Introdução
O presente estudo tem por escopo discutir a aplicação e constitucionalidade do artigo 478 do Código de Processo Penal após o advento da Lei 11.689/08.
A reforma do Código de Processo Penal, através das Leis 11.689/08 (que disciplina o procedimento do júri), 11.690/08 (acerca das provas no processo penal) e 11.719/08 (sobre novas regras procedimentais), teve o intuito de adequar o processo penal à Constituição Federal de 1988, vez que o Código de Processo Penal pátrio data do longínquo ano de 1941.
Entretanto, embora o legislador pátrio tenha buscado com a reforma resguardar as garantias individuais previstas na Carta Magna, vislumbramos que em razão do excesso de zelo, acabou por macular, no art. 478 do CPP, as garantias processuais estabelecidas no próprio Texto Maior.
Do artigo 478 do Código de Processo Penal
Estabelece o artigo 478 do CPP, com a redação dada pela Lei 11.689/08:
“Art. 478. Durante os debates as partes não poderão, sob pena de nulidade, fazer referências:
I – à decisão de pronúncia, às decisões posteriores que julgaram admissível a acusação ou à determinação do uso de algemas como argumento de autoridade que beneficiem ou prejudiquem o acusado;
II – ao silêncio do acusado ou à ausência de interrogatório por falta de requerimento, em seu prejuízo.”
Em relação ao inciso I do referido artigo, a vontade do legislador foi no sentido de impedir que a acusação fizesse uso da argumentação referente à decisão de admissibilidade da acusação para que não influencie os jurados em relação ao posicionamento do magistrado togado, fazendo crer aos jurados que a decisão de admissibilidade fosse uma sentença de mérito que devesse ser seguida. No tocante ao uso de algemas, a proibição visa impedir que a acusação o trate como animal que precisa ser acorrentado para não atacar a sociedade e os próprios jurados.
Já quanto ao inciso II, a proibição de alegação quanto ao silêncio do réu vem no sentido de preservação de que o acusado não é obrigado a fazer prova contra si mesmo, evitando que os jurados leigos sejam influenciados por afirmações no sentido de que ‘quem cala consente’.
Devemos agora visualizar referido artigo com os olhos voltados para a Constituição Federal, em respeito ao Princípio da Supremacia da Constituição.
Princípios constitucionais aplicáveis ao tema
Existem diversos princípios constitucionais aplicáveis ao processo penal que tem incidência direta acerca do estudo da validade do art. 478 do CPP.
O primeiro princípio é o da plenitude de defesa, previsto no art. 5º, XXXVIII, a, da Constituição Federal.
Tal princípio, maior que o da ampla defesa, dá à defesa a possibilidade de apresentar sua tese de forma quase irrestrita, limitada tão somente por outras normas constitucionais (que estão no mesmo patamar jurídico da plenitude de defesa). Não devemos nos esquecer de que em normas aparentemente antagônicas o intérprete tem o dever de buscar a interpretação que melhor se coaduna com os princípios da proporcionalidade e razoabilidade.
O princípio da plenitude de defesa é completado pelo princípio da paridade de armas, franqueando também à acusação o direito de apresentar sua tese de forma ampla.
Um segundo princípio é o da soberania dos veredictos, previsto no art. 5º, XXXVIII, c, da Constituição Federal.
Por tal princípio, os jurados leigos são soberanos em suas decisões, não podendo ser alteradas por qualquer tribunal que entenda de forma diversa de como a causa foi julgada, sendo possibilitada tão somente a cassação do julgado em hipóteses previstas em lei e sendo o acusado submetido novamente ao Tribunal do Júri.
Um terceiro princípio é o da vedação das provas ilícitas, insculpido no art. 5º, LVI, da Constituição Federal. Por este mandamento, todas as provas adquiridas com violação de normas materiais ou processuais devem ser desconsideradas e desentranhadas do processo.
Quanto a este princípio, deixaremos de adentrar no tema referente ao princípio da proporcionalidade, por fugir ao objeto de estudo do presente artigo.
Temos finalmente o direito ao silêncio do acusado, previsto no art. 5º, LXIII da CRFB/88, sendo que caso se mantenha o réu em silêncio, esta inércia não pode ser interpretada em seu prejuízo. O significado dessa norma constitucional é que ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo (nemo tenetur se detegere).
Da inconstitucionalidade do art. 478 do CPP
Passaremos agora a analisar a norma processual penal objeto do presente estudo com os princípios constitucionais acima descritos.
Primeiramente, a decisão de pronúncia e posteriores, são normas integrantes do processo, sendo decisões exigidas do magistrado pela lei. Assim, nada há de ilícito nestas decisões, devendo ser mantidas no processo.
