No Brasil, há notícias de um regime mais rigoroso para presos “sui generis”, aqueles mais perigosos, desde o período imperial da nossa história, e, desde essa época, se busca mais rigorosidade na elaboração das regras prisionais face a indivíduos que, mesmo no cárcere, apresentavam comportamento que comprometiam a segurança de toda a sociedade, que foram desde atos administrativos (corretamente combatidos diante do Princípio da Reserva Legal) até a edição da Lei 10.792/2003 que alterou a Lei das Execuções Penais e instituiu o Regime Disciplinar Diferenciado – RDD.
O Regime Disciplinar Diferenciado – RDD nasceu com o escopo de amenizar as críticas da opinião pública, dando uma resposta à violência urbana, buscando garantir à sociedade segurança e melhor qualidade de vida. É certo que o Regime Disciplinar Diferenciado, por si só, é meio ineficaz pra tanto, uma vez que as raízes da criminalidade estão na desigualdade social e na falta de investimentos na educação, mas, igualmente, é certo que o Estado não pode fechar os olhos para a situação de insegurança jurídica que vive hoje a sociedade e se prender a discursos que lembram que o problema da violência tem origens mais profundas, sociais. Até mesmo porque a resolução por essa vertente demanda tempo, enquanto que o estado atual de pavor em que vive a sociedade, encurralada, principalmente com o terror imposto pelas organizações criminosas, e o enfraquecimento das forças do Estado diante disto, não pode esperar por todo esse tempo.
De acordo com Paulo César Busato, "é necessário centrar a atenção no fato de que legislações de matizes como os da Lei 10.792/03 correspondem por um lado a uma Política Criminal expansionista, simbólica e equivocada e, por outro, a um esquema dogmático pouco preocupado com a preservação dos direitos e garantias fundamentais do homem. Por isso, há a necessidade de cuidar-se com relação aos perigos que vêm tanto de um quanto de outro." [1]
A norma estabelece que a "prática de fato previsto como crime doloso constitui falta grave e, quando ocasione subversão da ordem ou disciplina internas, sujeita o preso provisório ou condenado, sem prejuízo de outras sanções, ao regime disciplinar diferenciado, com as seguintes características: duração máxima de trezentos e sessenta dias, sem prejuízo de repetição da sanção por nova falta grave de mesma espécie, até o limite de um sexto da pena aplicada; recolhimento em cela individual; visitas semanais de duas pessoas, sem contar as crianças, com duração de duas horas e direito à saída da cela por 2 horas diárias para banho de sol (art. 52, da Lei nº 7.210/84)."
Também por força da referida lei, o RDD "poderá abrigar presos provisórios ou condenados, nacionais ou estrangeiros, que apresentem alto risco para a ordem e a segurança do estabelecimento penal ou da sociedade", bem como "o preso provisório ou o condenado sob o qual recaiam fundadas suspeitas de envolvimento ou participação, a qualquer título, em organizações criminosas, quadrilha ou bando.
Para decretação do Regime Disciplinar Diferenciado devemos considerar alguns fatores, quais sejam: (1) a prática de falta grave (cf. arts. 50, I a VI, da Lei nº 7.210/84), devidamente comprovada em procedimento próprio, com observância de ampla defesa, (2) a existência de fundado risco para a ordem e segurança do estabelecimento penal ou da sociedade ou, ainda, (3) a fundada suspeita de envolvimento ou participação do custodiado, a qualquer título, em organizações criminosas, quadrilha ou bando, previstos nos parágrafos do art. 52 da Lei 7.210/84.
Destarte, pode o Regime Disciplinar Diferenciado ser cautelar ou punitivo. Será punitivo quando imposto como sanção à falta grave praticada durante a execução (art. 52, caput) e, cautelar, em razão do perigo que o preso, provisório ou condenado, apresente para a sociedade ou para o estabelecimento prisional (art. 52, §§ 1º e 2º). Essa classificação existe apesar de encontrarmos posições resistentes ao Regime Disciplinar Diferenciado Cautelar, aceitando-o só no tocante ao sancionatório.
O Regime Disciplinar Diferenciado Cautelar deve ser aceito também em razão do exercício do Poder Geral de Cautela do Juiz (art. 3º, CCP c/c art.798, CPC), como único meio apto a afastar o criminoso de suas atividades que põem em risco a segurança pública, a salvaguarda da sociedade e a ordem no estabelecimento penitenciário.
Visto isso passaremos à análise da (in)constitucionalidade da regra.
Primeiramente, os argumentos do entendimento da incostitucionalidade do instituto:
I) No Brasil não poderão ser instituídas penas cruéis (art. 5º., XLVII, "e", CF/88), assegurando-se aos presos, o respeito à integridade física e moral (art. 5º., XLIX) e garantindo-se, ainda, que ninguém será submetido a tratamento desumano ou degradante (art. 5º., III): o ser humano em uma cela individual por trezentos e sessenta dias ou mais apenas podendo sair duas horas por dia para tomar banho de sol não teria sua integridade física e psicológica comprometida? Isso não seria cruel? Tal tratamento condiz com a natureza humana? Não seria degradante tal situação? Há de se analisar a aplicação da norma do ponto de vista humano e não apenas como norma fria, ou seja, o princípio da dignidade humana perde totalmente o sentido quando verificamos as condições de aplicabilidade desta regra.
