Todos operadores do Direito que têm contato com pessoas privadas de liberdade, sejam do sistema prisional, sejam de estabelecimentos socioeducativos, notam que esses seres humanos são em sua esmagadora maioria dotados de uma característica comum e perturbadora: a padronização do comportamento.
Não bastassem as mazelas que já afetam a vida dessa parcela relevante dos cidadãos, como a pobreza, os baixos índices de escolaridade, e a falta de acesso aos mais básicos direitos, ainda veem o pouco que lhes resta ser destruído pelo modelo brasileiro de privação de liberdade. A individualidade de que cada ser humano é dotado simplesmente tende a desaparecer após alguns anos atrás das grades.
Nas unidades de cumprimento de medida socioeducativa de internação, abarrotadas por adolescentes em sua maioria autores de atos infracionais sem qualquer violência ou grave ameaça à pessoa, o que se vê são garotos e garotas cabisbaixos, caminhando com as mãos para trás, usando as palavras “senhor” ou “senhora” antes ou depois de toda e qualquer frase, em clara situação de submissão – ainda que na total contramão do natural espírito contestador presente em cada adolescente.
Os presídios não geram uma realidade diferente. O linguajar e o modo de agir da maioria dos detentos denunciam que o indivíduo que existia antes da privação de liberdade desapareceu. E se alguém foge à regra, reivindicando algum direito ou reagindo aos abusos praticados por agentes do Estado dentro do cárcere, é rapidamente punido e recolocado em seu lugar, na vala comum dos que já esqueceram quem são.
Evidentemente que as consequências desse fenômeno não seriam tão relevantes se ficassem restritas ao ambiente prisional. Muitos defenderiam que a imposição desse comportamento submisso é fundamental para a manutenção da disciplina nos estabelecimentos prisionais e mesmo para o mítico processo de “ressocialização” dos adolescentes e adultos presos. Que após tudo isso tais cidadãos voltariam às ruas, aptos a retomar suas vidas de onde foram abruptamente arrancados anos antes. Mas não é isso que ocorre.
Mesmo quando agraciados com a liberdade, adultos e adolescentes que passaram pelo encarceramento tendem a carregar consigo os estigmas, trejeitos e manias daquele ingrato período. Conservam o linguajar típico das prisões, ao mesmo tempo em que continuam a utilizar os termos “senhor” e “senhora” de forma submissa nas horas mais inusitadas, como quando encontram, por exemplo, seu defensor pelas ruas. Sentem-se – e infelizmente são - estranhos em uma sociedade que simplesmente os rejeita.
E uma vez que já foram tragados pelo sistema prisional, com a destruição de sua individualidade, tais cidadãos tornam-se alvos ainda mais fáceis do Estado-Repressor. Desesperados e sem qualquer perspectiva de futuro, muitos irão reincidir praticando pequenos delitos patrimoniais, ou aderindo ao comércio de drogas. Outros, ainda mais desafortunados, acabarão injustamente acusados por delitos cometidos por terceiros, pura e simplesmente por estarem na hora e no local errados, sendo quem são. Como resultado, todos voltarão a engrossar as fileiras já repletas da clientela do Direito Penal.
Não é preciso ser um grande especialista para saber que a destruição do indivíduo não é objetivo declarado da Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/1.984), que ao revés, traz em seu artigo 1º a previsão de que ela deverá proporcionar condições para “a harmônica integração social do condenado”:
“Art. 1º A execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado.”
Ao mesmo tempo, a Constituição Federal traz em seu artigo 5º direitos e garantias específicos, voltados especificamente à proteção do detento,
XLVII - não haverá penas:
a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX;
XLVIII - a pena será cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado;
XLIX - é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral;
L - às presidiárias serão asseguradas condições para que possam permanecer com seus filhos durante o período de amamentação;”
Como se vê, a destruição da individualidade do preso, que culmina com o desaparecimento de sua própria personalidade, mostra-se ilegal e mesmo inconstitucional, já que essa triste condição indubitavelmente decorre do caráter cruel das penas – aí abrangidas as medidas socioeducativas, dispensando-se o eufemismo legislativo - impostas em terras brasileiras, violadoras não só da integridade física, mas sobretudo da integridade moral dos indivíduos.
