relativas aos Investimentos (International Centre for Settlement of Investment Disputes – ICSID):
Muito embora o ICSD possa ser usado também em situações envolvendo a mediação, a instituição se consagrou pelo aparato colocado à disposição das partes para a solução de controvérsias via arbitral. O ICSID não é, em si, um ente conciliador ou tribunal arbitral, mas uma instituição dotada de um conjunto de regras e estrutura que permitem o estabelecimento de procedimentos de mediação e arbitragem. Assim é que, de um lado, o Conselho Administrativo estabelece as regras e procedimentos a serem seguidos pelas partes envolvidas em procedimentos de mediação e arbitragem, assim como regras para gerir o próprio órgão. De outro lado, a Secretaria encarrega-se de questões administrativas, como por exemplo o suporte aos procedimentos em curso perante o ICSD. O ICSD possui uma lista de árbitros que podem integrar um tribunal arbitral. Para formação dessa lista, cada Estado – parte deve indicar quatro nomes. Isso não impede, contudo, que as partes, em um procedimento arbitral, indiquem outros nomes que não constem da lista para integrar o tribunal arbitral construído segundo as regras do ICSID. (GIUSTI; TRINDADE, 2012, p.1220 -1221)
O ICSID foi instituído pela convenção de Washington, firmada em 1965 sob os esforços do Banco Mundial, sendo sua jurisdição aceita pela grande maioria dos países. Ele é um sistema de arbitragem permanente, cuja competência se limita, ratione materiae, aos litígios de ordem jurídica relativos a investimentos, e ratione personae, a pleitos que opõem um Estado contratante a uma pessoa privada nacional de outro Estado signatário da Convenção de Washington. O consentimento outorgado pelos Estados ao aceitar a jurisdição do ICSID é irrevogável e não pode ser unilateralmente retirado, e também os compromete a renunciar outras maneiras de solução de disputas.
Ao analisarmos, mesmo que de forma sucinta, alguns ramos nos quais se multiplicam novas regras de caráter internacional, já podemos perceber o quanto o crescimento da interdependência entre nações tem influenciado o Direito.
Tanto na alçada pública, quanto na privada, as atividades passaram a demandar por regras e instituições que atuem de maneira transnacional. Em resposta a tais exigências, os Estados começaram a tomar parte no desenvolvimento dessa regulamentação jurídica, mesmo que sua participação seja limitada ao consentimento com a elaboração dessas normas.
3 REGULAMENTAÇÃO JURÍDICA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS DE COMÉRCIO ELETRÔNICO
Um dos grandes problemas para a regulação das relações geradas pelo comercio eletrônico se encontra, em princípio, no fato do sistema jurídico não estar preparado para uma atividade que envolve uma dimensão territorial tão grande, tendo em vista que os ordenamentos jurídicos são desenvolvidos para tutelar situações que acontecem em um determinado espaço.
Não bastando isso, a velocidade com que os fatos se desenvolvem no mundo virtual e a complexidade dos elos ali criados não costuma ser acompanhada pelos legisladores, e assim, o comércio eletrônico se consolida por meio de uma autorregulação, pela adoção de costumes apregoados na internet.
A consequência advinda desse fato é uma ideia de insegurança para aqueles que realizam negócios via internet, uma sensação de que naquele meio não há amparo jurídico, de “terra sem lei”. Embora o sentimento exista, já é sabido que isso não reflete a realidade atual.
O comércio eletrônico mundial movimenta vultosas somas em dinheiro, envolve empresas de grande porte, e hoje é uma atividade tão comum na sociedade quanto realizar uma compra em supermercado, pois, com a difusão da internet e a facilidade de seu acesso, são poucos os cidadãos que não participam ou, ao menos, sabem da existência dessa prática.
E partindo desse reconhecimento, a comunidade internacional mostra-se cada vez mais preocupada em regulamentar essa atividade numa tentativa de positivar novas regras para o e-commerce.
Nesse contexto, alguns países já se inclinaram a desenvolver leis específicas sobre o comércio eletrônico – que visam adequar e uniformizar as normas de comércio eletrônico em padrão mundial –, sendo a maioria delas inspiradas na Lei Modelo criada pela UNCITRAL (Comissão das Nações Unidas de Direito Comercial Internacional).
