1. INTRODUÇÃO
O presente trabalho cinge-se à controvérsia que tange ao instituto da interrupção do fornecimento de serviços públicos, quando o usuário deixa de pagar o preço que é devido por tal fornecimento. Analisar-se-á, portanto, o princípio da continuidade da prestação do serviço público diante do inadimplemento do usuário.
A título inicial, e apesar da dificuldade apontada pela doutrina para chegar-se a uma definição precisa, pode-se dizer que serviço público é uma atividade atribuída ao Estado pela lei, a que deverá ser prestada direta ou indiretamente, por um regime total ou parcialmente público.
Maria Sylvia di Pietro define serviço público como, ipsis litteris:
“toda atividade material que a lei atribui ao Estado para que a exerça diretamente ou por meio de seus delegados, com o objetivo de satisfazer concretamente às necessidades coletivas, sob regime jurídico total ou parcialmente de direito público”.
Antes de desenvolver o tema do presente trabalho, ainda, é importante ressaltar que a doutrina costuma elencar como princípios regentes da prestação do serviço público as características apresentadas como de um serviço adequado presentes no §1º do art. 6º da Lei n. 8.987/1995, in verbis:
Art. 6º, §1º - Serviço adequado é o que satisfaz as condições de regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade das tarifas.
Assim, consideram-se os seguintes: regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade das tarifas. Especificamente acerca do princípio da continuidade, leciona Carvalho Filho:
“Esse princípio indica que os serviços públicos não devem sofrer interrupção, ou seja, sua prestação deve ser contínua para evitar que a paralisação provoque, como às vezes ocorre, colapso nas múltiplas atividades particulares.”
Em que pese a necessidade da manutenção da continuidade do serviço público, muitas vezes o curso do fornecimento de certos serviços é interrompido, ante o inadimplemento dos usuários. A legalidade da interrupção do serviço não é algo pacífico na doutrina, havendo que se falar primordialmente em três correntes doutrinárias diferentes a respeito da possibilidade de interrupção do serviço público por inadimplemento do usuário.
Parcela dos doutrinadores, dentre os quais se cita Rizzatto Nunes, entende ser incabível a interrupção na prestação do serviço público, entende que absolutamente todos os serviços públicos são essenciais. Considera, assim, ser indevida a interrupção do serviço público, por tratar-se de uma afronta ao princípio da dignidade da pessoa humana, dado que se dispõe de instrumentos processuais hábeis para fazer valer o direito de crédito do prestador do serviço.
Ao seu turno, José Geraldo Brito Filomeno, como integrante de outra corrente doutrinária, leciona ser cabível a interrupção, dada a existência de dispositivo legal nesse sentido:
Art. 6º, §3º da Lei n. 8.987/1995 – Não se caracteriza como descontinuidade do serviço a sua interrupção em situação de emergência ou após prévio aviso, quando:
I- Motivada por razões de ordem técnica ou de seguranças das instalações; e,
II- Por inadimplemento do usuário, considerado o interesse da coletividade.
Prossegue no sentido de que, diante do fato de a gratuidade não ser presumida, em não havendo lei (ou não decorrendo a gratuidade de contrato), não é possível prestar-se um serviço sem a contraprestação do usuário: a boa prestação do serviço perante a coletividade deve prevalecer sobre o interesse do particular inadimplente.
A terceira e última corrente, defendida pelos ilustres José dos Santos Carvalho Filho e Marçal Justen Filho, distingue os serviços compulsórios e facultativos. Serviços com a conotação de facultativos seriam aqueles objetos da relação de consumo, sendo remunerados por tarifa (natureza de preço público), segundo a visão majoritária do Superior Tribunal de Justiça. Aos serviços remunerados por tributos (taxas) não existiria tal facultatividade (e, sim, compulsoriedade), dispondo a Fazenda de mecanismos privilegiados para a cobrança da dívida através da execução fiscal.
Na jurisprudência, pode-se dizer que o entendimento do STJ é majoritariamente na esteira de ser possível a interrupção, havendo, contudo, determinados casos em que tal revela-se indevida. São elas: quando o corte do serviço afetar unidades públicas em que se desenvolvem atividades essenciais, tais como escolas, hospitais públicos, usinas (REsp 460.271/SP); quando afetar interesses inadiáveis da coletividade (em tratando-se, por exemplo, da segurança pública, direito à vida), ao envolver situações especiais relacionadas à dignidade da pessoa humana, alegação de fraude unilateral no medidor ou, finalmente, quando envolver dívidas pretéritas (AgRg no Ag n. 1.401.587/RS).
Nesse sentido, muito embora existam até julgados sobre a matéria por parte dos tribunais, deve-se buscar conciliar a maior gama de princípios constitucionais em caso de inadimplemento do consumidor, o que equivale dizer que, mesmo que, por exemplo, um município esteja inadimplente no que se refere ao pagamento de uma conta de energia, não deve ser cortada a energia dos hospitais, numa clara prevalência do direito à vida sobre o direito de crédito do prestador de serviço.
Conquanto seja o posicionamento majoritário da doutrina no sentido de possibilitar a interrupção na prestação do serviço, este autor acredita que deve ser averiguada a urgência e necessidade do serviço em questão, além do déficit que seu inadimplemento perfaz em prol do comprometimento do serviço perante o restante da população. Caso seu inadimplemento seja, de fato, suficiente para comprometer o bom funcionamento do serviço para terceiros, semelhante ao que propõe o Professor Fabrício Bolzan, deve-se, sim, proceder-se com a interrupção em nome do interesse da coletividade. Se, contudo, sua inadimplência for insuficiente para tal, e, verificar-se a essencialidade do serviço para o usuário e sua família (ponderação entre o princípio da dignidade da pessoa humana e o direito ao crédito), deve-se procurar garantir o crédito por outros meios.
4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 31 ed. São Paulo: Malheiros, 2014.
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 25 ed. São Paulo: Atlas, 2012.
CUNHA JR, DIRLEY. Curso de Direito Administrativo. 13. ed. Salvador: JusPodivm, 2014.
FILOMENO, José Geraldo Brito. Manual de Direito do Consumidor. 10 ed. São Paulo: Atlas, 2010.
PIETRO, Maria Sylvia Zanella di. Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, 1993.
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