Nesse contexto, fica cada vez mais distante da realidade a já demasiadamente otimista previsão do artigo 1º da Lei nº 7.210/1.984 de “harmônica integração social do condenado”, visto que não há como se promover a adequada (re)inserção à sociedade de uma pessoa cuja individualidade foi sumariamente suprimida por anos de cárcere, da mesma forma que permanece sem resposta a pergunta: como ressocializar fora da sociedade?
Mas o que contribui para um resultado tão nefasto? Quem são os responsáveis por tamanha distorção nos fins da pena? Muitas podem ser as respostas.
Em primeiro lugar, pode-se ater ao perfil do preso brasileiro. Dados de dezembro/2012 obtidos junto ao Departamento Penitenciário Nacional(1), órgão vinculado ao Ministério da Justiça, apontavam que de uma população carcerária total de 513.713 detentos, 27.813 seriam analfabetos, 64.102 meramente alfabetizados, 231.429 teriam ensino fundamental incompleto, e 62.175 o ensino fundamental completo. Tais dados levam à conclusão de que a esmagadora maioria de 385.519 presos completou, no máximo, o ensino fundamental – contra cerca de irrisórios 129 presos com graduação além do ensino superior completo, por exemplo. No Estado de São Paulo, onde se situa a maior população carcerária do Brasil, de cerca de 190.828 presos em dezembro de 2012 , 140.439 tinham no máximo completado o ensino fundamental.
Como se vê – e isso não é novidade – o aparato punitivo estatal mostra sua vertente mais severa (a privação da liberdade) contra as camadas menos instruídas da população, o que inevitavelmente contribui para que o cárcere exerça seus nefastos efeitos sobre os indivíduos. Afinal, uma pessoa que já enfrentava em liberdade toda sorte de problemas decorrentes da baixa escolaridade, dificilmente encontrará forças para passar ilesa pelo sistema prisional – a tendência, notoriamente, é que sua situação de vulnerabilidade seja agravada após o fim da pena.
Outra explicação está no tratamento dado pelo Estado à questão penitenciária. Embora haja direitos e garantias previstos em Tratados Internacionais, na Constituição e nas leis, na prática os poderes constituídos se mostram desinteressados no que tange às condições dos presídios e sua respectiva população. Superlotação, estruturas precárias, agressões e tortura são frequentes. A desídia estatal na gestão do sistema prisional favorece o surgimento e o fortalecimento de um submundo que, inevitavelmente, irá tragar todos aqueles que um dia vierem a cumprir pena privativa de liberdade. Sobre o tema, oportuna a severa crítica de Amilton Bueno de Carvalho(2):
“E a tudo acresce que as casas prisionais na realidade brasileira – bem possível que estejam entre as piores do mundo – são exemplos de toda indignidade possível. Faz décadas que isso é assim, mas conseguimos, cada vez mais, com brilhantismo, piorar os presídios: Estado e sociedade civil – delinquentes!”
A superlotação e o sucateamento do sistema prisional, aliás, não decorrem de um suposto aumento da criminalidade, mas principalmente do excessivo número de prisões provisórias decretadas, em casos nos quais, em sua maioria, não se encontram presentes os requisitos para a custódia. A liberdade, que deveria ser a regra, tornou-se excepcional no Brasil, abrindo caminho para que um número cada vez maior de prisões ilegais acrescente algumas fagulhas ao gigantesco barril de pólvora que é o Sistema Prisional pátrio.
Ainda, é possível afirmar que a aniquilação do indivíduo encarcerado encontra causa na própria ideia que os agentes públicos têm sobre poder e autoridade. Isso é facilmente perceptível em um país cujas repartições públicas têm cópias impressas do artigo 331 do Código Penal, que tipifica o desacato, pregadas em locais visíveis de seus balcões de atendimento. O recado ao cidadão comum é claro: contenha-se, pois do contrário o Direito Penal resolverá a questão.