A UNCITRAL[1] foi criada pela Assembleia Geral da ONU, e desde então tem realizado vários estudos no intuito de regulamentar o comércio internacional. No âmbito do comércio eletrônico já produziu as seguintes regulamentações: a Lei Modelo da UNCITRAL sobre Comércio Eletrônico (1996), a Lei Modelo da UNCITRAL sobre Assinaturas Eletrônicas (2001), o Projeto de Lei sobre Contratos Eletrônicos (2003) e a Convenção das Nações Unidas sobre o uso das Comunicações Eletrônicas nos Contratos Internacionais (2005).
Esse artigo abordará com mais profundidade os aspectos da Lei Modelo de Comércio Eletrônico (Model Law on Electronic Commerce), a qual foi resultado de diversos debates sobre o assunto com os países membros da ONU e após a aprovação das regras estipuladas, foi editada em 14 de julho de 1996, sendo adotada em dezembro do mesmo ano pela Assembleia Geral.
A referida Lei foi a primeira ação desse organismo para regulamentar o comércio eletrônico, e trouxe respostas para alguns problemas encontrados na prática do e-commerce como explica Bruno apud Ribeiro (2004, p.18):
[...] a Lei modelo tenta regulamentar os temas mais polêmicos do comércio eletrônico que são a integridade do conteúdo do documento, falta de assinatura de próprio punho dos contratantes e a identidade das partes envolvidas nesse comércio. Sublinha, também, a importância da integridade da informação para que seja validada e fixa os critérios necessários para a autenticação das mensagens eletrônicas. Quanto aos contratos a Lei Modelo deixa a cargo de cada país desenvolver uma regulamentação interna a respeito.
Outra preocupação da UNCITRAL ao criar essa Lei Modelo foi o entendimento de que a harmonização das regras de comércio de eletrônico permitiria maior participação dos países em desenvolvimento no comércio global, pois, com as regras uniformes, admite-se uma maior paridade entre as nações na prática dessa atividade.
A Lei Modelo fornece aos legisladores de cada país normas aprovadas internacionalmente, todas elas apontando formas de contornar obstáculos legais e tornar o comércio eletrônico seguro, sob uma perspectiva jurídica. Ela pode ser utilizada para qualquer tipo de troca de informações eletrônicas presentes no contexto dessa prática comercial.
A Lei Modelo traz disposições gerais sobre o comércio eletrônico e também em áreas específicas, como transporte de mercadorias, além de um guia com informações adicionais e explicações para orientar leitores e os próprios Estados na adoção das regras e criação de sua legislação própria[2].
Embora a Lei Modelo da Uncitral represente um grande avanço na regulamentação do comércio eletrônico, ela ainda não cobre a matéria como seria necessário. Por exemplo, não há uma abordagem de assuntos referentes à internacionalidade da relação jurídica, logo, não são apresentadas soluções sobre qual seria a lei aplicável e a jurisdição competente, ambas noções indispensáveis para o direito internacional privado.
As orientações presentes na Lei Modelo têm sido cada vez mais utilizadas, uma quantidade expressiva de países[3], entre eles Austrália, Canadá, Barbados, Venezuela, já criaram leis para o comércio eletrônico tendo-a como base.
Existem outras organizações que também se dedicam ao estudo e desenvolvimento de regras atinentes ao comércio eletrônico internacional, como a OCED – Organização para a Cooperação Econômica e Desenvolvimento (Organization for Economic Co-operation and Development), a OMPI – Organização Mundial da Propriedade Intelectual ( World Intellectual Property Organization) e a OMC – Organização Mundial do Comércio (World Trade Organization), da qual falaremos posteriormente.
4. O PAPEL DA OMC NA REGULAMENTAÇÃO DO COMÉRCIO ELETRÔNICO INTERNACIONAL
O comércio internacional pode ser regulado por dois Estados que mantenham relações comerciais entre si, entre alguns Estados, ou ser organizado de forma a permitir a participação de todos os países do globo.
