Resumo: O artigo ora deflagrado dispõe breve análise acerca das funcionalidades do regime disciplinar diferenciado em face da Lei de Execução Penal, sob um viés investigatório, com a finalidade de desvelar os posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais no que concerne à aplicação do sistema em questão. Na atualidade, é de notório conhecimento que a finalidade essencial da pena é a ressocialização do condenado, para que almeje a reintegração social, preceitos mensurados pela Lei de Execução Penal. Aliás, nessa perspectiva, há que se desdobrar que um dos principais aspectos do melindre em pauta, no sistema prisional brasileiro, é a correlação com a dignidade da pessoa humana, haja vista que o cumprimento do princípio máximo no âmbito do sistema de execução penal nacional tem sido uma tarefa hercúlea, isto é, no regime disciplinar diferenciado observa-se uma dita obliteração da dignidade da pessoa humana, justamente pela suposta severidade do aludido regime. Desta feita, o mister é o de proporcionar uma visão abrangente do regime disciplinar diferenciado, concebendo os posicionamentos positivos e negativos em consonância com a vigente Lei nº 7.210 de 11 de julho de 1984, a Lei de Execução Penal, haja vista ser ou não ser o RDD uma “aberração do século XXI”.
Palavras-chave: Regime Disciplinar Diferenciado. Lei de Execução Penal. Dignidade Humana. Aberração do Século XXI.
Abstract: The article now has triggered brief analysis about the features of the differentiated disciplinary regime in the face of Criminal law enforcement, under a investigative bias, with the purpose of unveiling the doctrinal and jurisprudential placements regarding the application of the system in question. At present, it is notorious that knowledge the main purpose of penalty is the resocialization convicted for that aim for social reintegration, precepts measured by Criminal law enforcement. In fact, in this perspective, it is necessary to unfold one of the main aspects of the explosive issue on the agenda, in the Brazilian prison system, is the correlation with the dignity of the human person, since the line of maximum principle under the national criminal enforcement system has been a Herculean task, i.e. the differentiated disciplinary regime a said obliteration of human dignity , the alleged severity of the mentioned regime. This time, the coach is to provide a comprehensive overview of the differentiated disciplinary regime, conceiving the positive and negative positions in line with the prevailing law nº 7210 of July 11, 1984, the law of Criminal Execution, to be or not to be the RDD a "21ST century aberration".
Key words: Differentiated Disciplinary Regime. Criminal law enforcement. Human Dignity. 21ST Century Aberration.
Sumário: Introdução. 1. Sistema de Execução Penal e a Lei n. 7.210, de 11 de julho de 1984. 1.1. Breve Análise da Lei de Execução Penal. 2. Direito de Execução Penal e as Finalidades da Pena. 2.1. Teoria Absoluta, Retributiva ou Repressiva. 2.2. Teoria Relativa, Finalista, Utilitária ou Preventiva. 2.3. Teoria Mista, Eclética, Intermediária ou Conciliatória. 3. Regime Disciplinar Diferenciado: Aspectos Gerais e Determinantes. 3.1. A Instituição da Lei n. 10.792, de 1º de dezembro de 2003. 3.2. Análises Positivas e Negativas do Regime Disciplinar Diferenciado. Considerações Finais. Referências Bibliográficas.
Introdução
Ponderar sobre o regime disciplinar diferenciado no sistema de execução penal brasileiro não é tarefa das mais simplistas. Enrico Ferri, no Congresso Penitenciário de Roma, em 1885, definira o regime celular, um viés primitivo do regime disciplinar diferenciado, como uma aberrazioni del secolo XIX – aberração do século XIX. Em face dessa assertiva, será o regime disciplinar diferenciado uma aberração do século XXI? A despeito disso, o fito é desdobrar os principais aspectos, especialmente críticos, no tocante ao regime disciplinar diferenciado, instituto posto no âmbito jurídico-penal brasileiro por intermédio da Lei n. 10.792, de 1º de dezembro de 2003, alterando sobremaneira o texto dos arts. 52, 54, 57, 58 e 60, da Lei n. 7.210 de 11 de julho de 1984, Lei de Execução Penal.
Muito embora seja apenas uma entre tantas leis alteradoras provindas da modernamente denominada “inflação legislativa” (Francesco Carnelutti), fortemente presente num ordenamento jurídico instável e suscetível de legislar sobre quase todos os fatos e fatores da sociedade brasileira, tem-se que a Lei n. 10.792 de 2003 veio a lume para sufragar as demandas criminosas provenientes do crime organizado dentro dos presídios nacionais, como forma de conter ou cortar o contato temporário de possíveis líderes da criminalidade organizada com o mundo exterior, de modo que não descuida o Estado de propiciar um rigoroso processo para que o preso possa ou não ser “beneficiado” com o regime disciplinar diferenciado, com o resguardo de um devido processo legal sob as vistas do Ministério Público e da Defensoria Pública.
Entretanto, é cabal indagar se tal medida urge de concreta efetividade, ou seja: tem o regime disciplinar diferenciado concebido respostas satisfatórias em face de um sistema prisional degradante? Independentemente de ser a resposta positiva ou negativa, o critério por ora reside em analisar o referido instituto, trazendo à baila os prós e os contras ao RDD (Regime Disciplinar Diferenciado). Neste prisma, há que se ter em conta que o RDD é de utilidade exclusivamente interna do sistema penitenciário brasileiro, isto é, trouxe a Lei n. 10.792 de 2003 a possibilidade de consignação de suposta ordem e disciplina no âmbito interno de um determinado presídio, nos casos de previsível desatino por parte daquele que corresponda aos ditames do referido comando legal: reclusos de elevado nível de periculosidade, condenados ou provisórios que comentam fato previsto como crime doloso e ocasionem subversão da ordem e disciplina do sistema penitenciário.