E o autoritarismo encontra campo fértil atrás das muralhas das penitenciárias. O risco de sindicâncias disciplinares ou mesmo de processos criminais que possam dificultar o caminho até a liberdade obrigam milhares de detentos a tolerarem, em silêncio, toda sorte de ofensas e abusos – afinal, mesmo uma justa retorsão a um xingamento pode ser tornar um processo administrativo disciplinar, com todas as nefastas consequências daí decorrentes. Os que de algum modo reagem, pura e simplesmente por ainda terem sangue correndo em suas veias, acabam severamente punidos com sua permanência por mais uma temporada em regime fechado, por exemplo. Como se vê, essa realidade estimula a resignação e a anulação do indivíduo, algo que, longe de ser benéfico, é extremamente cruel, covarde e desnecessário.
Todos esses fatores ganham ainda mais força em uma sociedade como a brasileira, que até hoje flerta com o autoritarismo, vítima de verdadeira Síndrome de Estocolmo em relação ao período da repressão, que assolou o Brasil na segunda metade do século XX. Proliferam movimentos pelo recrudescimento penal, seja entre a população, seja entre agentes políticos que têm nele sua principal bandeira – como se o Direito Penal fosse a resposta para tudo, verdadeira panaceia. O mais grave é que esta movimentação da massa leiga acaba refletindo entre os operadores do Direito, contribuindo para todas as mazelas que recaem sobre aqueles que são alvo do ius puniendi.
Diante de um panorama tão desfavorável, o único caminho talvez fosse assumir como utópica a finalidade de ressocialização da pena(3), adotando uma política de redução de danos, para que seja minimizado o fenômeno da dessocialização da população carcerária, ou seja, para que, dentro do possível, o cárcere gere o mínimo de efeitos deletérios à pessoa privada de liberdade(4). Para tanto, cabe aos atores do Direito adquirir a consciência de que atualmente, os efeitos das prisões vão muito além da privação de liberdade, pois se não dão fim à vida do ponto de vista biológico, o fazem no que diz respeito à personalidade dos que por elas são engolidos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
BRASIL. Ministério da Justiça. http://portal.mj.gov.br/main.asp?View=%7BD574E9CE-3C7D-437A-A5B6-22166AD2E896%7D&Team=¶ms=itemID=%7B2627128E-D69E-45C6-8198-CAE6815E88D0%7D;&UIPartUID=%7B2868BA3C-1C72-4347-BE11-A26F70F4CB26%7D – Acesso em 18 de agosto de 2014.
CARVALHO, Amilton Bueno de. Direito penal a marteladas (algo sobre Nietzche e o Direiro). Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2013
JUNQUEIRA, Gustavo Octaviano Diniz; BARROS, Carmen Silvia de Moraes. Exame criminológico: é hora de por fim ao equívoco! Jus Navigandi, Teresina, ano 15, n. 2647, 30 set. 2010. Disponível em: http://jus.com.br/artigos/17524. Acesso em: 19 ago. 2014.
NOTAS:
(1)BRASIL. Ministério da Justiça. http://portal.mj.gov.br/main.asp?View=%7BD574E9CE-3C7D-437A-A5B6-22166AD2E896%7D&Team=¶ms=itemID=%7B2627128E-D69E-45C6-8198-CAE6815E88D0%7D;&UIPartUID=%7B2868BA3C-1C72-4347-BE11-A26F70F4CB26%7D – Acesso em 18 de agosto de 2014.
(2) CARVALHO, Amilton Bueno de. Direito penal a marteladas (algo sobre Nietzche e o Direiro. p. 99.
(3) Idem, p. 102: “Mas, o discurso mais recorrente – insuportável e imbecilizante – é o que diz ser a finalidade-mãe do presídio recuperar o apenado: isso se repete, e se repete, e se repete, sem que se fique ruborizado”.
Defensor Público do Estado de São Paulo. Colaborador do Núcleo Especializado de Combate à Discriminação, Racismo e Preconceito da Defensoria Pública do Estado de São Paulo. Graduado em Direito pela Universidade Estadual Paulista (UNESP) - Campus Franca. Especialista em Ciências Penais.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BAGHIM, Bruno Bortolucci. Privação de liberdade e a destruição do indivíduo Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 03 set 2014, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/40792/privacao-de-liberdade-e-a-destruicao-do-individuo. Acesso em: 06 nov 2024.
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