As relações jurídicas criadas podem então ser bilaterais ou multilaterais. O principal organismo do sistema multilateral de comércio é a Organização Mundial do Comércio, que atua na promoção do livre comércio no mundo, para que ele seja exercido em condições equilibradas nas relações comerciais entre países, sem tratamentos discriminatórios e barreiras.
A OMC é parte do Sistema das Nações Unidas, criada pelo Acordo Constitutivo da Organização Mundial do Comércio, parte da Ata de Marrakesh, assinado em 1994[4]. A entidade possui um conjunto de órgãos permanentes, Estados - membros e regras jurídicas que instituem padrões de conduta destes.
Os acordos delineados na OMC são negociados entre a maior parte dos países do mundo, e após sua conclusão são adotados nos ordenamentos jurídicos internos de cada um deles.
A primeira menção direta na OMC ao tema comércio eletrônico aconteceu na Conferência Ministerial em Genebra, em 1998. Nessa conferência, em reconhecimento ao fato de que o comércio eletrônico estava crescendo e trazendo novas oportunidades para o comércio, o Conselho Geral propôs a criação de um programa de trabalho (Work Programme on Electronic Commerce) abrangente para o exame de todas as questões relativas ao comércio eletrônico global. Como pontos principais foram estabelecidos que os membros continuariam com a política de não impor taxas aduaneiras para o comércio eletrônico[5] e que o conteúdo dos acordos da OMC é aplicável ao comércio eletrônico.
Para realizar os estudos sobre o comércio eletrônico, o programa de trabalho criou as comissões de Conselhos de Comércio de Serviços, o Conselho do Comércio de Bens, a Comissão sobre Comércio e Desenvolvimento e o Conselho para TRIPs – Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual relacionados com o Comércio (Souza, 2011).
Sobre as funções das comissões, explica Souza (2011, p.9-10):
Ao conselho de Comércio e Serviços imcumbiu-se a análise e relatório sobre o tratamento e enquadramento legal do comércio eletrônico no âmbito do GATS – General Agreement on Trade and Tariffs. Ao Conselho do Comércio de Bens outorgou-se o dever de examinar e relatar os aspectos relevantes do comércio eletrônico para as disposições do GATT 1994, General Agreement on Trade and Tariffs, os acordos comerciais multilaterais abrangidos pelo anexo 1ª do Acordo OMC, e o programa de trabalho aprovado. O conselho para os aspectos relacionados com o comércio de direitos de propriedade intelectual, denominado TRIPS, doutra feita, examinará e informará sobre as questões de propriedade intelectual relacionados ao comércio eletrônico. Por fim, no programa de trabalho de comércio eletrônico, convencionou-se que caberá ao Comitê sobre Comércio e Desenvolvimento analisar e informar as implicações para o desenvolvimento do comércio eletrônico, levando em consideração as características econômicas, financeiras e necessidades dos países em desenvolvimento.
Os estudos iniciados em 1998 continuaram e nos anos seguintes, entre 1999 e o ano 2000, os relatórios entregues ao Conselho Geral trouxeram alguns pontos importantes sobre o tema. Dentre eles a identificação de três tipos de negócios que ocorrem por meio da internet: os que acontecem inteiramente no meio virtual, os que englobam serviços de distribuição de produtos (mercadorias ou serviços) e os que abrangem serviços de telecomunicações (FORTES, 2013).
Em 2001, aconteceu a Quarta Conferência Ministerial em Doha, Qatar. Nela foi acordada a continuação do programa de trabalho, bem como a continuação da inexigibilidade de taxas alfandegárias nas atividades de e-commerce. Além disso, foram apresentados relatórios sobre os avanços obtidos na área e o reconhecimento da existência de novos desafios criados pelo comércio eletrônico aos membros da OMC, mas, que isso só reforçaria a necessidade de criar e manter um ambiente favorável para o desenvolvimento da atividade[6].
No ano de 2002 as orientações da Declaração de 1998 continuaram a ser seguidas, assim como nas Conferências Ministeriais seguintes, tendo em sido tomada em Hong Kong (2005) decisão relativa ao tratamento comercial que deve ser dispensado nos casos de entrega de softwares por via eletrônica.