Desta sorte, traz-se no bojo do ofertado artigo, um estudo sintético do sistema de execução penal no Brasil, buscando desvendar suas funções e finalidades. Por outro lado, urge relatar o contexto das finalidades da pena, de modo a propiciar uma necessária compreensão e correlação da aplicabilidade do regime no sistema repressivo, ressaltando-se que repressão não é sinônimo de ressocialização e, verificar-se-á se no cumprimento do regime em pauta, se é o preso, de alguma forma, ressocializado, sendo este um entre tantos detalhes críticos que conferem um ar de incerteza ao RDD.
Destarte, ter-se-á o fulcro da pesquisa, que é desdobrar as funções do regime disciplinar diferenciado. Nessa medida, um dos grandes debates doutrinários desde que a Lei n. 10.792 de 2003 fora promulgada, é justamente se o regime disciplinar diferenciado está ou não a par dos princípios constitucionais. Visualiza-se a ressocialização como eixo da problemática, pois discorrer sobre regime disciplinar diferenciado ou qualquer regime de cumprimento de pena sem abranger a ressocialização, um dos eixos norteadores da Lei n. 7.210 de 1984, Lei de Execução Penal, é aspecto deveras faltoso, já que nas finalidades da pena, em quaisquer de seus regimes aplicados, há tanto o caráter repressor quanto ressocializador da reprimenda.
Em face disso, num Estado Democrático de Direito, no cerne do qual cada indivíduo, incluindo tanto os dotados quanto os privados de liberdade, tecer uma análise minuciosa do regime disciplinar diferenciado significa descurar se princípios indispensáveis são plenamente garantidos no RDD, tais como o devido processo legal, a presunção da inocência ou da não culpabilidade ou o princípio da dignidade da pessoa humana. Coerente que se prevaleça, no mais, em todas as searas do ordenamento, o fiel e espontâneo cumprimento do que afere o Texto Magno, qual seja, a garantia dos direitos fundamentais, perspectivas sobre as quais será analisado o regime disciplinar diferenciado.
1. Sistema de Execução Penal e a Lei n. 7.210, de 11 de julho de 1984
1.1. Breve Análise da Lei de Execução Penal
Em linhas gerais, o sistema de execução penal brasileiro adveio de um lento e paulatino desenvolvimento dos mecanismos de execução da pena. O direito de execução penal brasileiro, nas primeiras décadas do século passado, distinguia-se por direito penitenciário, objeto de determinante influência francesa dos estudos em torno da ciência penitenciária e dos direitos da pessoa humana do preso (ALBERGARIA, 1992, p. 95). Frise-se que em sua integralidade, o sistema de execução penal está em permanente mudança, seja nas medidas administrativas seja nas medidas legais, sendo o regime disciplinar diferenciado um capítulo desenvolvido após intensos reveses na própria criminalidade, pois em décadas passadas, não havia o crime organizado em larga escala na sociedade brasileira e no sistema penitenciário, de modo a constituir-se em lei um regime especial de cumprimento de pena.
Conceituando o que a vem a ser direito penitenciário, assevera Jason Albergaria, um dos participantes da comissão idealizadora do projeto que deu origem à Lei de Execução Penal de 1984, que “consiste no conjunto de normas jurídicas que regulam toda a execução penal e seu objetivo, bem como no conjunto de normas jurídicas que regulam o tratamento penitenciário e a organização penitenciária” (1992, p. 102). Óbvio relevar que o direito de execução penal, tanto num passado recente quanto no presente concreto, procura atender a objetivos específicos, delineados desde o Anteprojeto do Código Penitenciário de 1933 à vigente Lei n. 7.210 de 1984. Neste plano, o entendimento de Alexis Couto de Brito:
A execução penal pressupõe, obviamente , uma pena concreta. E a pena, para ser aplicada, necessita de um processo. Neste, assim que apurada a existência do fato e sua autoria, aplicar-se-á a pena abstratamente cominada para o tipo de crime praticado. Como consequência, todos os envolvidos no episódio receberão sua parte. A sociedade: o exemplo; o condenado: o tratamento; e a vítima: o ressarcimento (2013, p. 24).
Em direito de execução penal, há diversas diretrizes ofertadas pela legislação com o fim de garantir a satisfativa medida executória da pena, muito embora com todos os problemas perceptíveis em um sistema penitenciário caótico e desestruturado, como é forçoso aduzir. Hoje, tem-se a referida Lei n. 7.210 de 1984 como uma das mais bem elaboradas normas de execução penal do mundo, apesar das consideráveis críticas da doutrina e da jurisprudência brasileira e do atual projeto de reforma da dita norma, em trâmite no Senado Federal, mais por conta da estrutura administrativa propiciada – ou não propiciada – pelo Estado do que normativa, em verdade.
De acordo com análise de Alexis Couto de Brito (2013, p. 34), no art. 1º da Lei de Execução Penal consta, como seu objetivo, “efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado”. Conforme esclarecimento de Boschi e Silva, citado por Couto de Brito, pode-se mensurar a efetividade no sentido de tornar concreta a submissão do condenado à sanção imposta. E integração social harmônica porquanto, ao restringir sua liberdade, não poderá execrá-lo do convívio social ao qual deverá retornar.
O dispositivo transmite a intenção de submeter o preso a um tratamento penitenciário, oferecendo-se ao condenado os meios necessários a uma participação construtiva na comunidade. No que concerne ao regime disciplinar diferenciado, não é cabível ao Estado descurar de tais objetivos na aplicação da sanção disciplinar, haja vista que os objetivos da Lei de Execução Penal são de aplicação e exercício integrais aos seus ditames. Pensar de outra forma seria solapar os direitos e garantias fundamentais do atual Estado Democrático de Direito, contumaz solapamento que não se pode conceber na aplicação do regime sub oculum.
2. Direito de Execução Penal e as Finalidades da Pena
Alexis Couto de Brito assevera que “o Direito Penal moderno enfrenta o indivíduo de três maneiras: ameaçando, impondo e executando penas” (2013, p. 33). Assim, objetivamente, no atinente às finalidades da pena, os estudiosos das ciências penais, do passado ao presente, são unânimes em tratar de três principais teorias, quais sejam: teoria absoluta, retributiva ou repressiva; teoria relativa, finalista, utilitária ou preventiva e; teoria mista, eclética, intermediária ou conciliatória. São teorias cujo fim, no mais ou no menos, objetivam um critério plausível para a formatação e aplicação da pena, em função de uma finalidade social e humana condizente com a vigente Lei n. 7.210 de 1984, a Lei de Execução Penal, e principalmente com o tema-objeto do presente artigo, qual seja, o regime disciplinar diferenciado.
