1 INTRODUÇÃO
Com a promulgação da Constituição de 1988, o sistema processual penal brasileiro passou a adotar o sistema acusatório, compatível com a ideia de preservação dos direitos e garantias fundamentais dos cidadãos.
Entretanto, em razão do Código de Processo Penal Brasileiro ter entrado em vigência no ano de 1941, alguns de seus dispositivos ainda tem em seu bojo resquícios do sistema inquisitivo. Podemos apontar os arts. 5º, 241, 385, dentre outros, como exemplos do malfadado sistema.
Inquestionável, portanto, que tais dispositivos não se compatibilizam com as premissas irradiadas pela Constituição Federal, o que leva a uma análise crítica quanto às possibilidades de se expurgar estas normas do nosso ordenamento jurídico.
Consoantes lições do professor Paulo Rangel[1], o sistema inquisitivo se compatibilizaria com os regimes totalitários, em que a repressão é utilizada para coibir os direitos e garantias fundamentais, ao passo que o sistema acusatório coadunar-se-ia com o Estado Democrático de Direito.
Compartilhando do mesmo entendimento, Eugênio Pacelli[2] afirma “que a doutrina costuma separar o sistema processual inquisitório do modelo acusatório pela titularidade atribuída ao órgão de acusação: inquisitorial seria o sistema em que as funções de acusação e de julgamento estariam reunidas em uma só pessoa, enquanto o acusatório seria aquele em que tais papéis estariam reservados a pessoas distintas”.
O sistema inquisitivoteria surgido nos regimes monárquicos e se aperfeiçoado durante o direito canônico, passando a ser adotado pela quase totalidade dos países europeus.
O Estado-juiz passou a concentrar tanto as funções de julgar quanto a de acusar, o que levou a comprometer a sua imparcialidade. Eis o que diz Paulo Rangel[3] acerca deste ponto:
No sistema inquisitivo, o juiz não forma seu convencimento diante das provas dos autos que lhes foram trazidas pelas partes, mas visa convencer as partes de sua íntima convicção, pois já emitiu, previamente, um juízo de valor ao iniciar a ação. (...) O sistema inquisitivo, assim, demonstra total incompatibilidade com as garantias constitucionais que devem existir dentro de um Estado Democrático de Direito e, portanto, deve ser banido das legislações modernas que visem assegurar ao cidadão as mínimas garantias de respeito à dignidade da pessoa humana.
O sistema acusatório, então, surge com a finalidade de afastar o magistrado das atividades típicas das partes (acusar e defender), corroborando para a democratização da relação processual.
Segundo Aury Lopes Júnior[4], o sistema acusatório é um imperativo do moderno processo penal, frente à atual estrutura social e política do Estado. Assegura a imparcialidade do juiz que irá sentenciar, garantindo o trato digno e respeitoso com o acusado, que deixa de ser um mero objeto para assumir sua posição de autêntica parte passiva da relação processual.
Fundamentalmente, o ponto de partida para a adoção do novo sistema processual se deu através da promulgação da Constituição Federal de 1988, que passou a exigir respeito total a condição de cidadão do réu da ação penal.
Sobre este ponto, vale a pena transcrever trecho precioso da obra de Eugênio Pacelli:
A nova ordem passou a exigir que o processo não fosse mais conduzido, prioritariamente, como mero veículo de aplicação da lei penal, mas, além e mais que isso, que se transformasse em um instrumento de garantia do indivíduo em face do Estado. O devido processo penal constitucional busca, então, realizar uma Justiça Penal submetida a exigência de igualdade efetiva entre os litigantes. O processo justo deve atentar, sempre, para a desigualdade material que normalmente ocorre no curso de toda a persecução penal, em que o Estado ocupa a posição de proeminência, respondendo pelas funções investigatórias e acusatórias, como regra, e pela atuação da jurisdição, sobre a qual exerce o monopólio.
Entretanto, em que pese à promulgação da Constituição de 1988 e a adoção do sistema acusatório, permanece vigendo o Código de Processo Penal de 1941, cujos princípios foram sedimentados sob a influência de um período político brasileiro marcado pelo autoritarismo e pela ausência de resguardo aos direitos dos acusados.
Não à toa, alguns dispositivos do CPP, aparentemente, não se encontram harmonizados com o texto constitucional.
Podemos citar, a guisa de exemplos, os artigos 5º,II; 13, II; 18, 26, 75, 83, 241, 311, 385 e etc.