Na Conferência de Genebra (2011), após a apresentação de relatórios e novas propostas pelos membros, ficou decidido, entre outras questões, que o Work Programme on Electronic Commerce terá prosseguimento com objetivo de desenvolver ainda mais as discussões sobre a aderência dos membros aos princípios básicos da OMC – em especial pelos países desenvolvidos -, incluindo a não discriminação, a previsibilidade e a transparência, com o intuito de melhorar a conectividade à internet, o acesso a todas as tecnologias da informação, telecomunicações e sites públicos, promovendo o crescimento do comércio eletrônico,em especial nos países em desenvolvimento. Na mesma ocasião, ainda se falou sobre o acesso ao comércio eletrônico por micro, pequenas e médias empresas, incluindo pequenos produtores e fornecedores[7].
Na concepção da OMC, o comércio eletrônico é a produção, propaganda, venda e distribuição de produtos por meio das redes de telecomunicação, e é através dos mencionados debates que ela procura dentre as normas já consagradas na organização qual é a adequada para regular essa atividade, além de buscar estratégias que aperfeiçoem esses acordos.
Uma das causas que dificultam a implementação plena dos acordos já criados, diz respeito a classificação que eles trazem sobre bens e serviços, e,ainda, se os produtos hoje disponíveis no ambiente virtual se enquadrariam nela.
Partindo desse pressuposto, seria possível definir se seria aplicado o GATS (Acordo Geral sobre Comércio de Serviços) ou o GATT ( Acordos Multilaterais de Comércio de Bens) à essas relações, e quanto a outro importante acordo assinado na OMC, o Acordo sobre Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (TRIPS), não resta dúvida de sua grande aplicabilidade em assuntos relacionados ao comércio eletrônico, uma vez que determina a aplicação de normas de proteção a propriedade intelectual.
O GATS possui um conjunto de princípios que regulam a atividade internacional de comércio e serviços, abarca ainda os serviços de comunicação e a infraestrutura que possibilita o comércio pelas vias eletrônicas. Em seus 29 artigos, trata do seu âmbito de aplicação e definições; obrigações e disciplinas gerais; compromissos específicos; liberalização progressiva; disposições institucionais; disposições finais (RIBEIRO,2004).
Ele estabelece também as modalidades de prestação de serviço:
Modalidades de Serviço |
Descrição |
Exemplo |
Modalidade 1 |
Transfronteiriço Prestação de um serviço com origem no território de um Membro e com destino ao território de qualquer outro Membro. |
Serviços transferidos por redes de telecomunicações, serviços de transporte e outros. |
Modalidade 2 |
Consumo no exterior Serviço no território de um Membro a um consumidor de serviços de qualquer outro Membro. |
Serviços de consumo no exterior como turismo, educação e outros. |
Modalidade 3 |
Presença comercial Execução de um serviço realizado por um prestador de serviços de um Membro através da presença comercial no território de qualquer outro Membro. |
Serviços realizados pelos escritórios de bancos, pelas seguradoras, agências de publicidade e outros. |
Modalidade 4 |
Movimento de pessoas físicas Serviço realizado por um prestador de serviços de um Membro através da presença de pessoas naturais de um Membro no território de qualquer outro Membro |
Serviços prestados por médicos,jogadores, consultores e outros. |
Fonte: RIBEIRO(2004, p.7)
O GATT, por sua vez, faz referência tanto ao tratado que regula o comércio internacional, ao qual iremos nos referir agora, quanto ao organismo que cuidava da aplicação de suas normas antes da criação da OMC.
O GATT de 1994, Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio, é o principal instrumento jurídico da OMC, e nele estão contidas as disposições do GATT original e todas as alterações que surgiram em rodadas de negociações posteriores. O documento apresenta uma descrição de alguns dos princípios gerais que devem nortear o desenvolvimento do comércio e as negociações comerciais internacionais (PORTELA, 2012). Apesar de seus princípios fundamentais também serem adequados ao comércio de serviços e aos direitos de propriedade intelectual, ele ainda é um pacto que trata exclusivamente de bens.
Para a União Europeia todas as transmissões por meio eletrônico consistem em prestações de serviços, logo, o comércio de produtos realizado através da internet deve ser orientado pelo GATS, compartilhando dessa posição a grande maioria dos países membros da OMC.