2.1. Teoria Absoluta, Retributiva ou Repressiva
No campo da teoria absoluta, retributiva ou repressiva, pode-se aferir como sendo uma teoria pura em suas determinações. Cometido o crime e determinado o seu feitor, incorria este nas devidas e necessárias punições. Desta sorte, Magalhães Noronha aduz que as teorias absolutas
fundam-se numa exigência de justiça: pune-se porque se cometeu crime (punitur quia peccatum est). Negam elas fins utilitários à pena, que se explica plenamente pela retribuição jurídica. É ela simples consequência do delito: é o mal justo oposto ao mal injusto do crime (2009, p. 223).
Pela teoria absoluta, a pena é a consecução do castigo ao injusto praticado pelo criminoso. Daí infere-se a denominação absoluta, pois a punição desta forma deveria prevalecer, pouco relevando as consequências da pena imposta. A finalidade da pena é eminentemente retributiva, sendo um mecanismo necessário para reparar a ordem jurídica violada pelo delinquente. Este, quando pratica um mal, um injusto, é reparado com a inflição de um assim considerado justo. A vantagem das teorias absolutas consiste em agregar à pena a ideia de retribuição e, com isso, estabelecer que a sanção deve ser proporcional à gravidade do fato (ESTEFAM, 2012, p. 321).
2.2. Teoria Relativa, Finalista, Utilitária ou Preventiva
Por conseguinte, com a teoria relativa, finalista, utilitária ou preventiva, instaurou-se uma antevisão à pena, sendo esta um pressuposto básico e urgente para sua determinação. No plano anterior à pena, já teria que se estabelecer uma forma de buscar a prevenção do delito, ou seja, pela pena em si, configura-se, como pronuncia a teoria em comento, uma possibilidade de prevenir o crime, de caráter utilitário. Com propriedade, André Estefam elucida:
Para as teorias finalistas, sua base encontra-se no futuro, pois a pena somente se justifica enquanto fator de prevenção. As teorias da prevenção encaram a pena como fator necessário à segurança social. Não se admite possa a pena servir como simples mecanismo de retribuição. Não se justifica a imposição de um mal tão grave e acentuado sem que haja, por detrás, a busca de um fim ulterior, de uma meta superior. Seus adeptos, então, aduzem que a finalidade superior consistiria justamente em evitar a ocorrência de novos crimes: pune-se para não delinqüir (punitur nepeccetur) (2012, p. 322).
A cominação da pena, no cerne da teoria relativa, aduzia um princípio de segurança social, pois a pena é o pressuposto de urgência na prevenção do crime. Noronha oferta visão mais simplista, porém de relevante definição, com o seguinte raciocínio:
As teorias relativas procuram um fim utilitário para a punição. O delito não é causa da pena, mas ocasião para que seja aplicada. Não repousa na idéia de justiça, mas de necessidade social (punitur nepeccetur). Deve ela dirigir-se não só ao que delinqüiu, mas advertir aos delinqüentes em potência que não cometam crime. Conseqüentemente, possui um fim que é a prevenção geral e particular (2009, p. 223, grifos do autor).
A teoria relativa, de sorte, é um anteposto à teoria absoluta. Se por esta implica na imposição do castigo, naquela, urge o efeito preventivo do delito. Da teoria relativa propugnou-se dois sistemas de determinante relevância: o da prevenção geral e o da especial. O primeiro destinado a controlar a violência, no terreno anterior à prática do crime, utilizando-se para tanto, à vista de exemplo, dos instrumentos normativos. A segunda no que se refere ao direcionamento à figura do delinquente já condenado, sendo a ressocialização o eixo norteador da prevenção especial, o que, não por menos, é prerrogativa crítica no sistema de execução penal brasileiro.
2.3. Teoria Mista, Eclética, Intermediária ou Conciliatória
Por derradeiro, no que concerne à teoria mista, eclética, intermediária ou conciliatória, ou simplesmente teoria mista, como a própria denominação aduz, é uma consonância da teoria absoluta com a relativa, ou seja, com a aplicação da pena figura a retribuição em simetria com a prevenção, tanto geral quanto especial. É a teoria mais plausível entre todas, cujo mister foi abarcado pelo art. 59, caput, do Código Penal brasileiro, no seio do qual consta a correspondência entre reprovação e prevenção do crime.
E. Magalhães Noronha ensina que “as teorias mistas conciliam as precedentes. A pena tem índole retributiva, porém objetiva os fins de reeducação do criminoso e de intimidação geral. Afirma, pois, o caráter de retribuição da pena, mas aceita sua função utilitária” (2009, p. 223). Bem ponderou o vigente Código Penal ao estabelecer em lei o pressuposto da teoria mista, embora, como é factível, mais contundente é a repressão do que a prevenção no cerne da sociedade brasileira. Em conclusão, o supracitado e renomado penalista expõe o seguinte escrutínio:
Realmente, uma coisa é afirmar o conceito da pena e outra, seu fim. A pena é retribuição, é privação de bens jurídicos, imposta ao criminoso em face do ato praticado. É expiação. Antes de escrito nos Códigos, está profundamente radicado na consciência de cada um que aquele que praticou um deve também um mal sofrer. Não se trata da lex talionis, e para isso a humanidade já viveu e sofreu muito; porém é imanente em todos nós o sentimento de ser retribuição do mal feito pelo delinqüente. Não como afirmação de vindita, mas como demonstração de que o direito postergado protesta e reage, não apenas em função do indivíduo, mas também da sociedade (2009, p. 223, grifos do autor).
É essencial que se tenha em mente a importância da aplicação do art. 59 do Código Repressivo na consecução dos fins e objetivos da pena, tanto como a finalidade da pena em voga que é reprimir e restaurar o recluso. Princípios como o da individualização e da proporcionalidade das penas são basilares para a mantença da dignidade humana nos sistemas prisionais, bem como para aferir a efetividade do regime disciplinar diferenciado em face dos princípios constitucionais penais.