II) O RDD também afronta a Constituição, em seu art. 5º., XLVI, quando trata da individualização da pena. A individualização da pena engloba, não somente a aplicação da pena, mas a sua posterior execução também, com a garantia da progressão de regime. Como ensina Luiz Luisi, "o processo de individualização da pena se desenvolve em três momentos complementares: o legislativo, o judicial, e o executório ou administrativo. Observamos que o art. 59 do Código Penal, que estabelece as balizas para a aplicação da pena, prevê expressamente que o Juiz sentenciante deve prescrever "o regime inicial de cumprimento da pena privativa de liberdade", o que indica que o regime de cumprimento da pena é parte integrante do conceito "individualização da pena". Assim, não podemos admitir que alguém seja condenado a cumprir a sua pena em regime integralmente fechado, vedando-se absolutamente qualquer possibilidade de progressão, ferindo, inclusive, as apontadas finalidades da pena: a prevenção e a repressão;
III) O RDD poderá ser aplicado aos presos provisórios, aqueles segundo a nossa Carta Magna gozam da presunção de inocência. Afinal, a presunção constitucional não é a de não-culpabilidade? Aplicar uma medida tão brusca aos presos sob essa condição de presunção de não culpabilidade macula o princípio constitucional em sua inteireza;
IV) A questão das “fundadas suspeitas” que ensejam a aplicação da regra do RDD para condutas praticadas por presos condenados ou provisórios também esbarra na legalidade como princípio constitucional tendo em vista que o conceito indeterminado não encontra definição na legislação pátria e, portanto, não podendo ser aplicado, ferindo por via de conseqüência a Constituição.
A favor da constitucionalidade:
I) A CF/88, reservou a matéria de execução penal à competência legislativa privativa da União, nos termos do art. 22, I. Assim, obedecendo ao procedimento estabelecido pela Carta Magna, portanto, o RDD - Regime Disciplinar Diferenciado foi disciplinado pela Lei 10.792/2003 e inserido na Lei de Execuções Penais (Lei 7.219/84 que é lei ordinária (7.210/84), recepcionada pela CF/88 como tal. Portanto, é possível estabelecer o RDD via lei ordinária federal, sendo este o meio jurídico adequado. Desta forma, o requisito formal que criou o RDD encontra-se constitucional (Lei 10.792/03 – lei ordinária), uma vez que o atual Regime Disciplinar Diferenciado, antigo Regulamento Disciplinar Diferenciado, legalizou condutas disciplinares até então questionáveis de constitucionalidade, por razões formais, pois criadas por meros atos administrativos.
II) Opondo-se à precipitada rejeição ao instituto, está também o bem fundamentado comentário de Marcelo Lessa Bastos, verbis:
"(...) Não se consegue compreender as críticas doutrinárias que são endereçadas ao isolamento absoluto de presos líderes de organizações criminosas, após se terem informações seguras de que continuam a comandar seus negócios. O isolamento é imperativo e é a única medida efetiva que se dispõe para neutralizar a ação dessas pessoas. Isto visa a enfraquecer a liderança da organização, contribuindo para dispersar o seu comando. Não há que se opor ao isolamento argumentos no sentido da função educadora da pena, porque tais pessoas, ainda que não possam perder este status de pessoas, ao contrário do que crê Jakobs, demonstram cabalmente que não estão querendo se ressocializar. Resta, pois, como forma legítima de proteção dos cidadãos, que igual têm o direito constitucional à segurança pública, isolar essas pessoas, pelo tempo necessário para neutralizar sua influência na organização a que pertença, nem que isto leve todo o tempo restante de sua pena. Sinceramente, as críticas endereçadas ao ‘RDD’ não são racionais, são emotivas, e não resistem à análise cotidiana da escalada da criminalidade organizada, liderada de dentro das prisões. Só falta vir alguém sustentando que, como o condenado perdeu somente o direito de liberdade, há de conservar o direito subjetivo de trabalhar e, como o trabalho dele era na organização criminosa, é direito seu continuar a comandar seus negócios, o que seria um agudo e freudino caso de desequilíbrio intelectual." [2]
III) Verifica-se também que devem ser atendidas as exigências de prévio contraditório e ampla defesa. A própria lei assim prevê, não havendo ofensa a tais princípios constitucionais.
IV) O isolamento, como meio de neutralizar a ação de criminosos de maior periculosidade nunca chegou, com força, a ser questionado, apesar de previsto na Lei de Execuções Penais (art. 53, IV). Apesar disto, é evidente que o isolamento do preso na própria cela, por prazo não superior a 30 dias, não atende mais às necessidades atualmente impostas frente ao vertiginoso crescimento do crime organizado.