Entretanto, algumas mercadorias à venda pela internet são entendidas, por alguns Estados, como um misto de bem e serviço, como, por exemplo, um livro eletrônico. Ainda que tenham esse entendimento, os que assumem tal posição consideram que ainda são necessários mais estudos antes de definirem a classificação dos bens virtuais.
Todavia, independentemente das dissensões sobre o tema, qualquer acordo que seja adotado, necessita de alguns ajustes e revisões para se adequar à nova realidade do comércio eletrônico e terá que continuar sendo adaptada em curtos intervalos de tempo, em virtude da dinamicidade característica da rede mundial de computadores.
Por fim, permanece como grande desafio para os organismos internacionais que desempenham suas atividades na regulação do comércio internacional, o dever de assegurar a criação de normas adequadas e homogêneas, que facilitem e fomentem o desenvolvimento do comércio, e não deixem aos Estados brechas para criação de leis de cunho protecionista diante da liberdade de legislar que cada um deles possui.
CONCLUSÃO
A grande interação que existe atualmente entre as economias mundiais tem como consequência a relação de interdependência entre nações, dessa forma, todas as políticas adotadas por um Estado têm – inevitavelmente – resultados que vão além de suas fronteiras. Assim, há um importante processo que envolve a cooperação internacional e que pode trazer benefícios à todas as nações envolvidas, uma vez que essas alinham suas ações para atingir objetivos comuns.
Esse trabalho procurou discutir a relação entre o desenvolvimento de normas internacionais que abarcam essa nova situação de cooperação e de volumosas trocas comercias entre os diferentes países do globo. Com isso procuramos evidenciar o imperativo de uma “globalização jurídica”, da normatização dessa relação já existente entre os Estados fortalecendo o direito internacional.
Tratamos brevemente do papel da arbitragem como mecanismo para solução de contendas comerciais internacionais, instituto que vem se tornando o instituto o procedimento padrão nessas situações, em virtude da falta de especialização da justiça estatal e em alguns casos de sua morosidade.
Observamos que a Lei Modelo da Uncitral trouxe grande progresso no regramento das atividades de comércio eletrônico, todavia ainda não compreende a matéria de forma completa, não trazendo em seu conteúdo algumas respostas necessárias para o direito internacional privado, como assuntos que dizem respeito à internacionalidade da relação jurídica.
O direito interno de muitas nações ainda é vago ao analisar o comércio eletrônico internacional, deixando muitas dúvidas que acarretam em danos, em especial pela vinculação desses contratos à elementos estrangeiros. São muitos os problemas relacionados aos conflitos de jurisdição que não podem ser solucionados nos casos em que as partes não manifestam interesse no uso da arbitragem.
Resta então à comunidade internacional trabalhar em prol da regulamentação do comércio eletrônico internacional, com objetivo de adotar normas apropriadas e comuns que, por sua vez, promovam e simplifiquem essa atividade.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Lei nº 10.406 de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União. Brasília,10 de Jan de 2002. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm. Acesso em: 5jun 2013.
______. Decreto-Lei nº 4.657 de 4 de setembro de 1942. Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. Diário Oficial da União. Rio de Janeiro, 4 de Set de 1942. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del4657compilado.htm. Acesso em: 5 jun 2013.
FORTES, Christienne Krassuski. Notas sobre o comércio eletrônico e suas implicações na realidade jurídica contemporânea: uma leitura interdisciplinar. Disponível em: . Acesso em: 02 mar. 2013.
MAGALHÃES, José Carlos; TAVOLARO, Agostinho Toffolli. Fontes do direito do comércio internacional: a Lex Mercatoria. In: AMARAL, Antonio Carlos Rodrigues (Org.). Direito do comércio internacional: aspectos fundamentais. São Paulo: Aduaneiras, 2004.
MELLO, Celso D. de Albuquerque. Curso de direito internacional público. 15 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, v.1.
MANKIW, N. Gregory. Introdução à economia. 6ª ed. São Paulo: Cengage Learning, 2014.
MATIAS, Eduardo Felipe P. A humanidade e suas fronteiras: do Estado soberano à sociedade global – 4ª Ed. – São Paulo: Paz e Terra, 2014.