3. Regime Disciplinar Diferenciado: Aspectos Gerais e Determinantes
Desta feita, urge dissecar os matizes do regime disciplinar diferenciado. A exposição das finalidades da pena tem por mister esclarecer o efetivo posicionamento do regime disciplinar diferenciado no direito de execução penal. De princípio, pode-se aferir que o regime disciplinar diferenciado – descrito pela sigla RDD – é medida disciplinar de cunho alternativo no âmbito do direito de execução penal. É instituto, conforma versado anteriormente, calcado em posicionamentos contrários e favoráveis, por ora sem possibilidade de consenso na doutrina, porém com pacificidade na jurisprudência, como será delineado. Segundo Prado, Hammerschmidt, Maranhão e Coimbra:
Matéria controvertida que enseja inúmeros debates na doutrina nacional é o tema referente à criação do regime disciplinar diferenciado. Desde sua origem, tem essa forma diferenciada de implantação de um preso, dentro de uma unidade penal, críticos e adeptos. Ocorre que esse instituto surgido em meio ao emaranhado penitenciário de medidas e soluções caóticas, ante a realidade do sistema carcerário, hodiernamente vem sendo aplicado nos presídios brasileiros, enquanto a reflexão acerca de sua eficácia no plano fático, que deveria coadunar com o ordenamento jurídico-penal, proveniente de um Estado democrático de Direito, ainda se mostra diminuta (2013, p. 105).
Nos ensinamentos do insigne Júlio Fabrini Mirabete (2004, p. 149), o regime disciplinar diferenciado foi concebido para atender às necessidades de maior segurança nos estabelecimentos penais e de defesa da ordem pública contra criminosos que, por serem líderes ou integrantes de facções criminosas, são responsáveis por constantes rebeliões e fugas ou permanecem, mesmo encarcerados, comandando ou participando de quadrilhas ou organizações criminosas atuantes no interior do sistema prisional e no meio social. Tem-se, de sorte, o motivo da implantação de tão controverso instituto: o crime organizado.
É notório que, em sede nacional, com o passar dos anos, mais tem se organizado o crime do que o próprio Estado no combate ao crime, numa breve vista de olhos. Daí nada mais natural efetivar mecanismos para coibir as organizações criminosas na seara dos presídios brasileiros, pois se o Estado não pode ou não possui meios para controlar o crime organizado fora das penitenciárias, de alguma forma deveria e deve controlá-lo no interior dos estabelecimentos penais, e o regime disciplinar diferenciado veio à luz para conceber tal mister. No desiderato de Alexis Couto de Brito:
O regime disciplinar diferenciado, conhecido pela sigla RDD, teve sua gênese no Estado de São Paulo, com a edição da Res. 26/2001 da Secretaria de Administração Penitenciária, que alegando necessidade de “combater” o desenfreado crescimento da criminalidade organizada, previa a possibilidade de isolamento do preso por até 360 dias, desde que aplicado a líderes de facções criminosas ou portadores de comportamentos inadequados. Começou a ser aplicado na penitenciária de Presidente Bernardes, considerada de segurança máxima (2013, p. 174).
Por meio do enunciado supramencionado, pode-se auferir que o regime disciplinar diferenciado teve como móvel-propulsor o crime organizado que obteve status desmesurado no Estado de São Paulo, com facções diversas entre as quais destaca-se o Primeiro Comando da Capital, o PCC. Mas, em vista disso, é cabível o RDD há presos outros que, de alguma forma, demonstrarem elevado nível de periculosidade criminal, cujo comportamento resulta em desordens ou crimes dolosos dentro das penitenciárias, de acordo com os critérios legais que serão descortinados no passo posterior.
3.1. A Instituição da Lei n. 10.792, de 1º de dezembro de 2003
A Lei n. 10.792, de 1° de dezembro de 2003, trouxe consideráveis alterações à Lei n. 7.210 de 1984, a Lei de Execução Penal. Doutrinariamente, os estudiosos da execução penal tratam de expor os requisitos e modalidades atinentes ao regime disciplinar diferenciado, nos moldes do que consta nos artigos reformados da Lei n. 7.210 de 1984, em decorrência da Lei n. 10.792 de 2003. Outros mais, além de ofertarem uma exegese da exposição normativa, enumeram os pontos negativos do regime que, segundo parcela doutrinária, atinge as raias da inconstitucionalidade, já que diversos direitos da pessoa humana do preso são supostamente fustigados pelo regime. Por ora, urge alinhar os posicionamentos com base normativa, próprios para elucidar os principais e importantes matizes do regime disciplinar diferenciado.
Assim sendo, segundo a lição de Guilherme de Souza Nucci (2013, p. 1.038):
Introduzido pela Lei 10.792/2003, o regime disciplinar diferenciado é, em síntese, caracterizado pelo seguinte: a) duração máxima de 360 dias, sem prejuízo de repetição da sanção por nova falta grave de mesma espécie, até o limite de um sexto da pena aplicada; b) recolhimento em cela individual; c) direito de saída da cela para banho de sol por duas horas diárias (art. 52, incisos I a IV, Lei 7.210/84).
Paulo Queiroz, por sua vez, traz a seguinte compreensão:
O RDD tem as seguintes características: a) duração máxima de trezentos e sessenta dias, sem prejuízo de repetição da sanção por nova falta grave de mesma espécie, até o limite de um sexto da pena aplicada; b) recolhimento em cela individual; c) visitas semanais de duas pessoas, sem contar crianças, com duração de duas horas; d) o preso terá direito à saída da cela por duas horas diárias para banho de sol. Para decretá-lo, o juiz competente, que deverá previamente ouvir o Ministério Público e a defesa, considerará a natureza, os motivos, as circunstâncias e as consequências do fato, bem como a pessoa do faltoso e seu tempo de prisão (2012, p. 482).