Tais dispositivos, de um modo ou de outro, permitem que terceiros (juiz ou delegado de polícia) subtraiam a atribuição destinada ao Ministério Público ou quebrem a imparcialidade do órgão julgador.
Em essência esta incompatibilidade pode ser sanada mediante a releitura dos mencionados dispositivos à luz da Constituição. Eis o que leciona Luiz Roberto Barroso[5] sobre o tema:
O Princípio da Supremacia da Constituição, que tem como premissa a rigidez constitucional, é a ideia central subjacente a todos os sistemas jurídicos modernos. Sua compreensão é singela. Na celebrada imagem de Kelsen, para ilustrar a hierarquia das normas jurídicas, a Constituição situa-se no vértice de todo o sistema legal, servindo fundamento de validade das demais disposições normativas. Toda Constituição escrita e rígida, como é o caso da brasileira, goza de superioridade jurídica em relação às leis, que não poderão ter existência legítima se com elas contrastarem.
Outra solução, esta mais radical, seria declarar não recepcionado os dispositivos do Código de Processo Penal que não se coadunassem com a mensagem emitida pela Constituição Federal. Sobre o tema, o professor Pedro Lenza[6] tece as seguintes considerações:
(...) fica claro que o STF não admite a teoria da inconstitucionalidade superveniente de ato normativo produzido antes da nova constituição e perante novo paradigma. Neste caso, ou se fala em compatibilidade e aí haverá recepção, ou em revogação por inexistência de recepção. Nesse sentido, deixa claro o STF que vigora o princípio da contemporaneidade, ou seja, uma lei só é constitucional perante o paradigma de confronto em relação ao qual foi produzida.
Neste contexto, toda e qualquer norma que, de certa forma, se oponha ao sistema acusatório, deve ser prontamente refutada pelos aplicadores do direito, de modo que princípios como do contraditório, ampla defesa e isonomia sejam efetivamente acolhidos e implementados em nossa estrutura jurídica.
Compartilhando da mesma orientação Aury Lopes Júnior[7]:
Não podemos esquecer, ainda, da importância do contraditório para o processo penal e que somente uma estrutura acusatória o proporciona. Como sintetiza CUNHA MARTINS, no processo inquisitório há um desamor pelo contraditório, somente possível no sistema acusatório.
3 CONCLUSÃO
Com a promulgação da Constituição Federal de 88, não sobrou espaços para normatizações que atentassem contra os direitos e garantias fundamentais.
Princípios como da isonomia, contraditório e ampla defesa passaram a ser elementares no processo penal, onde se discute a possibilidade da privação do direito de liberdade.
Sob este prisma, o sistema acusatório relegou ao passado o inquisitório, estabelecendo novos rumos para a esfera processual penal.
Entretanto, em que pese à inovação acima apontada, ainda vige em nosso ordenamento jurídico o Código de Processo Penal de 1941, o qual, em alguns de seus dispositivos, ainda contém os resquícios do sistema inquisitivo.
Sendo assim, a solução para corrigir estas distorções passa pela interpretação dos dispositivos questionados à luz da Constituição Federal ou, então, pelo reconhecimento da não recepção daquelas normas que não guardam compatibilidade com a Carta Magna.
4 REFERÊNCIA
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. 6ed. rev. e atual. São Paulo, Editora Saraiva, 2006.
JUNIOR, Aury Lopes. Direito Processual Penal. 10º ed. São Paulo: Saraiva, 2013.
LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 13º edição, São Paulo: Saraiva, 2009.
OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de Oliveira. Curso de Processo Penal. 8º ed., Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2007.
RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal . 16º ed, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.
SITE PLANALTO. DISPONÍVEL EM: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto lei/del3689compilado.htm.
[1] RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal . 16º ed, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 47.
[2] OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de Oliveira. Curso de Processo Penal. 8º ed., Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2007, p.8.
[3] RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal . 16º ed, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 48/49.
[4] JÚNIOR, Aury Lopes. Direito Processual Penal. 10º ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 109.
[5] BARROSO, Luiz Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição, 6 ed., São Paulo: Saraiva, 2006, p. 67.
[6] LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 13º edição, São Paulo: Saraiva, 2009, p. 123.
[7]JÚNIOR, Aury Lopes. Direito Processual Penal. 10º ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 110.
Defensor Público Federal, com pós-graduação em Direito Público.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: AMARAL, Pablo Luiz. Resquícios do sistema inquisitivo no Código de Processo Penal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 08 mar 2013, 06:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/34146/resquicios-do-sistema-inquisitivo-no-codigo-de-processo-penal. Acesso em: 26 dez 2024.
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