V) O princípio da não- culpabilidade não afasta a constitucionalidade da prisão cautelar, ou de medidas cautelares, como já há muito sedimentado na jurisprudência, justificada apenas quando estritamente necessária, em caráter excepcional, com base no poder de cautela do juiz.
VI) O termo “fundadas suspeitas”, realmente não é delimitado em limites estreitos, mas impossível ao legislador prever todas as formas em que o poder geral de cautela do juiz deve ser utilizado, por isso, utiliza-se de termos propositadamente vagos, cabendo ao juiz fixá-los, em atenção às peculiaridades do caso concreto e sempre se tendo em mira o Princípio da Proporcionalidade, a fim de evitar abusos.
VII) Quanto ao livre exercício da advocacia face ao cliente/assistido inserto no Regime Disciplinar Diferenciado, vemos não haver choque com o interesse do Estado em se adotar medidas impeditivas da criminalidade, até mesmo porque a assistência do advogado não fica excluída, apenas regulamentada.
VIII) Ainda se falando em proporcionalidade, há ainda de se considerar que a situação obviamente não é a ideal e esperada nos sonhos humanos, assim como também não o é a superlotação carcerária nos estabelecimentos de regimes não diferenciados e nem por isso, nenhum argumento sério vislumbra simplesmente liberar-se todos os presos que vivem em condições de superlotação, porque tal condição afrontaria o princípio da dignidade da pessoa humana. Registre-se que no regime ora tratado as circunstâncias de higiene e salubridade condignas são preservadas, além da não existência da superlotação carcerária (obviamente).
Assim sendo, podemos vislumbrar que existem posicionamentos pela constitucionalidade da regra, uma vez que a Segurança dos cidadãos da sociedade deve ser resguardada em detrimento de alguns direitos fundamentais dos presos mais perigosos que põem em risco toda uma coletividade. Existem outros posicionamentos que buscam garantir princípios constitucionais de relevante importância, como a dignidade da pessoa humana, tendo em vista que os presos devem ser considerados ser humano como qualquer outra pessoa.
Resta-nos analisar e nos posicionar acerca da (in) Constitucionalidadade do Regime Disciplinar Diferenciado levando em consideração a segurança da sociedade, os direitos humanos, o verdadeiro caráter da penalidade e, por fim, e não menos importante, o erros do Judiciário que podem atingir pessoas inocentes.
CONCLUSÃO
O fato é que o Estado deve se aparelhar de mecanismos capazes de tratar o crime organizado de forma diferenciada em relação ao “crime comum”, tanto na aplicação da pena como na sua execução. A falta dessa diferenciação irá tornar um caos ainda maior a situação de intranqüilidade por que passa hoje a sociedade, em evidente ofensa à ordem pública. A situação está grave e algo deve ser feito para barrar o crescimento vertiginoso do crime organizado.
Isso não quer significar que a aplicação prática não possa ser discutida e melhor analisada.
O que não deve ocorrer é que simplesmente se aguarde a mudança para melhor da condição social do País para a questão da criminalidade ser tratada com maior dureza.
Os princípios constitucionais e interesses em jogo devem ser sopesados, com amparo no Princípio da Proporcionalidade, de forma que não haja aniquilamento de nenhum direito em detrimento de outro, mas que ambos possam coexistir e as restrições ocorram apenas quando se mostrarem necessárias e indispensáveis. Há de se lembrar a já consagrada idéia de que os direitos fundamentais não podem ser utilizados como um verdadeiro escudo protetor de práticas de atividades criminosas. O Regime Disciplinar diferenciado é medida emergencial que a atual realidade impõe.
“Diante de tal quadro, não há dúvida de que a questão é relevante e remete-nos a um dilema: ou as autoridades estatais têm a coragem de usar do meio rigoroso, mas legítimo e imprescindível, para fazer cessar a continuidade de agressões à paz social ou estamos todos fadados a assistir, de forma tímida, passiva e covarde, à derrocada do Estado Democrático de Direito diante de comportamentos criminosamente ousados [3].”
[1]"Regime Disciplinar Diferenciado como Produto de um Direito Penal de Inimigo", in Revista de Estudos Criminais nº. 14, Porto Alegre: NOTADEZ/PUC/!TEC, agosto/2004, p. 145.
[2] BASTOS, Marcelo Lessa. Alternativas ao direito penal do inimigo. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1.319, 10 fev. 2007. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=9481>. Acesso em: 07 dez. 2008.
[3] MAGALHÃES, Vlamir Costa. Breves notas sobre o regime disciplinar diferenciado. Jus Navigandi. , n. 1.400, 2 maio 2007 Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=9828>. Acesso em: 07 dez. 2008.
Servidora Pública do Poder Judiciário do Estado de Pernambuco, pós graduada pela UNISUL-Universidade do Sul de Santa Catarina, ex-advogada e professora do Acta-Curso preparatório para concursos<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MACIEL, Anna Paula de Freitas. A (in) constitucionalidade do Regime Disciplinar Diferenciado Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 12 dez 2008, 15:23. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/16149/a-in-constitucionalidade-do-regime-disciplinar-diferenciado. Acesso em: 26 dez 2024.
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