Num mais abrangente posicionamento, aduz André Estefam:
O regime disciplinar diferenciado foi instituído em âmbito nacional pela Lei nº 10.792, de 1º-12-2003. Dispõe o art. 52 da LEP: “Art. 52. A prática de fato previsto como crime doloso constitui falta grave e, quando ocasione subversão da ordem ou disciplina internas, sujeita o preso provisório, ou condenado, sem prejuízo da sanção penal, ao regime disciplinar diferenciado, com as seguintes características: I – duração máxima de trezentos e sessenta dias, sem prejuízo de repetição por nova falta grave de mesma espécie, até o limite de um sexto da pena aplicada; II – recolhimento em cela individual; III – visitas semanais de duas pessoas, sem contar as crianças, com duração de duas horas; IV – o preso terá direito à saída da cela por duas horas diárias para banho de sol. § 1º. O regime disciplinar diferenciado também poderá abrigar presos provisórios ou condenados, nacionais ou estrangeiros, que apresentem alto risco para a ordem e a segurança do estabelecimento penal ou da sociedade. § 2º. Estará igualmente sujeito ao regime disciplinar diferenciado o preso provisório ou o condenado sob o qual recaiam fundadas suspeitas de envolvimento ou participação, a qualquer título, em organizações criminosas, quadrilha ou bando (2012, p. 344-345).
Por todas as características descritas, percebe-se que a inclusão no regime disciplinar diferenciado por alguma ação realizada pelo preso, somente ocorre no caso descrito no caput do art. 52 da LEP, pois as expressões “alto risco” e “fundadas suspeitas”, presentes nos §§ 1º e 2º desse artigo, envolvem juízo subjetivo, que não se coaduna com o princípio da taxatividade, regente da aplicação das sanções disciplinares (PRADO; HAMMERSCHMIDT; COMIBRA, 2013, p. 106). Há diversos e indispensáveis aspectos para que seja efetivamente aplicado o regime em comento, sob risco de findar em descrédito ou nulidade da decisão. Nesta toada, Mirabete dispõe o seguinte posicionamento:
Estão sujeitos à inclusão cautelar no regime disciplinar diferenciado o condenado que cumpre pena privativa de liberdade e o preso provisório, decorre de flagrante, pronúncia, decretação da prisão preventiva ou sentença condenatória recorrível. Na hipótese do § 2º do art. 52, porque exige a lei fundadas suspeitas de envolvimento do preso em organização criminosa de qualquer espécie, não é pressuposto para a inclusão anterior condenação pelo crime de quadrilha ou bando. A simples condenação pelo crime previsto no art. 288 do CP não é suficiente, porém, para a inclusão do preso no regime disciplinar diferenciado, impondo-se que em razão de suas associações criminosas sua manutenção no regime comum acarrete risco à segurança do estabelecimento ou à sociedade (2004, p. 151, grifos do autor).
Para consignar os requisitos necessários aptos a dar consumação e aplicabilidade ao regime disciplinar diferenciado, Guilherme de Souza Nucci (2013, 1.038) preleciona que o RDD somente poderá ser decretado pelo juiz da execução penal, desde que proposto, em requerimento pormenorizado, pelo diretor do estabelecimento penal ou por outra autoridade administrativa como, por exemplo, o Secretário da Segurança Pública ou da Administração Penitenciária, ouvido previamente o membro do Ministério Público e a defesa, nos moldes do art. 54 e parágrafos da LEP. Embora o juiz tenha o prazo máximo de 15 dias para decidir a respeito, a autoridade administrativa, em caso de urgência, pode isolar o preso preventivamente, por até dez dias, aguardando a decisão judicial, no dizer do art. 60, da LEP.
Aduz Nucci, que os prazos, no entanto, deveriam coincidir, ou seja, se o juiz tem até 15 dias para deliberar sobre o regime disciplinar diferenciado, o ideal seria que a autoridade administrativa tivesse igualmente 15 dias para isolar o preso, quando fosse necessário. Nada impede, aliás recomenda, no entanto, que o juiz, alertado de que o preso já foi isolado, decida em dez dias, evitando-se alegação de constrangimento ilegal. O tempo de isolamento provisório será computado no período total do regime disciplinar diferenciado, como uma autêntica detração. Em síntese, tais são as características em voga no regime disciplinar diferenciado, partindo-se, de agora, às análises positivas e negativas do instituto.
3.2. Análises Positivas e Negativas do Regime Disciplinar Diferenciado
Faz-se necessário discorrer sobre os recepcionamentos positivos e negativos do regime disciplinar diferenciado em sede de doutrina jurídico-penal. De outrora, já aferia H. Donnedieu de Vabres (1938, p. 204), sobre o regime celular, que “é certo que falharam as singulares esperanças que nele se fundaram, contando com o isolamento prolongado, contrário aos instintos de sociabilidade do homem, para produzir a correção!”. E prossegue o antigo Professor da Faculdade de Direito de Paris que acusam o regime celular de produzir o embrutecimento e, dentro em breve, a alienação mental. “O regime celular é, todavia, aflitivo: aflitivo para os prisioneiros cuja vida intelectual é mais pobre; aflitivo para aqueles a quem nenhum contato repugna; aflitivo para os mais perversos. Os seus partidários preconizam-no, hoje, mais pelo seu valor intimidativo do que pelo seu valor reformador”.