PORTELA, Paulo Henrique Gonçalves. Direito internacional público e privado. 4ª ed. Salvador: Juspodium, 2012.
RIBEIRO, Gleisse. OMC e as Iniciativas para Regulamentação dos Contratos Via Internet. Prismas: Direito, Políticas Públicas e Mundialização, Brasília, v. 1, n., p.1-23, 2004. Disponível em . Acesso em: 02 mar. 2013.
SOUZA, Luciano Comper de. O Comércio Eletrônico Global: desenvolvimento e regulação internacional. Revista Virtual: Faculdade de Direito Milton Santos, Minas Gerais, v. 9, n., p.1-18, 2011.
UNCITRAL Model Law on Electronic Commerce. New York, 1999.Disponível em: http://www.uncitral.org/pdf/english/texts/electcom/05-89450_Ebook.pdf. Acesso em: 10 jun 2013.
VARIAN, Hal R. Microeconomia: conceitos básicos – 7ª Ed. – Rio de Janeiro: Elsevier, 2006.
[1]“United Comission on International Trade Law -, criada pela ONU em 17 de dezembro de 1962 com a específica missão de fomentar a harmonização e a unificação progressiva do direito comercial internacional através da coordenação dos trabalhos de outras organizações, além de preparar novas convenções sobre temas específicos do comércio internacional” (RIBEIRO, 2004, p.17), com intuito de fomentar e aumentar as oportunidades de transações comerciais internacionais, a Uncitral ainda prepara e disponibiliza convenções, leis-modelo, e regras com aceitação mundial; guias com recomendações legislativas; informações atualizadas sobre jurisprudência em matéria de direito comercial; entre outras atividades. Disponível em: , acesso em: 19 jun 2013.
[2] 1996 – UNCITRAL Model Law on Electronic Commerce with Guide to Enactment with additional article 5 bis a adopted in 1998. Disponível em: <http://www.uncitral.org/uncitral/en/uncitral_texts/electronic_commerce/1996Model.html>, acesso em 18 jun 2013.
[3]Informações na página da UNCITRAL sobre os países que já adotaram em suas jurisdições leis baseadas na Lei Modelo, disponível em: , acesso em: 18 jun 2013.
[4] [...] “O tratamento do tema comercial à época era feito por meio de negociações multilaterais conhecidas como “rodadas de negociação”. Uma delas, a Rodada do Uruguai, que se realizou entre 1986 e 1994, resultou na elaboração da Ata Final da Rodada do Uruguai de Negociações Multilaterais do GATT (“Ata de Marraqueche”), firmada em 1994, pela qual o GATT original foi substituído pelo chamado “GATT 1994” e por meio da qual foi criada a Organização Mundial do Comércio (OMC) ” (PORTELA, 2012, p.404 e 405)
[5]Declaration on Global Electronic Commerce, disponível em: < http://www.wto.org/english/thewto_e/minist_e/min98_e/ecom_e.htm >, acesso em: 20 jun 2013.
[6] “We take note of the work which has been done in the General Council and other relevant bodies since the Ministerial Declaration of 20 May 1998 and agree to continue the Work Programme on Electronic Commerce. The work to date demonstrates that electronic commerce creates new challenges and opportunities for trade for members at all stages of development, and we recognize the importance of creating and maintaining an environment which is favourable to the future development of electronic commerce”. Disponível em: , acesso em: 20 jun 2013.
[7]WORLD TRADE ORGANIZATION (Geneva). WORK PROGRAMME ON ELECTRONIC COMMERCE: Decision of 17 December 2011. Disponível em: . Acesso em: 20 jun. 2013.
Advogada. Graduada em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Pós Graduada em Direito Civil e Empresarial pela Faculdade Damásio de Jesus.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BARBALHO, Anna Beatriz Cabral. A cooperação internacional e a normatização do comércio externo Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 10 maio 2017, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/50051/a-cooperacao-internacional-e-a-normatizacao-do-comercio-externo. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Marcele Tavares Mathias Lopes Nogueira
Por: Patricia Araujo de Brito
Por: Lucas Soares Oliveira de Melo
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