Também quanto ao uso de algemas, o mesmo é possível em determinadas hipóteses legais, nada havendo de irregular.
Assim, estes atos são provas lícitas a serem usadas pelas partes, não estando previstas na norma proibitiva do art. 5º, LVI, da Constituição Federal.
Aliado à plenitude da defesa, não pode uma norma infraconstitucional restringir o uso das alegações referidas no art. 478 do CPP em plenário, sob pena de atentar contra a própria norma maior.
Quanto às alegações pela acusação, as mesmas também são possíveis, pois, além de serem provas lícitas, o princípio da paridade de armas (igualdade), garante ao acusador os mesmos direitos da defesa.
Ademais, os jurados são soberanos, e, como juízes da causa tem o direito de ter acesso a todas as provas e atos praticados no processo a fim de formar suas convicções.
No sentido de inconstitucionalidade da norma, importante lição de Guilherme de Souza Nucci em Código de Processo Penal Comentado 8ª ed., pág. 802/803:
“231. A vedação imposta pelo art. 478 é inconstitucional. Cerceia-se o direito de qualquer das partes de explorar as provas lícitas constantes dos autos. Somente as ilícitas é que estão vedadas pela Constituição Federal (art. 5º, LVI). Por isso, a contrário senso, são admissíveis no processo todas as provas obtidas por meios lícitos.”
Cabe à defesa através de apartes ou ao próprio magistrado, esclarecer aos jurados da abrangência do direito ao silêncio e de que a decisão de pronúncia é mero juízo de admissibilidade, sem contudo configurar culpa do réu. Cabe também à acusação através de apartes esclarecer interpretação equivocada da pronúncia feita pela defesa perante os jurados. Quanto às algemas, situação esdrúxula seria criada, pois os jurados ficariam vendo o acusado acorrentando em plenário sem que a defesa pudesse explicar aos mesmos eventuais abusos e que aquele ato não é sinal de culpa de seu cliente.
Muitas vezes as alegações proibidas pelo novo artigo 478 do CPP poderiam ser usados em favor da defesa, sendo flagrantemente inconstitucional o mandamento que proíbe a defesa a se manifestar acerca destes temas.
Outro contra-senso da norma sob estudo é que o próprio artigo 472 do Código Penal determina que o magistrado forneça cópia da decisão de pronúncia aos jurados. Assim, os jurados teriam acesso à decisão de admissibilidade do juiz sem contudo poderem ouvir explicações das partes? Com certeza o debate ficaria prejudicado, muitas vezes em desfavor do acusado.
Conclusão
Por tudo que foi acima delineado, vislumbramos que o art. 478 do Código de Processo Penal padece de vício de inconstitucionalidade.
As partes, pela plenitude de defesa, igualdade de armas e soberania dos veredictos, devem ser livres para se manifestar perante os jurados acerca de tudo que está no processo, devendo eventuais esclarecimentos serem feitos através de apartes ou por intervenção do próprio magistrado. Os jurados são juízes naturais da causa, tendo o direito de serem esclarecidos de todos os aspectos do processo para que possam formar sua convicção e julgar o acusado com pleno conhecimento da causa.
Finalmente, não devemos nos esquecer que, mesmo se entendermos ser constitucional a norma do art. 478 do CPP, a simples alegação em plenário de fato previsto no citado artigo não é ceifado automaticamente de nulidade, devendo a parte demonstra seu prejuízo (pas de nullité sans grief).
Referências bibliográficas:
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NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 8ª ed., São Paulo: RT, 2008.
NUCCI, Guilherme de Souza. Tribunal do Juri. São Paulo: RT, 2008.
MENDONÇA, Andrey Borges de. Nova Reforma do Código de Processo Penal. São Paulo: Método, 2008.
HOLTHE, Leo van. Direito Constitucional. 4ª ed., São Paulo: Podivm, 2008.
BONFIM, Edílson Mougenot. No Tribunal do Júri. 2ª ed., São Paulo: Saraiva, 2007.
OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Processo e Hermenêutica na Tutela Penal dos Direitos Fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2004.
Promotor de Justiça no Estado do Tocantins, titular da Promotoria de Colinas do Tocantins. Pós-graduado em Direito Público pela Universidade Estadual de Montes Claros/MG.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GUILHERME GOSELING ARAúJO, . A inconstitucionalidade do art. 478 do CPP após a reforma Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 06 dez 2008, 06:19. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/15869/a-inconstitucionalidade-do-art-478-do-cpp-apos-a-reforma. Acesso em: 25 dez 2024.
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