Paulo Queiroz desponta na corrente denegridora do regime disciplinar diferenciado, com baldadas razões, explicitando que “além dos regimes fechado, semiaberto e aberto, há agora o regime disciplinar diferenciado (LEP, art. 52), fechadíssimo, espécie de prisão no interior da prisão, aplicável àquele que se achar preso provisória ou definitivamente (2012, p. 482).” Embora a majoritária jurisprudência dos tribunais confiram legitimidade ao regime disciplinar diferenciado, é oportuna a crítica de Paulo Queiroz, pois num dito Estado Democrático de Direito, com leis promulgadas quase que rotineiramente, há que se ter efetivo cuidado na interpretação e principalmente na aplicação de seus preceitos. E complementa o assinalado Procurador da República:
Conforme assinalamos, trata-se de pena cruel e degradante, que atenta contra a dignidade da pessoa humana, logo, inconstitucional, além de não ter finalidade educativa alguma, que assim frustra os fins que se propõe a Lei de Execução Penal (art. 1º), por vedar em caráter quase absoluto todo e qualquer contato com o mundo exterior e interior, bem como impedir o exercício de direitos básicos previstos na LEP, como o direito ao lazer, praticar atividades desportivas etc. Não bastante isso, a circunstância de o preso apresentar “alto risco para a ordem e segurança do estabelecimento penal ou da sociedade” constitui a razão mesma da privação da liberdade em presídio de segurança ou média (normalmente); então submetê-lo a novas restrições no seu interior constitui manifesto bis in idem, próprio de um direito penal do inimigo, castigando-o duplamente pelo crime já objeto da prisão cautelar ou definitiva. Ademais, se determinado preso for realmente capaz de representar alto risco para a segurança do estabelecimento prisional, não será com um tal castigo que se resolverá o problema, que a rigor a ele não pode ser imputado, mas à própria administração, que deverá encontrar meios de resolver eventuais conflitos legalmente e sem abusos. E mais: como falar de “alto risco para a sociedade” se o réu já se encontra encarcerado? O mesmo deve ser dito da “fundada suspeita de envolvimento ou participação em organizações criminosas ou quadrilha ou bando”. No mais, a lei ofende os princípios da legalidade e da presunção de inocência, entre outros (2012, p. 482).
Muito se discute quanto à concreta constitucionalidade do regime disciplinar diferenciado. E as opiniões se dividem a favor e contra sua aplicação. E, embora o STF e o STJ já tenham se pronunciado pela constitucionalidade do instituto, aparentemente a razão está com quem refuta sua aplicação. Nesse prisma, fortes são as palavras da Min. Maria Thereza Rocha de Assis Moura: a inovação do RDD “mutilou os princípios e objetivos norteadores da execução penal” (BRITO, 2013, p. 176-177). Alexis Couto de Brito argumenta, com clareza e eficiência, que Roberto Lyra, mesmo sem o desprazer de presenciar o surgimento do RDD, posicionava-se radicalmente contra qualquer isolamento celular.
Para o mestre, segundo Alexis Couto, “a célula não corresponde a qualquer dos requisitos e dos fins da pena considerada do ponto de vista do interesse social. O isolamento deprime ou excita o espírito anormalmente, preparando o terreno para as chamadas psicoses carcerárias”. E arremata: “em vez de esperado arrependimento, sobrevém, em regra, o desespero ou a insensibilidade. O argumento de que o isolamento contínuo serve melhor à individualização, aliás falso, pela simples razão de que se procura adaptar o sentenciado por meios sociais, não à prisão e à solidão, mas à liberdade e à convivência, não pode ser acolhido” (2013, p. 177).
Guilherme de Souza Nucci (2013, p. 1.039) atesta que é perceptível a severidade inconteste do mencionado regime, infelizmente criado para atender às necessidades prementes de combate aos líderes do crime organizado que, de dentro dos presídios brasileiros, continuam a atuar na condução dos negócios criminosos fora do cárcere, além de incitarem seus comparsas soltos à prática de atos delituosos graves de todos os tipos. Por tal razão, pondera Nucci que é preciso que o magistrado encarregado da execução penal tenha a sensibilidade que o cargo lhe exige para avaliar a real e efetiva necessidade de inclusão do preso, especialmente do provisório, cuja inocência pode ser constatada posteriormente, no RDD.
O regime disciplinar diferenciado, após incorrer-se em preponderante análise de seus requisitos, faz-se imergir em ponderações acerca de sua efetiva constitucionalidade, pois conforme denotava Enrico Ferri, ilustre criminalista italiano, há cem anos, “esta inútil, estúpida, desumana, custosíssima ‘tumba de seres vivos’ não é admissível, sendo desumana por atrofiar o instinto social e tornar inevitável a loucura entre os presos” (BRITO, 2013, p. 177). Ferri, conforme já delineado, considerava o isolamento celular uma aberrazioni del secolo XIX.
Mercê dessa diretriz, em detida e preciosa análise, com vistas a conceber um efetivo raciocínio em torno do regime disciplinar diferenciado, há a preleção de Guilherme de Souza Nucci, profusa, mas necessária à plena compreensão da problemática em apenso:
Em face do princípio constitucional da humanidade, sustentando ser inviável, no Brasil, a existência de penas cruéis, debate-se a admissibilidade do regime disciplinar diferenciado. Diante das características do mencionado regime, em especial, do isolamento imposto ao preso durante 22 horas por dia, situação que pode perdurar por até 360 dias, há argumentos no sentido de ser essa prática uma pena cruel. Pensamos, entretanto, que não se combate o crime organizado, dentro ou fora dos presídios, com o mesmo tratamento destinado ao delinquente comum. Se todos os dispositivos do Código Penal e da Lei de Execução Penal fossem fielmente cumpridos, há muitos anos, pelo Poder Executivo, encarregado de construir, sustentar e administrar os estabelecimentos penais, certamente o crime não estaria, hoje, organizado, de modo que não haveria necessidade de regimes como o estabelecido pelo art. 52 da Lei de Execução Penal. A realidade distanciou-se da lei, dando margem à estruturação do crime, em todos os níveis. Mas, pior, organizou-se a marginalidade dentro cárcere, o que é situação inconcebível, mormente se pensarmos que o preso deve estar, no regime fechado, à noite, isolado em sua cela, bem como, durante o dia, trabalhando ou desenvolvendo atividades de lazer ou aprendizado. Diante da realidade, oposta ao ideal, criou-se o RDD. Tanto quanto a pena privativa de liberdade, é o denominado mal necessário, mas não se trata de uma pena cruel. Proclamar a inconstitucionalidade desse regime, fechando os olhos aos imundos cárceres aos quais estão lançados muitos presos no Brasil é, com a devida vênia, uma imensa contradição. Constitui situação muito pior ser inserido em uma cela coletiva, repleta de condenados perigosos, com penas elevadas, muitos deles misturados aos presos provisórios, sem qualquer regramento e completamente insalubre, do que ser colocado em cela individual, longe da violência de qualquer espécie, com mais higiene e asseio, além de não se submeter a nenhum tipo de assédio de outros criminosos. Há presídios brasileiros, onde não existe o RDD, mas os presos matam outros, rebeliões são uma atividade constante, fugas ocorrem a todo momento, a violência sexual não é contida e condenados contraem doenças gravíssimas. Pensamos ser essa situação mais séria e penosa que o regime disciplinar diferenciado. Obviamente, poder-se-ia argumentar, que um erro não justifica outro, mas é fundamental lembrar que o erro essencial provém, primordialmente, do descaso de décadas com o sistema penitenciário, gerando e possibilitando o crescimento do crime organizado dentro dos presídios. Ora, essa situação necessita de controle imediato, sem falsa utopia. Ademais, não há direito absoluto, como vimos defendendo em todos os nossos estudos, razão pela qual a harmonia entre direitos e garantias é fundamental. Se o preso deveria estar inserido em um regime fechado ajustado à lei, o que não é regra, mas exceção, a sociedade também tem direito à segurança pública. Por isso, o RDD tornou-se uma alternativa viável para conter o avanço da criminalidade incontrolada, constituindo meio adequado para o momento vivido pela sociedade brasileira. Em lugar de combater, idealmente, o regime disciplinar diferenciado, pensamos ser mais ajustado defender, por todas as formas possíveis, o fiel cumprimento às leis penais e de execução penal, buscando implementar, na prática, os regimes fechado, semiaberto e aberto, que, em muitos lugares, constituem simples quimeras. A jurisprudência encontra-se dividida, porém, a maioria dos julgados tem admitido a constitucionalidade do regime disciplinar diferenciado (2013, p. 1.040, grifos do autor).
No enunciado exposto por Nucci, é apreciável que o problema não incorre somente em aspectos normativos decorrentes da Lei n. 10.792 de 2003. Há uma miríade de fatores especialmente de cunho executivo que fazem do regime disciplinar diferenciado um mal necessário ou, aliás, a pena de prisão é um mal necessário, na vívida definição de Michel Foucault. Não obstante as determinações que foram levantadas para a edição da Lei n. 10.792 de 2003, pelo fato da insurgência do crime organizado, deve-se lapidar a aplicação do instituto, sob risco de padecer de violação de princípios essenciais, como o da proporcionalidade, tipicidade, humanidade das penas e da dignidade humana.
Em vista das posições negativas supramencionadas, consigna-se por oportuno os posicionamentos favoráveis ao regime disciplinar diferenciado. Neste diapasão, eis a percepção de André Estefam:
Muito embora existam severas críticas ao regime disciplinar diferenciado, entendemos que ele não viola a Constituição Federal, uma vez que o Texto Maior autoriza a privação da liberdade (art. 5º, XLVI), sem distinguir se o preso deva permanecer em estabelecimento individual ou coletivo. Além disso, a colocação do preso em regime de isolamento celular, desde que por uma fração de sua pena e em situações excepcionais e justificadas, configura medida necessária à eficácia do cumprimento da pena e à defesa da sociedade (2012, p. 345).
Estefam colaciona que já se posicionou o STF em julgamento de habeas corpus que nossos tribunais superiores já julgaram, em caráter incidental, em diversas oportunidades, habeas corpus impetrados por pessoas inseridas no regime disciplinar diferenciado, tendo sempre proclamado a validade da medida (STF, HC 93.391, rel. Min. Cezar Peluso, j. 15-5-2008; STJ, HC 92.714, rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, j. 6-12-2007). No mesmo sentido, ou seja, da corrente favorável ao regime disciplinar diferenciado, Luiz Regis Prado oferta esclarecedor julgado, desta vez do STJ:
“Execução Penal – Regime Disciplinar Diferenciado – Admissibilidade – Legitimidade da atuação estatal que visa dar efetividade à crescente necessidade de segurança nos estabelecimentos penais – Magistrado que apreciou todas as teses da defesa, bem como motivou adequadamente, pelo exame percuciente das provas, a inclusão do acusado no Regime Disciplinar Diferenciado – Aplicação do princípio da proporcionalidade – Inteligência dos arts. 52 e 54 da Lei 7.210/84. Considerando-se que os princípios fundamentais consagrados na Carta Magna não são ilimitados (princípio da relatividade ou convivência das liberdades públicas), vislumbra-se que o legislador, ao instituir o Regime Disciplinar Diferenciado, atendeu ao princípio da proporcionalidade. Legítima a atuação estatal, tendo em vista que a Lei 10.792/2003, que alterou a redação do art. 52 da Lei de Execuções Penais, busca dar efetividade à crescente necessidade de segurança nos estabelecimentos penais, bem como resguardar a ordem pública, que vem sendo ameaçada por criminosos que, mesmo encarcerados, continuam comandando ou integrando facções criminosas que atuam no interior do sistema prisional – liderando rebeliões que não raro culminam com fugas e mortes de reféns, agentes penitenciários e/ou outros detentos – e, também, no meio social. Aferir a nulidade do procedimento especial, em razão dos vícios apontados, demandaria o revolvimento do conjunto fático-probatório apurado, o que, como cediço, é inviável na estreita via do habeas corpus. A sentença monocrática encontra-se devidamente fundamentada, visto que o magistrado, ainda que sucintamente, apreciou todas as teses da defesa, bem como motivou adequadamente, pelo exame percuciente das provas produzidas no procedimento disciplinar, a inclusão do paciente no Regime Disciplinar Diferenciado, atendendo, assim, ao comando do art. 54 da Lei de Execuções Penais. (STJ – HC 40.300-RJ-5ª T. – Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima – j. 07.06.2005 – v.u. – DJU 22.08.2005).
Por outro lado, para tornar a análise mais próxima do contexto fático-jurídico possível, plausível é a recente decisão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, sendo que, após ter negado, inicialmente, a transferência de Marcos Camacho, o “Marcola”, um dos chefes do Primeiro Comando da Capital (PCC), para um regime de prisão mais duro, a Justiça de São Paulo revisou sua decisão e determinou que o “bandido” seja colocado em isolamento. Marcola passou a cumprir pena de acordo com as regras do regime disciplinar diferenciado no Presídio de Segurança Máxima de Presidente Bernardes, no Estado de São Paulo. Outros três líderes da facção também foram transferidos para o RDD.
Segundo o Tribunal de Justiça, o regime de isolamento previsto é de 22 horas por dia por um período de sessenta dias. Nesse regime, o detento permanece em cela individual com somente duas horas de banho de sol, sem direito a visitas íntimas e acesso ao noticiário. A transferência, confirmada pelo Tribunal de Justiça, é baseada em pedido da Segurança Pública de São Paulo e da Secretaria de Administração Penitenciária, depois da descoberta de um plano de fuga desses presos da Penitenciária de Presidente Venceslau (ALVES, 2014).
Ante o exposto, na prática, o regime não encontra desfavores, mas tem-se os requisitos essenciais dispostos na Lei n. 7.210 de 1984 como mecanismos aptos a amparar a aplicação do regime. Se o indivíduo recluso, em decorrência da ameaça de fuga ou quaisquer perigosidade com que possa vir a acarretar ao estabelecimento ou à sociedade, como é o caso do citado “Marcola”, nada mais cabível a temporária privação de contato com o exterior, evidentemente com respaldo nos direitos e garantias fundamentais, inerentes mesmo aos mais perigosos criminosos. Conforme julgado do STF: "O regime disciplinar diferenciado é sanção disciplinar, e sua aplicação depende de prévia instauração de procedimento administrativo para apuração dos fatos imputados ao custodiado" (HC 96.328, rel. min. Cezar Peluso, julgamento em 2-3-2010, Segunda Turma, DJE de 9-4-2010).
O fiel cumprimento dos requisitos delineados na Lei de Execução Penal, no concernente ao regime disciplinar diferenciado, são determinantes para que não hajam contradições em sua imposição, como a desatenção aos princípios penais e constitucionais, hipótese cuja reprovabilidade não pode ser de qualquer forma permitida num Estado Democrático de Direito. Se, por um acaso ocasional das coisas, ocorrer o solapamento dos direitos fundamentais do preso no cumprimento do RDD, nada mais concreto que responsabilizar o Estado pelo desatino, pois ao mesmo tempo em que garante direitos e garantias fundamentais, deve por primazia fazer cumpri-los.
Considerações Finais
Em arremate final, o presente artigo, objeto de pesquisa eminentemente doutrinária e jurisprudencial, constata que o regime disciplinar diferenciado urge de aplicabilidade, embora com ressalvas em suas determinações. Tem-se que a função do Estado em ofertar segurança aos cidadãos é limitada, fator conhecido do povo e pelas mais variadas motivações, desde a mais sublime a mais fútil. Propiciar medidas legais de cerceamento da liberdade é uma coisa; tornar uma medida de cerceamento da liberdade um móvel para garantir estabilidade e segurança nos sistemas penais é outra plenamente diferente, pois em tratando-se de sistema prisional brasileiro, todos os riscos necessitam de instigante fiscalização por órgãos como Ministério Público e Defensoria Pública, abarcados que foram pela Lei n. 10.792 de 2003.
Assim, em análise, Roberto Lyra, penalista de nomeada, célebre pela perspicácia de seus argumentos, já delineava que “o número crescente de presos foi pretexto para murá-los e ainda emparedá-los, engradá-los, aferrolhá-los, sem prejuízo dos guardas e soldados armados como para a guerra. Cavernas, naturais ou não, subterrâneos, túmulos, fossas, torres, tudo servia para prender. Depois, vieram as prisões para ‘salvar’, ‘regenerar’, ‘recuperar’, ‘corrigir’, ‘emendar’, ‘reformar’ e outras mentiras”. No regime disciplinar diferenciado, observa-se um contraponto no vigente sistema de direito penal mínimo recorrente em sede Brasil, com o direito penal máximo, vívido em países como Estados Unidos. A questão central é possibilidade de o regime disciplinar diferenciado ferir de morte princípios essencialíssimos como dignidade da pessoa humana, devido processo legal, presunção de inocência, reserva de jurisdição, individualização da pena e tipicidade penal.
Se o RDD não é inteiramente recepcionado pela doutrina, sendo poucos os que conclamam pela invalidade do instituto, há um problema, cuja solução somente findará no ato do STF instaurar ação declaratória de inconstitucionalidade, possibilidade pouco concreta de se realizar, em vista do posicionamento favorável da Suprema Corte pela mantença do regime no ordenamento jurídico. Pode-se dizer que o regime disciplinar diferenciado não é de todo incoerente, pois medidas hão que ser tomadas para conter possíveis riscos aos estabelecimentos prisionais, já combalidos pelo desgaste e descaso do Poder Executivo. Se o crime organizado dia após dia arremata mais asseclas para conferir maior abrangência na sociedade brasileira, tanto mais deve o Estado organizar-se, seja com medidas administrativas, seja com medidas legais, mas condizentes com a segurança social e o interesse público, não sendo o RDD, destarte, uma aberrazioni del secolo XXI.
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Especialista em Direito Internacional e Direitos Humanos pelo Centro Universitário e Faculdades Uniftec (UNIFTEC). Especialista em Direitos Difusos e Coletivos pela Faculdade Complexo de Ensino Renato Saraiva (CERS). Pesquisador com concentração em Direito e Processo Penal Internacional, Cooperação Jurídica Internacional e Direitos Humanos. Graduado em Direito pelo Instituto Luterano de Ensino Superior de Porto Velho/RO (ILES/ULBRA). Assessor Jurídico do Ministério Público do Estado de Rondônia. E-mail: [email protected].
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GARCEZ, Junior D. S.. Regime disciplinar diferenciado: aberrazioni del secolo XXI? Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 13 nov 2015, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/45471/regime-disciplinar-diferenciado-aberrazioni-del-secolo-xxi. Acesso em: 24 dez 2024.
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